Lotus Flower
por Cherry Lou


Challenge: #007
Nota: 9,8
Colocação:




- Onde está papai? – perguntei distraidamente à Janet, assistindo enquanto ela trocava a fralda da pequena Amy, nossa sobrinha recém-nascida.
- Não faço a mínima ideia – ela respondeu mal prestando atenção ao que dizia. – Droga, acho que perdi a prática. – reclamou, trocando Amy desajeitadamente.
Contive o riso ao assistir a cena.
- Você sabe o que eles dizem, Janet. Uma vez que se aprende, nunca mais esquecemos. – respondi.
- Sim, mas veja bem, faz mais de 10 anos que eu não troco uma fralda – ela protestou.
Janet era minha irmã mais velha. Quero dizer, meia irmã, afinal, ela era filha do primeiro casamento do meu pai. Tinha 45 anos, divorciada, e mãe de Anna, minha sobrinha de 16 anos de idade. Bem, era um pouco estranho eu ter uma sobrinha apenas quatro anos mais nova que eu, mas pra quem tinha um irmão quase vinte anos mais velho e outra irmã com exatos vinte e cinco anos a mais, aquilo parecia bem insignificante.
Minha família era mesmo estranha, admito. Meu irmão Mark tinha 39 anos, era casado com Susan e tinha um casal de filhos: Timothy, com 6 anos e a pequena Amy, com apenas 3 meses.
A situação era simples de entender. Depois de viúvo, meu pai se casou com mamãe, que era muito mais jovem que ele. Eles não planejavam ter filhos. Mas então, inesperadamente, minha mãe ficou grávida de mim. E aqui estamos nós: uma família um pouco incomum aos olhos das pessoas.
Estávamos reunidos na casa do nosso pai para a Páscoa. Era nosso costume passar esse tipo de feriado juntos. Nossa família estava dispersa, cada um pra um lado do país, de modo que precisávamos manter essa “rotina” de feriado. Os médicos diziam que era bom, tanto pra mim quanto para o meu pai.
Papai tinha Mal de Alzheimer, então o apoio da família era muito importante. A doença exigia um cuidado especial para ele. Minha mãe achou melhor interná-lo em uma clínica que cuidava dele 24 horas por dia. Nem ela nem nós poderíamos ficar responsáveis por ele. Bastava apenas um deslize e poderia acontecer um desastre, então essa decisão tinha sido tomada por todos os membros da família.
Mas nos feriados, mantínhamos a tradição e o trazíamos para casa. Afinal, era apenas por alguns dias, e todos os filhos estavam presentes para ajudar na segurança de nosso querido pai.
E quanto a mim... bem, não é uma coisa com a qual eu esteja à vontade para falar, mas a verdade é que eu também sou doente. Eu sofro de transtorno bipolar. E não, eu não me torno uma maníaca psicopata ou serial killer de uma hora pra outra. Apenas sofro de alterações de humor. Nada que não pudesse ser controlado com alguns medicamentos.
Mas os terapeutas também insistiam com a coisa da “família unida”. Assim, eu e meu pai tínhamos algo em comum.
Voltando minha atenção a Janet, suspirei e me levantei.
- Vou procurar o papai.
- Relaxa , ele deve estar no jardim, colhendo tulipas pra mamãe. Ele sempre faz isso quando vem pra casa. – ela sorriu.
E era verdade. Minha mãe adorava jardinagem, e por conseqüência, também adorava tulipas. Então, nosso jardim na frente da casa era coberto por tulipas das mais variadas cores. E papai sempre colhia algumas para dar às “mulheres da casa” quando vinha pra cá.
- Espero que esteja certa – caminhei para a porta.
Saindo do quarto, passei por Tim, que estava encostado na parede do corredor tendo um ataque de espirros.
- Você viu seu avô? – perguntei a ele.
Timothy fez sinal negativo com a cabeça, limpando seu narizinho vermelho com um lenço. Me abaixei perto dele.
- Gripe outra vez? – questionei solidária.
- Si-im. – respondeu antes de soltar mais um espirro.
Pobre Tim. Ele sofria de bronquite, então, sempre que o tempo esfriava – o que era quase sempre – ele tinha um ataque desse tipo.
- Já tomou um remédio? – perguntei.
- Ainda não. Mamãe foi... – mais um espirro – Comprar.
Assenti lentamente.
- Então você vai ficar bem – sorri encorajando-o. – Vou procurar seu avô.
E assim, desci as escadas. Perguntei a todos se eles tinham visto papai, mas ninguém sabia nada. E o pior: eles pareciam nem se importar. Ora, se eles queriam que um desastre acontecesse, poderiam ter me avisado.
Suspirando, fiz um pequeno tour pela casa, examinando cada lugar minimamente, mas sempre encontrando tudo vazio. Mamãe estava na cozinha preparando o almoço.
- Acho que papai fugiu de novo – resmunguei a ela.
- Já procurou no jardim? – ela perguntou, mais concentrada na panela em que mexia com a colher algum tipo de molho.
- Se ele estivesse no jardim, era fácil saber mamãe – ironizei, apontando para a janela, que tinha a vista exatamente para a frente da casa.
- Vá procurá-lo então. Eu não posso, estou muito ocupada aqui.
Era só o que faltava, nem minha mãe parecia ligar para o sumiço de papai! Que bela família ele foi arranjar.
- Sempre sobra pra mim mesmo. – dei de ombros.
Lhe dei um beijo na bochecha e fui até a sala. Minha intenção era procurá-lo pelas redondezas, mas assim que abri a porta e olhei lá pra fora, vi que caía uma leve chuva. Como papai poderia ter fugido em condições climáticas tão instáveis? Achei que o Mal de Alzheimer afetava a memória, não a inteligência.
Peguei uma jaqueta e já ia saindo, quando Mark apareceu.
- Onde vai?
- Procurar o papai. – respondi fechando o zíper da jaqueta.
- Vai precisar de um carro. Papai está sumido há um tempão, ele não deve estar mais por perto. Em uma hora dessas, ele já deve ter chegado àquele bairro chique à oeste... – ele disse pensativo.
- Ah, não – fiz uma cara sofrida. – E você só me diz que ele tá sumido agora? Se tivesse procurado por ele antes, não teria ido longe.
- Achei que ele ia voltar sozinho. – ele disse inocentemente.
- Mark! Você sabe muito bem que ele nunca volta sozinho! Ele mal se lembra onde mora. – o repreendi.
- Talvez dessa vez ele se lembre – supôs.
- Argh! Isso tudo é preguiça de ir procurá-lo você mesmo? – perguntei indignada.
- Tenho que ficar pra cuidar do Tim, a Susan foi comprar alguns remédios e até agora não voltou.
- Mamãe ou Janet podem cuidar dele pra você. – falei seca.
- Sim, mas... – me olhou com uma cara de cachorro sem dono.
- Só você mesmo pra fazer sua irmã mais nova sair num frio desses pra procurar o papai. Onde está seu cavalheirismo? – bufei.
- Obrigado maninha, sabia que podia contar com você! – ele me deu um abraço e saiu correndo escada acima, com medo que eu mudasse de ideia.
Apesar da idade, Mark até hoje parecia uma criança. Sinceramente, eu não entendia como Susan conseguia agüentá-lo.
Saí de casa e fechei a porta atrás de mim, olhando para o jardim distraidamente. O fato era que papai só fugia mesmo, ele não fazia nenhuma bobagem. Ou quase nunca fazia. Era até comum ele sumir nas nossas reuniões familiares. E a cada novo feriado, uma pessoa diferente ia procurá-lo. Quer dizer, quase sempre. Na maioria das vezes era sempre eu. Mas eu quase nunca me importava. Gostava de andar e relembrar os velhos tempos.
Eu não tinha um carro. A verdade é que eu tinha uma certa fobia em dirigir, desde que uma vez Mark tinha me deixado pegar no volante do carro dele quando eu tinha 17 anos e eu quase tinha feito nós dois cairmos em um barranco. Talvez o nome certo não seja fobia, mas sim trauma.
Sendo assim, eu teria que pegar um táxi. A minha sorte era que nossa casa era situada em um lugar bem movimentado, e dava pra encontrar um táxi rapidinho quando precisávamos.
Depois de caminhar alguns metros à frente, vi um táxi parado do outro lado da rua e fui direto pra lá. Entrei sentindo o calor do aquecedor ligado, e disse ao motorista onde me levar. Eu ia seguir a sugestão de Mark, iria até o bairro chique da cidade. Eu tinha um pressentimento de que era pra lá que eu devia ir. Não era tão longe dali, mas eu não ia arriscar a ir a pé, afinal, a chuva poderia desabar a qualquer momento.
E foi na metade do caminho que eu me lembrei de um pequeno detalhe. O dinheiro. Merda! pensei desesperada. Eu não tinha nenhum dinheiro, nem minha bolsa eu tinha levado, e era certo que na minha jaqueta não teria sequer uma nota. E agora o que eu ia fazer? Não podia dizer ao motorista, porque do contrário, ele iria me jogar pra fora do carro. Mas minha consciência não dizia que essa era a coisa certa a fazer.
Então eu me vi num daqueles filmes onde tem o anjo bom e o anjo mau te aconselhando. O mau estava dizendo freneticamente: “Não diz nada, sua boba! Deixa pra lá, afinal, já está quase chegando mesmo! Não seja idiota!”
E o bem, por sua vez, repetia: “Você tem que fazer o que é certo. O tempo que esse pobre motorista está perdendo aqui com você, poderia ser pra atender outra pessoa, que com certeza tem dinheiro. Imagina se ele precisa do dinheiro? E se ele tiver 5 filhos pra alimentar?”
Praguejando baixinho, eu resolvi que tinha que dizer a verdade.
- Er... moço? – chamei cautelosa.
- Hum? – ele respondeu bruscamente, me lançando um olhar maligno pelo retrovisor.
Até parece que ele já sabia. Ah meu Deus, ele já sabia!
- É que... bem, eu... sinto muito, mas esqueci o dinheiro, eu não tenho como te pagar, mas... se o senhor quiser, pode retornar na minha casa um dia desses e eu te pago, eu te passo o endereço, e... – desembestei a falar, mas ele não estava mais prestando atenção.
Provavelmente ele só tinha ouvido a parte do “esqueci o dinheiro”, porque em um minuto ele já tinha parado o carro e estava me puxando pra fora dele. E no instante seguinte, o táxi já tinha ido embora, me deixando ali, com cara de pateta.
Ótimo. Agora como eu iria voltar pra casa sem dinheiro nenhum? Eu poderia esperar que papai tivesse algum dinheiro, mas era uma regra não deixar que ele andasse nem com alguns centavos no bolso, porque poderia perdê-los facilmente.
Olhei ao meu redor e reconheci onde estava. Apesar de tudo, o taxista até que foi bonzinho, me deixando quase perto de onde eu o pedi para me levar. Caminhei por uns bons minutos e por fim cheguei à rua onde começava as mansões. Oh sim, quando meu irmão disse “bairro chique”, ele não estava exagerando. Era mesmo chique, tanto que as fofocas até diziam que era ali onde moravam alguns artistas famosos.
De repente eu me vi esperançosa. Quem sabe eu não encontrava algum astro famoso por ali? Mas é claro que era uma esperança infundada, afinal, artistas não ficavam perambulando pelas ruas, a maioria deles não quer paparazzis na porta da frente de suas casas, certo?
Então voltei a caminhar, olhando para os lados, me convencendo de que estava procurando papai, e não algum famoso. Mas à medida que avançava, comecei a me sentir um pouco desesperada. As ruas estavam vazias. O motivo era óbvio, pensei comigo mesma. Quem iria sair de casa num dia frio como esse? E ainda mais quando estava ameaçando cair uma chuva daquelas?
Continuei caminhando, mas a cada linda mansão que eu olhava, me esquecia momentaneamente do verdadeiro motivo de estar ali. Então me repreendia por esquecer algo tão importante quanto encontrar meu pai são e salvo. Era em momentos como esse que eu me sentia uma péssima filha.
O tempo foi passando e nada de encontrar papai. Eu estava começando a ficar mais desesperada. Ainda mais porque... bem, eu achava que tinha me perdido. Não estava mais achando o lugar onde o taxista tinha me deixado. O desespero agora tinha tomado proporções maiores.
Era fato: Mark tinha se enganado, e a minha intuição também. Não era ali que papai estava, eu tinha percorrido aquele caminho todo apenas por um pressentimento estúpido. Isso que dá confiar no sexto sentido – que eu provavelmente não tenho.
Sentei na calçada de uma casa que tinha me chamado bastante atenção. Era uma das mais belas do bairro, e olha que naquele dia eu tinha visto todas – ou quase todas.
Aquela era... majestosa. O dono dela, além de ter um extremo bom gosto, também devia ser podre de rico. Me virei para a rua, parando de encarar a casa, me repreendendo novamente por ter esquecido que eu estava no meio de um verdadeiro dilema.
E de repente, eu ouvi uma voz.
- Modelo 1965! Um dos primeiros! – exclamou a voz.
Me sobressaltei ao reconhecê-la. Aquela não era nada mais nada menos do que a voz de papai.
- Sim senhor. Era do meu pai, mas ele pediu pra que eu preservasse depois que morresse. E eu não poderia me desfazer de uma relíquia como essa. – outra voz dizia.
- Não, não poderia mesmo! Que maravilha... – papai dizia, num misto de alegria e excitação.
Segui o som das vozes para saber que vinham de dentro do casarão que tanto tinha chamado minha atenção. A minha sorte é que o portão estava aberto, então fui entrando, passando pelo gramado, sem me importar se no futuro iriam querer me processar por invasão de privacidade. Eu tinha que resgatar meu pai oras.
Cheguei a uma garagem, onde vi a seguinte cena: meu pai sentado no banco da frente de um carro vermelho e um cara parado ao lado, conversando com ele.
- Ah não – resmunguei alto, ao ver que meu pai provavelmente deveria estar chateando o pobre rapaz.
- Querida! – papai me recebeu com um sorriso. – Olha que belezinha esse jovem tem aqui. É um Mustang modelo 1965! Quisera eu ter um desses quando era rapaz...
Um pouco surpresa por papai ter se lembrado momentaneamente de minha existência, fui caminhando até ele, ignorando o dono do carro e repreendendo meu pai.
- Temos que voltar pra casa já! Estamos todos preocupados lá em casa e o senhor aqui, chateando as pessoas – falei em tom de reprovação. – Olha, me desculpe, ele não sabe o que faz, está sempre fugindo de casa e... – me virei para olhar a outra pessoa presente na garagem.
E no momento em que nossos olhares se cruzaram, eu senti minha boca se escancarar involuntariamente.
Ah-meu-Deus.
- Você... você... você é Jake Simmons! – ofeguei.
O sorriso lentamente desapareceu de seu rosto e ele pareceu incomodado.
- Ah – ele fez uma careta. – Na verdade, sou .
Senti meu rosto começar a esquentar. Claro que ele era . Eu sabia disso.
Se eu esperava encontrar alguma celebridade, voilà!, meu pedido tinha sido prontamente atendido. Porque aquele ali na minha frente, era , um dos atores mais famosos da atualidade. Ele tinha atuado como Jake Simmons num filme chamado Flor de Lótus – filme no qual eu chorei todas as cinco vezes que assisti, mas era tão bom que não conseguia parar de ver.
Flor de Lótus era um drama, e liderou as bilheterias de quase todos os cinemas do mundo. E era o personagem principal. Ou seja, juntando um bom ator – além de lindo e maravilhoso – e uma história de romance que acaba em tragédia no final, o resultado tinha mesmo que ser esse.
- Sim... sinto muito, é que... – comecei a me explicar.
- Tudo bem, você não é a única – ele piscou pra mim, e seu sorriso voltou a brotar nos lábios.
Eu não conseguia pensar em mais nada. Tudo o que eu sabia era que estava diante de um deus grego. Se antes ele parecia perfeito nas telas, ali, ao vivo e a cores, eu não conseguia nem achar um adjetivo à altura. Seus olhos , seu cabelo bagunçado, seus ombros largos e sua estatura alta, faziam com que eu me perguntasse se não estava sonhando.
- E o seu... ahn, avô? – ele perguntou incerto.
- Meu pai – corrigi.
- Ah, certo, seu pai – ficou sem graça. – Ele não estava me chateando, de modo algum.
- Mesmo? – perguntei incerta.
- Sim, de verdade – ele sorriu mais uma vez.
Retribui o sorriso e me perdi na profundidade de seus olhos. Não conseguia desviar o olhar, não conseguia dizer mais nenhuma palavra. Droga, o que estava acontecendo comigo?
Finalmente recuperando o bom senso, comecei a me sentir constrangida e quebrei o contato visual. Olhei para papai, que estava mais do que distraído examinando o painel do carro e resolvi o que tinha que fazer.
- Se importa se... – fiz um gesto para que nos afastássemos um pouco de meu pai. Eu não queria interromper a alegria dele.
- Tudo bem – foi andando na frente e eu o acompanhei.
Estávamos há uns passos à frente quando paramos. Ele tinha as mãos enfiadas nos bolsos, e mais uma vez me dirigiu um sorriso.
- Olha, me desculpe por ele... – comecei. – Meu pai tem Alzheimer.
- Oh, sinto muito – ele disse compreensivo.
- Sim, bem... ele tem mania de fugir de casa e dessa vez veio parar aqui, não sei como... é um pouco longe de casa. Obrigada por cuidar dele, mesmo sem saber disso – agradeci.
- Sem problemas – ele me olhava intensamente.
- Então... – eu devia estar mais vermelha do que tomate numa hora dessas. – Vou levá-lo de volta. Devem estar preocupados. – que bela mentira, pensei.
- Ah, por que não ficam mais um pouco? Afinal, você já o encontrou mesmo – ele deu de ombros.
Mordi meu lábio inferior indecisa. acompanhou o movimento com os olhos e eu me senti mais sem graça ainda, se é que era possível. Abaixei o olhar.
- Não, não, não devemos abusar da sua hospitalidade, tenho certeza que papai já incomodou demais, é hora de voltar pra casa. – falei decidida.
pareceu chateado, mas a expressão dele mudou em um segundo.
- Você está de carro? – perguntou.
- Não, eu não dirijo – disse timidamente.
- Então, eu dou uma carona pra vocês – ele falou radiante. – Você disse que era longe.
- Não muito longe... podemos pegar um táxi ou... – sugeri sem saber o que dizer.
- De jeito nenhum. Eu levo vocês – decretou, tirando umas chaves do bolso. – E já que seu pai gostou tanto do meu Mustang, acho que podemos dar uma volta nele.
Arregalei os olhos. Estava claro que aquele carro era apenas pra “coleção”, por assim dizer. Eu sabia que provavelmente nunca saía com ele, porque estava impecavelmente limpo e as rodas estavam novinhas.
- Eu não acho que... – protestei.
- Ei, senhor! Vamos dar uma voltinha? – falou alto, indo em direção ao meu pai e me ignorando completamente.
Agora não tinha volta, ele tinha feito de propósito, sabia que eu não podia recusar a atender um desejo de meu pai doente.
E antes que eu percebesse, já estávamos todos sentados no carro. insistiu pra que eu fosse na frente. Meu pai estava encantado demais pra fazer qualquer objeção.
levou o carro para a rua rapidamente, dava pra perceber que era um bom motorista. Então, pelo retrovisor, pude ver o portão se fechando automaticamente.
- Onde é sua casa? – ele perguntou.
Expliquei como se chegava lá, e então se seguiu o silêncio. estava concentrado no trânsito, meu pai ainda estava maravilhado com o raro Mustang, e eu estava desconcertada demais para fazer algum comentário.
Mas então, num sinal vermelho, quebrou o silêncio.
- Então, você tem um namorado? – perguntou olhando para aliança em meu dedo.
Corei furiosamente e encarei minhas mãos pousadas em meu colo.
- Na verdade não – confessei.
- Não? – questionou confuso.
- É que... terminamos – respondi. – Recentemente. – acrescentei.
- Há quanto tempo? – ele perguntou calmamente, voltando a prestar atenção no trânsito.
- Alguns... meses.
- Mesmo? E por que ainda está usando a aliança então? – perguntou.
Droga. Ele tinha me pegado. A verdade é que nem eu mesma sabia por que ainda usava aquela maldita aliança. Tinha algo a ver com o meu ego ferido, lembrei.
- É que... ela não sai do meu dedo – inventei.
- Oh, mesmo? – disse sarcástico.
- É verdade! – protestei indignada.
Bem, não era verdade, mas ele não podia saber disso, podia?
- Se você diz. – concordou com um sorriso irônico.
- É que... eu... eu... eu engordei, é isso! – improvisei. – E então ficou presa no meu dedo.
- Tudo bem, eu já entendi, você ainda gosta do cara – deu de ombros mais uma vez.
- Eu não... – comecei a negar.
- Chegamos! É aqui, certo? – me interrompeu, parando em frente à minha casa.
- É – concordei secamente.
Assim que saí do carro, vi que já estava ajudando papai a sair também. Então ouvi a vozinha rouca de Tim gritando lá de dentro da minha casa.
- Papai! Tia chegou! Ela está num carro vermelho muito legal! – ele dizia animado.
Não pude nem mesmo sorrir com o comentário do meu sobrinho, porque logo a cena mudou e vi Anna saindo pela porta como um foguete e gritando pra mim:
- Você TEM que dizer a ela pra deixar! , fala sério, ter um piercing é a coisa mais comum do mundo, todos os meus amigos têm! Faz a mamãe entender, pelo amor de Deus! – a adolescente pedia desesperada.
- , não se atreva a dizer uma palavra a essa menina! – Janet veio lá de dentro, tão desesperada (e raivosa) quanto à filha. – A não ser que seja pra colocar algum juízo nessa cabeça de vento!
- Juízo? JUÍZO? Eu alguma vez fui irresponsável, mamãe? Hein? Diga, eu fui? – Anna perguntou irônica.
E logo se iniciou uma discussão daquelas. parecia um pouco assustado, e papai continuava observando o carro embasbacado. Eu, por minha vez, não pude dizer nada. Não era bom interferir em brigas. Eu iria esperar Janet se acalmar e só então teria uma chance de fazer a cabeça dela em favor de Anna. Afinal, aquela era outra situação comum na família.
Como eu era jovem, Anna sempre pedia minha ajuda. E eu costumava vir em seu auxílio, porque sabia que ela era uma boa menina. O problema, era que Janet queria que Anna fosse outro tipo de garota. Então, como toda adolescente, Anna vivia revoltada e se queixando. Agora ela era uma típica jovem gótica. Era a forma que ela encontrou de contrariar a mãe, que preferia que ela fosse a menina boazinha que só veste cor-de-rosa. Eu ajudava Anna justamente porque ela era parecida comigo quando eu tinha sua idade.
Mas por enquanto, eu tinha que esperar as coisas se acalmarem, porque do contrário, Janet iria vir com quatro pedras na mão pra cima de mim.
- Ótimo! – Anna disse, saindo a passos firmes pela rua.
- Onde é que você pensa que vai? – Janet foi atrás dela.
E a discussão seguiu rua abaixo. O pior era que todos da família tinham saído pra ver qual era a confusão. Então, agora todos estavam cientes da presença de .
- Ah meu Deus! – Susan, que já tinha voltado de suas compras na farmácia, exclamou com a mão sobre a boca. – Ele é... é... é...
- – completei.
- Quem? – Mark estranhou.
- Jake Simmons. – falou sorrindo.
- Ah... aquele cara do filme que a viu quatro vezes? – Mark perguntou.
Senti minhas bochechas esquentarem mais uma vez quando olhou pra mim com um sorriso que mal lhe cabia no rosto.
- Espera. Eu conheço a sua voz, moço – Tim se intrometeu.
- É... agora que você disse filho, eu também percebi isso. – Mark franziu a testa.
- Provavelmente você deve ter ouvido no... – começou a dizer.
- JÁ SEI! Você tem a voz daquele furão! O furãozinho filho, da família dos furões! – Tim disse radiante, como se tivesse acabado de ganhar um doce.
Essa foi a vez de corar. Mas ele assentiu, confirmando a suposição do pequeno Tim.
- Furão? – perguntei confusa.
- Ah! Aquele filme que a gente viu semana passada? Como é mesmo o nome... – Mark tentava se lembrar.
- A revolta dos furões! – Tim disse, levantando o bracinho no ar.
- Isso mesmo – confirmou. – Eu dublei um furão na animação. Eu nunca tinha participado de um filme infantil, achei que todo ator tinha que tentar isso um dia...
- Oh, minha nossa, vocês todos estão chateando o rapaz, não quer entrar, querido? – mamãe interrompeu, aparecendo na porta.
- Muito obrigado senhora, mas acho que vou ter que recusar – disse modesto.
- Oh sim, tudo bem – ela falou decepcionada. – Mas pode voltar quando quiser, nossa família é grande, mas sempre cabe mais um. – ela sorriu pra ele. – Agora, todos pra dentro, inclusive o senhor fugitivo aqui – mamãe foi até papai, que em princípio se recusou a ir, mas sendo arrastado por ela, não pôde contestar.
Mark levou um animado Tim e uma abismada Susan pra dentro também. Então, só sobramos eu e . E claro, eu estava muito envergonhada por ele ter conhecido minha família... incomum, pra não dizer louca.
- Então... você viu meu filme quatro vezes? – ele perguntou, se encostando no Mustang e cruzando os braços.
- Cinco – corrigi, mas logo depois me arrependi.
Seu sorriso aumentou, e eu sentia como se fosse queimar de tanta vergonha. Minhas bochechas estavam pegando fogo.
- Erm... obrigada por nos trazer aqui – agradeci mudando de assunto. – Não precisava.
- Precisava sim – ele começou a procurar algo nos bolsos de sua calça. – Se eu não tivesse vindo, eu não teria tempo de pedir o seu número. – sorriu me estendendo seu celular.
Num misto de surpresa, nervosismo e vergonha, aceitei o aparelho e comecei a gravar meu número no mesmo. Naquele momento, eu me senti poderosa. Uma mulher poderosa. Eu tinha acabado de atrair um cara lindo, rico, charmoso, simpático, gentil, e ainda por cima, famoso. Isso tinha sido um golpe e tanto na minha auto-estima.
Desde que Steven tinha me largado, eu vinha me sentindo a garota mais horrorosa de todo o mundo. Ele foi meu noivo e por pouco não me abandonava no altar. Menos mal que abandonou antes.
Mas o fato é que eu estava me sentindo desejável outra vez. me conhecia apenas há algumas horas e parecia dedicar toda sua atenção a mim. Não que eu estivesse reclamando. Não mesmo.
Estendi o celular de volta, e quando ele foi pegar, encostou sua mão em mim. Nossas peles em contato fizeram com que meu corpo se arrepiasse. Como um simples toque – e olha que quase não foi um toque de verdade! – poderia ter causado uma reação tão intensa em mim? Querida, isso se chama atração, uma vozinha soprou na minha cabeça.
- Então... eu vou entrando. – falei timidamente. – Obrigada mais uma vez. – passei uma mecha de cabelo para trás da orelha.
- Espera – segurou meu braço levemente. – Ainda tem uma coisa que... eu queria dizer. – ele me olhava intensamente. – Na verdade, não dizer, eu queria fazer, mas...
- O que é? – perguntei receosa do que estava por vir.
E em um segundo tinha em puxado pra perto dele e nossos rostos estavam próximos o suficiente para que eu sentisse sua respiração.
- Isso – sussurrou perto dos meus lábios, antes de contorná-los com a língua e iniciar um beijo calmo e suave.
Eu não tive outra reação senão me entregar. Sabia que as coisas estavam indo (muito) rápidas, mas eu não queria parar. E enquanto seus lábios se moviam, firmes e intensos, sobre os meus, eu enlacei seu pescoço com as mãos e aproximei mais nossos corpos.
E então uma outra parte de mim tomou o controle. Uma que sempre vinha à tona, mas que eu tentava sufocar sempre que podia. Mas dessa vez eu não obtive sucesso, porque nem senti a presença dela chegando. Ela veio como uma cobra, lenta e traiçoeira, esperando pra dar o bote quando eu menos esperasse. Ela, minha parte agressiva, minha personalidade violenta.
Eu soube o que tinha acontecido no instante em que o paft! ecoou em meus ouvidos. Sim, eu tinha acabado de dar um tapa em . Arregalei os olhos, assustada, tentando absorver o que tinha acabado de acontecer, enquanto me olhava com uma expressão que era um misto de incredulidade e decepção.
Não consegui dizer uma palavra sequer, apenas corri para dentro da segurança da minha casa, batendo a porta atrás de mim e encostando minhas costas nela até escorregar para o chão.
Eu não acreditava que tinha acontecido de novo. Fazia tanto tempo que não acontecia, que eu achava que não precisava mais ser tão cuidadosa.
Me forcei a levantar e subi as escadas lentamente, ignorando qualquer um que tentasse falar comigo. Entrei no quarto e fechei a porta, me deixando cair sentada na cama com as mãos no rosto.
Aquele fora um momento maravilhoso, o melhor beijo que eu já tinha recebido em toda minha vida. E por causa dessa doença estúpida, eu tinha estragado tudo. O transtorno bipolar fazia com que um conjunto de personalidades confrontassem na minha cabeça, brigando pelo controle. A personalidade deprimida e a alegre demais era fácil de controlar. Mas com a agressiva, eu tinha um pouco de dificuldade. Ela sempre aparecia quando eu estava nervosa demais. E foi o que aconteceu.
Mas há meses eu vinha tomando os medicamentos e fazendo terapia com o Dr. Bright toda semana, e não estava tendo problemas com a agressividade por um bom tempo. Podemos dizer então que eu tive uma espécie de “recaída”. Talvez o Dr. Bright devesse reconsiderar a ideia de aumentar minha dose de lítio.
Aquela noite foi um pouco agitada pra mim. Eu não conseguia tirar a expressão indignada de da cabeça. Depois daquilo, eu podia esperar sentada, porque ele nunca ia me ligar.
Então, na manhã de Páscoa, eu já tinha tomado minha decisão. Eu sabia exatamente o que fazer. Eu não ia deixar que o que aconteceu com Steven acontecesse novamente. Estava decidida a fazer diferente dessa vez.
Acordei bem cedo e me arrumei. Todos da minha família tinham o costume de acordar tarde, inclusive eu, mas dessa vez eu tinha que fazer uma exceção. Sabia que corria o risco de perder a coragem se ficasse mais uns minutos na cama e começasse a pensar outra vez.
O relógio marcava 9 da manhã, e eu já estava mais do que pronta para colocar meu plano em prática. Lá fora o sol brilhava fraco, mas o suficiente para que eu soubesse que não ia ser um dia chuvoso. Mas por via das dúvidas, amarrei uma jaqueta na cintura, coloquei meu celular e algum dinheiro nos bolsos dos meus jeans e saí de casa.
Atravessei o jardim de tulipas de mamãe me sentindo confiante. O sol bateu em meu rosto e eu sorri. Aquele poderia ser um lindo dia afinal. De repente o sol também bateu em algo e o brilhou me cegou temporariamente. Parei na metade do caminho e encarei a aliança em meu dedo.
Se eu iria mesmo tentar algo novo, eu tinha que me livrar do passado. De uma vez por todas. Dei meia volta e retornei para casa. Mas não entrei, apenas fui até os fundos, onde tinha uma lixeira.
Tirei a aliança do dedo e a encarei por um momento. Ela brilhava como se estivesse me confrontando, dizendo pra mim que eu não teria coragem de fazer aquilo. Sorri comigo mesma e murmurei:
- Adeus Steven.
E logo eu via a aliança cair no lixo, se misturando a todas as outras porcarias que poderiam haver ali dentro. Me arrependi por um momento, pensando que talvez tivesse sido melhor vendê-la ao invés de jogar no lixo. Mas dei as costas e parei de pensar nisso. Afinal, Steven tinha me tratado como... bem, um lixo, então eu deveria tratá-lo – a ele e qualquer coisa que tivesse a ver com o infeliz – da mesma forma.
E depois de ter jogado-a no lixo, eu me senti muito mais leve. Não sabia que um simples feito pudesse me proporcionar uma sensação tão reconfortante. Se soubesse, teria feito aquilo há muito tempo.
Suspirando, voltei ao meu caminho, seguindo pelo mesmo trajeto que fiz no dia anterior, quando tinha ido procurar papai. Pensei em pegar um táxi, mas depois de ter sido “abandonada” por um, fiquei com um certo trauma. Mas eu estava com dinheiro o suficiente, então, que mal poderia fazer?
O problema é que era domingo de Páscoa, de modo que consegui encontrar apenas um táxi disponível. Até que eu estava com sorte, pensei. Mas era melhor não ter pensado nada, porque quando olhei para o motorista, percebi que era o mesmo do dia anterior. Eu precisava do táxi, certo? Não iria desistir, não naquele momento.
- Olha moço, hoje eu tenho dinheiro, posso pagar até por ontem se quiser – mostrei minha carteira com algumas notas.
Ele me encarava com aquele mesmo olhar raivoso de antes, mas apenas entrou no carro e fez um sinal pra que eu entrasse também. Disse a ele para me deixar exatamente no mesmo lugar de ontem, e quando chegamos, agradeci e lhe dei o dinheiro extra. É claro que ele não disse uma palavra, apenas aceitou o dinheiro e deu o fora rapidinho. Talvez pensasse que aquele era o único dinheiro que eu tinha. Eu não podia culpá-lo.
Então eu me vi naquele bairro familiar mais uma vez. Comecei a andar ainda sentindo o calorzinho do sol me saudar. O sentimento de nervosismo começou a se manifestar, mas eu o empurrei para o fundo da minha mente, repetindo a mim mesma que eu iria até o fim.
E depois de um tempo eu estava lá. Na frente daquele casarão pela segunda vez. Dessa vez estava tudo fechado, não dava pra ver nada, exceto o grande portão que antecedia o gramado, que eu sabia, era imenso. Fraquejei diante do portão, mas me obriguei a tocar o interfone. Por um momento cheguei a cruzar os dedos, torcendo pra que não houvesse ninguém em casa, assim eu poderia adiar aquela conversa.
A câmera fez um movimento, e eu soube que alguém tinha me visto. Abaixei a cabeça esperando que a voz de saísse do interfone, gritando um monte de coisas horríveis pra mim. Mas isso não aconteceu. Os portões se abriram automaticamente, num convite mudo para que eu entrasse.
Apreensiva, comecei a atravessar o gramado sentindo minhas mãos suarem. Agora era a hora da verdade. Não sabia muito bem por que estava fazendo aquilo. era um completo desconhecido, e mesmo assim eu sentia que devia justificar o tapa que eu lhe tinha dado. Era como uma força invisível me empurrando, insistindo que eu não iria me arrepender se o fizesse.
Diante da porta, hesitei antes de bater. Se eu queria desistir, tinha tido várias outras oportunidades. Não iria correr pra casa como uma criança novamente. Não dessa vez.
A porta se abriu segundos depois. Tinha parecido um século, tamanho era o meu medo. E quando a figura de se projetou diante de mim, eu fiquei sem saber o que dizer exatamente.
- Veio me dar mais uns tapas? – fez uma careta engraçada.
Mordi meu lábio. Pela descontração com que ele disse aquilo, eu sabia que estava tudo bem. Ele não iria me xingar nem me expulsar. Ele iria me ouvir. Eu sabia que iria.
- Sinto muito por isso – murmurei baixo. – Sinto muito mesmo.
- Tudo bem – ele disse com um sorriso fraco. – Talvez eu tenha merecido. Você sabe, não nos conhecemos direito. Me desculpe se eu a fiz pensar que sou um tarado, normalmente não sou assim.
Sorri de volta, ficando um pouco frustrada ao saber que, enquanto ele tinha levado tudo numa boa, eu tinha passado a noite em claro pensando em um jeito de me redimir.
- Você não quer entrar? – convidou, dando espaço para que eu entrasse e fazendo um gesto cortês em minha direção.
Meu sorriso ficou mais confiante, e eu dei um passo para dentro da casa. E então eu me senti impressionada. Se aquela mansão parecia linda do lado de fora, do lado dentro então, dava até pra ficar sem palavras. Era imenso. E os móveis tinham sido muito bem dispostos por alguém com uma ótima noção de decoração.
- Sua casa é linda – suspirei maravilhada.
- Na verdade, a casa é da minha mãe, mas... – ele deixou a frase no ar.
- Ah meu Deus! Espero não estar incomodando, quero dizer, você deve estar aqui com sua família, e eu sou uma intrusa, é claro que sou, talvez fosse melhor eu ir e... – falei tudo tão rapidamente que quando parei pra tomar fôlego, fiquei sem graça ao ver a expressão confusa no rosto de .
Aposto que ele não entendeu quase nada do que eu disse. Essa era outra das conseqüências da minha doença, quando eu ficava nervosa, além de ter que controlar as minhas “personalidades”, ainda tinha que lidar com minha língua, que parecia querer saltar pra fora da minha boca.
- Desculpe – falei envergonhada. – Sua família não vai se incomodar com minha presença?
levantou uma das sobrancelhas de um jeito sexy.
- Minha família?
- Sim... você sabe, nos feriados as famílias se reúnem. – expliquei.
- Bem, não a minha. Minha mãe mora na Itália e os outros não ligam muito pra essas... tradições.
- Ah – mordi o lábio.
- Então... quer beber alguma coisa? – ele desviou o olhar.
- É... pode ser – aceitei.
me guiou pela casa e entramos na cozinha. Era altamente equipada com os mais diversos tipos de eletrodomésticos e, como o resto da casa, era enorme.
Nos sentamos diante da mesa, ele na minha frente, ambos com uma lata de refrigerante que ele tinha tirado da geladeira.
- Não tem mais ninguém em casa? – perguntei estranhando o silêncio.
- Feriado. Eu não ia obrigar nenhum dos empregados a trabalhar hoje. Você sabe, a coisa toda com a família – ele disse tomando um gole de sua Coca-Cola.
- Eles devem estar felizes de trabalharem pra você então, deve ser um bom patrão. – sorri.
Se seguiu um silêncio, e ele me olhou curioso.
- Qual o motivo da visita?
Direto ao assunto. Eu bem que queria que pudéssemos adiar um pouco mais, mas sabia que quanto mais o tempo passasse, mais eu iria ter dificuldade em achar as palavras.
- É que... bem, eu queria explicar o motivo de... ter feito aquilo ontem – olhei-o nervosa.
- Desde que você fale devagar – ele deu de ombros.
Tomei um longo suspiro e comecei a falar.
- O problema é que... eu tenho um tipo de... – hesitei. – Transtorno.
ergueu outra vez a sobrancelha.
- Transtorno? Mas eu apenas te beijei.
- Transtorno bipolar – revelei.
Esperei um tempo para ver como ele reagia. Esperava que ele fosse me mandar embora e dizer pra eu nunca mais chegar nem perto da casa dele. Era assim que a maioria das pessoas reagia. Foi assim que Steven reagiu.
- Ah... você quer dizer, dupla personalidade? – ele riu.
- Não tem graça. Eu estou falando sério. – falei friamente.
- Ora , vamos lá, se toda garota que me desse um tapa inventasse que tem transtorno bipolar só pra ser perdoada... – ele continuava achando graça.
O fulminei com o olhar. Lentamente o sorriso desapareceu de seu rosto. Continuei firme, com minha expressão séria, tentando fazê-lo entender que era verdade.
- Você não está falando sério. – me olhou em dúvida.
- Estou sim. – confirmei. – Sou o que eles chamam de maníaco-depressiva.
Ele me encarou abismado. Agora ele parecia ter entendido.
- Vá em frente. Me mande embora, diga que não quer me ver nunca mais e apague o meu número do seu celular. – disse amarga.
não respondeu. Continuou me encarando. Mas dessa vez sua expressão não dava para transparecer o que ele estava pensando, então eu fiquei ainda mais nervosa.
Comecei a me levantar, pronta pra ir embora, quando ele resolveu quebrar o silêncio.
- Por que eu faria isso? – me olhou franzindo o cenho. – Por que te mandaria embora?
- É o que todos fazem – dei de ombros, triste.
- Eu não quero que você vá embora. – me falou parecendo sincero.
- Não quer? – senti um pingo de esperança me envolver.
- Não. Não quero.
Outro silêncio. A tensão era grande.
- Que tal um chocolate? – se levantou bruscamente, atravessou a cozinha e foi remexer em um dos vários armários que montavam a cozinha.
Voltou me trazendo um mini ovo de páscoa, envolvido com um papel vermelho. Aceitei e li a etiqueta. “Chocolate meio-amargo”, dizia. Comecei a brincar com o papelzinho vermelho, mas sem abri-lo. Odiava chocolate meio-amargo, mas não iria estragar as coisas mais uma vez.
se sentou novamente à minha frente, abrindo seu chocolate idêntico ao meu, porém, envolvido em papel azul.
- Por que você quis me contar isso? – perguntou ainda evitando meu olhar.
Encarei o chocolate embrulhado em minhas mãos.
- Quis que soubesse. Da última vez, não contei pra uma pessoa e... – olhei instintivamente para o meu dedo, que agora estava sem a aliança. – Estou tentando aprender a ser sincera com as pessoas sobre a minha... doença. – finalizei.
reparou que eu olhei para meu dedo, e também dirigiu seu olhar para o mesmo lugar. Se notou a ausência da aliança, não comentou. Ele deve ter percebido que era um tema do qual eu não me sentiria bem em falar.
- Então, eu quero que me prometa uma coisa – ele disse, me olhando nos olhos. – Me prometa que vai ser sempre sincera.
Olhei para o chocolate em minhas mãos. Se eu prometesse, teria que contá-lo que odeio chocolate meio-amargo. Então ele ficaria chateado.
- Tudo bem. Eu prometo – concordei.
- Bem... então estamos conversados. – ele voltou a sorrir daquele jeito tão especial. – Agora, posso fazer uma pergunta?
- Claro – respondi na mesma hora.
- Por que sua personalidade... agressiva se ofendeu com meu beijo? – me olhou fazendo bico.
Fiquei sem graça outra vez.
- Porque... ela acha que não se deve beijar um cara antes do primeiro encontro. – confessei.
Ele abriu a boca para responder, mas se calou. Depois, me olhou com um meio sorriso.
- Tudo bem. Sem beijos antes do primeiro encontro, eu prometo – ele levantou as mãos num gesto de “eu me rendo”. – Agora, que tal se a gente saísse um dia desses?
Fiquei surpresa, mas feliz pelo fato de que as coisas não estavam indo pra um mau caminho.
- Posso olhar na minha agenda – falei presunçosa.
- Achei que eu fosse o ator famoso aqui – ele reclamou.
Rimos e nos encaramos novamente.
- Você sabia o meu nome – lembrei de repente.
Ele tinha me chamado de . Mas em nenhum momento eu tinha lhe revelado meu nome. Nem no dia anterior.
- Ouvi alguém da sua família dizer... a mãe da garota gótica. Não estou certo do seu grau de parentesco com ela, então não vou arriscar. Ontem eu dei um fora ao supor que seu pai fosse seu avô – ele pareceu incomodado.
Eu ri, descontraída.
- Tudo bem, você não é o único. – pisquei, recordando-me do dia anterior.
- Então, agora eu sei tudo sobre você – disse convencido. – Não achei justo você saber quem eu sou quando eu não sei quem você é.
- Como sabe? Procurou meu nome no Google? – falei rindo.
Quando assentiu, abri a boca abismada. Não acreditava que ele tinha pesquisado meu nome num site de busca.
- Você pesquisou meu nome no Google? – indaguei ainda abismada.
- Eu tive dificuldades em descobrir como se escreve seu sobrenome, mas o próprio Google me corrigiu, então...
- Não acredito que você fez isso! – exclamei indignada.
se encolheu, como se estivesse se sentindo culpado.
- E o que você descobriu, Sr. Sabe Tudo? – perguntei sarcástica.
- Sei que você é , autora daquele livro que ficou no top das vendas há uns dois anos. – falou em tom de desafio. – Você também é famosa e não me disse nada. – ele fez uma expressão magoada.
- Eu não sou famosa. Você não sabia quem eu era. – justifiquei. – E de todo modo, sou uma escritora falida agora. Estou com hibernação criativa, não consigo escrever mais nada. – falei tristemente.
Ele tentou não rir, provavelmente achando graça da tal “hibernação criativa”, mas se controlou e disse:
- Ah, mas isso passa. Eu ás vezes tenho problemas para entrar no personagem, mas sei que mais cedo ou mais tarde conseguirei fazê-lo, é só eu me dedicar. – sorriu me encorajando.
- É, quem sabe...
- Então, tem mais alguma coisa que eu deveria saber? – me perguntou.
- Ah... er... – mordi o lábio.
- Fale logo de uma vez. Sem segredos, lembra? – lembrou ele.
- É que... eu odeio chocolate meio-amargo. – confessei.
riu e se levantou. Me estendeu a mão.
- Vem aqui.
Segurei sua mão e ele me guiou pela cozinha até o armário de onde ele tinha tirado os chocolates. Soltou minha mão para abri-lo, e quando o fez, fiquei de boca com a quantidade de chocolates que havia ali.
- Minha nossa. – murmurei.
- Sou um chocólatra assumido. É um dos meus segredos – disse do meu lado. – Agora escolha um.
Peguei um chocolate ao leite e dessa vez o desembrulhei na mesma hora. Não era tão obcecada assim por chocolate quanto ele, mas não podia resistir a unzinho, certo?
- Acho que tenho que ir pra casa – falei um tempo depois.
- Não... – reclamou, comendo o que devia ser o seu sexto ou sétimo chocolate.
- Sim – respondi rindo.
Então me veio uma ideia. Ele iria passar o dia ali sozinho. Quer dizer, eu não sabia se ele tinha planos pra mais tarde, mas...
- ? – chamei.
- Hum?
- Você quer... ir almoçar lá em casa? – convidei timidamente. – É que... é Páscoa e você vai ficar aqui sozinho.
me olhou sorrindo. Ele não precisava nem responder com palavras pra que eu soubesse qual era a resposta para o meu convite. Claro que eu estava receosa com o que ele fosse ver na minha casa, afinal, eu tinha uma família completamente pirada. Mas como ele tinha aceitado tão bem o fato de eu ser bipolar, achava que ele não iria se importar com isso.
se arrumou e pegou as chaves do carro. Dessa vez, ao invés de dirigir o Mustang, fomos de Porsche. Conversávamos como se nos conhecêssemos há muito tempo e ele sempre fazia graça pra que eu risse.
O trânsito estava um pouco turbulento aquele dia, então tivemos que parar em um breve congestionamento. Foi esse o momento que ele escolheu para tocar no assunto.
- Você está sem a aliança – comentou.
- Sim... achei melhor me livrar das... lembranças – suspirei.
- Foi isso que aconteceu? – perguntou um tempo depois.
- Isso o quê?
- Você não contou pra ele – era uma afirmação, não uma pergunta.
- Sim, eu não contei. – admiti.
Os carros começaram a andar novamente e desviou sua atenção para o trânsito. Quando paramos em um sinal vermelho, acrescentei:
- Éramos noivos...
me olhou, com seus olhos brilhando, compreendendo o quanto aquilo tinha me machucado. Então, envolveu minha mão com a sua, e eu pude sentir seu calor atravessando minha pele.
- Ele com certeza é um idiota. – falou com certa raiva. – Quando gostamos de uma pessoa, coisas assim não fazem diferença. Ou gostamos, ou não gostamos. Você merece alguém que goste de você. Que te aceite, e mesmo assim continue te... – ele fez uma pausa. – Amando.
Depois disso, o assunto fugiu e percorremos o restante do caminho em silêncio. Chegamos à minha casa e ele estacionou o carro. Abriu a porta para que eu saísse e me deu o braço. Sorri pra ele e começamos a atravessar o jardim de braços dados. Na metade do caminho ele parou e afastou um pouco, abaixando-se e colhendo uma tulipa vermelha. Voltou-se para mim e me olhou com os lábios e os olhos sorrindo.
- Eu não tenho uma flor de lótus, mas acho que você é uma garota que gosta de tulipas. – me entregou.
A peguei e lhe dediquei um sorriso. Me aproximei e dei um leve beijo em sua bochecha. riu e pegou minha mão.
- É por isso que gostei de ti. Você é tão imprevisível – sorriu me guiando outra vez pelo jardim.
Abaixei a cabeça, olhando nossas mãos entrelaçadas e sorri. A dose de esperança aumentou gradativamente.


FIM



Nota da autora: Olá pessoas! Essa é a primeira fic que eu mando pro FFOBS e espero que gostem. Provavelmente eu não vou vencer o Challenge, porque, alguém mais além de mim achou que ficou horrível? Eu, particularmente, tive essa impressão. Mas não importa, o que importa é que adorei escrever essa fic, principalmente porque sou uma escritora enrolada, e por causa do prazo, eu tive que correr pra escrever. Foi um desafio de verdade pra mim e acreditem, até agora não consigo acreditar que finalizei Lotus Flower! Enfim, vou me calar agora. Comentem, elogiem, xinguem e se descabelem, mas de qualquer modo, obrigada por ler. Xoxo :*

@cherryloou



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