Challenge: #008
Nota: 9,9
Colocação:




Suspirei, extremamente cansada, voltando a olhar ao redor, não encontrando nada diferente do que no outro segundo. Era para ser a mesma cor branca; mesma coisa sem graça e desbotada que era todo hospital, porém às vésperas do Natal, o corredor habitualmente desinteressante estava decorado com visgos, luzes, guirlandas, festões natalinos e bolas decoradas. Não estava feio, muito pelo contrário, quem quer que fosse o responsável pela decoração do hospital, estava de parabéns. Pela primeira vez, o lugar não me dava náuseas a medida em que andava por aqueles corredores. Mas, para mim - mesmo que a sala de espera tivesse sido toda decorada a ponto de fazer o local mais agradável e gostoso - a melhor parte era a cantina do hospital.

Adentrei naquele espaço amplo, cheio de mesas; algumas estilo cantina-de-escola, outras altas, acompanhadas por bancos da mesma altura, típicas de bares. A iluminação tornava-se natural, pelo suntuoso teto de vidro emanando raios solares, porém à noite era substituída pelas lâmpadas fluorescentes iguais a dos corredores.
Mas não era por nada disso que eu havia me encantado por lá.
Havia uma grande árvore de Natal, completamente – e adoravelmente – decorada, assim como todo o ambiente. E o mais interessante era que nada parecia exagerado, nada poderia ser considerado ofensivo às más ideias que normalmente são associadas aos leitos de hospital, ou aos momentos variados que abatiam a vida das dezenas de pessoas que passavam por lá. E, apesar das más línguas, os lanches não eram dos piores.
Alguma coisa tocava bem baixinho, obtendo vias de música de fundo. E eu distinguia poucos acordes. Provavelmente, alguma merda relaxante que não fazia efeito algum em mim.
Dirigi-me até a cantina e sorri para a atendente, enquanto olhava o pequeno menu plastificado que ficava no balcão. Não era como se houvesse muitas opções, sabe.
- Um sanduíche de peito de peru e suco de laranja. – falei e a mulher assentiu, sorrindo. Sorri de volta, pegando minha carteira dentro da bolsa. Eu me sentia extremamente acabada, realmente destruída, devido às várias noites em claro pelas dores intensas que sentia nas pernas; havia começado há mais de um mês e, tendo conseguido dormir somente três horas por dia, estava sempre sonolenta, cansada e distraída. Então, meu superior ordenou para que eu fosse visitar um médico, porque, segundo ele, era um desperdício que eles arcassem com um plano de saúde tão bom e eu não tratasse de usá-lo quando tivesse necessidade – como agora. Havia levado duas semanas fazendo os mais variados exames e eu já estava mais do que irritada com tanta demora.
Aproveitei que ela ainda preparava meu lanche e fiquei reparando nas pessoas ao redor.
Notei duas mulheres, com ares melancólicos, conversando em uma das mesas mais afastadas; uma provável mãe e sua filha em uma das mesas ao redor da árvore, que brilhava mesmo ainda sendo claro naquele final de tarde e encantava a pequena de cachos loiros. Também percebi alguns residentes lanchando, tomando café, ou apenas conversando. E um homem conhecido sentado em uma das mesas altas centrais, com um lanche intocado à sua frente, rosto escondido pelas mãos enterradas nos cabelos; formando uma cena depressiva, notavelmente abandonado e carente. Meu coração apertou por ele.
Eu não sabia seu nome, nem sabia quem era, mas sempre o via naquela mesma mesa, todos os dias – desde que eu passei a vir e isso seria uma semana – com o mesmo ar de quem não sabia o que fazer. Também nunca o tinha visto com ninguém além dos médicos e enfermeiras que, de vez em quando, sentavam com ele em seus intervalos e tentavam arrancar alguns sorrisos.
Não vou mentir, mas eu havia me interessado por ele desde que o tinha visto sentado sozinho naquela cantina numa das madrugadas viradas por lá. Ele era bem bonito, apesar das olheiras fundas que rodeavam seus olhos e da barba por fazer que denunciava algo bem óbvio: não estava nada bem.
Quero dizer, é Natal gente! Tá, não hoje, mas já está por perto. E, mesmo que não seja um momento bom na vida de alguém, a ideia central é que essa é uma época feliz. Época de estarmos com a família, agradecermos e termos toda aquela história de amar-nos uns aos outros como a nós mesmos e tal.
E, como o habitual, fiquei com uma vontade louca de perguntar o que estava acontecendo. Não é que eu fosse dessas que andam sem olhar para os outros ou que só conversam com quem conhece. Mas é que eu não podia simplesmente chegar e sentar na mesa do cara com a maior cara de pau e perguntar “E ai? Qual seu nome?”. Eu não estava nem perto de estar desesperada a esse ponto. E uma coisa que sempre andava comigo era a vergonha.
- Aqui. São quatorze dólares e sessenta. – a mulher trouxe meu lanche na bandeja de plástico com a marca do Hospital e eu lhe dei quinze e a mandei colocar o troco numa daquelas caixas de doação que ficavam ali ao lado do caixa. Olhei para o homem mais uma vez e vi que ele olhava para cima numa daquelas tentativas conhecidas de conter aqueles choros que já estão há tanto tempo guardados que se tornam uma dor permanente no peito.

- Oi. – falei, sem nem acreditar que eu realmente estava fazendo aquilo. Eu estava muito cansada para socializar, então, o que diabos eu estava fazendo?! Ele abaixou o rosto para mim, com o susto, e me encarou com suas íris vermelhas pelo esforço de conter o choro, parecendo mais profundas pelas olheiras que as rodeavam. Ele abriu a boca e a fechou como se pensasse no que dizer e não encontrasse, repetidas vezes. Por fim, fui eu quem voltou novamente a falar.
- Posso me sentar aqui? – minhas bochechas queimavam, relembrando àquela famosa sensação de estar incomodando e sendo extremamente inconveniente, brotando no pé da minha barriga, como um arrependimento crescente. Já estava preparada para sair correndo dali quando ele dissesse não. Só que ele não o disse.
- Claro. – e deu de ombros como se uma estranha aparecendo para conversar fosse algo muito comum. Demorei alguns segundos antes de processar a deixa e colocar a bandeja com meu lanche na mesa em frente a dele e a bolsa pendurada na cadeira, sentando logo depois e lhe dando um sorriso amarelo quando tive alguma dificuldade para tal.
- Eu sou . – comecei, não tendo muita certeza de como conhecer um estranho. E muito menos de como tinha sido eu a ter aquela atitude. Ele piscou algumas vezes e sua tentativa de esboçar algum sorriso não foi bem sucedida.
- . – fez uma pausa e depois de um olhar meu, se sentou corretamente na cadeira e falou com mais certeza. - .
- Desculpe chegar assim ... Eu não costumo confraternizar com estranhos, mas é que você não me pareceu muito bem. Por ser Natal, achei que talvez você precisasse conversar, ou não, ou só ter alguém por perto para... – disparei e seu sorriso singelo me fez parar abruptamente de falar para sorrir numa espécie de vitória intima de ter feito a escolha certa – ou assim eu achava.
Não falamos. Eu comecei a comer meu sanduíche e ele ficou me olhando como quem vê alguém muito estranho. Inicialmente, não liguei, até eu concordava que era uma atitude atípica chegar para conversar daquele jeito.
- Então, , o que você faz... Além de tentar confortar estranhos no Hospital? – ele fez piada, mas seu riso foi fraco e eu apenas sorri irônica.
- Muito engraçado. Mas eu sou Engenheira de Alimentos, isso de confortar estranhos é só meu trabalho de meio período. – seu riso foi mais forte dessa vez, mas nenhum traço da graça alcançava seus olhos. Tomei um gole do suco e ele olhou o dele com interesse e sorri sem que ele visse. – E você, faz alguma outra coisa da vida além de desperdiçar comida? – ele sorriu amarelo e se ajeitou mais confortável na cadeira.
- Sou professor. – ele sorriu perante minha surpresa e seu sorriso foi se abrindo mais (e finalmente algum resquício dele alcançou seus lindos olhos ) a medida em que completava. – De Matemática, do curso de Engenharia na Universidade de Nova Iorque. – Entreolhamo-nos por vários segundos, com risos contidos, mas então rimos alto, chamando um pouco de atenção das pessoas ao redor e pedindo desculpas em seguida, trocando olhares confidentes, como velhos amigos em uma piada interna.
Aos poucos, aquela conversa ia ficando mais gostosa e interessante. Não era algo prosaico, corriqueiro. Era mais aquela espécie de conversa que começa sem nenhuma intenção e nos arranca risadas; até informações como histórias de infância, dia-a-dia, exemplos de vida ou de momentos que já passamos e que valem à pena ser relembrados. Traz alguma alegria para um dia cinza e sem graça, ajuda a distrair dos problemas (minhas dores e o sei-la-o-que que ele estivesse passando ou sentindo), mesmo que inconscientemente nós ainda tenhamos a consciência do porque de estamos ali. Eu não me sentia mais um incômodo e, apesar de estar cruzando e descruzando as pernas a cada minuto para aliviar as fisgadas, nem ele parecia mais tão abandonado. Era uma daquelas coisas de amizade por necessidade que surgia nas mais inesperadas situações, com ações imprevistas que as pessoas chamavam de destino. Particularmente, eu acreditava que fazíamos nosso próprio destino e sinceramente, perante minhas próprias atitudes hoje, acho que estava com a razão.
- É sério! – eu falei um pouco alto, tentando não rir e vendo-o não ter o mesmo sucesso que eu. – A equipe toda apareceu lá e procuraram em baixo da caixa que eu tinha jogado em cima, mas só acharam um sapo. – agora ríamos sem nos preocupar com o fato do ambiente onde nos encontrávamos, chamando a atenção de algumas pessoas ao redor. – Mas eu pensei que tinha visto uma cobra, poxa! – lamentei e ele segurou o riso apenas para fazer um comentário. - Do lado de fora do Walmart... – e então limpou as lágrimas que ameaçavam cair de seus olhos e respirou fundo, dando um gole no suco – agora quase no fim, graças a minha insistência para que ele comesse alguma coisa.
- Agora é sua vez. – falei com um sorriso e ele me olhou confuso. – Ah, vamos! Já lhe contei uma das coisas mais vergonhosas da minha vida, agora é a sua vez.
- Duvido que consiga algo que chegue perto da sua proeza com o Corpo de Bombeiros e uma cobra que era um sapo. – afirmou, voltando a gargalhar, dessa vez mais discretamente, devido aos olhares feios que as pessoas ao redor já começavam a nos mandar.
- Ah, vamos! Tem que haver alguma coisa. – argumentei, não podia acreditar que apenas eu fosse sair dali com uma história de humilhação pública.
- Bom, sabe quando Michael Jackson morreu? – ele me perguntou e eu fiz uma cara triste, sempre fui fã do Michael. Ele sempre foi e sempre seria o Rei do Pop para mim. Ele me olhou com uma feição estranha e eu devolvi seu olhar como uma pergunta. – Você gostava dele? – não consegui não rir da sua pergunta e seu rosto indeciso.
- Claro que sim! Michael é demais! Sempre fui fã dele e sempre serei. Não importa o que digam. – sorri e ele tinha uma feição muito surpresa – estava sorrindo, mas ainda parecia surpreso.
- Eu também! Quando ele morreu, faltei três dias na faculdade para ir até a Califórnia e prestar minhas homenagens em Neverland.
- Sério? Eram minhas provas do semestre, não pude ir a lugar nenhum. Mas participei da composição do Clipe Behind The Mask. – sorrimos daquele jeito que amigos fazem quando descobrem que tem mais uma coisa em comum para somar as outras e, por fim, rimos fraco. Mas eu não deixaria que ele fosse embora sem sua história de humilhação pública, não mesmo. – Certo, então, você foi até Neverland e... – incentivei e ele tapou o rosto com as mãos, rindo, mas depois se deu por vencido.
- Eu estava levando rosas, sabe, porque não me agradava a ideia de comprar aquelas coroas de cravos. Enquanto eu dirigia para lá, uma zebra entrou na frente do carro cara! Em plena rua!
- O QUÊ? – quase gritei e então disparei a gargalhar. – Você tá tirando uma com minha cara, não tá? – ele fez uma cara fingida de ofendido, mas logo começou a rir comigo.
- Estou. Desculpe, não tenho muitas experiências de humilhação pública. A única coisa que me lembro sobre isso foi quando meu colega de faculdade trocou meu Creme dental por aquele shampoo Clean, sabe qual é? – eu não respondi logo, porque estava rindo loucamente da imagem mental de alguém escovando os dentes com shampoo.
- Nunca ouvi falar. – falei, quando finalmente respirei e ele sorriu.
- ! Ai está você. – a enfermeira baixinha que eu lembrava de ter me atendido quando cheguei ao Hospital apareceu ao lado da mesa parecendo aliviada. – Cassandra já estava passando outra na sua frente, querida, vamos, rápido. – levantei em um pulo e peguei minha bolsa, despedindo-me de com um tchauzinho e me apressando atrás da enfermeira que já estava no corredor.
- Foi bom te conhecer, . – gritei, um pouco antes de entrar no corredor. Ele tinha um sorriso que dispensava o “eu também”. Mandei-lhe um beijo no ar, sem muito jeito, e corri atrás da baixinha de cabelos negros.

- , certo? – o Doutor de meia-idade, cabelos grisalhos, barba rala e óculos me cumprimentou. – Sou David Jonhson. - Sorri e assenti, tentando não ficar nervosa pela visão do leito que me esperava logo atrás dele. Senti uma fisgada na perna e tentei disfarçar, mas ele percebeu.
- Sente-se, . – e eu o fiz, assim como ele, que sentou em sua cadeira de frente para mim e pegou um papel com meu nome que estava em cima da mesa. – Aqui diz que você tem sentido desconforto nos membros inferiores, como fisgadas e coceira e isso tem interferido no seu descanso. Está certo?
- Está, sim. – assenti e outra fisgada me fez cruzar as pernas em busca de algum alívio, que foi pouco.
- E isso tem interferido no seu trabalho? – ele perguntou casualmente, escrevendo alguma coisa na folha. Assenti antes de falar, mesmo sabendo que ele não via.
- Tem, sim, em minha concentração e, segundo meus companheiros, no meu humor. – tentei fazer piada, mas meu tom era muito pesado para isso. David sorriu dela e voltou a escrever.
Já haviam se passado alguns segundos em silêncio quando ele recomeçou a falar.
- Por favor, deite-se ali. – e apontou o leito que eu tinha passado o tempo em silêncio, encarando. Engoli em seco, odiava exames, mas fiz o que ele pediu.


Eu não estava tão feliz em voltar naquele Hospital.
Não depois da notícia nem tão bem vida de cinco dias atrás.

Flashback


- Então, ... Vou ser bem direto com você. – eu ainda esfregava minhas pernas e as flexionava constantemente em busca de alívio para a dor pelo tempo em que elas haviam ficado em hiperextensão. Logo no primeiro minuto, as dores começaram e um pouco depois, as sensações parestésicas – foi como Doutor David as chamou – e os movimentos periódicos começaram. Os outros exames – que, na verdade, eram considerados um só, uma tal de eletroneuromiografia – foram feitos porque os sintomas que eu havia relatado já eram comuns de alguma doença, a qual ele estava começando a me explicar.
- Você tem Síndrome de Ekbom, ou, como é mais conhecida, Síndrome Das Pernas Inquietas. – ele não esperou que eu esboçasse alguma reação antes de continuar. – É uma doença crônica que se caracteriza por essa sensação de desconforto e as parestesias quando você se encontra em repouso, nos membros. As pessoas acometidas dessa síndrome encontram dificuldade para dormir e por isso ficam sonolentas e perdem a concentração, também ficando irritadas e de mau-humor mais facilmente. E as notícias não são tão boas assim...

End Flashback

As notícias não eram boas em nada. Síndrome das Pernas Inquietas Idiopática, ou, se você preferir, sem cura. A recepcionista foi simpática e me informou que o Doutor havia tido uma emergência e iria demorar um pouco a me atender. Pediu desculpas em nome dele e me levou até uma poltrona confortável vazia na sala de espera.
Eu a segui e me sentei, agradecendo sua preocupação, mas assim que ela virou o corredor e voltou à recepção, acabei levantando e fui dar uma volta pelo Hospital.
Eu odiava ficar sentada.
Mas não era apenas isso. De fato, pensei muito sobre o desconhecido da cantina do Hospital. Primeiro, porque eu havia revelado até a minha infância e ele, nem porque estava tão desolado eu sabia. Seu nome era quase tudo.
Então, era fácil saber para onde eu ia. Meus pés já sabiam onde ir e pararam quando cheguei; apenas me preocupei em olhar ao redor e me decepcionar ao não vê-lo. Não era como se fosse obrigatório encontra-lo lá, mas é que após todos aqueles outros dias em que eu não o conhecia que eu o havia visto sozinho naquela mesma mesa, esperava que hoje eu tivesse sorte.
Não voltei pelo mesmo caminho que havia vindo. Apesar de o ambiente cheirar à álcool, remédio e ser mais claro do que deveria, eu gostava de lá. Era calmo, silencioso, limpo e após tantas idas, o cheiro já me era familiar.
Eu vagava pelos corredores, até parar em frente a um portal de vidro onde havia escrito ONCOLOGIA em letras garrafais azuis-claras. Dava para ver que no fim do corredor havia um espaço amplo cheio de brinquedos e algumas crianças estavam lá, brincando entre si e com umas mulheres que eu julgava serem suas mães.
Meu peito de apertou e eu me senti, de súbito, envergonhada. Uma criança vinha pelo corredor, de mãos dadas com uma das enfermeiras, um sorriso divinamente feliz em seu rosto pálido, com a sombra dos cabelos que voltavam a nascer. Ela andava com dificuldade e quando olhou para a frente, seu olhar parou no meu choroso.
Ela sorriu, deu-me um tchau fraco e entrou em um dos quartos, enquanto minha emoção escorregava pelo rosto.
Eu não sabia o quão sortuda eu era.
Continuei meu caminho, que não era nenhum em especial, agora achando o Hospital decorado mais bonito do que o normal. Virei um corredor e me surpreendi.
estava lá.
Sentado no chão, rosto entre os joelhos, soluçando em um choro sofrido que me deixou sem reação por alguns segundos; até que eu fui até ele.
- ? – minha voz não parecia estar presente; a garganta apertou e o peito parecia não ter espaço suficiente para me deixar respirar. Não ajudou quando ele voltou seus olhos, vermelhos e com aparência de terem chorado a noite inteira, para mim e parou por segundos assimilando que era eu quem estava ali. Seu choro cessou pelos segundos em que nos olhamos. Sorri sem jeito, duvidosa sobre o que fazer e ele me retribuiu com um sorriso falho.
- Oi. – eu disse, enquanto me abaixava e sentava no chão ao seu lado. Ele me deu espaço e limpou o rosto com a frente da mão. – O que aconteceu, ? – perguntei, tendo o cuidado de não parecer intrometida ou curiosa. Ele olhou para mim, bem dentro dos meus olhos. E então voltou-se para a frente, os olhos inexpressivos enquanto revelou.
- Meu pai faleceu. – sua voz era triste, ferida, mas a aparência era forte e conformada. Eu não disse nada, não que ele não precisasse, porque seus olhos mostravam que sim. Mas porque eu não sabia o que dizer. Vários já haviam morrido em minha família, mas aquela sensação recorrente me abateu de tal forma que paralisei.
Lágrimas desceram por seu rosto, mas sua expressão não mudou; ele estava muito mais ferido do que queria me mostrar.
- Eu não sei o que falar. – disse o que ele já sabia e ele me sorriu, voltando os olhos vermelhos para mim.
- Fale qualquer coisa. – pediu. Passei alguns segundos sem dizer nada, porque não sabia, agora, ainda mais, o que dizer.
- Meu pai... Ele era policial. – comecei. – Sempre foi com ele que eu falava sobre garotos. Sempre foi meu melhor conselheiro.
- Era? – ele perguntou algum tempo depois.
- Morreu em serviço.
- Lamento. – ele disse, mudando rapidamente de assunto. - Nunca fui próximo dos meus pais. Ou da minha família. Sempre fui uma espécie de ovelha negra. – ele riu, seco. Quando eu deixei o silêncio perdurar, ele fez um sinal para que eu continuasse.
- Bom, acho que era mais uma questão de fidelidade. Meu pai sempre guardou meus segredos com maestria, já minha mãe, os encarava como assunto para debate. – ele riu fraco e eu sorri, continuando. – O que seu pai fazia?
- Ele era arquivologista.
- O quê? – eu falei mais alto do que deveria e o encarei com cara de nada. Ele riu e um rastro da graça atingiu seus olhos. Ignorância é uma benção, pelo visto.
- Arquivologista? Arquivologia? Ciência da informação? – ele perguntou, entre as risadas e eu o olhei com cara de nada. Ajudou muito, é. – Ele, basicamente, era responsável pelos arquivos daquele Hospital.
- Sério? – eu havia me surpreendido com essa. Ele assentiu, com um sorriso triste.
- Estava recebendo o melhor atendimento possível, mas não foi o bastante. Já estava muito avançado quando ele descobriu. – Quando seu tom ficou vazio, preferi mudar de assunto, mas minha curiosidade precisava ser saciada antes.
- O que ele tinha? – soltei o que eu queria perguntar desde que ele me mandara começar a falar. Ele silenciou por alguns segundos, então suspirou antes de responder.
- Câncer. – não falamos mais por vários minutos. Ele se mexia desconfortável no chão frio e suspirava como quem não sabia o que fazer. Levantei-me e estendi uma mão para ele.
- Vamos.
- Para onde? – ele me olhou, ainda no chão, um pouco antes de me dar sua mão para se levantar. Com o impulso, ficou frente a mim, Pude sentir o cheiro de creme dental e loção pós-barba vencida. Sorri fraco.
- Para casa. – ele me olhou surpreso. – Onde quer que a sua seja.

Dei um jeito de despistar a enfermeira baixinha que me procurava na recepção e descemos de escada para o estacionamento. Apertei o controle das minhas chaves para achar o meu carro e a SUV apitou não muito longe dali. Andamos em silêncio, até chegarmos ao veículo.
- E onde vamos? – perguntei, assim que entrei no carro, colocando a chave na ignição.
- Tribeca. – encarei-o surpresa, um sorriso engraçado em meus lábios que o fez me olhar estranho.
- Eu moro em Tribeca. – declarei, enquanto ligava o carro e dava partida. Ele sorriu ao meu lado.
- Sério?
- Uhum. Onde você mora lá? – passei pelo segurança e cumprimentei com um aceno de cabeça. Ele retribuiu levantando a trava.
- Rua Principal, Prédio...
- King’s Place? – eu o interrompi. Era o único prédio na rua principal. O motivo pelo qual eu sabia disso era porque eu morava lá, sétimo andar.
- É. – ele me olhou de rabo de olho, estranhando. – Como você sabe? – sua voz tinha uma nota de incerteza. Eu tenho cara de maníaca?
- Eu moro lá. É o único prédio da Rua Principal. – sorri e ele relaxou, antes de começarmos a gargalhar.
- Não acredito! – ele declarou, ainda rindo.
- Pois é! Eu não sabia que tínhamos gente nova.
- Comprei há um mês, décimo primeiro andar. Meu amigo morava lá, mas ele vai se casar. Eu precisava de um lugar para morar, então, era perfeito. Ainda não me mudei porque foi quando... – o silêncio perdurou após. Foi fácil supor que tinha haver com a doença do pai dele, então não perguntei. Liguei o rádio na intenção de aliviar um pouco a tensão do carro.
E funcionou.

- Chegamos. – anunciei após estacionar o carro na garagem subterrânea do nosso prédio. Continuamos em silêncio. Fui a primeira a deixar o carro e ir até o elevador.
Ele veio quando o elevador chegou; o silêncio estava me estressando. E quando algo me estressa, eu acabo tomando decisões erradas.
- Vai planejar o funeral? – queria ter voltado ao carro no momento em que disse aquilo. Ele me olhou por alguns segundos como se não soubesse o que responder e depois deu de ombros.
- Preciso.
- Tem coisas no seu apartamento para você tomar banho e comer? – como alguém muda de assunto tão ridiculamente como eu? Que diabo! Ele ponderou e então me olhou com um sorriso amarelo e aquele olhar de gato sem dono. Isso mesmo, gato.
- Não. – rimos.

- Isso, eu gostaria de reservar a Capela do Cemitério. – a mulher do outro lado da linha me perguntou para que horas com uma vozinha enjoada de quem não estava a fim de me ajudar. – Três horas. Está disponível? Ótimo. Obrigada.
O barulho da porta do banheiro abrindo e do vapor d’água saindo do ambiente me fez olhar para lá a tempo de ver um molhado com a cabeça para fora da porta.
Não consegui respirar. Ele ainda era bonito até molhado e segurando meu shampoo Clean.
- Posso usar? – ele tinha uma carinha fofa tão gostosa que me deu vontade de apertar suas bochechas, roubar um selinho e aproveitar pra tomar um banho com ele.
Então, somente assenti e fingi estar muito entretida com um número qualquer de telefone que nunca existiria – ninguém é dono do número 15464114213, certo?
Fui para a cozinha e procurei fazer alguma coisa para ele comer e para mim também, porque sua visão na porta do meu banheiro causou uma súbita fome.
Não foi bem fome, mas era melhor eu me ocupar. Bem rápido.
Vaguei pelas prateleiras da cozinha, finalmente achando o pão que eu havia comprado ontem à noite. Havia queijo e presunto na geladeira e o resto do suco de laranja feito de manhã;
A sanduicheira descansava na bancada.
Não demorei fazendo os sanduíches como ele demorou no banho. Acho que realmente precisava daquilo porque quando saiu, minha sala ficou escondida em neblina por vários minutos – estou só exagerando. Era preciso prestar mais atenção na neblina do que na imagem dele saindo do banheiro com uma toalha enrolada na cintura, o peitoral definido molhado e os cabelos grandes jogados ao rosto.
Arfei por todos os minutos em que o vapor ainda estava por ali, aproveitando para usá-lo como desculpa. Ele voltou com uma bermuda bege e uma camisa de mangas brancas com gola “v”. Os cabelos molhados não penteados caíam em seu rosto de mal jeito e, agora que estava barbeado, parecia uns oito anos mais novo.
O que subitamente me lembrou que eu não fazia idéia de quantos anos ele tinha.
- Quantos anos você tem? – perguntei, sem pensar. Ele parou a caminho da cozinha, surpreso. Felizmente, tinha um sorriso engraçado no rosto.
- Não tem uma regra pra esse tipo de pergunta? – ele fez piada, enquanto sentava num dos bancos altos que ficavam na bancada (que, para mim, também servia como mesa) e agradeceu sem palavras pelo sanduíche e o suco que o esperavam à sua frente. Eu sorri em resposta.
- Só vale para as mulheres. – brinquei, pegando um pouco do suco para mim e levando meu prato sujo para a pia.
- Eu digo a minha se você me disser a sua, então. – virei-me para ele, com as duas mãos apoiadas na bancada atrás de mim, com uma feição pensativa; era, apesar dos pesares, um bom negócio. Aceitei com um aceno e o sorriso dele se abriu.
- Tenho 37 anos. – ele parou de comer para dizer. Eu acho que devo ter deixado minha surpresa transparecer porque ele reforçou o que havia dito. – Pois é. – sendo bem sincera, eu esperava algo em torno disso, mas ele não tinha cara – e muito menos corpo - dessa idade, de jeito nenhum. Eu o daria trinta e dois, no máximo do máximo.
Era , atlético e tinha lindos olhos . Com trinta e sete anos, ótimo emprego, ótimo apartamento (havíamos subido até lá para que ele pegasse algumas roupas), eu estava me perguntando onde ele havia escondido a aliança; porque ele era muito bom para estar solteiro andando por ai.
- Agora é sua vez. – ele me encorajou e eu ri, dando um gole no suco para disfarçar meus pensamentos recentes.
- Tenho 28. – sorri, enquanto o queixo dele caiu levemente, facilmente disfarçado com uma mordida no sanduíche. – O quê? Esperava mais? – olhei-o ameaçadoramente e ele ergueu as mãos em sinal de inocência, um ar de riso brincava em seus olhos.
- Na verdade, eu imaginava que fosse algo em torno disso já que você já é formada, trabalha e está estabilizada. Mas não posso deixar de me chocar. – ele fez uma pausa enquanto olhava nos meus olhos e minhas pernas ameaçavam falhar. - E talvez isso seja porque eu sou nove anos mais velho que você, mas... Você ainda parece uma garotinha.
Eu sorri abertamente, não é todo dia que você recebe tal elogio – porque, em minha opinião, o meu trabalho estava me deixando com cara de quarentona, isso sim.
- Obrigada. – agradeci, realmente lisonjeada e ele percebeu, dizendo que não era nada. – Você também não parece ter essa idade. Diria trinta e dois se lhe visse na rua. – ele agradeceu, rindo e terminou de comer, levantando-se para levar o prato e copo, sujos, até a pia.
- Na-na-ni-na-não. Deixe que eu levo. – prontifiquei-me enquanto levantava muito rápido e minha perna fisgava, pelo pulo repentino.
Desequilibrei-me e estava indo ao chão quando senti os braços fortes – e, quando minhas mãos também seguraram neles, pude reparar cada músculo se esticando em baixo das minhas palmas – agarrando minha cintura e, com um segundo de atraso, veio o barulho da porcelana e vidro quebrando. me puxou para ele e eu voei contra seu peitoral, fazendo com que ele andasse para trás para se equilibrar e se batesse na bancada.
Sua respiração pesada e quente batia em meus lábios e subitamente minhas pernas ameaçaram falhar novamente. Um arrepio varreu meu corpo como uma corrente elétrica e me lembrou há quanto tempo não sentia algo como aquilo.
Eu nunca tinha tido tempo para conhecer alguém. Era o que eu me dizia. Não tinha hábito de ir às baladas e meu último namorado tinha sido meu instrutor da Academia de Tiro, e isso havia sido ano passado – não havia ficado com mais ninguém depois dele, alguns beijos em alguns lugares, mas só.
Meus olhos procuraram os dele, acima de mim. E quando os encontraram, minha respiração voltou a falhar. Lindos olhos , penetrando os meus, indo mais e mais, atingindo o profundo do meu ser e chegando perto da minha alma; seus braços apertaram minha cintura com mais força e uma de minhas mãos foi se espalmar em seu peitoral, enquanto a outra apertava o braço másculo com mais força. Eu me senti como se estivesse sendo sugada para dentro daquele redemoinho , aquelas íris claras, puxando, envolvendo, sugando o pouco de senso que me fazia lembrar de... Nada.
Lábios tocaram os meus e foi como se o redor tivesse ficado em segundo plano por alguns segundos. Ele sugou meu lábio inferior lentamente e desenhou com a língua o meu superior, num pedido mudo por passagem, rapidamente atendido. Quando sua língua tocou a minha, foi como se tivesse disparado algum tipo de alarme, porque as coisas simplesmente saíram do controle. Tudo passou a ser uma vontade inexplicável, insaciável, insana. Uma das mãos veio ao meu rosto e deslizou até a nuca, enterrando-se em meus cabelos, enquanto a outra duplicava o aperto, que eu passei a julgar frouxo, na minha cintura.
De repente, a vontade era tudo. Ela nos impelia por mais. Implorava que lhe déssemos e nós dávamos. O ar não era mais tão importante assim e os poucos segundos em que nos separávamos para respirar eram bem aproveitados em nossos pescoços e lóbulos.
Descobri que eu era a que mais sofria com eles.
Em algum determinado momento, fui impulsionada para cima e colocada estrategicamente sentada na bancada. Quando sua boca me deu um segundo de descanso e minhas mãos voavam para seu colarinho, querendo que ele voltasse, seu grito me assustou.
- Ai! Merda! – eu quase cai para frente, já que ele sumira de lá e me projetava para ele. Abri os olhos sem muita certeza e o vi pulando em um pé só, de um lado para outro.
A cena era absolutamente cômica e eu não tive como não rir. Ele me lançou um olhar feio, de brincadeira, enquanto tentava retirar o caco de vidro em que havia pisado do seu pé.
Arrisquei olhar para o chão e percebi que havíamos dado muita sorte, porque o lugar onde estávamos estava coberto dos cacos de vidro antigamente pertencentes à minha louça.
Ele foi ao sofá tentar tirar o vidro de seu pé e quando voltou eu já terminava de limpar o local. Jogava os últimos pequenos pedaços de vidro na lixeira, quando suas mãos grandes envolveram minha cintura e me puxaram para si.
Em pleno êxtase novamente, virei. E me preparava para embarcar novamente naquele turbilhão, quando separei nossos lábios recém-selados.
- O que foi? – ele perguntou, confuso.
- Acho que ouvi o telefone tocar. – informei e logo o barulho do telefone tocando com maior distinção confirmou minhas suspeitas. Ele escondeu o rosto na curva de meu pescoço propositalmente, atacando meus pontos fracos com uma voz rouca tentadora.
- Deixa tocar. – finalizou, com uma mordida leve no lóbulo. Os arrepios impiedosos calaram-me e não consegui formular sequer uma frase por alguns segundos.
- Pode ser importante. – pus meus pensamentos em palavras. – Pode ser sobre o funeral do seu pai. – soltei, sem pensar, em um suspiro. Ele ficou tenso e parou imediatamente as provocações em meu pescoço, depois me soltou, com um suspiro vencido.

- Desculpe. – pedi, quando ele se sentou no sofá, vinte minutos depois. Eu ainda falava com a mulher da decoração da Capela e com o homem da Funerária me esperando no celular.
Ele sorriu e deu de ombros, apontando para os telefones e mexendo os lábios, dizendo “obrigado você”.
Levou mais quinze minutos antes de eu finalmente terminar tudo. estava deitado no outro sofá, assistindo alguma coisa sobre uma porcaria clássica; ele olhou para mim quando eu coloquei o fone no gancho e suspirei.
- Problemas?
- Não. Tudo certo agora. O funeral é às 15 horas. – informei e ele sorriu triste, voltando a agradecer. Eu dei de ombros dizendo que não era nada.
- E como está seu pé? – eu perguntei, rindo, fazendo dar um meio sorriso.
- Você tem um band-aid? – balancei a cabeça negativamente e ele fez uma careta, dando de ombros em seguida.
- Vou sobreviver.
- É o que eu espero. – não planejei, mas meu tom soou surpreendentemente maldoso. voltou seus olhos para mim imediatamente, um sorriso cafajeste brincando em seus lábios. Joguei uma almofada nele, que a pegou no ar, rindo.
voltou a olhar para mim, mas dessa vez era diferente. Era como na cozinha, quando eu estava em seus braços, mas de um jeito mais fraco, controlável. Como uma vontade fora de hora.
- Odeio telefones. – declarei, após alguns minutos daquilo, e ele riu.
- Mais broxante é escutar sobre o Funeral do seu pai. Garanto. – seu tom era de brincadeira, mas o que ele dizia era sério. – Nenhum clima sobrevive a isso. – eu ri, assentindo; Então comecei a prestar atenção na merda que passava na TV, que ele assistia tão interessado.
- Você gosta disso? – não pensei em ser tão visivelmente crítica, mas saiu sem querer. Ele me olhou absolutamente indignado.
- Isso? Musica Clássica é um presente divino. – alfinetou. Apertei meus olhos em sua direção.
- Por mim ele pode levar de volta pra ele. – Seu olhar era ultrajado. Entreolhamo-nos em uma batalha íntima por alguns segundos; por fim, eu dei de ombros. Ele não percebeu a deixa para escapar de uma discussão.
- Por mim ele pode levar de volta pra ele. – Seu olhar era ultrajado. Nos entreolhamos em uma batalha íntima por alguns segundos; por fim, dei de ombros, mas ele não percebeu a deixa para escapar de uma discurssão. Meu telefone voltou a tocar em algum lugar e o som de Blink 182 em I Miss You encheu o lugar, me olhou como se brigasse comigo. Dei-lhe língua.
- Viu? Isso é como música de verdade soa. Não essa trilha sonora de enterro ai... – Ele ia reclamar quando eu atendi ao telefonema. Era o homem da Funerária novamente; Tentei ser simpática, apesar de estar irritada com sua incompetência de compreender uma simples coisa como “ajeite o defunto, coloque em um caixão e mande a conta”.
Desliguei depois de alguns minutos e recomeçou de onde havia parado.
- Então Blink é melhor que Música Clássica? – ele não estava sendo crítico ou irônico. Sorri ao responder.
- Não. Blink é melhor que qualquer música. – Ri de sua cara de tacho e ele ficou em silêncio, parecendo refletir. Por fim, desdenhou.
- Talvez a música erudita não seja pra qualquer ouvido. – a almofada que o atingiu em cheio na cara o calou dessa vez. Eu me sentei emburrada vendo um cara cego tocar piano, depois ele começou a cantar e eu, a prestar atenção. percebeu, mas ficou calado.
Não era tão ruim, afinal – o que, na verdade, era eu tentando não assumir que era muito bom.

Já era boquinha da noite quando se despediu de mim.
- Você vai ficar ok? – perguntei, enquanto o levava até a porta. Ele sorriu para mim tentando me dar algum tipo de certeza, mas foi para seus olhos que eu olhei e eles não estavam tão felizes.
- Vou. – ficamos em silêncio por alguns segundos. – Não tenho uma longa noite de sono há muito tempo. – ele suspirou. Não consegui deixar de notar o uso de “longa” ao invés de “boa”. Assenti e tentei lhe dar um sorriso encorajador.
- Tem comida lá?
- Vou pedir. – então, ele deu um risinho. – Não se preocupe, . Eu vou sobreviver. – arregalei meus olhos enquanto o olhava curiosa. Ele me olhou de volta, confuso.
- O que foi?
- Do que você me chamou? – ele demorou pensando, depois me olhou com receio.
- . – deixei o silencio se instalar. – Desculpe, não podia? Eu não...
- Tudo bem. – demorei a continuar. – É só que... Ninguém nunca me chamou assim.
- Se você quiser eu não chamo...
- Não...Eu gostei. – sorri; ele ficou um tempo me olhando, depois sorriu também, enquanto dava de ombros e ia até o elevador.
- Até amanhã, .
- Vamos sair às uma e meia. – ele assentiu e o elevador chegou. Com os ombros encolhidos, acenou um “tchau”, antes que eu fechasse a porta.

Como todas as noites, não consegui dormir direito. Minhas pernas fisgavam e nunca tinham uma posição que aliviasse a dor. Fora as poucas horas em que o profundo cansaço me venceu. Passei a noite inteira em claro. Desisti quando o sol começou a despontar no horizonte e clareou meu quarto. Levantei e senti um espasmo na perna, voltando a sentar na cama até que a dor passasse. Quando ela passou, levantei-me novamente. Fui até o banheiro e tentei não prestar atenção ao meu reflexo acabado no espelho. Eu estava um bagaço pisado.
Olheiras fundas, olhos vermelhos, cabelo embolado e aquele cansaço que parecia impresso na alma. Peguei meu creme dental e percebi que ele estava acabando, ia ter que me lembrar de comprar na volta do enterro. Fiz minhas necessidades, mas deixei o banho para depois; ia ver se conseguia tirar uma soneca no sofá.
Tinha café pronto de ontem na cafeteira, quando cheguei na cozinha, então apenas o esquentei e preparei um café-com-leite numa caneca grande. Andei até a grande porta de vidro que dava passagem para a varanda. Meu apartamento era um dos poucos que a possuía e, pela primeira vez em muito tempo, era que eu vinha realmente me sentar a ela e esperar o tempo passar. Uma das coisas que as desgraças trazem a nossa vida, em minha opinião, era essa nova maneira de encarar as coisas. Eu havia sido dispensada do trabalho com licença médica e não fazia idéia do que fazer com tanto tempo livre. , pelo que eu entendi, estava sendo substituído enquanto cuidava do pai.
Suspirei, enquanto abria a porta e me sentava em uma das poltronas gostosas que havia providenciado exatamente para lá; o sol já estava acima do horizonte, mas o nublado dos dias de inverno deixava que as luzes de Natal ainda se sobressaíssem na claridade. Toda a cidade já estava mergulhada no clima natalino. Havia uma grande árvore colocada numa praça que havia perto dali que dava para ser vista da varanda. As casas tinham desde apenas as luzes natalinas até papais noéis e Renas piscantes penduradas no telhado. Dei uma olhada ao redor e para cima.
Minha varanda era a única não decorada. Eu ia resolver isso hoje à noite; acho que minha árvore de plástico GG estava guardada no closet, depois iria olhar.
Não é por nada sabe, mas é que Natal, para mim, sempre foi apenas mais um feriado. Para minha família não, sempre era a época feliz dos abraços, carinhos, união, presentes e, claro, jantar em família da véspera de Natal que ia até a madrugada do dia em sí.
Era uma ótima época, mas depois de oito anos sem ir em casa, havia virado apenas isso. Uma época. Depois que meu pai faleceu em serviço, minha mãe havia caído numa depressão; quando ela se recuperou, não gostava mais de ficar cercada de tanta gente e nós passamos a nos mudar sempre que dava.
Sempre foi uma ótima desculpa estar ocupada com a mudança.
Depois eu precisei seguir minha própria vida e, quando minha mãe faleceu, o feriado meio que já havia perdido a essência. Ainda adorava as luzes, o clima, a ideia original e todo aquele sentimento inspirador que a data trazia; só não me preocupava tanto com ela como eu via as outras pessoas se preocupando.
Pensei em por uns segundos. E então ele simplesmente não saiu mais da minha cabeça.
Bom, a “ideia central do Natal” foi o que me fez ir lá falar com ele. Ele precisava de ajuda e eu o ajudei. Ele estava quebrado por fora, eu queria consertá-lo por dentro.
Ao menos, fora isso no inicio.
A verdade era que eu o queria por perto, agora. Queria cuidar dele, queria vê-lo sorrindo, queria aqueles olhos parecendo ver além da minha alma, queria os beijos desesperados e as conversas naturais. Queria conhecê-lo melhor, pois eu tinha a impressão de que, depois disso, ele não iria mais embora.
Eu o queria por perto. Bem perto.
Ele era o que eu havia pedido ao Papai Noel quando minha mãe havia falecido. Talvez, eu pudesse ser o que ele precisava, agora que seu pai não estava por perto.

Dei uma última checada na maquiagem, enquanto subia até o andar de . Tinha conseguido disfarçar as olheiras um pouco, mas estava com meus óculos escuros só por precaução. Estava frio, então eu coloquei uma roupa que se adequasse com a situação e o clima.
A porta do elevador abriu e antes que eu desse um passo, entrou. Fiquei surpresa, ele parecia mais descansado, porém, muito deprimido. Quis saber alguma coisa para falar, algo que o fizesse sorrir como ontem no meu apartamento, mas ao invés disso, apertei o botão do térreo e deixei que descêssemos em silêncio.
Fomos no meu carro. Deixei que o rádio, que tocava clássicos natalinos, ligado. E acabei achando graça algumas vezes, com lembranças antigas que nem mesmo eu poderia ter me dado conta sem aquele empurrão. observava as ruas como quem não sabia exatamente o que olhar. Vi seus olhos focarem nas ruas apinhadas de gente comprando presentes, nas decorações, naquele clima gostoso, nos papais noéis em cada esquina pedindo doações, nas crianças andando com seus pais e na cobertura branca que adornava tudo ao redor.
Não achei que fosse ser, mas foi um caminho muito longo até o Cemitério.

Estacionei logo ao lado e arregalou os olhos como quem tinha uma epifania.
- O que estamos fazendo aqui? – ele quase gritou; dizer que eu estou assustada não explicaria totalmente meu choque.
- O enterro do seu pai, ... – comecei e ele rolou os olhos como se eu estivesse sendo idiota. O que tá acontecendo aqui, oi?
- Não, ! Porque estamos no cemitério? – voltou a gritar. Vi sua mão se fechar apertando o apoio da porta e me afastei um pouco. Fui cuidadosa ao escolher as palavras.
- ...Eu reservei a capela daqui...Achei que...
- NÃO ME IMPORTA! Quero sair daqui, ! Tire-me daqui! Eu não vou entrar ai! NÃO VOU! – o pânico em sua voz me chocou, vi os olhos dele arregalados em direção ao cemitério na maior expressão de medo puro que já vi. Eu devia ter tentado acalmá-lo, mas eu não tinha controle nem mesmo sobre mim para poder ajudá-lo.
Até que tive uma ideia.
- Relaxa . – gritei da porta do Cemitério e fui conversar com a mulher responsável por lá.

- Obrigada por entender, Padre. – eu agradecia ao padre da igrejinha, que ficava à dois quarteirões do Cemitério, por ter compreendido e liberado para que o Funeral fosse transferido tão em cima da hora para ali. estava sentado na escadinha do lado de fora da Capela, sem nenhuma expressão.
As flores que estavam na Capela do Cemitério foram facilmente transferidas para lá. A maior dificuldade era trazer o corpo do pai de , mas a Funerária compreendeu e – depois de me cobrarem mais cem dólares para irem até ali – providenciaram tudo.
Faltavam quinze minutos para as três.
Sentei ao lado de e joguei meu cabelo para trás, apoiando meus cotovelos nos joelhos. não me olhou, apesar de ter suspirado audivelmente.
- Desculpe, . – não queria, mas depois que ele pediu desculpas foi como se nada tivesse acontecido. Meu choque foi substituído por uma gratificação absurda por ter o que eu “conhecia” de volta. Sorri involuntariamente. – Eu deveria ter me certificado antes, mas é que você parecia ter tudo tão bem preparado que eu me desliguei...Eu já não queria pensar no assunto e com você cuidando de tudo...Eu nem preparei um discurso! – seu tom era tão sofrido, tão machucado, tão arrependido que eu não pensei no que fiz; peguei seu rosto e virei para o meu, encarando aqueles malditos olhos que faziam pleno raio-x em mim.
- Relaxa. – murmurei contra seus lábios. Queria que ele se entregasse. Queria que me beijasse e esquecesse por alguns segundos de tudo que estava ao redor, como era comigo.
Mas ele não se rendeu.
- Tenho coimetrofobia. – meus olhos o questionaram, porque eu tive a sensação de estar engasgada com as perguntas. – Fobia de cemitério... – meu sorriso o assustou.
- Tenho fobia de falar em público. – ri; ele demorou alguns segundos sem expressão, depois me olhou risonho e sorriu para mim.
- Tem certeza disso?
- Não é bem algo assintomático, sabe. – ironizei. Um carro estacionou e alguns idosos desceram deles e vieram chorosos falar com . Entrei antes que dessem atenção a mim e fui me certificar se tudo estava mesmo certo.
Não haviam muitas pessoas por lá, mas todas pareciam conhecer , porque engajavam conversas demoradas com ele sobre como ele estava, o que estava fazendo, se o pai dele havia sofrido, como havia morrido. Sinceramente, eu estava feliz de ter consciência na questão de que assuntos tocar em momentos como aquele.
As pessoas estavam precisando de um semancolzinho básico por ali.

O padre encostou em e o chamou discretamente ao canto. Antes de ir, varreu o local atrás de alguém e quando seu olhar achou o meu, ele sorriu, chamando-me com um aceno de cabeça. Meu orgulho de ter sido considerada importante para aquele momento não foi algo planejado ou fácil de ser contido.
Cheguei no meio da conversa.
- Eu não planejei nada. – tinha um quê de desespero, fingi não perceber.
- O que houve?
- Preciso de um discurso. – ele suspirou. – Não vou conseguir simplesmente falar lá. – então me lançou um olhar de rabo de olho. – Você consegue, .
Foi como levar uma bofetada na cara. Pisquei incrédula, abismada de que ele realmente ousara dizer aquilo. Minha indignação borbulhou por todo o meu sangue e ele tentou emendar o que disse.
- Vamos lá, . Você pode vencer o seu medo... Você nem sabe se é fobia mesmo, pode ser apenas um medo bobo de... – ele não ousou terminar; eu não deixei.
- Já ouviu falar em psicólogo, ? – soltei, ácida. – Porque foi de um que eu recebi o meu diagnóstico. Não sei o seu, mas no meu caso, eu posso comprovar, se você duvida. – eu não conseguia realmente acreditar que aquele filho da puta hipócrita tinha me dito aquilo. O padre se retirou antes que o nível descesse; certo ele. me olhou surpreso – não sei de que, estava muito na cara o que ele havia insinuado.
Eu estava me retirando dali. Mais uma decepção no Natal para a minha listinha já não muito pequena.
E eu teria ido, se a mão grande de não tivesse agarrado meu braço e tapado minha boca, puxando-me (e eu nunca saberei como os outros não perceberam) para dentro do confessionário.
O lugar era muito pequeno para nós dois e se projetava por cima de mim como se fosse duas vezes maior do que era. Porém, minha raiva chegava a ser três vezes maior que ele.
- Desculpe-me, desculpe-me. – ele pedia repetidamente, enquanto esperava que minha raiva vacilasse um pouco, antes de retirar a mão da minha boca, diga-se o único motivo que me impedia de gritar, perante a indignação que pulsava por cada parte do meu ser; ia ser o Enterro mais animado da vida daqueles velhinhos.
- Eu não falei por mal, eu só... Não queria que você tivesse que viver como eu, . Você não faz ideia de quantas coisas eu perdi por causa dessa fobia louca de cemitérios; eu e meu pai não nos falávamos há anos, sabe por quê? Eu cheguei à cidade com tempo suficiente, mas não apareci no Funeral da minha mãe. Sequer me despedi dela! Fiquei do lado de fora, absolutamente derrotado por esse sentimento de impotência. Por isso, não nos falamos mais depois daquele dia; só quando ele veio para NY, sabendo que estava com o câncer em estágio avançado, foi que ele me contatou. Contatou porque não queria morrer brigado comigo e quando ele morreu, eu o perdi! – ele falava rápido demais e de repente falava bem devagar. As informações novas eram como ondas que me davam sensações diferentes a cada frase. Era muita coisa para um minuto só. – Quando eu finalmente o recuperei, o perdi. sussurrou, desmoronando pela primeira vez na minha frente. Eu o abracei e disse a única coisa que eu consegui pensar.
- Então, você já sabe o que dizer lá... – ele me olhou, os olhos vermelhos tão cheios de dor, e sorriu, e eu senti que era sincero. Seus lábios tocaram os meus de leve e o gosto salgado de sua tristeza marcou aquele beijo.

- O que você vai fazer hoje à noite? – estávamos sentados na frente do cemitério, vendo o cortejo seguir até a sepultura onde o pai dele seria enterrado. parecia muito mais conformado agora que se abrira para as pessoas que eram próximas de seu pai.
Seu braço estava passado pelos meus ombros e seus lábios grudados em meus cabelos. Eu não tinha muita certeza se queria sair dali.
- Pelo visto, vou ser convidado para algo. – ele sorriu; eu também. – Estou dentro. – ele sussurrou contra meus cabelos. Um arrepio gostoso passou pelo meu corpo.
- Você nem sabe o que é. – falei dengosa e ele me lançou um sorriso suspeito. Fingi não ter percebido.
- Vou estar com você. Estou começando a ficar satisfeito com isso... – olhei para ele sem saber exatamente o que dizer. Escolhi sorrir, funcionava muito bem perto dele.

- Então, o que vamos fazer? – ele perguntou enquanto tirava o casaco e colocava no sofá. Tinha acabado de entrar; Eu estava usando um shorts qualquer e uma blusinha, casaco xadrez, cabelo preso num coque, terminando de fazer o macarrão que seria nosso jantar.
- Você vai pegar as caixas que estão dentro do closet, lá no meu quarto. Cuidado, são todas de quebrar; enquanto isso, vou terminar o jantar.
Eu cantarolava qualquer coisa, olhando a noite cair pelas grandes janelas que davam passagem para minha varanda. Adorava a noite em Tribeca, principalmente às vésperas do Natal. Tudo era luz lá fora; luzes coloridas, piscantes, vivas, adoráveis; as pessoas procurando o que seus amigos e parentes queriam, ou o que pretendiam dar, naquela confusão gostosa de estar atendendo ao pedido de uma época que ia além daquilo. Era uma felicidade engraçada, porque não tinha motivo real. Nenhuma lei lhe dizia que Natal era época de dar, mas nós dávamos mesmo assim.
Aquela vontade de presentear, de ajudar, de sermos, naqueles dias, melhores do que em todo o ano que passara não tinha uma razão visível. Era tudo culpa do Natal.
Assim como o sorriso em meu rosto agora.
Nada tirava de minha cabeça que o Natal me trouxera ; mesmo que já tivesse me tirado tanto, eu me sentia honrada de recebê-lo em um momento tão igual ao que eu já passara. Era como se meu presente fosse ser, para ele, o que ninguém fora para mim.
E eu o seria, com prazer.
entrou na sala e colocou duas caixas no chão, voltando pelo mesmo caminho que viera. Lá fora, Silent Night começava a tocar em algum lugar. Sorri, terminando de colocar o macarrão nos pratos e dispondo-os na bancada; Seguindo a tradição, procurei pelo vinho tinto que eu havia comprado semana passada e nunca havia tomado.
Duas taças jaziam ao lado do prato perfeitamente arrumado em que eu estava dando o toque final; terminava de trazer a ultima caixa e colocava-a ao lado das outras, já olhando com interesse o que eu fazia.
- Uau. Pensei que só íamos jantar... – ele riu, limpando as mãos empoeiradas na calça; ele passou por mim e me deu um beijo na testa, indo lavar as mãos na pia. Quando voltou, pegou a garrafa de vinho e ficou analisando-a. – Esse é dos bons. Você já planejava trazer alguém para jantar é? – provocou, manifestando um olhar suspeito. Ri e lhe dei língua, indo pegar o saca-rolhas.
- Uma mulher não pode beber sozinha? – desdenhei, pegando o vinho de suas mãos, mas ele o puxou para sí, tomando o saca-rolhas de mim.
- Você está bebendo acompanhada hoje, então sente-se e deixe comigo. – tenho certeza que ele não planejou, mas soou extremamente sexy dizendo aquilo; ou talvez fosse apenas o meu problema em olhá-lo nos olhos por muito tempo. Fiz o que ele mandou sem nem questionar, estendendo minha taça. Ele pegou na minha mão enquanto puxava a taça para colocar o vinho, seus olhos nos meus, indo fundo na minha alma como sempre era enquanto me afogava naquele .
Que, de repente, não estava lá. sentou frente a mim, dando um gole no seu próprio copo cheio de vinho e dando uma garfada cuidadosa no macarrão, elogiando logo depois.
Engajamos uma conversa qualquer enquanto comíamos, sem nos prender a nada, simplesmente nos conhecendo mais um pouco. Era o que eu queria, mas ele teve planos diferentes.
- , e a sua mãe? – percebi que ele já queria fazer aquela pergunta há muito tempo. Eu dei de ombros enquanto mastigava a garfada de macarrão que tinha acabado de levar a boca.
- O que tem ela? – fingi que a pergunta não era importante. Não sei porque, tive a impressão que não convenci ninguém.
- Bom, eu não sei nada dela. – ele assoviou, após alguns segundos, estudando minha feição de interessada na comida.
- Eu também não sei nada da sua. – rebati e ele se calou. Tentei lutar contra o sentimento de culpa que me invadiu, eu sabia, sim, alguma coisa da mãe dele. E, lembrando da situação, era uma das coisas mais importantes a se saber. - Ela faleceu. – eu soltei, em um suspiro, alguns minutos depois. Ele me olhou, mas não disse nada, encorajando-me a continuar. – Há oito anos atrás, dois anos depois do meu pai. – não falei mais; nem ele. Terminamos em silêncio e estávamos lavando os pratos (eu lavava e ele enxugava; demorava mais tempo tentando encontrar o lugar de guardar que eu para lavar todos os pratos), quando ele simplesmente suspirou e largou o pano de lado, puxando-me para um beijo, sem ligar que eu estivesse com as luvas molhadas e cheias de detergente.
Eu estava começando a adorar aquele espírito cheio de atitude daquele homem. De verdade.

- Passa para mim essas bolas vermelhas, . – eu pedi, embrenhada do outro lado da árvore recém-armada de Natal que estávamos decorando. Ele colocou o festão dourado no ombro e se esticou para pegar a caixa com as bolas e os enfeites que estavam no chão, ao lado dele.
- Obrigada. – sorri, pegando a caixa e colocando-a do meu lado, terminando de adornar a árvore já toda envolvida pelos piscas-piscas.
No meio da coisa toda, comecei a achar que tínhamos muitos enfeites para pouca árvore. Quando peguei me olhando engraçado, percebi que éramos dois.
Peguei o resto dos enfeites, rindo, e parti para a varanda; não precisei chamar , porque ele apareceu por lá mesmo assim.
- Vamos colocar aqui, agora? Nem terminamos lá dentro. – ele riu e eu lhe mandei meu dedo médio.
- Vai colocando as luzes aqui, vai. – e comecei a arrumar os enfeites, bordando a janela com luzes e festões, com as bolas vermelhas e enfeites dourados. terminou de enrolar os piscas-piscas na grade da varanda antes que eu chegasse na metade da janela.
- Faltam luzes. – ele lamentou, uma carinha triste forçada tão fofa que eu quis apertá-lo. Forcei-me a dar atenção ao que fazia enquanto falava sem olhá-lo.
- Tem mais uma caixa com luzes, eu acho, na parte de cima do closet. Vai lá ver se acha. – ele foi, depois de me dar um beliscão na cintura. Mandei-o tomar naquele lugar enquanto ria e voltava a tentar terminar o que havia começado.

- , eu não estou achando! – gritou de lá de dentro e eu rolei os olhos, rindo.
- Na parte de cima do closet, !
- Eu estou olhando na parte de cima! – ele gritou novamente; seu tom demonstrava irritação. Terminei de ajeitar a decoração da janela e fui rindo até lá.
- Se eu achar você vai ter que me agradecer de joelh... – disse, entrando rindo no quarto, mas tudo o que eu pensava sumiu rapidamente da minha cabeça quando eu o vi segurando uma arma como se não acreditasse no que via.
Consegui voltar a respirar quando percebi que era a minha; uma maravilhosa Glock 18 que eu havia herdado do meu pai. Sorri para ele, mas ele não me olhava. Seu olhar estava preso na arma, a qual ele segurava de mal jeito como se sentisse nojo daquilo com todas as suas forças.
Quando seus olhos se voltaram para mim, senti como se ele tivesse acabado de me xingar tamanho era o ódio presente em meu mar .
- O que é isso, ? – o ódio que depositou na específica palavra não era direcionado a mim, mas era comigo que ele estava falando.
O primeiro instinto que tive foi me proteger, e, para me proteger, eu iria atacar.
- Bom, de onde eu vim, isso é conhecido como arma, . – praticamente cuspi a resposta e me olhou com um nojo que não era para mim, mas mesmo assim doeu.
- O que essa merda tá fazendo aqui, ? – sua voz subiu dois tons e estava dotada de um sentimento raivoso que me fez arregalar os olhos. Minhas pernas estavam travadas no lugar e o coração batia desesperado, porém eu fiz minha melhor cara petulante e enchi o tom de desafio.
- Essa merda tem nome, querido. É uma Glock 18, devidamente registrada, sob minha titularidade, para justa proteção. – não deixei que ele gritasse suas indignações novamente. – E eu agradeceria se você a colocasse no exato lugar em que achou, porque ela não lhe pertence. – não fez o que eu pedi. Ele olhava a arma, como se não realmente a visse; ele a odiava tanto que eu sentia as ondas emanando dele. Senti-me pessoalmente ofendida, porque era minha casa, a minha arma e na minha vida que ele queria se meter. Ele não tinha o direito de exigir nada de mim e, principalmente, se tinha alguma coisa contra armas, deveria guardar para si e expressar depois e não sair gritando e brigando por algo que não era de sua conta.
Eu sabia que estava certa e estava bem comigo por defender o que acreditava; mas não consegui tirar o gosto de perda que aquela situação estava me dando.
- Não acredito que você tem uma merda dessas em casa. - a pausa que ele fez foi como um machucado que não sarava. - Você sabe quantas vidas são tiradas por armas registradas por proteção todo o dia? – ele praticamente vociferou as palavras. Aquela raiva emergente marcando cada espaço e se elevando na última parte da pergunta e, apesar do meu profundo choque, a resposta foi imediata.
- Não tem ninguém lhe obrigando a gostar do que tem aqui, . Se você não gosta, é só sair. – seus olhos nos meus era como levar um tapa.
Ele colocou a arma -como se fosse algo nojento- novamente na caixa e então em cima da cama, saindo logo após. Passou raspando os meus ombros nos dele e deu uma rápida vista no meu rosto; tudo que ele observou foi o que eu estava sentindo; pura decepção.
Os enfeites de Natal, que piscavam lá fora, transformavam-se em um anúncio de que essa época continuaria sendo o símbolo de más lembranças para mim.

- Oi, David. – cumprimentei, com uma animação que não possuía, o porteiro do prédio.
- Olá, Srta. , como vai? – ele era sempre simpático e seus cabelos grisalhos o faziam parecer aquele avô que nos dá os melhores presentes de Natal. Sendo bem sincera, eu nem sabia se David era casado, quanto mais se tinha filhos.
- Só , já lhe disse. – ralhei com relação ao senhora, mas logo sorri. – E eu vou bem e você? – ele me olhou de um jeito analítico por um segundo, que não me passou despercebido. Não era possível que com tanta maquiagem, minhas olheiras das várias noites sem dormir ainda continuassem perceptíveis. Fingi a inocência de que não notei o que ele reparava.
- Bem, também. Indo até a Academia de Tiros? – ele perguntou, quase em uma afirmativa, fazendo-me sorrir. David trabalhava aqui há tanto tempo que sabia toda a minha rotina. Assenti, procurando meus óculos escuros. – Já fazia algum tempo que a Senhorita não ia lá. – Viu o que eu disse? Ele sempre sabe. Ralhei com ele novamente pela Senhorita e achei meus óculos, colocando-os rapidamente para fugir de seu olhar curioso.
- Pois é. – infelizmente, pausas sempre me levavam a alguma reflexão. – Eu meio que esperava um Natal diferente esse ano. – David me sorriu preocupado.
- O que houve? – muitas coisas passaram pela minha cabeça naquele momento, mas a imagem de saindo do meu apartamento há uma semana e meia atrás foi a que mais pesou. Eu sorri e o velhinho bondoso também.
- Acho que fiz meus planos antes da hora. – suspirei e ele balançou a cabeça em compreensão; quando me olhou, ainda sorria.
- Mas o Natal é apenas daqui a dois dias. Ainda é 23...Talvez nem tudo esteja perdido. – a esperança no tom dele, fez-me menear a cabeça, discordando profundamente.
- Talvez. Tchau David. – mandei-lhe um beijo quando ele me desejou boas festas e avisei-o que seu presente estaria na árvore de Natal do saguão e que ele iria adorar. David apenas sorriu.
Talvez fosse por isso que eu o adorasse tanto: positividade.
As ruas de Nova Iorque pareciam ainda mais lindas agora, chapinhadas de branco pela neve, enfeitadas em verde e vermelho; luzes em todos os lugares da cidade, mas isso parecia ainda maior em Tribeca. Casas com bonecos de neve, renas do tamanho de pessoas, papais noéis em chaminés e crianças nas portas de suas casas, aproveitando o dia da estação. Lojas aclamavam pelo espírito natalino, que rendia os maiores lucros do ano e, é claro, eu adorava assistir as famílias - talvez fosse pela falta que me fazia uma - em seus passeios, fosse apenas para olhar vitrines ou para brincarem no parque perto de casa.
Natal era, é, e sempre será uma época mágica.
E nem mesmo a Academia de Tiros escapou dela. Eram poucas as decorações no local, que lembrava um armazém, é verdade, mas os poucos piscas-piscas em torno do nome e da entrada, somados aos arranjos com bolas decoradas e folhas artificiais na porta, deixavam o lugar com uma cara mais interessante. Alegre até, eu diria.
Que, por algum acaso, não era para estar aberto faltando um dia para a Véspera de Natal. Mas quem iria discutir com a VIP que acordou o dono e conseguiu a chave?
Lembre-se que ela anda armada com uma Glock 18 que já causou polêmica.
Ninguém? Foi o que eu pensei.

Abri o armário de munição, acionei os alvos e fui até o meu armário fixo, em que dentro havia uma maleta relativamente grande e preta. Peguei-a, abrindo na bancada de uma das cabines de tiro.
- Olá, meus bebês. – sorri e dedilhei por cima da minha coleção particular de pistolas. Iam desde uma Beretta até uma MK-47 da qual eu particularmente me orgulhava do estrago.
Coloquei uma em cada cabine, e comecei passando de uma para outra, mudando de arma e de dificuldade do alvo. Com pouco tempo, aquilo perdeu a graça e eu guardei todas, menos a minha companheira de sempre, a Glock, que me esperava na cabine do meio.
- ! – uma voz conhecida chamou. Indescritível o tamanho do susto que eu levei ao ver encostado no batente da porta; Cabelo jogado, sorriso enviesado nos lábios e os olhos estudando minha mão perfeitamente estirada com a arma no ângulo perfeito para acertar o alvo.
Atirei sem ter tido a intenção. Ele piscou, surpreso. Seus olhos ficaram momentaneamente grudados no buraco que havia no alvo – na pontuação máxima.
- ? – todo o meu choque marcava a entonação do chamado. Ele sorriu, meio travado pelo choque do tiro não planejado, mas se aproximou como se nada tivesse acontecido.
- Oi. – ele disse, com um sorriso fofo, ao chegar perto de mim. Achei que não teria nada, após uma semana e meia sem contato, mas assim que seus olhos voltaram a encontrar os meus e aquele cheiro másculo de loção pós-barba encheu os pulmões, engoli em seco, sentindo uma ânsia no pé do estômago que me forçava a admitir que havia sentido sua falta.
O que eu achava inaceitável, pois depois do jeito que ele havia me tratado ao encontrar minha Glock 18, eu devia mandá-lo ao caralho.
- Oi. – eu respondi, sem saber o que fazer. O problema era que não encontrava forças para isso, porque sempre que seus olhos estavam nos meus, elas sumiam. Resolvi, então, manter-me racional (o que, na divisão maluca em que meu íntimo se encontrava, também poderia ser lido como crítica). – O que está fazendo aqui? – ele me olhou e eu percebi que era uma pergunta idiota. Reformulei. – Quero dizer, como me achou aqui? – depois que o disse, percebi que aquela sim era uma boa pergunta. Minha curiosidade ajudou a desviar a atenção da carga de nervosismo que o cérebro mandou ao corpo e que fazia tremer as mãos e a merda do coração inventar de acelerar.
- David me disse. – minha surpresa também aliviou os sintomas de volta à adolescência. Como assim David? Desde quando ele sabia, sequer, que eu conhecia ? Seu “talvez nem tudo esteja perdido” tinha uma conotação completa de ideias subentendidas agora.
Escolhi dar de ombros e guardar a arma – lançava olhares indecisos de dez em dez segundos à ela.
- Eu queria falar com você. – ele começou. E ele sabia exatamente como começar; olhou-me daquele jeito que fazia minhas pernas tremerem, deu dois passos para mais perto e já tinha uma mão indo perigosamente para minha cintura.
Mas dessa vez eu sabia exatamente como cortá-lo.
Dei dois tiros propositais em direção ao meu alvo e recuou imediatamente para trás. Acho que meu sorriso convencido enquanto guardava a arma na caixa e a colocava em minha bolsa delatou que os tiros haviam sido planejados.
Ele tentou vir mais três vezes. E nas três vezes ameacei pegar a arma novamente. Até que segurou meu braço, forçando-me a olhar para ele.
Por mais que o aperto em meu braço fosse firme, era, ainda mais, gentil.
- Vamos conversar, , por favor. – pude ler tudo o que ele falava claramente em suas pupilas e, puta merda, vou comprar lentes coloridas para ele de Natal, porque aquele ainda vai acabar me matando.
- Pra que ? Você já disse o que pensa e já sabe como eu me sinto. Desculpe, mas eu não estou a fim de brigar de novo.
- E não vamos. – achei ter visto uma nota de desespero naquela voz pouco controlada, mas tirei isso da cabeça quando ele voltou a falar e seus olhos diziam a mesma coisa que seus lábios. – Eu prometo.

Já disse que odeio silêncio? Pois, odeio. E o odeio ainda mais quando é aquele desconfortável entre duas pessoas com muitas coisas a serem ditas e sem a devida coragem para revelá-las.

- Afinal, por que tanto ódio? – a pergunta escapou e rompeu aquela sensação de estar perdendo um tempo valioso. Ele olhava para baixo, mas voltou-se para mim ao responder.
- Minha mãe.
- Ela era contra? – perguntei, ficando perigosamente curiosa sobre o assunto. Eu podia entender que ele tivesse crescido em uma família que fosse contra e tivesse essa ideologia, mas aquilo não o desculpava pelo jeito que havia me tratado. Ele se ajeitou na cadeira da recepção da Academia onde estávamos sentados e me olhou; tentei não afogar no .
- Ela era professora. – seu tom dizia que seria uma longa história. – Em um dia normal, ela estava dando aula para os alunos da sexta série. Um dos alunos da sala, porém, havia descoberto no dia anterior a chave da gaveta onde seu pai guardava sua arma registrada “para proteção” e achara que seria aclamado pelos amigos se mostrasse a eles o que seu pai tinha em casa. Ele guardou a arma na mochila e foi para o colégio como se não estivesse fazendo nada de errado. Porém, não se sabe ao certo como, a arma disparou de dentro de sua mochila quando ele a estava pendurando na cadeira. O tiro pegou, certeiro, no peito de minha mãe. – meu choque não deixava que eu fosse capaz de formular palavras. continuou. – Ela morreu ao chegar no hospital.
Ficamos em silêncio. Dessa vez, um silêncio cúmplice e cheio de subentendidos. Um silêncio do qual eu gostava. Tínhamos vidas diferentes, histórias complicadas, mas eu sabia que ele precisava da mesma coisa que eu, naquele exato momento. Aproximei, até ficar sentada ao lado dele e segurei uma de suas mãos; com a outra, fui acariciar seu rosto, notar que a barba havia sido feita, que a pele era macia e que ele me fizera mais falta do que eu havia percebido.
- Meu pai era policial, você sabe. – eu comecei sem saber o por quê. – E eu sabia exatamente onde ele guardava suas armas em casa, era em um cofre no quarto, que sempre ficava trancado quando ele não estava em casa. Não estou dizendo que o que aconteceu não foi errado, , estou dizendo que não é culpa da arma e sim do dono que não soube guardá-la. – ele ia revidar, eu vi, mas eu também tinha uma história para contar. – Quando eu fiz 16, foi a primeira vez que eu vi a arma que meu pai guardava em casa. Uma glock 18. – sorri, levantando a caixa onde a mesma arma repousava. – Ele me levou para as árvores altas que tínhamos no quintal e me ensinou a usar uma. Eu nunca entendi o motivo, mas desde pequena adorava armas. Achava-as mais interessantes que bonecas. Meu pai sempre brincava comigo de polícia e ladrão. Por alguma razão eu sempre era a policia e ele sempre acabava baleado pelas nossas armas fantasiadas. – nós dois rimos, mesmo que sua risada fosse mais fraca que a minha. – Quando fiz 17, ele me trouxe aqui. Presenteou-me com uma arma e mandou-me ganhar meu lugar na Academia. Ninguém chega aqui com uma arma e sai atirando, são precisos inúmeros protocolos, que meu pai burlou naquele dia para que eu pudesse saber como me defender. Desde aquele dia eu sempre venho aqui. Acaba ajudando a pensar e a descarregar seja lá o que for que eu esteja sentindo. – ficamos em silêncio por apenas uns segundos, porque eu ainda tinha o que falar. – Lembra que eu disse que meu pai foi morto em serviço? – ele assentiu. – Ele morreu em serviço, sim; Algumas pessoas tentaram suborná-lo para parar de investigar uns assassinatos... Ameaçaram a mim e a minha mãe... E quando ele recusou, atiraram nele. No meio da rua. Como se não fosse nada tirar a vida de alguém. – ele me olhava surpreso, ou talvez fosse assustado, eu não sabia. - Eu tenho tudo para ser contra as armas tanto quanto você, mas se tem uma coisa que meu pai me ensinou é que tudo tem dois lados. A mesma arma que mata, é a que protege. É o preço que pagamos por tudo e que precisamos pagar por isso também. - Ele levantou seus olhos para os meus e eu sorri, sem estar feliz ou triste, simplesmente sorri para ele porque queria que ele visse o quando importava para mim que ele sorrisse de volta para mim também.
E quando nossos lábios se encontraram num beijo doce, eu soube que ele havia percebido do que eu precisava antes mesmo de eu realmente precisar.

- Pára, ! – eu saí correndo, segurando minha bolsa e a caixa com a Glock do jeito que dava, quando se abaixou e inventou de começar uma guerra de bolas de neve. Desviei de uma bola que vinha certeira ao meu ombro e me abriguei atrás do carro. Escutei o barulho de mais duas bolas batendo nele e a risada alta. Mandei-lhe o dedo por cima do carro e ele riu mais alto.
- Tudo bem, já parei. – espiei antes de sair realmente de trás e vi que ele estava com as mãos no bolso e um falso ar de inocência. Levantei dando-lhe um olhar feio e abri o carro, guardando minhas coisas, enquanto ele ia andando até o dele.
- Ei, ! – chamei quando ele já estava abrindo a porta do carro e ele se virou para mim sorrindo. – Qual é seu plano pro Natal?
- Assistir aqueles filmes sobre Natal que passam nos especiais da TV. – ele disse rindo e dando de ombros. Eu sorri, sabia que podia perguntar no prédio, mas, por algum motivo, queria saber agora.
- Você gostaria de jantar comigo? Na véspera de Natal? – eu me senti engraçadamente nervosa ao perguntar. Ele sorriu e assentiu.
- Apareceria por lá mesmo que você não tivesse chamado, sabia? – ele gritou enquanto entrava no carro e eu ri.
- É, eu suspeitava. – falei para mim mesma e também entrei no carro, tomando uma direção contrária à dele. Agora que eu teria visitas, precisava fazer compras urgentemente.
O supermercado estava lotado; era véspera da Véspera de Natal, então era compreensível, mas não deixava de ser irritante. Eu demorei o triplo do tempo normal para comprar tudo e pagar no caixa, então quando eu saí para o estacionamento, o céu já começava a escurecer.
Eu estava a dois quarteirões do meu prédio quando vi uma vitrine que me chamou a atenção. Era a única loja aberta na rua àquela hora e me lembrou que eu precisava comprar algo para . Estacionei o carro e corri para lá.
Saí rindo meia hora depois do que eu descobri ser uma Loja de CDs. Tinha que admitir que eu estava com uma sorte digna da época de Natal, enquanto minha sacola ia balançando com um presente perfeito.

(Coloquem para carregar Solamente Una Vez – Andréa Bocelli)

Era engraçado o quanto o dia anterior havia passado devagar e o quanto hoje, Véspera de Natal, parecia correr. Cantarolava baixinho a música do Documentário que eu havia visto com semanas atrás sobre Música Clássica - ele riria da minha cara se descobrisse o quanto eu havia gostado. Só as luzes mais fracas estavam ligadas, dando um toque gostoso ao meu apartamento.
Eu estava terminando a receita de um prato especial que havia aprendido há muito tempo e nunca tivera a chance de preparar para dois; a cidade estava magicamente quieta naquela noite, aquele clima natalino que envolvia todo o espírito das pessoas, a vontade de ter alguém por perto, de se estar junto com a família. Uma saudade gostosa dos meus tempos de criança onde passava a tarde brincando na rua e a noite em volta da mesa, com as pessoas que eu mais amava no mundo. Meu peito encheu e deu lugar a uma satisfação que me era estranha à aquela época do ano, desde o falecimento de meu pai, cravado na mesma data. Era bom voltar a amar o Natal.
Olhei o relógio. Oito e quarenta e sete. estava dezessete minutos atrasado, mas eu não estava ligando muito, porque eu ainda estava terminando de arrumar a mesa perto do portal que dava para a varanda. A vista estava linda e eu queria aproveitar.
Campainha.
Eu não queria ter corrido em direção à porta, mas corri. Parei para respirar fundo e dar uma olhada no espelho (ajeitando um fio de cabelo que descia para a frente de meus olhos) e passando a mão pela minha roupa, certificando-me de que não estava parecendo muito arrumada – apesar de ter ficado horas me arrumando. Mordi meu lábio um pouco antes de abrir a porta.
Porque, diabos, eu estava tão nervosa?
De primeira, não achei . Tudo que vi foi a frágil rosa vermelha que ele trazia estendida para mim. Senti meu coração falhar uma batida – e nem posso dizer que não gostei, porque meu sorriso ainda perduraria uma semana depois daquilo.
Tentei formular palavras, mas tudo parecia muito pouco ou então dispensável. Mas quando seus olhos pararam nos meus e seu sorriso aumentou, eu soube que ele sabia que estava extremamente lisonjeada. Peguei a rosa e dei passagem para que ele entrasse, levando a flor para que eu pudesse sentir seu cheiro.
As luzes natalinas que havíamos colocado por lá me pareciam mais bonitas hoje, enquanto eu colocava a comida a mesa e ele vinha atrás de mim com o vinho.
Fingi não perceber quando ele me deu uma analisada significativa quando me curvei para dispor o jantar e sorriu, andando sorrateiramente até meu som e colocando algum CD lá, passando até um número específico.

(Solte a música)

Sorri quando a música que eu cantarolava algum tempo atrás irrompeu pelo lugar.
- Quem é que não gosta disso agora, hein? – ele provocou e eu lhe mostrei meu dedo médio. Rimos, mas logo voltamos ao silêncio.
andou até mim, parou a poucos metros e me cumprimentou como um cavalheiro, estendendo a mão em um gesto cortês. Seu sorriso iluminava mais o local que as luzes da decoração natalina.
- Dança comigo? – ele questionou. Demorei a responder, buscando confirmação. Por fim, dei minha mão a ele e fui puxada de encontro ao seu peitoral, com cuidado.
Dançamos devagar.
Passos perdidos pela varanda pequena, que nos dava a visão das ruas de Tribeca, perfeitamente brancas e decoradas. Minha cabeça repousava em seu peito, enquanto uma de suas mãos segurava a minha e a outra estava firme na cintura. Ele cantarolava com o rosto ao lado do meu, o nariz na direção do meu cabelo, com uma respiração calma, gostosa e envolvente como o ritmo e a música.
Como ele.

Sentamos, muito tempo depois, e fechamos a porta da varanda para que o frio não atingisse a sala. colocou vinho no meu copo enquanto eu colocava comida no dele.
- Eu nunca fiz essa receita para dois, então se estiver ruim, minta. – alertei e ele riu, fazendo-me sorrir também, enquanto dava uma garfada e levava à boca. Ele fez o mesmo.
- Está muito bom. – elogiou, com um sorriso.
- ... – ele me chamou, depois de dar a segunda garfada na comida. Eu o olhei, um sorriso brincando em meus lábios. – Tem uma coisa que eu sempre quis lhe perguntar...
- Pergunte, então. – meu sorriso virou riso por alguns segundos quando percebi o quão envergonhado e sem jeito ele estava.
- Eu...Er, sempre quis saber...O que você fazia no Hospital aquele dia. – ele falou pausadamente e de um jeito engraçado. De algum jeito, eu sabia que ele faria essa pergunta algum dia; talvez fosse até melhor que fosse agora, durante um momento tão feliz no Natal.
- Bom... – eu comecei, um sorriso meio indeciso. Como se me incentivasse, senti uma fisgada em minha perna. – Eu tinha uma consulta... Porque eu estava sentindo umas dores, que estavam afetando meu desempenho no trabalho.
- Ah. Elas já pararam? – seu tom preocupado fez as coisas parecerem melhores.
- Não. – fiz uma pausa grande, sem ter muita certeza sobre como falar. Ele esperou, paciente, dando um gole no vinho e mantendo seu olhar em mim. – Elas nunca param. – comecei, mais segura. – Tenho Síndrome de Ekbom, que é caracterizada pelas dores nas pernas que não param e não deixam a pessoa dormir... Causando problemas de concentração... Entre outras coisas. – não expressava nenhuma reação em especial. Ele me olhava como se esperasse que eu dissesse que era alguma espécie de pegadinha, mas nós dois sabíamos que aquilo não ia acontecer. Passaram-se alguns segundos demorados antes dele limpar a garganta e finalmente dizer alguma coisa.
- E as dores não param... nunca? Não tem tratamento?
- Tratamento, tem, mas não com um medicamento. E as dores... Bem, elas vão diminuindo com o tratamento.
- Então, tem cura? – ele parecia aliviado, senti-me quase culpada de romper suas esperanças.
- Não. Quero dizer, algumas sim, mas a minha não. – os olhos foram tão fundo nos meus que eu fiquei sem fôlego, olhei para baixo e procurei urgentemente pelo vinho para apartar a vontade crescente de pular pela mesa e colar meus lábios nos dele até o outro dia.
- E... É de risco? – vi que o tempo todo, aquela era a pergunta que ele queria fazer. Meu sorriso fez com que ele suspirasse num alivio que suavizou até o de seus olhos. – Uau. – ele soltou, se esticando na cadeira como se uma carga enorme tivesse sido retirada de seus ombros; a cena, maravilhosamente interessante, chegou a ser engraçada. – Você me deu um susto agora, . – ele sorriu.
- Desculpe. Eu não sabia que seria tão preocupante. – eu ri, mas ele não. Seus olhos pararam nos meus e toda minha graça se esvaiu para dar lugar a aquela ânsia ao pé da barriga. Aquela vontade controladora que fazia todo o resto se esvair para os olhos tão significativos à minha frente.
- Eu tenho uma coisa pra você, . – ele disse após algum tempo em que nós escolhemos comer em silêncio em meio a olhares furtivos em que fingíamos não ter visto quando nos pegávamos olhando. A curiosidade me fez apoiar na mesa quando ele se abaixou para pegar algo no bolso do casaco. Ele levantou uma caixinha preta com um nome dourado de alguma loja; Havia um lacinho dourado lindo colado à caixa. Meu sorriso surpreso se esvaiu para uma tristeza arrebatadora.
- ! – meu tom era visivelmente dilacerado; ele me olhou imediatamente, preocupado. – Eu não comprei nada especial... – meu tom foi morrendo ao mesmo tempo em que sua compreensão enchia sua expressão. Seu sorriso era como uma brincadeira de mal gosto.
- , mas que besteira. – ele ralhou, enquanto esticava a mão até meu rosto e puxava-o para cima, seus olhos nos meus novamente. Sua mão foi descendo calmamente até meu cabelo e então seu cenho se tornou intrigado.- Seu cabelo...
- O que tem ele? – minha voz era um sopro.
- Está diferente... mais... liso. – entendi que ele não estava fazendo nenhuma crítica, porque sabia que ele estava se referindo ao hidratante que deixara meu cabelo gostoso de pegar. Tentei desconversar, mas ele voltou ao mesmo assunto, por fim, dei-me por vencida.
- Eu...Dei um trato dele. – percebi que ele não entendeu, então continuei. – Hidratei...Usei o resto do Hidratante que tinha aqui para...Ajeitá-lo. – eu ia dizer “para ficar bonita”, mas troquei rapidamente. Ele me olhou, ainda intrigado, mas um sorriso pairava em seus lábios.
- Por quê? – ele estava verdadeiramente curioso. Pela primeira vez, joguei-me de bom grado naqueles olhos . Ele pareceu entender. – Pra... mim? – não entendi sua descrença.
- Eu...Queria...Parecer legal.... – na verdade, queria estar absolutamente fantástica. Ele me encarou por vários segundos sem saber o que falar. – Ele não estava apresentável para um jantar. – eu comecei e ele sorriu, verdadeiramente orgulhoso.
- Fico feliz de não ter sido o único preocupado com hoje... – sorrimos. Então ele se lembrou da caixinha que repousava na mesa entre nós. – Vamos, abra! – eu olhei a caixinha sem jeito e peguei-a com cuidado. Dedilhei o laço dourado e a camurça pelo qual a caixa era envolta. estudava tudo o que eu fazia com atenção e um sorriso maroto. Abri a caixa e fiquei sem palavras vendo o par de brincos absolutamente lindos que agora eram meus.
Olhei para ele e “não precisava” parecia tão pouco que acabei sem palavras. Ele apenas sorriu e deu de ombros.
- Vi na rua, pensei em você. Espero que goste.
- Eu adorei. – meu tom demonstrava isso. Ele ainda sorria. – Eu... Eu não comprei nada especial, . Desculpe... Eu... Meu deus, eu não posso aceitar. - É claro que pode, . – sua voz subiu um tom perante meu descrédito. – Eu não comprei porque era Natal e era um bom presente... Comprei porque achei que ficaria lindo em você. – meu sorriso era enorme. Terminamos de comer entre sorrisos e olhares.

- Feliz Natal, . – me desejou e sorriu, puxando-me para mais perto no sofá e colando nossos lábios em um selinho. O vinho repousava na mesa ao lado das nossas taças e os pratos já estavam na pia da cozinha. Quando nos separamos, fui eu quem falei.
- Feliz Natal, . – e então eu mergulhei naqueles olhos e em um beijo que trazia de volta aquela sensação do primeiro beijo na cozinha. De repente, eu mal me lembrava de nada além dos lábios de nos meus e sua língua acariciando a minha com cuidado. Seu braço envolveu minha cintura sem jeito e minhas mãos se embrenharam em seus cabelos. Com um impulso, fui parar sentada no colo de e mal liguei, o beijo tornando-se forte, rápido, ávido por mais.
nos separou. Arregalei meus olhos enquanto analisava sua boca vermelha que me chamava por mais. Minhas mãos ainda estavam em seus cabelos quando seus olhos pararam nos meus e fizeram meu corpo arder de desejo.
Então, olhou para as minhas pernas -posicionadas em cada lado do seu corpo- e suas bochechas coraram.
Sério que ele estava com vergonha?
- ... me desculpe... eu... me descontrolei... – calei-o com um dedo sobre seus lábios entreabertos. Maliciosamente, ele beijou o indicador que o silenciava, fazendo com que um arrepio perpassasse por todo o meu corpo.
- Shhhhh. – chiei, a poucos centímetros daqueles lábios convidativos. – É a hora de eu lhe dar o meu presente de Natal. – o sorriso dele foi o que bastou para que nós embarcássemos novamente naquele beijo. Seus lábios tocaram os meus sem cuidado algum e a língua experiente invadiu minha boca, sem precisar de permissão. Suas mãos foram para minha cintura e uma logo subiu a minha nuca.
No meio do turbilhão, de algum modo, ele conseguiu descer as duas mãos para minhas pernas e me segurar enquanto levantava. Eu não percebi, porque estava muito ocupada em seu pescoço e cabelo, mas quando minhas costas se chocaram com força contra a parede e seus lábios novamente capturaram os meus em um beijo forte, foi impossível não notar. Suas mãos apertavam minhas coxas com força e eu logo as envolvi em sua cintura, prendendo-me a ele. Minhas unhas fizeram a festa em suas costas, fincadas com vontade desde acima da sua bunda e subindo até ombros. Nossas bocas se separaram por alguns segundos, em busca de fôlego. E aproveitou para atacar meu pescoço com chupões que ficariam por dias e mordidas que me roubaram gemidos entredentes.
Minhas costas tiveram alívio por alguns segundos e eu aproveitei que ele se concentrava em andar para atacar seu pescoço e peitoral com minhas unhas e boca, deixando marcas que eu também esperava que ficassem por algum tempo.
Não sei dizer como chegamos até a cama ou onde nossas roupas foram parar, mas no momento em que senti dentro de mim e seus olhos ficaram fixos nos meus, eu não consegui pensar em mais nada além de como aquele brilhava tal qual as luzes de Natal na varanda. Quando chegamos ao clímax pela terceira vez e nossos corpos já se enroscavam em um abraço que nos renderia uma quarta, não pude conter um comentário que eu já queria fazer há muito tempo.
- Há muito tempo atrás, eu havia pedido uma coisa muito especial de Natal. – meus lábios estavam colados ao lóbulo de , partilhando mordidas e chupões discretos que eu havia descoberto que ele gostava. – Hoje é Natal e eu acabei de ganhá-lo.
- É mesmo? – ele ria, suas mãos desceram maliciosamente pelas minhas costas e depois escorregaram para a lateral do meu corpo sorrateiramente. – E como foi que você conseguiu isso?
- Foi muito fácil, na verdade. – eu sorri e ele se ajeitou para que pudesse me olhar; seus olhos pousaram nos meus e seu sorriso era espelhado lá e nos meus lábios também. – Eu só precisei sentir novamente o espírito natalino... – ele jogou a cabeça para trás em um riso e voltou a me olhar em seguida, aquele mar me levando pela correnteza. - E dar um oi a um estranho desesperado no Hospital. – eu me afoguei naqueles olhos por vários segundos enquanto seu sorriso aumentava antes de seus lábios procurarem os meus mais uma vez.

FIM







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