Era sempre assim, todo inverno eu saía umas duas vezes por dia, aos finais de semana, para ajudar. Sim, ajudar, uma atitude rara nos dias de hoje. Eu, admito, sou um apaixonado por cachorros e crianças e, no inverno rigoroso de Paris, não poderia deixar as duas criaturas mais adoráveis do mundo passando frio e fome nas ruas. Meu amigo, William, por sorte, pensava como eu e, todo inverno, abria um abrigo de cães em sua casa. Pessoas que encontrassem cães nas ruas poderiam levá-los para lá e pessoas que quisessem um cachorro também poderiam ir até lá adotar um. No final da estação, o abrigo fechava e os cachorros que permanecessem lá, seriam adotados por William.
Eu estava andando à tarde pelas ruas de Paris e colocava todos os cachorros abandonados que eu encontrava dentro da carroceria da minha caminhonete, ao mesmo tempo que distribuía chocolate quente e croissant para as crianças de rua, indicando também um bom abrigo de inverno para elas. Aquele tinha tudo para ser só mais um sábado da minha vida, mas não era. E eu só pude perceber isso assim que cheguei à casa de William. A primeira coisa que eu avistei foi um gorro de lã rosa. O gorro de lã mais chamativo que eu já vira em toda a minha vida. Logo perceberia que ele pertencia à mulher mais bonita que eu também já vira em toda a minha vida. Ela estava agachada em frente ao cercado dos cães, de costas para mim, e acariciava um vira-lata que se parecia muito com um labrador caramelo. Pelo pouco que eu podia ver, seus cabelos tinham um tom castanho avermelhado. Vestia um sobretudo bege, quase da cor do cachorro e calça jeans.
- Com licença. - Toquei em seu ombro, ao que ela se virou para mim. Seus olhos, de um castanho escuro, me passavam uma sensação que eu nunca tivera até aquele momento.
- Oui? - Respondeu em francês.
- O William está por aqui? - Perguntei na língua em que ela falava. Eu, como inglês, não gostava de causar confusão com os franceses por não respeitar a língua deles.
- Você deve ser . William me avisou que você viria. - Ela se levantou e estendeu a mão. - Eu sou , irmã do William. - Acenti com a cabeça e peguei sua mão. - Ele teve que viajar. Coisas do trabalho de verdade dele, sabe como é. Aí pediu para que eu ficasse no lugar dele, já que eu não tenho um trabalho tão opressor assim. - Olhou para os lados, como que buscando palavras. - Você é o , não é?
- Sim! - Quase gritei ao lembrar que não tinha respondido. - Muito prazer, .
- O prazer é todo meu. - Ela falava com tanta velocidade e desenvoltura que ficava na cara que ela era uma garota extrovertida. - Então, o Will me mandou te oferecer um café. Ele disse que você sempre chega muito cansado, porque você anda demais. - Deu uma leve pausa. - Sim, ele me contou toda a sua história e a sua bondade com os animais e com as pessoas.
- Bom, que maravilha! - Sorri. - Agora eu realmente não tenho nenhuma novidade pra te contar.
- Não dessa forma. - Gargalhou. - Ele me contou que você alimenta crianças. Eu só fiquei me perguntando como você consegue suportá-las. Crianças, principalmente no inverno, são extremamente melosas. Elas só querem saber de brincar e nunca se responsabilizam por nada de errado que façam. Me desculpa, mas eu odeio crianças.
- Crianças são maravilhosas. - Afirmei. - Eu já fui criança e você também. É uma parte incrível da vida.
- De qualquer maneira, eu prefiro ser adulta. A vida é mais divertida assim, não é? - Me olhou com aqueles olhos maravilhosos. - Então... Vai querer o café?
- Sabe... - Fui andando em direção à caminhonete. - Eu queria abrigar os cachorros antes, será que tem como?
- Ai, me desculpa! Lógico que tem! Vamos colocar eles aqui dentro.
rapidamente abriu o portão para o cercado dos cachorros que, obviamente, era coberto. Depois de devidamente abrigados, deixamos os cães e entramos na casa de William. ligou o aquecedor e tirou o seu gorro e o sobretudo, deixando à mostra uma blusa de manga 3/4 azul e seu cabelo liso. Eu fiz o mesmo que ela e a segui para a cozinha, onde ela começou a preparar o café.
- Você deve estar pensando que eu sou uma doida, né? - Sorriu fracamente, sem tirar os olhos do pó. - A garota que fala de mais, adora cachorros e odeia crianças. Tão estereotipada essa imagem. Mas eu não sou tão doida quanto eu pareço, eu juro.
- Não é? - Encostei-me à bancada da cozinha e a encarei. De perto, ela era ainda mais bonita. - Mas parece.
- Acredite, não sou. Pra falar a verdade, eu sou bem tímida. Só que eu aprendi a falar muito quando eu estou com vergonha justamente pra esconder.
- Bom, não é o que parece.
- A intenção é justamente não parecer. Quando você me conhece melhor, percebe que eu falo menos. - Sorriu outra vez. - Se importa se eu ligar o som?
- De forma alguma.
foi até o som e apertou o botão que o ligava.
- Espero que goste de The Script.
- O quê? Você deve estar brincando! É minha banda favorita! - Gritei. - Er... Me desculpe por isso. É só que... Bom, coisas da adolescência, você sabe como é.
- Sei, sei... - Gargalhou. - Fico feliz que você goste. Também é minha banda preferida. E espero que você goste de café coado. - Voltou para a cozinha. - William deve preparar café expresso pra você, mas eu sou contra esse tipo de modernidade. Gosto do bom e velho café.
- Pra falar a verdade, eu nunca provei outro café que não seja o expresso, então...
- Então até hoje você nunca provou café. - Concluiu rapidamente. - Eu estou pra te perguntar uma coisa desde que você chegou aqui... - Tirou o coador da garrafa e a fechou. - Se importa se falarmos inglês? Você sabe, eu e o Will somos ingleses, você é inglês, já temos que conviver com o francês todos os dias...
- Por mim é perfeito. Eu nem sou muito bom em francês. - Respondi já em minha língua materna.
- Tá bom. - A garota revirou seus olhos. - Vou fingir que nós não tivemos uma longa conversa em francês.
- Você falou durante a maior parte do tempo.
- Tá... - Percebi que suas bochechas ficavam levemente rosadas. - Mas isso não significa nada. Quando você falou, você falou muito bem.
- Certo, . - Ri. - Posso pegar meu café?
serviu duas xícaras e, então, nos sentamos no sofá da sala de estar de William para tomarmos nosso café ao som de The Script. For The First Time tocava e eu percebia o corpo da garota se mexer suavemente no ritmo da música.
- Conte-me, ... - Disse depois de bebericar seu café pela milésima vez. - De onde você é?
- Eu sou de Boston. - Menti. - Massachusetts.
- Aham. - Ironizou. - Você já confirmou pra mim que é inglês, meu bem. E não esqueça que o Will já tinha me contado, ok?
- Droga. Nem dá pra pagar de americano.
- Com certeza não. Principalmente com esse sotaque de Londres que você tem.
- Já ouviu o sotaque de Boston? Pode ser esse sotaque que eu tenho.
- Por que eu tenho quase certeza que não é? - Ela tomou mais um pouco do seu café.
- Por que você perguntou se já sabia a resposta?
- Só queria confirmar. - Deu de ombros com um sorriso. - Me explique, então... Como você é amigo do meu irmão, de Londres e eu nunca te conheci?
- Talvez porque nós só nos conhecemos aqui. - A encarei. - Você se mudou pra cá há pouco?
- Me mudei ontem. Me demiti de um dos meus empregos pra me dedicar exclusivamente ao outro, que é aqui em Paris. Eu morava em Marseille.
- Marseille? Devia ter ficado em Londres.
- Não fala mal de Marseille! - Gritou, bem humorada. - É uma cidade linda. E o que você faz da vida?
- Posso falar que estou me sentindo em um interrogatório? - Ri.
- Não. - Mordeu o lábio inferior. - Só responda.
- Eu sou produtor de eventos. Eu sou o responsável por trazer aqueles shows internacionais maravilhosos para Paris. E você?
- Meu trabalho é um segredo. Desculpa. - Comprimiu os lábios. - Sabe de uma coisa, ? Gostei de conversar com você.
Deixei minha xícara de café sobre a mesa e ela fez o mesmo, tirando seus sapatos, em seguida, e colocando os pés sobre o sofá. Sorri ao ver a expressão infantil e alegre que ela tinha no rosto.
- Como você não gosta de crianças? - Perguntei.
- Não gosto... - Deu de ombros. - São irritantes.
- Tem algum trauma envolvido?
- De forma alguma. - Percebi que ela puxava a manga direita de sua blusa 3/4 até quase chegar a tampar todo o seu braço.
- Tem certeza? - A encarei com uma expressão desconfiada.
- Claro que eu tenho. - Desviou o olhar para a cozinha. - Você quer ficar para o jantar ou já tem planos?
- Eu adoraria ficar para o jantar.
~*~
Estávamos sentados na mesa de jantar, comendo um salmão maravilhoso que preparara. Ela definitivamente tinha um dom para a cozinha. Enquanto cozinhava, havia me confessado que peixe era sempre seu prato preferido, em especial o salmão e, por isso, quando foi morar sozinha, fez questão de aprender a preparar um bom salmão.
O escuro dominava a sala de jantar. Eu havia me oferecido para ligar a luz, mas a garota dissera que adorava o escuro nas noites de lua cheia, como aquela em que estávamos. Para ela, poder ficar no escuro, sem estar completamente cega, significava que a lua estava no céu e, logo, que não iria nevar. Ela odiava a neve. Não tinha me contado o motivo, e eu também preferi não perguntar. De alguma forma, jantar com ela no escuro de uma noite de lua cheia me trazia um sentimento incrivelmente familiar, como se eu a conhecesse há anos.
- Viu como eu nem estou falando tanto mais? - Pude ver seu sorriso branco.
- Eu percebi. Você se esconde bem.
- Eu sei. Um dia eu descobri que se eu falar muito, as pessoas vão me achar extremamente simpática ou extremamente irritante. Aí eu decidi que iria falar muito.
- Não liga se te acharem irritante? - Questionei.
- Não muito... - Deu de ombros. - Eu sou um pouco. O que você acha? Simpática ou irritante?
- Irritante, definitivamente.
- Como assim?! - Berrou e eu senti algo me atingindo.
- O que você jogou em mim? - Gargalhei.
- Uma colher. - Respondeu. - Eu tenho uma faca aqui. Ainda me acha irritante?
- Sem dúvida. - Falei como se fosse a maior verdade do mundo.
- Sorte sua que eu não sou uma psicopata. Eu poderia te matar agora.
Por alguns instantes não falamos mais nada. Eu podia perceber olhando para mim de forma sutil. Não tinha certeza se ela sabia que eu estava percebendo e, então, resolvi ficar olhando para ela de volta. Depois de um tempo, ela riu baixo e empurrou seu prato para longe.
- Você quer ir pra sala? Eu prometo pra você que eu ligo o abajur para não ficarmos tão no escuro.
- Não sei... - Também empurrei meu prato. - Acho que já está ficando tarde. Talvez fosse melhor eu simplesmente voltar para casa.
- Tem certeza? - Ela se levantou e foi seguindo para a sala de estar. - Eu estava pensando que você podia me fazer companhia. A gente pode assistir um filme. Eu juro que ligo o abajur. Juro, juro, juro.
- Filme? Não sei se seria uma boa ideia. Meninas gostam de filmes que eu não sou muito interessado.
- Meninas? Diz o filme que você acha que eu gosto, então. - Desafiou.
- O filme: The Notebook. Certeza. Aposto.
- Apostou errado, meu bem. Eu estava querendo assistir A Identidade Bourne. Meu filme preferido.
- Duvido que você realmente goste.
- Então vamos fazer assim. - colocou seu indicador direito sobre meu peito. - Eu vou tomar banho e volto em cinco minutos. Esse é o tempo que eu te dou pra você vasculhar meu quarto e descobrir o meu nível de amor pelo Jason Bourne.
- Combinado, então.
mordeu seu lábio inferior e se virou em direção ao banheiro, jogando seu cabelo no ar. Assim que a porta se fechou, caminhei pelo corredor, procurando o cômodo que pudesse ser seu quarto. Ao avistar uma mala cor-de-rosa sobre uma cama, julguei ter encontrado. O quarto ainda não parecia estar pronto. Era como se ela ainda estivesse organizando suas coisas, o que não deixava de ser verdade. Curiosamente, uma coisa já parecia bem definida: a decoração. Aproximadamente vinte pôsteres do Matt Damon e do The Script se espalhavam pelas paredes e, sobre a estante, a coleção dos livros de Robert Lundlum parecia bem acomodada.
Sentei-me em sua cama, afastando um pouco as roupas espalhadas. O dia tinha sido extremamente engraçado. Após o almoço, eu tinha saído para recolher cachorros e ajudar crianças e tinha acabado por conhecer a irmã do meu melhor amigo e, por acaso, passado o restante do dia com ela. Antes que eu pudesse pensar qualquer outra coisa, vi na porta do quarto. Ela trajava um short jeans e uma blusa pólo branca, com todos os botões do decote abertos, deixando praticamente à mostra o seu busto que, agora eu percebia, era maravilhoso. Eu tinha que admitir que, apesar de não estar vestida para o inverno, ela estava maravilhosa.
- Viu como eu sou realmente uma fã?
- Agora eu tenho certeza que sim. - Sorri. - Parece o quarto de uma adolescente, sabia?
- Bom... - Corou. - Eu não consigo deixar esse meu lado fã de lado para ser uma adulta completa.
- E ainda diz que odeia crianças. - Ri.
- Criança é diferente, ok? E você sabe muito bem disso. Vamos ao filme?
~*~
Assistimos o filme todo em silêncio e com uma distância relativamente grande entre nós. Eu, honestamente, não entendia o que estava acontecendo comigo. era uma mulher linda, aparentemente solteira e eu não tinha tentado nenhum tipo de aproximação. Isso não era normal, levando em conta que eu também estava solteiro, que a casa estava vazia e aquecida e que ela mostrava certo interesse em mim também. Depois que o filme acabou, acendeu o abajur que estava na mesa de canto ao seu lado.
- Você prefere a claridade, não é?
- Eu prefiro. - Respondi. - Assim eu consigo te olhar melhor. - Pela primeira vez no dia eu falava algo que me aproximava das minhas atitudes com outras mulheres.
- Duvido que seja por isso.
- Eu reparei que nós duvidamos muito um do outro.
- É porque nós não nos conhecemos bem o suficiente. - Concluiu, ao que concordei.
- Talvez nós devêssemos fazer algo para nos conhecer melhor. Se você quiser eu posso te levar para andar de teleférico amanhã. Conheço um que não é tão longe e passa perto de uma estação de esqui. Nós vamos poder ver a neve, vamos poder esquiar e nos conhecer melhor. A neve é maravilhosa, vai dar até um ânimo!
- Eu serei obrigada a recusar. - Baixou os olhos. - Eu odeio neve, lembra? Passo longe de estações de esqui.
- Então o que você acha de sairmos amanhã depois do almoço? Eu conheço um lugar que serve a melhor fondue de morango de Paris.
- Também serei obrigada a recusar. - Gargalhou. - Sou alérgica a morangos.
Enquanto eu pensava em outro convite para fazer, o silêncio reinou na sala em penumbra.
- Mas eu tenho uma ideia. - A garota tomou a palavra. - O que você acha de brincarmos do jogo do questionário?
- Jogo do questionário? - Arqueei uma sobrancelha. - O que é isso?
- Bom, é assim: eu te faço uma pergunta e você é obrigado a responder sinceramente. Depois é sua vez de perguntar.
- Então vamos lá. Eu te dou o benefício de começar.
- Ok. - Concordou animadamente. - Qual é seu maior arrependimento?
- Meu maior arrependimento... - Pensei alto. - É não ter aproveitado o Ensino Médio como eu deveria. Estudei demais e a escola, no fim das contas, nem foi tão importante.
- Certo... Sua vez.
- Vou fazer uma pergunta tensa, ok? - Questionei e ela mordeu o lábio inferior. - Por que você odeia a neve?
- É realmente tensa. - Encarou o chão. - Eu vou acabar te respondendo também porque eu odeio crianças, mas vamos lá... - Respirou fundo. - Lembra que eu te disse que crianças no frio são melosas e ficam com o nariz escorrendo? E que elas também são irresponsáveis e nunca são culpadas pelo que fazem de errado? Então... Meus pais sempre gostaram de crianças. Eu e o William temos um irmão mais velho. Ele tem filhos. Dois meninos. Eram lindos. Eu não odiava crianças antes. Mas era inverno e Londres estava sob o alerta de nevasca. Mesmo assim, eles insistiram para meus pais levarem eles para uma estação de esqui a cinco horas de Londres. Meus pais aceitaram. A questão é que, quando nós estávamos na estrada a nevasca começou, a visibilidade estava horrível, o frio estava castigando e meus sobrinhos começaram a agir como crianças. Eles diziam que estavam com frio, que queriam o colo da minha mãe. Eu estava no banco de trás com eles e tentei segurá-los, mas eles insistiam em tentar passar pro banco da frente. Meu pai virou por dois segundos para pedir que eles parassem, mas foi o tempo necessário para que a neve da pista fizesse o carro ficar fora de controle e capotar muitas vezes. Eu estava de cinto e consegui segurar meus sobrinhos. A questão foi que nosso carro ficou destruído na parte da frente, esmagou meus pais. Eles morreram por causa da nevasca. E por causa dos meus sobrinhos. Você acha que eles receberam algum tipo de castigo pelo comportamento? O pai deles é psiquiatra e disse que não é necessário, porque as instâncias psicológicas deles já foram afetadas. Eu não ligo para a instância de ninguém! Eles causaram o acidente e por causa deles meus pais estão mortos hoje! Eles mereciam nem que fosse uma semana sem televisão, mas crianças nunca são culpadas por nada, não é mesmo? E a neve... Ninguém vê como ela é perigosa, só veem a beleza. Bom... É por isso. Do acidente, eu só tenho uma lembrança... - me mostrou uma grande cicatriz em seu braço direito, próxima ao cotovelo. - Por causa dela, eu prefiro usar blusas de mangas 3/4. Não é sempre que eu ponho blusas pólo de manga curta.
- Isso não te deixa menos bonita. - Afirmei e ela corou. - Sua vez de perguntar.
- Você tem alguma mania estranha?
- Hoje não. - Ri. - Mas eu colecionava conchas quando eu era criança.
- Isso não é uma mania estranha. - Fez uma cara de sarcasmo.
- Bom, eu não morava em uma cidade de praia. As outras crianças diziam que eu nunca ia ser um colecionador de verdade, aí eu joguei todas as conchas fora. Dessa coleção eu só tenho uma concha grande, daquelas que dá pra ouvir o mar.
- Você sabe que não é o mar, não sabe?
- Uma pergunta só. Agora é minha vez.
- Droga. - Fingiu uma expressão frustrada. - Vá em frente.
- Qual o seu trabalho? Você disse que era segredo, mas vai ter que responder agora.
- Bom... Antes eu tenho que esclarecer uma regra. - Gargalhou. - Tudo que é dito aqui, permanece aqui. Meu trabalho é realmente secreto.
- Regra esclarecida. Agora responda. - Minha curiosidade começava a me consumir.
- Eu sou blogueira. Eu mantenho o blog La Mode Sur Paris.
- É você? Já me falaram desse blog... A escritora é anônima. Agora posso espalhar seu segredo.
- Nem é tão secreto assim. - Riu. - Muita gente sabe que sou eu, até porque eu preciso de gente que acredite em mim, para me dar acesso aos desfiles, investir em mim. Mas as postagens são anônimas, sim, e eu estou fazendo muito sucesso com isso. Por isso faço questão do segredo.
- Que garota esperta. - Comentei. - Sua vez.
- Qual foi o melhor evento que você já produziu?
- Pode ser o que eu vou produzir? Eu estou negociando o show do The Script aqui em Paris. Se tudo der certo, falando como fã, será o melhor evento que eu vou produzir na vida.
- Ah, que graça! - Se ajoelhou sobre o sofá e se aproximou de mim, apertando minhas bochechas. Não pude evitar de olhar para seu decote.
- Você está com frio? - Perguntei.
- Sim. - Respondeu rapidamente.
- Por que você está com essa roupa, então?
- Gastou sua vez, meu bem. - Riu.
Eu sabia que era a vez dela de perguntar, mas eu preferi não dizer nada. Ela também sabia que era a vez dela. Passei meus olhos sobre o corpo de , vendo que ela tinha sido meu grande desejo desde o momento em que eu a vira. A tensão crescente entre nós quase podia ser tocada, o que era incrível se considerássemos quem nem tínhamos nos beijado. A garota mordeu seu lábio inferior outra vez.
- Qual o seu maior desejo agora? - Questionou, como se adivinhasse meus pensamentos.
- Você.
Antes que eu pudesse dizer qualquer outra coisa, vi se aproximando de mim e, com uma delicadeza inexplicável, nossos lábios se tocaram. A delicadeza não durou muito tempo. Rapidamente, me virei sobre ela no sofá e nosso beijo foi se tornando cada vez mais ardente.
- Qual o seu maior desejo agora, ?
- Isso era o que eu queria desde quando eu pus meus olhos sobre você, .
Continuamos nos beijando no sofá e senti a garota passando suas pernas ao redor da minha cintura antes de me perguntar se eu preferia ficar na sala ou ir para o quarto dela. Sabendo que eu estava com o controle, a levantei e, carregando-a, fomos até seu quarto. As malas foram rapidamente ao chão e em poucos instantes estávamos deitados em sua cama. Desejando não parecer apressado, passei minhas mãos sobre sua barriga por baixo de sua blusa e, não vendo nenhuma resistência, a tirei.
- , vamos com calma, ok? - Sua voz saiu ofegante.
- Quer que eu pare? - Tirei minha camisa e a joguei no chão, junto com sua blusa, beijando seu pescoço em seguida.
- Eu só quero... Só quero que você se proteja... E me proteja.
Entendendo o que ela queria dizer, tirei minha carteira do bolso de trás e a coloquei sobre o criado-mudo. Não demorou muito para que todas as nossas peças de roupas estivessem no chão e nossos corpos estivessem como um, com a devida proteção.
~*~
- Se meus pais estiverem me vendo agora, eles devem querer me matar. - Ela falou. Estávamos deitados em sua cama, conversando.
- Bom, graças a Deus os meus estão vivos e não podem me ver agora. - A abracei pelos ombros e a puxei até que seu rosto estivesse sobre meu peito.
- Eu não costumo fazer essas maluquices. É só uma vez ou outra, mas não na casa do meu irmão. Meus pais devem querer me matar. Eles devem estar indo falar com Deus para Ele tomar minha alma.
- Calma, . Essas coisas acontecem.
- Pra você. Pra mim não.
- Calma, !
- Eu não podia ter feito isso! Nós não temos nada! Nós nos conhecemos hoje! Isso é maluquice, ! Maluquice! Insanidade, entende?!
- , deixa eu te explicar uma coisa. Você tem que começar algo com alguém pra ter alguma coisa! Se você se fechar, você nunca vai ter um relacionamento.
- Eu sei e eu não estou falando de me fechar, ! Eu estou falando de sexo entre desconhecidos. É disso que eu estou falando.
- Você se arrepende?
- Muito.
- Foi tão ruim assim?
- Não. - Riu. - Mas foi errado! Eu... Eu acho que é melhor você ir embora. - Tentou se soltar de mim.
- Se você não queria, então por que você ficou me provocando?
- Eu não disse que eu não queria, ok?! - Gritou, se afastando de mim. - Eu queria, mas eu fui irresponsável e irracional! Eu fiquei provocando, sabendo onde isso ia dar, sabendo que eu iria me arrepender! Agora você pode, por favor, ir embora?!
- É isso que você quer? - Ela assentiu com a cabeça. - Então eu vou.
Me levantei da cama e peguei minhas roupas no chão, batendo a porta do seu quarto atrás de mim. Fui rapidamente ao banheiro e me vesti. Peguei minha caminhonete e dirigi em direção à minha casa.
~*~
Eu já estava rolando na cama há um bom tempo e não conseguia pregar o olho. Não entendia como o dia podia ter sido tão fora do comum. E tudo por causa de uma garota que estava tomando conta do abrigo de cães no lugar do William. Não, isso não fazia o menor sentido. Era incompreensível pra mim que eu tivesse passado uma tarde com uma garota que eu acabara de conhecer e tivesse ficado tão encantado ao ponto de me sentir mal com suas palavras quando ela me mandou embora.
- Por que ela simplesmente não me impediu?! Eu não fiz nada que ela não quisesse! Droga! - Soquei meu travesseiro.
Não podia negar: era uma mulher linda, inteligente e provocante, mas ao mesmo tempo frágil e doce. Resumindo, ela era tudo que um homem procurava em uma mulher. Pelo menos aparentemente era. Eu não podia nem afirmar com certeza, porque eu mal a conhecia. E eu tinha acabado por me deixar levar por toda a atmosfera encantadora que ela conseguia dar à casa de William. Pensando melhor, eu também me arrependia por ter deixado as coisas irem tão longe. Isso era o mais estranho. Algo dentro de mim me dizia que, com minha atitude, eu tinha perdido toda e qualquer oportunidade de conhecê-la melhor e isso estava acabando comigo.
Olhei para o relógio ao lado da minha cama. 5:19. Eu precisava vê-la. Eu precisava me desculpar e conseguir alguma forma de recuperar minhas oportunidades. Eu queria conhecê-la melhor, passar tempo com ela, ver o que toda essa história poderia se tornar. Finalmente tive uma ideia e só então, com a paz que ela me dera, pude cair no sono.
~*~
- Certo. Podemos marcar pro dia que eu falei? Ah, então em Londres é hoje? Lógico, estarei lá. Conversaremos, então. Dois. Isso. Maravilhoso. Até mais. - Disquei outro número rapidamente. - Oi, mãe. Você pode comprar uma coisa pra mim? É só você ir naquela loja que eu amava quando eu era criança. É... Eu passo aí pra buscar, mais ou menos umas cinco horas da tarde, pode ser? Obrigado, mãe. Te amo também. Tchau.
Desliguei o telefone e fui ao banheiro me arrumar. Eram dez horas da manhã e eu ainda precisava passar na casa de William e convencer a sair comigo, antes de pegar o EuroStar para Londres. Vesti uma calça jeans, uma blusa de manga comprida branca e um suéter azul marinho por cima. Calcei meu tênis Nike branco e escovei meus dentes antes de, mais uma vez, pegar minha caminhonete em direção à casa de William.
Assim que cheguei, vi mais uma vez aquele gorro de lã rosa choque, cobrindo os cabelos da mulher mais bonita que eu já vira em toda a minha vida. De novo, ela estava agachada em frente ao portão que dava acesso ao que eu chamava de "casa dos cães", mas, dessa vez, o portão estava aberto. Ela acariciava o vira-lata do dia anterior, mas ele correu em minha direção quando eu estacionei.
- Ruffus! - Ela gritou. - Ruffus, volte aqui!
- Ei, Ruffus. - Me agachei e comecei a brincar com ele. - Ei, garotão! Como você está? Está gostando? Já está aqui há uma semana... Eles estão cuidando bem de você, garotão?
- Oi, . - falou. - Ruffus está muito bem.
- Você gosta muito dele, né? - Perguntei.
- Ele parece um labrador. Labradores são meus preferidos. - Deu de ombros. - O que você está fazendo aqui?
- Eu precisava te ver. - Me levantei, ainda acariciando Ruffus. - Precisava te pedir desculpas pelo que aconteceu. E eu tenho um convite pra te fazer.
- Eu não sei se isso seria bom.
- Eu te prometo, , o que aconteceu ontem não vai se repetir. Se depois de hoje você não quiser nunca mais me ver, eu só volto aqui quando o William voltar.
- Mas eu tinha que fazer uma postagem hoje.
- Isso pode esperar. Vamos. Por favor.
- Onde?
- É uma surpresa. Eu preciso vendar seus olhos também.
- Tá legal, mas eu vou trocar de roupa.
- Vista algo confortável. - Avisei. - Nós vamos andar de trem.
me olhou desconfiada, mas não conseguiu evitar um sorriso. Em seguida, entrou na casa. Enquanto a esperava, entrei na casa dos cães e brinquei com eles. Depois de um tempo, a garota apareceu na porta, trancando-a.
- Eu tenho que ver se tem água e comida pra todos, ligar o climatizador, fechar as janelas, abrir a entrada de ar e trancar a porta do espaço dos meus bebês. Não quero que eles passem necessidade, nem frio, nem calor.
- Você está certa. Quer ajuda?
- Você pode fechar as janelas, abrir a entrada de ar e colocar o climatizador em 25ºC?
- Claro.
- Enquanto isso, eu coloco comida e água pra eles.
Fiz o que ela mandou e vi que, com a climatização, os cachorros já começavam a se acomodar para dormir. vestia uma calça jeans, um sobretudo preto e botas de cano alto da mesma cor. Suas mãos estavam cobertas por luvas de couro preto e seu cabelo amarrado em um rabo de cavalo alto com uma presilha brilhante.
- Gostou da produção? - Perguntou. Aparentemente, ela estava mais à vontade.
- Só acho que talvez você devesse tirar o brilho do cabelo. Podem achar que é uma joia.
- Uma blogueira de moda precisa de acessórios bonitos. Eu não vou sair sem minha presilha e nem sem minha grande bolsa. - Apontou para a bolsa pendurada na maçaneta.
- Tudo bem. - Ri. - Mas agora eu tenho que vendar seus olhos.
A garota sorriu e eu tirei um pano preto de dentro da caminhonete, tampando seus olhos com eles em seguida. Dei um nó embaixo de seu rabo de cavalo e a guiei até o banco do passageiro.
- Pronta? - Questionei.
- Pronta. E fico feliz que o pano combine com a minha roupa. Para onde vamos de trem?
- Você saberá quando chegarmos.
Dirigi até a estação e consegui comprar duas passagens de Paris para Londres às duas horas da tarde. Chegaríamos à minha cidade natal às quatro e vinte e seis. Aproveitamos para comer alguma coisa enquanto esperávamos. Eu percebia os olhares curiosos das pessoas na estação ao verem com a venda. Esperamos a hora de embarcarmos conversando e, durante toda a viagem, falamos sobre as nossas vidas, nossos gostos e coisas que não sabíamos um do outro. O trem chegou alguns minutos mais cedo do que o previsto e, então, pegamos um táxi para a casa da minha mãe.
- Meu amor! - Minha mãe gritou quando me viu e me abraçou em seguida.
- Onde estamos, ? - Vi sorrir.
- Mãe, essa é a . - Tirei sua venda. - , essa é a minha mãe. Estamos em Londres.
- Muito prazer. - A garota disse.
- É sua namorada, meu amor?
- Não, mãe. é minha amiga. - Comentei. - Mas é pra ela aquilo que eu pedi pra você comprar.
- , do que você está falando? - Ela não conseguia se manter séria.
- Ele está correndo pela casa. Querem entrar?
- , o que é? - insistia.
As respostas não foram necessárias. Assim que minha mãe fechou a porta, um pequeno labrador caramelo veio correndo em nossa direção. se abaixou e logo começou a brincar com ele, que pareceu adorá-la. Agachei-me ao seu lado e a abracei pelos ombros, sussurrando em seu ouvido:
- Ele é seu. É a primeira parte do meu pedido de desculpas por ontem.
- É meu? Ele é tão lindo!
- E não tem perigo de ninguém querer levá-lo.
- Ele vai chamar Tommy.
- Tommy parece perfeito. - Acariciei a cabeça do pequeno filhote.
Passamos a tarde com a minha mãe. Tomamos chá, conversamos e eu já via que estava como na tarde anterior. Eu sabia que ela tinha me perdoado e eu quase podia sentir que ela queria, tanto quanto eu, uma oportunidade para nos aproximarmos, para nos conhecermos melhor, esquecendo o erro que tínhamos cometido na noite anterior. Ainda que, para mim, ficar com garotas daquela forma fosse normal, eu tinha consciência de que, para uma relação ter futuro, ela não podia ter começado como a nossa, e algo me dizia que uma relação com seria maravilhosa.
Quando vi que já tinha dado sete horas da noite, avisei à garota que deveria vendá-la novamente. Despedimos-nos de minha mãe e avisei que retornaria mais tarde para buscar Tommy. Chamamos um táxi e, quando ele chegou, o pano preto voltou para os olhos de . Paramos na frente da minha próxima surpresa. O barulho estava muito alto, mas, mesmo assim, consegui fazer a ligação necessária. Não demorou muito para que estivéssemos dentro do local.
- Onde estamos? Eu só consigo perceber que aqui está muito iluminado.
- Você vai ver logo. - Gargalhei.
- Ai, meu Deus! - Ela gritou quando as luzes apagaram. O barulho no local se intensificou.
- Agora eu vou tirar sua venda. - Falei ao pé de seu ouvido.
- Ai, meu Deus! - Berrou mais uma vez. - É um show!
- Não é só um show! - Gritei, em meio ao barulho de meninas histéricas. - Estamos na área VIP do show do The Script!
- Eu não acredito! - Me abraçou.
- Estou desculpado agora? Deus vai redimir minha alma e a sua depois de eu te deixar tão feliz? Seus pais vão me perdoar e se sensibilizar com a sua felicidade?
- Com certeza! Obrigada, !
Nossa conversa se tornou impossível. O barulho aumentou ainda mais, pois a banda entrou no palco e até começou a gritar.
~*~
- , você não para com essa sua mania de vendar meus olhos?
Um ano já havia se passado desde que eu levara para Londres, para o show do The Script.
- Meu amor, a gente vai se atrasar pro show se você ficar enrolando com essa história de surpresa.
Nós não começamos a namorar naquela noite, mas fomos nos conhecendo melhor e, dentro de um mês, já éramos considerados por todos, inclusive por William, como um casal. Estávamos juntos e isso não era um segredo, nem um erro. Era a realidade. A melhor realidade que eu conseguia imaginar. Com o tempo, construímos um relacionamento saudável, apagando os erros do passado e fazendo as coisas na hora certa.
- Calma, meu amor. - Gargalhei. - Pronta para a surpresa? Eu já pedi pro William olhar o Tommy e avisei que só vamos voltar depois do show.
- Eu espero que essa surpresa seja rápida! Desde que você me falou que ia trazer o The Script pra Paris eu estou ansiosa e hoje, no dia do show, você inventa essa surpresa. Eu vou ficar muito brava se a gente se atrasar.
- Nós não vamos. Acredite. - Segurei em sua mão e a levei para a caminhonete.
~*~
- Chegamos.
- Deixa eu ver. Eu sei que estamos em um lugar fechado e, pela iluminação, eu diria que é uma sala. - A garota chutou.
- Você quer ver? - Perguntei.
- Lógico! E rápido.
Sorri com toda a empolgação dela e cruzei meus dedos para que meu plano desse certo. Os acordes da música que eu escolhera para o momento começaram a ser tocados.
- O que é isso? Eu conheço essa música. ...
A música era This Is Love, do The Script. Tirei, então, a venda da mulher que eu mais amava na minha vida para que ela pudesse ver a banda reunida ali, tocando para ela.
- ... - Seus olhos estavam cheios de lágrimas e ela cobriu a boca com as mãos. - Eu não acredito que você fez isso por mim.
- Não é só isso... - Me aproximei dela e segurei uma de suas mãos, ao mesmo tempo que tirava a caixinha que eu sabia que ela esperara a vida toda para ver. - This is why we do it, this is worth the pain, this is why we bow down, and get back up again, this is where the heart lies, this is from above, love is this, this is love. - Cantei para ela, junto com a banda. - Eu te amo, . Casa comigo?
- Se você me pedir dez vezes, dez vezes eu vou dizer sim. Eu te amo, !
Coloquei o anel em sua mão e a beijei.
- Só tem uma coisa...
- Diga. - Ela respondeu.
- Eu quero uma casa com três cachorros e três crianças. Nossas crianças.
- Ai. - Minha noiva fez uma careta. - Seis cachorros. Seis lindos e fofos cachorros. Eu adoro cachorros, você também. E nossos cachorros podem ter filhotes.
- Não. - Beijei seu pescoço. - Eu quero ter filhotes com você.
- A gente começa por um, então. Depois a gente vê no que dá, ok? E eu só aceito isso porque eu acredito que nossas crianças vão ser lindas, fofas e graciosas. E se precisar, vão ser responsáveis pelas atitudes delas.
- Combinado. - A beijei de novo. - Eu te amo, .
- Eu te amo mais... Agora vamos pro show. - Olhou para a banda, que sorria para nós. - Eu já tive meu show particular, mas quero o show de verdade também.
FIM
Nota da autora: Depois de um tempo sumida, voltei para escrever o chall. Adorei o tema. O inverno é lindo. Com cachorros, muito mais!
Beijinhos :*
Clara