“Siga em frente em linha reta e não procure o que perder” era o que uma chorosa ouvia no máximo volume de seu IPod. Tinha a cabeça encostada no vidro da janela e o assento ao lado vazio. Ela comprara os dois para não ter o infortúnio de receber olhares pesarosos de algum estranho que visse suas lágrimas.
Aquela frase descrevia o motivo de seu choro perfeitamente, por isso havia colocado a música para repetir e ouvido umas quinze vezes. Ela queria se lembrar do motivo que tinha para não olhar para trás, como a música dizia, mas sua mente lhe forçava a lembrar do rosto de dormindo tranquilamente na cama dele e de como ela era uma idiota por abandoná-lo quando ele finalmente disse o que ela queria ouvir.
Ela não queria o magoar e era a mais pura verdade, entretanto sua permanência ali a forçaria a duas coisas que ela não queria: viver sob o mesmo teto que seus pais e arriscar perder sem volta seu amigo. Na sua cabeça, pelo menos ao fugir conseguiria anular o sofrimento do primeiro e ter a possibilidade de reverter o segundo.
A quem ela queria enganar? a odiaria por ter ido embora.
se remexeu na sua poltrona e passou a mão pelas bochechas molhadas de choro e rímel. ... Aonde estaria agora?
Rio de Janeiro, 2012 – Quarto do . “Quem foi o filho da puta que deu ao sol o direito de brilhar tanto em pleno sábado?” pensou logo que sentiu uma luz forte nos olhos e essa era a única coisa que conseguia pensar enquanto sentia uma familiar dor de cabeça. Ressaca.
Grunhiu alto encostado ao travesseiro, xingando até a oitava geração o demônio que tinha inventado a bebida alcóolica sem inventar a cura para o que ela gera. Aquela dor não era de Deus, ele sabia, e por isso sabia que rezar não ia fazer passar. Tinha que tomar alguma coisa.
Com essa motivação, se pôs de pé e foi até a porta de seu quarto ainda a cambalear, só para checar se seus pais estavam realmente viajando. Assim confirmado, caminhou preguiçosamente até o armário do banheiro onde guardava aspirina escondido. Se sua mãe soubesse que ele andava bebendo aos dezesseis ia arrancar fio por fio de seus pentelhos. De pinça. Afinal de contas, mesmo que todos seus amigos bebessem ele não era todo mundo.
Foi com a lembrança das diversas broncas que ele tateou a prateleira do pequeno armário e se surpreendeu ao não encontrar seus comprimidos.
- Mas que porra...
Pôs as mãos mais ao fundo da prateleira, porém não encontrava nada. Será que sua mãe tinha descoberto e sumido com eles só para se vingar da desobediência? Só de pensar na surra e no castigo que teria se levantou para procurar em outros locais de sua suíte.
Ele se esforçava para lembrar onde tinha colocado as pílulas, mas sua cabeça doía tanto que parecia cólica cerebral. Cólica cerebral, riu consigo mesmo ao tempo em que alguns flashbacks da noite passada invadiram sua mente. Aos poucos o sorriso desapareceu de seus lábios. -Que merda eu fiz?
Parte 1 – Depois do começo.
Rio de Janeiro, dois anos antes – pátio da escola. .
Uma e meia da tarde, chequei no meu relógio. Uma hora e dez minutos atrasados. Minha bunda já estava doendo de ficar tanto tempo sentada no balanço do pátio, porque aparentemente, depois de meia hora do toque, a secretaria fechava e você que se virasse para arranjar um banco e esperar os seus pais irresponsáveis.
Suspirei cansada e irritada. Nem no meu aniversário, o único dia em que tinham que se esforçar para me ver, eles fingiam que se importavam. Sinceramente, preferia que me emancipassem de vez do que ter que esperar mais três anos desse inferno para poder sair de casa.
Desde pequena, Lilian e Tiago – também conhecidos como mamãe e papai Schimdt – me puseram de lado para cuidar do futuro da minha irmã mais velha, Ana Júlia e do trabalho deles. Creio que minha mãe só esperou o tempo de amamentar para poder me relegar a uma babá qualquer, já que quase não tenho memória - ou fotos – dela perto de mim nos meus primeiros anos de vida.
Naquela época, não ligava. Se tivesse um brinquedo por perto ou algum DVD da Barbie me dava por satisfeita. O problema é que eu comecei a crescer e notar. Notar que a ausência nas cerimônias do dia das mães ou dos pais não era acidental. Notar que os desenhos que eu fazia nas aulas de artes com todo carinho para eles ia parar no lixo no dia posterior à entrega sem que houvesse culpa dos empregados da casa. Notar que os porta-retratos que enfeitavam a casa tinham fotos de minha irmã e as medalhas dela estavam pregadas pelos corredores, como um mostruário de vitórias. Notar que quando tentava estabelecer algum contato, eles se afastavam. Se eu reclamava da falta deles, chamavam-me de mal agradecida.
Aquilo apertava meu coração tanto que por vezes deixei-me chorar no colo das minhas professoras do primário. Elas sempre diziam que eles iam melhorar, que não era preferência e que, na verdade, era só o trabalho que os afastava das atividades de mim. Idiotice. Foi só quando meu estado psicológico começou a afetar meu rendimento escolar e a diretora chamou meus pais para conversar que eles oficializaram que não queriam que minha existência. Disseram a ela que eu era a ovelha negra da família.
Ovelha negra da família aos onze anos. Vagabunda em tempo recorde. Depois dessa, comecei a me aproveitar da situação e tacar o bom e velho foda-se. Dei início a minhas idas a lugares sozinha. Primeiro, o shopping center – grande conquista para minha idade. Depois, com doze anos, à praia. Aos treze, já andava de metrô. Com quatorze, por fim, conquistei meu “mundo” – a cidade do Rio. Não tinha um bairro relativamente seguro que não tivesse visitado.
Agora que completo quinze, ainda estou escolhendo a vantagem que tirarei sobre ser invisível.
Estava tão entretida em meio ao meu monólogo interior que só percebi que o tempo tinha fechado quando os pingos da chuva começaram a cair. Por alguns instantes, desejei ficar sentada ali e me lavar desses pensamentos incessantes, mas desisti da ideia. Não ia estragar meu aniversário com tristeza mais do que meus pais já haviam feito. Peguei minha mochila e corri até o prédio da escola enquanto as gotas caiam cada vez mais fortes sobre mim.
Parei ofegante na porta, colocando as mãos automaticamente nos joelhos para me recuperar do esforço. Não notei que havia alguém por perto até avistar um par de allstar azul logo a minha frente.
.
- Isso é o que eu chamo de tomar um banho de chuva. – brinquei com a garota a minha frente.
Ela levantou o corpo e me olhou com uma cara de poucos amigos. – Perdeu alguma coisa?
Eu conhecia aquela garota. Ela estava na minha classe de física e história e era incrível como todo dia da semana parecia uma entediante segunda para ela. Ou pelo menos, era a sensação passada pela sua expressão. A galera comentava sobre ela ser assim desde nova e caçoavam de suas roupas, suas atitudes e essas coisas. Eu tentava não rir, mas às vezes era impossível, o que me fazia sentir um pouco culpado depois.
Para mim, ela era um cubo mágico cheio de lógica e mistério a espera de alguém para decifrá-lo e vê-la sentada naquele balanço de madeira com um muxoxo me deu vontade de ser esse sujeito. Por isso, apressei meus pés a seu encontro, com o intuito de lhe oferecer uma carona.
- Eu não perdi nada, mas acho que você deve ter pedido a paciência e a carona para casa, não estou certo?
Seu rosto corou levemente e ela me devolveu um olhar irritadiço. Algo naquilo me parecia bonito e engraçado. Sem que me desse conta um sorriso surgiu em meus lábios.
- Pelo visto não sou a única, pois você também está aqui essa hora da tarde.
O sorriso vitorioso dela me impediu de retrucar. Era hilário demais para que o dissolvesse. – Na verdade, minha mãe está logo ali – apontei para ela o Fiesta que estacionava do outro lado da rua, tentando ao máximo parecer sério. – vim aqui para te oferecer carona, já que você estava há um bom tempo esperando também. Topa?
No seu rosto vi surgi diversos sentimentos. Surpresa, depois desconfiança. Daí ela torceu a boca como que em incerteza e antes de responder olhou para o carro e para mim duas, três vezes.
- Tudo bem, mas só se você não me deixar em casa. – murmurou com um ar sombrio. – é o último lugar que quero ir. – acrescentou depois, mais para si que para mim.
Achei estranho, quem não acharia? Mas já que ela aceitou, aproveitaria a tarde para tentar entender o enigma dessa garota. – Claro, vou te levar para a minha casa. Mamãe faz um macarrão com queijo que só ela sabe, você vai gostar. – ergui a mão para pegar sua mochila e ela me deu de bom grado. – A propósito, sou , também conhecido como . Você...
- Schimdt. – respondeu antes que eu pudesse terminar a pergunta. – Mas pode me chamar de . Diga-me, , sua mãe nunca te disse para convidar estranhos para casa? Nem meu nome você sabe.
Ri, principalmente por conhecer o temperamento superprotetor de minha mãe, e me preparei para a corrida que enfrentaríamos até o carro. do meu lado esperava a resposta. – E a sua, nunca te disse para não falar com estanhos?
Ela hesitou em responder, mas o fez enfim. – Pior que não. – e corremos juntos até o outro lado da rua.
...
Puxei o cabide com uma blusa branca com a estampa do Anel do Poder de Sauron e entreguei a junto a uma bermuda velha minha para que ela se trocasse. Nossa corrida pelo pátio chuvoso tinha rendido uma bronca de minha mãe por molhar o estofado do Fiesta e ela exigiu que trocássemos de roupa no instante em que puséssemos os pés em casa. Sabia que não era só para proteger seus móveis de casa, mas também para que não gripássemos. Que foi que eu disse? Superprotetora.
- Senhor do Anéis, hein? Bom gosto. – ela disse, analisando os detalhes do desenho. – Nunca li os livros, mas os efeitos especiais e o ângulo que o diretor adotou nas cenas foram do caralho. Achei os Oscars do último filme merecidíssimos e olha que eu não curto superlativos. – seus olhos, que agora notava serem de um castanho profundo, brilhavam enquanto ela falava. Mais uma vez me peguei admirando a beleza daquela garota.
- Gosta de cinema? – perguntei, intrigado com a possibilidade daquele brilho manter o contato ocular comigo.
- Se eu gosto? – ela pôs a blusa em cima da cama. – Eu respiro cinema. Ainda farei o Brasil ser reconhecido mundialmente por ele, você verá. – disse, sonhadora.
Naquele momento, uma camada fina do gelo que se revestia parecia derreter. Bem diante dos meus olhos, a menina de olhar fúnebre que se esgueirava no fundo da sala me parecia viva. Não achava que ela fosse sociável ou sequer aberta a novas amizades.
- Como é que é? – ela me olhou com a sobrancelha arqueada e um olhar incrédulo. – Você achava que eu era o quê? Alguma metida a emo antissocial? – pôs as mãos no quadril como quem estava um nível além do irritada e começou a andar até a porta do meu quarto.
Merda. Pensei alto demais. – Não é nada disso. – neguei imediatamente conseguindo segurar seu pulso antes que ela saísse do cômodo. –É só que você está quase sempre sozinha pelos corredores daquele colégio. Nem briga, nem costuma conversar com ninguém, então meio que as pessoas comentam que você é antissocial.
Ela girou o corpo, mantendo o olhar fixo no local em que eu segurava seu braço por algum tempo, perdida em pensamentos, até recobrar a memória do que estava acontecendo e me fuzilar com os olhos.
- Já devia saber que você era igual àqueles idiotas. – cuspiu as palavras para mim. – Não sei onde estava com a cabeça para aceitar sua proposta de vir aqui. Deveria ter mofado naquela escola esperando meus... – deteve-se de repente. – deixa para lá. Já devia ter ido embora mesmo. – puxou o braço de meu aperto e saiu do quarto.
Aquelas palavras saíram tão cheias de ódio e mágoa que se eu já desejava ter mantido a boca fechada antes, agora me amaldiçoava por ter falado aquela besteira. Eu só podia ser um babaca mesmo.
- Espera! – pedi quando ela já estava no corredor entre a sala e meu quarto. – Eu prometo ficar calado e não tocar nesse assunto se você ficar. – ela encarou. – Você é uma garota legal, . Desculpa pela minha burrice. – suspirei. – Fica, por favor. Deixa-me te conhecer.
A expressão de era indecifrável. Um misto maluco de surpresa, curiosidade e... aquilo era tentação? Não sabia dizer com precisão, porém tinha os dedos cruzados para que aquela relutância que seu rosto expunha fosse favorável a mim. Já tinha girado a primeira fileira daquele cubo e não tinha tido a mínima vontade de desistir. Só de consegui completá-lo.
Meu sorriso foi de orelha a orelha quando ela assentiu, sem dizer uma palavra, ao meu pedido. – Sem uma palavra sobre a escola ou sobre a minha reputação entre os alunos dela, não é? – quis confirmar.
Sorri mais uma vez. – Que escola? – e ela retribuiu com um aceno de cabeça.
- Dá essa camisa para eu me trocar, vai.
.
Não dava mesmo para acreditar em como eu estava fora do controle. Ir à casa de um estranho só por tê-lo achado bonitinho e divertido sem avisar a ninguém; conhecer a mãe dele antes mesmo de poder chamá-lo de amigo; e perdoar o erro dele em falar sobre os idiotas do colégio. Só podia estar louca, aquela não era eu.
O pior é que eu estava gostando daquela atenção. Daquele olhar fixo e concentrado do toda vez que eu falava ou me movia. Era reconfortante e especial. Tentador. Sim, em menos de duas horas ao lado do garoto eu já estava na sede por algo a mais, tinha que reconhecer. Não me julgue por estar sensível a afeto, estava numa abstenção absurda havia algumas semanas e qualquer par de beiços masculinos me atraiam. Esperava que fosse isso, pelo menos.
Óbvio que não pude deixar de notar o jeito carinhoso e hilário com o qual sua mãe me tratou. Assim que entramos no carro ela se apresentou como Vânia e começou a brincar com o fato de ser irresponsável por não trazer um guarda-chuva para o colégio. Sem contar o fato de ela ter tido a preocupação de me explicar a vizinhança do bairro das Laranjeiras – bairro em que eles moravam – para o caso de meus pais irem me buscar ou eu precisar voltar ali algum dia. Até perguntou se eu gostava da comida que teriam para o almoço! Foi difícil não compará-la aos meus pais sem sentir as lágrimas por vir. Consegui, no fim das contas, pois eles não conseguiam seguir o caminho sem contar episódios da vida deles.
Cruzei as mãos à frente de meu corpo para puxar a blusa encharcada que vestia. Senti-me três quilos mais leve quando o fiz e espremi-a na pia para tirar o excesso de água acumulada. Depois de tirar o sapato de cada pé e repetir a ação com minha calça, pus a blusa do Senhor dos Anéis e o calção de – tinha que começar a chamá-lo assim em algum momento, não era? – começando a busca por uma escova ou pente para desembaraçar meus cabelos úmidos. Quando finalmente encontrei algo que servisse para pentear, juntei minhas roupas e sai do banheiro, preparada para pedir uma sacola plástica para guardá-las.
Já estava com a frase na ponta da língua quando vi, encostado ao batente de sua janela, apenas de bermuda. Seus ombros largos e levemente musculosos eram um pouco mais desenvolvidos que o dos meninos de sua idade, o que chamava atenção, claro, mas não tanto quanto seus bíceps. Não eram grossos e forçados, como daquele que passavam a semana na academia, nem magricelas como os que não praticavam qualquer tipo de esporte. Eram do tamanho perfeito, proporcional a seu corpo ao ponto de parecer que ele tinha sido desenhado daquele jeito.
Depois dessa checada descarada no físico do garoto, senti meu rosto enrubescer um pouco por não ter sequer olhado em seu rosto até o momento. Forcei-me a fazê-lo apenas para perceber o quão bonito ele era com aquele olhar concentrado observando seja lá o que fosse de sua janela. Deus, abençoa e multiplica.
- Vai ficar quanto tempo aí olhando minha beleza? – murmurou com um sorriso que variava do malicioso ao brincalhão nos lábios. Tive certeza que estava um tomate de tão vermelha e agradeci por ele manter o olhar fixo na paisagem de fora. – Vem cá, quero te mostrar uma coisa.
Caminhei até o espaço ao seu lado, sentindo meu corpo esquentar com o toque de nossos ombros. parecia não se importar com o contato, pois continuou a falar.
- Está vendo esses prédios? – murmurou o dono do allstar azul, apontando para os edifícios que víamos dali do alto do sétimo andar. – Depois das sete horas, todos os dias, cada apartamento acende sua luz. Só que não juntos. – ele se virou para mim e sorriu. – A cada momento diferente um pequeno brilho surge nas janelas como milhares de flashes fotográficos até a noite cair por completo e elas se estatizarem como um céu estrelado.
Enquanto sustentava seu olhar tranquilo, eu percebia o que ele estava tentando fazer ali. queria me mostrar seu mundo para que eu visse que poderia confiar a ele o meu. Tinha sido bastante profundo para um quase estranho, porém a ideia era justamente essa: não sermos mais anônimos um ao outro. Em algum lugar dentro de mim senti que algo mudava, só não sabia exatamente o quê.
Ainda que tivesse achado bastante fofo ele ter dito aquilo, não iria perder a chance de enjoá-lo. – Nossa – disse com o semblante sério, observando suas sobrancelhas sutilmente levantaram pela surpresa de ter usado seu apelido. – que gay da sua parte me falar de luzinhas acendendo. Quase puxo a manga da camisa para limpar as lágrimas. – finalmente deixando o riso sair ao ver a carranca dele.
- A gente tenta ser fofo, mas não tem jeito: vocês preferem os cafajestes mesmo. – respondeu ainda chateado com a brincadeira.
- Own, meu Deus, como sou sentimental. – apertei suas bochechas entre minhas mãos. – Fica assim não, , tem sempre espaço pra mais um poeta no mundo.
- Engraçadinha, vou te mostrar o poeta gay.
puxou meu antebraço e começou a dedilhar energicamente minha barriga em cócegas. Cócegas. Há quanto tempo eu não sentia isso? Talvez desde o tempo em que eu ficava sob o cuidado de babás.
Eu gargalhava horrores e tentava a qualquer custo devolver a sensação ao garoto a minha frente, mas sempre que minhas mãos se aproximavam de seu abdômen ele as alcançava e as prendia.
- Para – risos – – risos –, está – risos – doendo!
- Agora quer que eu pare, não é? Pois não vou...
-! ! O almoço está servido! Venham antes que esfrie, mocinhos! – ouvimos o grito da mãe de ressoar pelos corredores, interrompendo sua fala e fazendo-o se esquecer do que estava acontecendo antes.
Corri até a porta com a mão na barriga no local em que sentia a dor do esforço, desvencilhando-me das cócegas de . – Vamos, bobão. Estou morta de fome – disse ainda rindo para ele, enquanto saia de seu quarto.
Entrei na cozinha sozinha, quase me sentindo mais familiar àquela casa que a minha própria, e pude sentir na pele como seria viver naquela casa. Embora o cômodo não fosse espaçoso como na minha, era bastante aconchegante e convidativo. Puxei o ar profundamente, deliciando-me com aquele aroma de cebola, alho e manteiga refogada. Vânia – a mãe de –, estava pondo os últimos talheres na mesa, endireitando-os para que ficassem perfeitamente retos ao lado dos pratos de porcelana branca e embaixo de uma toalha de flores amarelas. Ela sorriu quando me viu escorada na porta.
- Entra, . – ela pediu ainda sorrindo e puxou uma cadeira para mim.
Murmurei um agradecimento e me sentei onde ela havia indicado. Já tinha provado comida de diversos tipos, de chefs renomados nacionalmente e até internacionalmente, mas não adiantava ter tantos títulos se seu macarrão com queijo não era de dar água na boca. Era aquilo que eu sentia enquanto observada a tigela preparada por Vânia. Meu estômago roncou de repente e senti uma mão tocar meu ombro.
- Desde quando você aloja um monstro no estômago, ? – brincou .
Não tinha nem notado sua presença de tão concentrada naqueles fios de massa banhados de queijo que se embrenhavam a minha frente. Nem me dei ao trabalho de responder, pois sua mãe sentou ao meu lado com uma revista de astronomia na mão, dando um carão por ele ainda estar de pé e falando besteira. Ri internamente. É nisso que dá ri de quem tem fome.
- Ah, mãe! Até na hora de comer a senhora vai ficar lendo essas maluquices de horóscopo aí? Porra, larga essa besteira. – pediu , com uma voz quase de suplica.
Ela levantou seus olhos devagar do papel, com uma expressão séria. – Cala a boca e come, mocinho, não te eduquei para falar palavrão. Comporte-se!
abriu e fechou a boca algumas vezes, mas se ia falar algo, desistiu, servindo-se a contragosto logo em seguida. Segurei o riso, imitando seu gesto assim que ele acabou de despejar o alimento em seu prato. Receba essa, garotinho. , que notou o que estava acontecendo, aproveitou-se do momento que sua mãe lia para mostrar o dedo do meio a mim.
- Levanta esse dedo de novo e vai precisar de dois dias para poder sentar, moleque. – brincou Vânia, que estava a todo tempo prestando atenção em seu filho, e virou-se para mim. – Não liga para esse menino, a gente tenta pôr no caminho certo da vida, mas a sociedade corrompe.
Dei uma gargalhada com a cara de incrédulo que fez, enchendo a boca de macarrão para não o alfinetá-lo. – Agora diz, , quando é o seu aniversário?
O garfo cheio de comida que já estava, novamente, a caminho da minha boca parou. Não tinha dito ainda que hoje, na verdade, era meu aniversário. Tinha optado por esquecer (lê-se: esconder) esse detalhe por hora para não ter que ser levada para casa para desfrutar da (falta de) companhia de meus pais, já que, como mãe, Vânia não me deixaria comemorar essa data longe deles. No entanto, não tinha como fugir daquela pergunta. Mentir para aquela mulher que havia sido um doce comigo estava fora de cogitação.
- Dia vinte e três de... – pigarreei. Ela levantou a sobrancelha, encorajando-me a continuar. – Julho. Vinte e três de julho.
tossiu engasgado com a comida, mas logo se recuperou. – Espera aí, hoje é vinte e três de julho, ! - verbalizou Vânia. – Quando pretendia nos contar que te sequestramos no seu aniversário?
Os dois me olharam com sentimentos diferentes. Ele, mostrava-se surpreso e um pouco, como diria... Traído? Não fazia sentido, nós sabíamos que nos conhecemos a poucas horas e não tinha chance de ele saber que era justo hoje que eu completava ano de vida. Sua mãe por outro lado, pareceu animada.
- Que linda! Ela é de Leão, . – ela se movimentou na cadeira, pondo a revista de lado finalmente. – Sabe o que isso significa? Significa que tem uma personalidade forte e é justa com os outros. Tem problemas com expressar o que sente, mas ainda assim nunca deixaria de demonstrar. – Vânia me abraçou de lado num gesto inesperado que me fez sorrir fraco. – Se gostava de você antes, querida, agora a adoro! Assim que acabarmos de comer farei um bolo delicioso para vocês cantarem parabéns!
Abraço. Contato pele a pele. Transmissão de calor e de afeto. Afeto. Era tão bom receber carinho que me vi sorrindo abobalhada. Estava derretendo por dentro com aquela demonstração da mãe de . Aquilo sim tinha sido o melhor presente que poderia ganhar. Se soubesse que sair com estranhos me renderia coisas boas assim, teria o feito com mais frequência.
Mesmo naquele momento de descontração, pude notar que permanecia me olhando estranho. Não tinha mais surpresa em seus olhos e sim algo indecifrável. As rugas de sua testa provavam que estava planejando algo, mas o quê?
- Vamos, comam! – disse Vânia, já na metade de seu prato. – Tenho que fazer um bolo para e lavar os pratos, não tenho o dia todo, crianças. – e ainda que seu discurso parecesse severo, ela tinha um sorriso sapeca nos lábios.
Atendi ao seu pedido, mastigando depressa todo conteúdo que tinha em meu prato. fez o mesmo e logo estávamos no seu quarto de novo, ele na cama e eu numa poltrona perto da escrivaninha, esperando o bolo de chocolate e morango que sua mãe planejou para comemorar meu aniversário.
Desde que havíamos nos acomodado ali não me dirigia a palavra. Estávamos em um silêncio mórbido, presos em nossos próprios pensamentos sobre o dia de hoje e a revelação do almoço. Acho que talvez se eu tivesse informado sobre o fato de hoje ser meu aniversário a gente estivesse conversando animadamente agora, ao invés de ficarmos os dois com cara de bunda. Ou talvez não estivéssemos nem no mesmo cômodo, porque eles me levariam para casa na hora, ainda que eu pedisse para não fazê-lo.
Ainda não acreditava que ele estava chateado por eu ter ocultado o evento. Nós nos conhecemos hoje, praticamente agora e ele já queria saber várias coisas sobre mim? Tudo bem, talvez ele tenha tentado se abrir comigo para nos conhecermos e o fato de eu ter escondido o significado da data de hoje tenha o feito se sentir um idiota por eu não ter feito o mesmo que ele. Talvez. Talvez eu também fosse uma anta.
Já haviam se passado vinte minutos daquele silêncio quando se levantou da cama e foi até seu guarda roupa. Sem que eu quisesse, meu olhar seguiu seus movimentos. Ele abriu a porta e começou a remexer por entre as roupas bagunçadas, retirando que não consegui decifrar. passou alguns segundos parado, em frente ao vão de roupas sem mexer um músculo, parecia analisar o que faria em seguida. Por alguma razão desconhecida, senti um frio na barriga. Aquela sensação de nervoso e ansiedade cuja origem é impossível de se traçar. Como eu disse: estou ficando louca. Completamente maluquinha.
Notando seu devaneio finalmente, caminhou até a poltrona em que eu estava, com a mão fechada em um punho. Sabia que ali, entre aqueles dedos branquelos tinha algo e não consegui segurar a sensação de borboletas no estômago que cada passo seu a mais em minha direção aumentava. Não sabia o que esperar depois de tanto silêncio. Era algo bom? Algo ruim? O que mais esse dia reservava para mim? Só sabia que o queria por perto, mas nem mesmo o quanto eu sabia.
Enfim ao meu lado, se agachou para que nossos rostos ficassem no mesmo parâmetro. – Não vou mentir que achei pura sacanagem você não contar que era seu aniversário. Sei que só nos conhecemos agora, mas porra! – murmurou frustrado. – Não custava ter avisado. – fiz menção de falar, mas ele me interrompeu. – Não fala nada, só escuta. – assenti surpresa. – Estive pensando em algo que pudesse te dar pra que você não esquecesse esse aniversário. Obviamente, presentes estavam fora de questão, então tive que me virar com algo que já tivesse. – ele esticou a mão até mim e abriu-a, revelando um pequeno chaveiro em formato de rolo de filme e uma clave de sol.
Abri as mãos em concha maravilhada com aquele pequeno objeto. Era tão simples e ao mesmo tempo tão lindo que me deixou sem palavras. sabia muito pouca coisa sobre mim e ainda assim conseguiu me dar algo que fosse tão especial e meu. Fazia algum sentido? Para mim, não. Eu, que sempre tive os melhores brinquedos, das melhores lojas e fabricantes num estalar de dedos, estava estagnada com o fato daquele chaveiro velho e usado ser simplesmente perfeito para mim.
- Foi de uma feira de cinema e música que fui com meu pai há dois anos. – ele apontou para o rolo de filme em que havia os dizeres “XVII FEIRA DE CINEMA E MÚSICA DE SÃO PAULO”. – Somos um pouco viciados em música, sabe? E eu meio que sempre quis tocar guitarra e essas coisas. – as bochechas de ficaram um pouco rosadas. – É pouco, eu sei, mas espero que tenha gostado.
- Se gostei? – olhei-o sorrindo. – Eu amei esse chaveiro, . Obrigada, de verdade. – abracei seus ombros um impulso repentino, sentindo seu perfume de shampoo e colônia masculina tomando conta de meus pulmões. – Não precisava.
- Se eu soubesse que um chaveiro tiraria um sorriso desses seu, teria comprado a lojinha inteira quando viajei. – brincou.
Ali, com o rosto enterrando na curva de seu pescoço, eu soube que o queria comigo para sempre. A raiva com a qual aquele dia tinha se iniciado mostrara para mim que não poderia contar com meus pais, porém a oportunidade que a ausência deles me dera de conhecer boas pessoas e encontrar algo que pudesse ter certeza me fazia bem. Tão bem que precisava prometer a mim que seríamos apenas amigos. Os melhores amigos do mundo, de preferência. Era a única opção de nos mantermos longe de relacionamentos que teriam fim e sermos verdadeiros um com o outro e fora por ela que eu optara.
.
Ali, com em meus braços, percebi o quanto queria que ela permanecesse. Não só naquele abraço, mas também naquela casa. Na minha vida, basicamente. Depois de um dia bem diferente do que estava acostumado com a garota a quem os meus colegas tachavam de estranha e louca, eu tivera a certeza que ela era bem normal. Ainda um enigma e definitivamente incomum, mas normal e eu precisava dela na minha vida.
Para variar, mamãe entrou no quarto e nós quebramos o contato que tínhamos antes. O bolo de aniversário de estava pronto, era hora de cantar parabéns. Nós cantamos e depois do jantar no qual conheceu meu pai, ela agradeceu e disse que já estava tarde. Fiquei decepcionado, porque queria conhecer mais aquela garota, porém acompanhei minha mãe no percurso até sua casa.
Do banco do passageiro, pude ver a careta que fez ao chegar em casa. Pelo jeito, ela não queria estar lá como havia dito de manhã e só tinha dito que estava na hora de ir para não dar trabalho à minha mãe. Sai do carro e a levei até a porta.
- Seu número do celular? – pedi um pouco constrangido quando paramos na varanda da casa, já próximo à entrada.
Ela pareceu sentir o mesmo agora que estávamos longe do meu prédio e o dia maluco estava acabando. – Anota aí. – suspirou derrotada, dizendo em seguida os dígitos de seu telefone. Ela pôs a mão na maçaneta. – Obrigada pelo dia, e agradeça a sua mãe também. Foi bastante... divertido.
Sua mão girou a peça em segundo e antes que ela adentrasse o recinto por completo, chamei seu nome. – Eu que agradeço por ter aceitado a carona. – sorri de lado e ela me acompanhou.
Ouvi o baque da porta atrás de mim enquanto voltava para o carro. Puta que pariu, que dia!
Parte 2: Agora eu era um louco a perguntar “o que a vida vai fazer de mim?”.
Rio de Janeiro, 2012 – O Pulso.
Mais uma vez as lembranças daquele primeiro dia preencheram minha mente. Dei um gole na minha cerveja, cansado e agradecendo a maravilhosa fiscalização da lei da maioridade nesse país. Ao menos no Pulso eu podia beber em paz na minha mediocridade.
Uma semana. Sete dias inteiros sem ouvir a voz de , sem receber mensagens dela, sem sequer trocar tweets com ela. Não podia acreditar que depois de dois anos de amizade intensa aquilo estava acontecendo. Puta que pariu! Nem mesmo depois de brigarmos tínhamos ficado mais de um dia sem contato um com um outro e agora estávamos nessa situação.
Era tudo culpa minha.
Desde a manhã do sábado passado, quando acordei atordoado atrás de uma maldita aspirina para amenizar a ressaca e não a encontrei, eu sabia que o culpado era eu. O pior foi que, depois de me lembrar do que havia acontecido, eu encontrei a cartela do remédio e junto a um bloco de notas com palavras de . “Tente não se matar enquanto eu estiver longe, cabeção. Xx .”
Droga, ! Como você conseguia parecer tão normal diante do que aconteceu? Essa é a pergunta que rondava meus sonhos toda vez que essas palavras voltam a minha mente.
Voltar a minha mente. Ri sozinho enquanto trazia mais uma vez a caneca à boca. Era isso que acontecia a todo instante. Tudo me lembrava ela, até a tampa da garrafa de uma Coca-Cola trazia à tona memórias. Exatamente por isso que eu estava pela quarta vez essa semana tentando esquecer o que aconteceu na semana passada enchendo a cara. Não estava nem ai para as regras de minha mãe ou para as perguntas que os amigos da escola faziam. Nem pros boatos de que eu estava em depressão por causa do sumiço de eu dava a mínima.
Ah, sim, após anos falando mentiras da minha amiga aquele bando de retardados passou a ligar para a existência dela. Até seus pais – não pude evitar apertar mais forte o copo que segurava ao pensar neles –, que foram os causadores junto comigo da saída de , ficaram “preocupados” e puseram em todos os jornais. Adivinhe? Não durou muito, claro. Dois dias depois eles nem se lembravam que tinham outra filha além de Ana Júlia. Uma nojeira sem igual.
- Mais uma. – pedi a Roger, o garçom conhecido do lugar.
- Cara, não acha que está demais não? – ele questionou e eu o fuzilei com os olhos, mostrando que não iria desistir. Minha melhor amiga tinha fugido sem me deixar telefone nem endereço e eu não podia nem encher a cara? Ah, vai se foder. – Tá legal, . Não está mais aqui quem falou.
Enquanto ele despejava mais daquele líquido no meu copo, repassava comigo os momentos que eu e tivemos naquele local. No pequeno palco de maneira encostado na parede do fundo, eu tocava músicas com meu violão ou com a guitarra e no banco do balcão em que estou sentado, olhava para mim e sorria. Ela fazia o setlist na noite anterior ao meu “show” e cantava junto comigo todas elas, pois ela dizia que não suportava assistir a alguém tocar e não poder acompanhar todas. Esse era o motivo de ela saber as músicas de cor de todas as bandas que gostava, afinal, ela não se permitia estar desprevenida caso alguma delas quisesse tocar aqui no Rio.
Antes que eu pudesse me segurar, já estava voltando no tempo.
Rio de Janeiro, 2011 – O Pulso. .
Era a primeira vez que eu tocava para alguém que não fosse meus pais e . Se eu estava nervoso? Nada, só achava que minhas tripas iam parar a qualquer instante no rosto do pessoal do bar. Sabendo desse meu “medo de palco”, prometera aparecer antes do meu curto concerto começar e para variar, estava atrasada.
O embrulho no meu estômago aumentou ao ver Roger, o garçom do Pulso – nome do bar que tocaria –, bater os dedos contra o relógio na mão esquerda. Era a minha deixa para tocar e ainda não tinha chegado. Porcaria, eu tinha que começar ou perderia o pouco cachê que ganharia.
Devagar tracei meu caminho do banco até o palco, segurando o violão que meu pai me dera de presente no meu aniversário de quinze anos, um mês e meio depois do fatídico dia em que conheci . Sim, ela era mais velha que eu e fazia questão de me lembrar disso quando a oportunidade surgia. Aquela tampinha gostava de me ver irritado, era fato, mas eu aguentava contanto que pudesse fazer o mesmo com ela.
Subi os degraus de madeira até a superfície mais alta onde e passei meu olhar pelas pessoas que estavam sentadas ali. Alguns senhores bebiam e jogavam cartas em um canto, bastante compenetrados nele para prestar atenção em mim. Perto da estrutura em que eu subia, havia uma mesa grande e cheia de mulheres e homens jovens por volta de seus vinte e tantos anos, esperando ansiosamente pelo som que viria. Desviei meu olhar para o balcão, nervoso com a reação que eles poderiam ter daqui há alguns minutos, quando eu começasse a tocar. Nesse, porém alguns adolescentes da minha idade se debatiam atrás de bancos para assistir ao show. Não mais que trinta e cinco pessoas ao todo e eu já estava me borrando de medo. Isso é o que eu chamo de estrela do rock, hein. Assim nem em praça de alimentação de shopping eu toco, quem dirá tocar guitarra na TV. Bufei e encarei, por fim, o lugar vazio que tinha sido reservado para . Nada ainda e o dono do local já estava falando para eu tocar.
- Senhoras e senhores, – disse o dono no microfone a minha frente e sua voz reverberou pelo local. – hoje à noite teremos o prazer de apresentar um jovem talentoso da região. Espero que gostem! Com vocês, !
Aplausos encheram o ambiente junto a assovios encorajadores. Era louco como aquilo tinha o efeito oposto e me deixava mais nervoso para receber a aprovação do público. Forcei alguns passos até o microfone xingando mentalmente por não ter chegado e a mim por ter inventado de ser músico.
- Boa noite. – engoli em seco, quase gaguejando ao pronunciar aquelas duas palavras. Voltei meu olhar para o chão, tentando me acalmar.
Toquei os primeiros acordes de O Vencedor de Los Hermanos com os dedos trêmulos. Essa merda de nervosismo não podia me fazer errar. Não no meu primeiro show, droga. Levantei o rosto de olhos fechados para começar a canção, assim era mais fácil. Olha lá, quem vem do lado oposto
Vem sem gosto de viver
Olha lá, que os bravos são
Escravos sãos e salvos de sofrer.
Até agora tudo ia bem, minha voz não estava parecida com a de um alcóolico depravado e os acordes fluíam sem erro. Apesar disso, mantinha os olhos fechados para não ver as expressões alheias. Era melhor assim, ao menos por enquanto. Olha lá, quem acha que perder
É ser melhor na vida
Olha lá, quem sempre quer vitória
E perde a glória de chorar.
Quando eu menos esperava, um burburinho acompanhando a música começou. Sorri comigo mesmo, agora mais relaxado ao perceber a aprovação da escolha musical. Ponto pra mim! Aliás, para que disse que Los Hermanos era bom para shows em bares. Alguma coisa útil ela tinha que fazer já que estar presente parecia ser impossível. A medida que meu nervoso ia passando, meus olhos iam abrindo até eu encontrar os de . Ela havia chegado, finalmente. A gente fala do capeta e ele aparece, impressionante. E eu que já não quero mais
Ser um vencedor
Levo a vida devagar
Para não faltar amor.
piscou para mim e fez um biquinho. Aquelas eram suas desculpas? Ela não ia se livrar assim tão fácil do meu interrogatório sobre seu paradeiro. Provavelmente, notou isso pela sobrancelha arqueada que recebeu em troca e tratou de puxar palmas periódicas ao som da música num pedido de trégua que só nós dois entendíamos. Balancei a cabeça com um sorriso incrédulo. Aquela baixinha me conhecia bem para saber como me amolecer. Olha você e diz que não
Vive a esconder o coração.
Não faz isso amigo
Já se sabe que você
Só procura abrigo,
Mas não deixa ninguém ver
Por que será?
A última nota era um pouco complicada e agradeci por estar mais calmo senão aquilo ali ia sair igual a um ganso. Deixei meu corpo balançar levemente junto com o som do violão. fingiu aplaudir meus passinhos de longe e piscou para mim, cúmplice. É, acho que no fim não será tão ruim essa noite. Eu que já não sou assim
Muito de ganhar,
Junto as mãos ao meu redor
Faço o melhor que sou capaz
Só para viver em paz.
Assim que terminei os últimos acordes, ouvi um uivo gritando “Foda!” e fui ovacionado pela minha pequena grande plateia. Eles inacreditavelmente tinham gostado. Até os velhinhos da mesa se levantaram e assoviaram para mim. Era surreal. Simplesmente, surreal.
- Obrigada, gente! – agradeci ao microfone. – A próxima é dedicada ao meu velho amigo Roger. – apontei para o garçom ao fundo que mantinha uma cara de chocado inédita de tão engraçada. – Valeu pelas bebidas, parceiro.
...
No meu intervalo da noite, corri até , cumprimentando pelo caminho alguns clientes que ficaram felizes com a minha apresentação. Embora fosse legal o reconhecimento, tudo que eu queria era uma Stella Artois bem gelada para não dar um cascudo em pelo atraso.
- Rickyzinho, lindo! – exclamou ao me ver aproximar. – Olha só que beleza de cerveja eu paguei para você, olha. – ela segurou um copo cheio com os escritos “Stella Artois” bem rente ao seu rosto, com um olhar de cachorro choroso e eu bufei.
- Em que momento do show você chegou, ? – cortei sua cena meiga, puxando o copo de sua mão e me encostando no balcão ao seu lado.
- Nem vem com esse tom de raivinha porque eu cheguei no primeiro verso da música, tá bom? – ela passou um braço pelo meu pescoço. – Eu juro que demorei por um bom motivo.
- Bom motivo? Essa eu quero ouvir. Qual o seu bom motivo, ? – encarei-a com uma expressão séria.
piscou e sorriu docemente. – Estava falando com a , sabe. – bufei sem acreditar no que estava ouvindo. - Vai, você tem que me perdoar, sabe disso.
Ri sem humor. só podia estar brincando, pensei comigo antes de me virar para ela. – Eu tenho que te perdoar, ? Tem certeza que eu tenho que te perdoar? Você prometeu que viria, merda! Você sabe que eu tenho um puto medo de palco e não apareceu. – cuspi. – Não vai ser tão fácil assim. – dei um gole na minha bebida e voltei a encarar o copo.
Não tinha como negar como eu estava chateado com aquilo. Porra, ela trocou a mim por uma amiga virtual que conhece há pouco tempo e só por foto. Já a avisei que provavelmente a tal é um pedófilo gordo e fedorento que vive com a avó e se masturba em sites como o Omegle e mesmo assim ela me troca.
abriu e fechou a boca enquanto me encarava incrédula antes de falar. – Que dia é hoje, ?
- Mas que merda é...
- Que dia é hoje, porra! – ela exclamou um pouco mais alto, atraindo alguns olhares para nós.
Apertei mais fortemente o copo em minhas mãos. Aquilo estava me irritando. Ela fazia a merda e quem tinha que sair como malvado era eu. – Sábado, . Hoje é uma porra de um sábado. Nem isso você sabia sobre minha apresentação que...
- Não, sua anta. – interrompeu-me quase aos berros. – Que data?
- Sei lá, garota! – dessa vez fui eu que levantei a voz. – Dia...
Foi aí que a ficha caiu. Hoje era nada mais e nada menos que vinte e três de julho, também conhecido como dia do aniversário da . Minhas mãos soltaram o copo no balcão e foram automaticamente para meus cabelos lavados de suor. Eu tinha esquecido. Estava tão preocupado com meu showzinho e seus complementos que esqueci o aniversário da minha melhor amiga.
Agora eu via sua expressão. Punhos fechados na cintura e cabeça torta como uma mãe prestes a dar bronca no filho de cinco anos que subiu na grade da janela. Sobrancelhas arqueadas a espera de uma resposta. Talvez, de uma explicação. Oh, eu estava fodido.
- Não acredito que você esqueceu. – murmurou com um olhar matador.
- Ah, ... – ronronei, puxando-a para um abraço contra sua vontade e persistindo em meio aos seus socos. – Você sabe que eu sempre esqueço datas importantes, não me odeia, por favor. – fiz minha melhor cara de abandonado. – Desculpa o , vai.
- Vai se foder, . Estava dando chilique não tem nem dois minutos e agora vem com essa cara de cachorro sem osso me pedir desculpas! – retrucou com o rosto esmagado no meu ombro.
- Mas a culpa é sua que insiste em falar com pedófilos disfarçados de menininhas... Ai! – me deu um tapa na cabeça.
- Não fala assim da porque ela é muito legal e eu já a vi no webcam e sei que ela é uma garota com peitos. Peitos! – enfatizou. – Nada de homem velho e nojento. A questão não é essa, pare de mudar o assunto. Você esqueceu meu aniversário seu irresponsável, novinho! – chamou a mim pelo apelido escroto que relembrava minha idade. Caralho, apenas um mês de diferença e pra ela eu tinha acabado de nascer.
Soltei-a bruscamente, irritado com o apelido, mas logo relembrando que havia esquecido da data especial. Eu era um péssimo amigo mesmo. – Posso ser novinho, mas você é quem é a tampinha. – baguncei seu cabelo e ela me mostrou o dedo médio. – Me perdoa, , por favor.
- Já percebeu que, mesmo sabendo que é meu aniversário, você ainda não me deu parabéns? Só fica implorando meu perdão. – ela balançou a cabeça em negação. – Nada bonito, .
É, a situação não estava boa. Fiz uma careta, percebendo que aquilo não iria muito adiante da forma correta. Uma droga ser tão chata e simplificar aquela história já que ela claramente sabia que meu objetivo era me desculpar e parabeniza-la. Mulherzinha difícil que eu fui arranjar.
Ela mantinha aquele olhar de “estou pagando para ver você suplicar pelo perdão que não merece”. Acredite, a mesma garota que há um ano não me contou que era seu aniversário está me cobrando votos de felicidade. Como as coisas mudam.
Estava prestes a fazer meu pedido a linda, gata, sensual, maravilhosa Rainha-da-Boa-Música – como eu tinha que chamá-la quando fazia merda. – quando Roger tocou meu ombro avisando que eu deveria voltar para o palco. me encarou com uma expressão que claramente indicava que eu estava fodido se não fizesse nada, porém antes que eu pudesse fazer algo ai em sua frente, o dono do estabelecimento subiu ao palco introduzindo a mim novamente.
- , eu...
Ela soltou o ar de seus pulmões e cortou minha fala enraivecida. – Vai logo, cabeção. O show tem que continuar, não é mesmo?
- Não faz assim, ...
- Vai! – ela berrou entredentes.
Conforme eu fazia meu caminho até o palco, pensava em alguma música que pudesse dedicar a ela. Claro, eu já havia feito tanta besteira que não me importaria em passar a vergonha de ser tomado como seu namorado por cantar para ela.
Não que fosse algo para sentir vergonha. era a menina mais linda que eu já conhecera. Ela tentava a todo custo se esconder nas roupas negras e conseguia repelir alguns caras – e até a mim antes de conhecê-la –, mas era impossível não ver suas curvas por debaixo daquele pano. E que curvas, hein. Balancei a cabeça aturdido, tentando tirar as imagens deliciosas da minha melhor amiga de biquíni. não era só carne. Eu descobrira quando ficamos mais próximos sobre seus pais. A princípio, eu não acreditei e encasquetei que era drama dela, entretanto, com o convívio e as diversas idas a sua casa, eu descobrira que ela tinha motivos para viver de luto. Isso só acentuava suas qualidades no fim das contas. Apenas mostrava como ela tinha um coração enorme e sobrevivera à merda a qual fora sujeitada.
Nossa, como estou gay. E maluco por pensar em assim. Melhor amiga, lembra? Isso aí. Somos só amigos. Era isso, tinha sim uma música para cantar.
- Boa noite de novo, galera. – disse ao microfone, bem mais relaxado e acostumado com as luzes do local. – Eu cometi uma mancada hoje com a minha melhor amiga – vi com o canto de olho remexer o corpo no banco e sair deixar de me fuzilar com os olhos para ficar com uma leve sobrancelha arqueada. – e preciso consertar aqui no palco. – as mulheres do local sorriram e fizeram um sonoro “Awn”. – Essa é para você, . Feliz aniversário. – apontei para ela que ruborizou sob o olhar da plateia, mas sorriu de canto logo depois.
Dedilhei o começo de As coisas tão mais lindas do Nando Reis olhando em seus olhos, que, para minha surpresa, já estavam marejados e sua boca aberta em choque. Sorri fraco e ela retribuiu a música inteira.
...
Sorri sozinho, ali, sentado naquele maldito bar com uma Stella já quente entre meus dedos. Éramos irmão e irmã. Então por que eu tinha que estragar tudo?
São Paulo, 2012. - Apartamento da . .
TV e Doritos estavam sendo meus fiéis companheiros nos últimos dias. Ah! Um pacote de Kleenex para enxugar as lágrimas insistentes também. Esparramada no sofá da enquanto essa estava no vigésimo oitavo sono após ter voltado de um trabalho numa obra de seu estágio, eu só conseguia pensar se chorava ou se arrancava a cabeça de um ursinho de pelúcia qualquer. Afinal, o que eu esperava? Uma carta de rolo do implorando para que eu voltasse?
Não seria nada mal, para falar a verdade.
Eu tentava me convencer de que, no fundo, ele estava só com medo da minha reação ao que aconteceu na noite em que contei que viajaria. Tentava, mas estava difícil. Uma semana havia se passado e nem ao menos cento e quarenta caracteres no twitter ele havia me mandado. Tudo bem, eu que viajei então era minha responsabilidade avisar se tinha chegado bem e etecetera e tal, mas ele não podia esperar que a minha pessoa fosse a primeira a lhe dar sinal de vida.
Não era?
Passei os canais da televisão bem rápido a procura de um filme clichê de romance que me fizesse rir e chorar ao mesmo tempo, mas aparentemente só tinha pornô às duas da manhã. Nada para me distrair. Nada que me fizesse esquecer o que ele havia dito. O que havia feito. Droga! Tinha sido eu a sair da cidade sem deixar endereço ou telefone de São Paulo, então por que parecia tão errado me manter distante de ? Eu sabia por que. Admiti para mim mesma e deliguei a TV, desgastada demais com tantas perguntas que eu sabia a resposta e simplesmente não queria admitir para mim mesma. Para completar a tragédia, eu não conseguia mais largar o chaveiro que ele me dera no dia em que nos conhecemos. Ele ficava na minha chave balançando para lá e para cá me lembrando dessa história toda, como se exigisse alguma explicação para ele não poder mais ser tocado por . Porcaria, puta que pariu, merda, droga, porra! Bati na testa, passando as mãos no cabelo.
- Por que eu correspondia. – sussurrei pro nada e já estava esmagada por memórias daquela noite.
Rio de Janeiro, 2012 – Casa dos Schimdt. .
00:00 piscava no relógio da minha escrivaninha. Oficialmente vinte e três de julho. Palmas para mim que havia aguentado dezessete anos dessa bosta de data.
Aniversários não eram meu forte já que Lilian e Tiago raramente se lembravam deles e, também, comemoravam-nos. Entretanto, nos últimos dois anos eles tinham me surpreendido maravilhosamente. Os aniversários, não meus pais, claro.
Havia conhecido . Meu melhor amigo otário que só fazia besteira, mas não vivia sem mim. Ok, talvez vivesse, porém sua vida seria sem graça. O ponto não é esse e sim o fato de que ele sempre dava um jeito de fazer esse dia ser bom e eu estava ansiosa para o que ele faria hoje.
Meu celular vibrou com uma notificação no Instagram e outra no Whatsapp. Escolhi ver o último primeiro e sorri lendo as mensagens de de feliz aniversário se gabando por não ter esquecido esse ano e explicando que havia posto alarme para que isso não acontecesse novamente. Idiota. Mandei um “obrigada” e um “vá se ferrar” seguido de um coração vermelho. Ele apenas encheu a tela com letras diferentes que eu interpretei como uma risada besta.
Cliquei na notificação do Instagram, que abriu automaticamente na página da com um printscreen tirado há alguns meses. No quadradinho pequeno ao canto da tela estava ela e seus cabelos curtos loiros fingindo-se de morta com um suposto tiro dado por mim, que fazia o símbolo de uma arma com a mão direcionada para ela. Logo abaixo havia uma enorme legenda contando algumas de nossas histórias e brincadeiras internas e como ela não tinha certeza se eu ia chorar de rir ou rir de tanto chorar com a homenagem. Acabou que no fim eu fiz os dois e molhei a tela do celular inteira com minhas lágrimas enquanto escrevia o agradecimento.
era uma grande amiga. Uma irmã de outra mãe que morava em São Paulo, mas que estava mais presente na minha vida que a de sangue. Havíamos nos conhecido num chat no meio de uma discussão sobre o preço do ingresso de um show aqui no Rio e acabou que ficamos amigas. No começo era estranho ter uma amiga. Não um estranho ruim, mas diferente do que estava acostumada com , já que não tinha tido nenhum relacionamento com meninas que não fossem babás e/ou da família e de repente eu tinha alguém bem próximo que não estava realmente próximo de mim. Com o tempo nos acostumamos a ter abraços por telas e a não conhecermos de verdade os locais e as pessoas das quais comentávamos, usávamos a internet para os locais e às vezes mandávamos fotos das pessoas. , por exemplo, já tinha conversado com e visto fotos dela.
Só que era cismado com o fato dela ser tão legal. Ele achava que ela não existia e que era um velho babão que só queria meu corpo nu. Ciumento, claro. Não aguentava o fato de ter que me dividir com alguém. Ele dizia que era só preocupação com o fato de eu ser sequestrada por ela e seus capangas e ele ter que pagar a fiança porque meus pais estavam pouco se fodendo.
Seria um argumento válido.
Se não fosse uma menina de dezenove anos, morasse sozinha e dormisse com um urso de pelúcia de quati. Com certeza, assustador.
Bloqueei o celular enquanto a tela pipocava com mensagens de meus colegas falsos nas redes sociais – aqueles desejos por obrigação que todo mundo faz, mas ninguém acredita, sabe? Pois é. – e tratei de dormir, ainda com as bochechas molhadas com que havia lido.
...
- Acorda, ! – ouvi berros vindos do corredor. – Vamos, de pé! – senti minhas cobertas serem puxadas, encolhi-me na cama.
- Só mais cinco minutinhos. – pedi ao pôr o travesseiro por cima do rosto.
- Nada de cinco minutos, . – arregalei os olhos ainda em minha toca. Essa voz era de...
- Mãe? – levantei em solavanco, encontrando uma Lilian de terno preto e coque frouxo.
- É, tanto faz. Levanta logo daí que temos horário no salão.
Oi? Salão?
- Horário no salão? A senhora está cheirando muito álcool em gel se pensa que eu vou ao salão de beleza. – recostei-me na parede com um sorrisinho desdenhoso rolando pelo rosto e a vi revirar os olhos.
- Levanta da cama, e me respeita que eu ainda dei a luz a você. Temos horário, porque eu marquei, óbvio. Não ia esperar a sua iniciativa. – cruzou os braços.
- Para que eu vou me arrumar exatamente? – perguntei esperançosa de que pudesse ter algo a ver com meu aniversário.
- Você sabe para quê. – arregalei meus olhos, atônita. Ela se lembrou? Ouvi seu suspiro longo. – Você tem dez minutos para me encontrar na garagem de casa. Não demore.
O barulho de seus sapatos no porcelanato de casa retumbou nos meus pensamentos. Ela se lembrou. Ai meu Deus. Ela se lembrou. Ainda em choque, corri para o banheiro para fazer minha higiene matinal e vesti as primeiras peças de roupa que vi a minha frente. Lilian Schimdt lembrar de algo que me envolva era tão raro que eu me martirizaria a vida inteira se não aproveitasse cada segundo disso.
- Está atrasada. – ela disse assim que fechei a porta do carro.
Olhei para o relógio no visor do carro. Um minuto de atraso. Dei de ombros. – Você supera por uma vez. – alfinetei.
Ela me olhou séria e acelerou o carro. Sabia que estava abusando da sorte, porém não iria simplesmente esquecer tudo que havia acontecido durante esses anos sem ser, pelo menos, malvada quando me desse na telha. Um dia não apaga uma vida.
Se eu achava minha escola uma selva, aquele lugar era o campo de batalha da 2ª Guerra Mundial. Havia uma fumaça cheirando a queimado e xampu caro rondando as salas e o ar-condicionado estava tão frio que eu mal sentia meus dedos dos pés. Um burburinho de mulheres para todos os lados com as mãos esticadas para secar as unhas e celulares entre o ombro e a orelha para lá e para cá, toalhas penduradas em cabelos, secadores tocando uma sinfonia que mais parecia um estupro aos meus ouvidos.
Uma bagunça.
E lá estava eu no meio daquilo tudo.
- Vai para aquela cadeira ali. – Lilian apontou para o lavatório, onde uma mulher esperava atrás da pia. – Faz o que ela mandar, ouviu? Quero você apresentável.
Dessa vez fui eu quem revirou os olhos, mas não deixei de seguir suas instruções. Estava claramente intrigada com essa aparição repentina de minha mãe e a suspeita de que eles pudessem não só ter lembrado de mim, mas também planejado algo para esse dia me motivava a tentar – veja bem, tentar. – não ser tão malcriada.
Após uma conversa descontraída com a cabeleireira enquanto essa enxaguava meu cabelo, dirigimo-nos até sua bancada para iniciar a escovação. Procurei por minha mãe com os olhos e pude vê-la lendo uma revista enquanto seus pés eram massageados. Seu olhar encontrou o meu por alguns instantes até a manicure perguntar a mim que esmalte deveria usar e me apontou alguns de sua preferência.
Era estranho tudo aquilo. Minha mãe, o salão, os puxões de cabelo que a mulher me dava, a cor roxa do esmalte que estava em minhas unhas. Meu Deus, eu fiz minhas unhas! Nem me lembrava o que era cutícula até a manicure arrancá-las – e pela cara que ela fez, pensava o mesmo. Esse dia estava distante de qualquer expectativa.
- Bonita. – ouvi minha mãe dizer para meu reflexo. Fingi uma reverência irônica. Valeu pela parte que me toca. – Hora do almoço. Temos reserva no restaurante que seu pai gosta, querida.
Como se eu soubesse qual era, francamente. – Não sou sua querida. – caminhei até o carro, agradecendo as moças do salão. Elas tinham sido até agradáveis.
- Mas continua minha filha. – retrucou, destrancando o veículo e se projetando para dentro. – E eu exijo respeito, mocinha.
Juro que tentei, mas foi impossível não rir. – Respeito? – disse entre uma risada e outra. – Respeito se conquista, não se pede, mamãe. – ironizei mais uma vez. É, talvez eu fosse abusar da “sorte”. – Só porque estou aqui com você não significa que esqueci sua ausência nos últimos anos.
Ela arrancou com o carro e passou o trajeto inteiro despejando um sermão sobre eu ter comida e roupa lavada em casa e estar reclamando de boca cheia. Apenas balancei com a cabeça, pus meus fones de ouvido e mandei uma mensagem para relatando a surpresa do dia. Lilian já deveria saber, por experiência própria, que comida não enche coração.
...
Depois de almoçarmos – só nós duas, porque Tiago aparentemente teve um imprevisto com alguma papelada dos projetos de Ana Júlia –, Lilian e eu fomos a uma loja de vestidos, pois ela insistia que usasse algo apropriado para o evento misterioso de mais tarde. Assenti, relutante, e algumas horas de discussão mais tarde saímos do local com um dos poucos vestidos que agradou às duas. Era preto – como eu gostava –, mas justo e um pouco decotado – como ela preferia – e ambas concordamos que o cetim era confortável.
Quando chegamos em casa, ela disse que me arrumasse para o evento que começaria as sete em ponto. Após um dia de ordens e tanta frescura, esse não era um pedido que recusaria. Estava puta nervosa para saber o que me aguardava era fato, portanto, tratei de tomar banho e fazer o melhor que podia com a maquiagem. No fim de minhas “tarefas” ainda faltavam quinze minutos para as sete que eu sabiamente gastei no telefone com .
- Ela te levou para o salão? – gritou do outro lado da linha.
Era difícil ouvi-lo com o burburinho das pessoas no Pulso, mas já estava tão acostumada com sua voz que conseguia distinguir até os palavrões que ele falava baixinho para os que estavam a seu lado. Uma maravilha isso de conviver com músicos.
- Não só para o salão. Para o almoçar e para o shopping também. – respondi.
- Inacreditável. – riu .
- Inacreditável foi o vestido que ela me comprou. Sem condições de existir alguém mais sexy que eu nesse momento, . – brinquei.
- Não só nesse, tampinha. – disse baixo e o barulho do bar quase abafou sua frase.
- Como?
- O quê? Nada, ué. Estava pensando no que acontecerá na sua casa hoje. Isso de sua mãe passar o dia com você não me cheira bem.
- Tem razão, fede. – ri com minha piadinha ridícula e imaginei se revirava os olhos. – Mas estou com esperança. Sei lá, estou dando uma chance para eles, sabe? Quero ver no que vai dar.
- Sei. – ouvi seu suspiro do outro lado. – ?
- Hm?
- Só não se machuca, está bem?
Sorri fraco com sua preocupação. Não por achar bonita, mas por saber que tinha fundamento.
- Está bem, . Mais tarde eu passo aí, ok? Quero ver você ainda hoje.
- Ok, mas vem com esse vestido aí que eu quero dar uma checada se procede a informação que você me passou. – brincou, malicioso.
Gargalhei e, se me acompanhou, não cheguei a ouvir. – Está bem, até mais tarde, novinho.
- Até mais tarde, tampinha.
Mesmo após a conversa com , aquela ansiedade não passava. Meus dedos tamborilavam a escrivaninha de meu quarto enquanto eu repassava na minha mente a ideia de não esperar muita coisa de meus pais. Por que eles lembraram esse ano? Não me parecia real. De verdade, só queria descobrir o que essa noite tinha reservado para mim. Foram anos de contagem regressiva para sair dessa jaula que chamo de casa e de repente, tão próxima de realizar esse desejo, meus pais demonstram que se importam comigo? Se essa faísca de esperança fosse alimentada seria difícil deixar esse lugar.
O alarme de meu celular tocou, revelando que estava na hora de sair do quarto e me pus de pé. Hora da verdade. Abri a porta do quarto e respirei fundo antes de seguir pelo corredor estreito até a sala. Embora eu fosse péssima em andar de salto alto, fazia o possível para me manter equilibrada segurando nas paredes opostas. Era bom ser um presente perfeito, porque passar a noite com esses sapatos seria um inferno.
Ao adentrar a sala, notei a mesa do jantar preenchida com comidas deliciosas e os pratos distribuídos por cadeiras. No espelho próximo, minha mãe lutava contra a porca de um brinco e parecia estar perdendo. No sofá, meu pai falava no telefone com seriedade, afastando algumas bolas de assopro coloridas que certamente ele não encheu. Para a maioria das pessoas, aquela cena seria típica – e até hilária de tão comum –, mas para mim aquilo era precioso. Meus pais em casa no meu aniversário e prontos para um jantar em família. Quase torci para que Ana Júlia também estivesse presente. Quase.
- Viu como você pode ficar linda às vezes? – Lilian falou para mim, ainda com mão na orelha. Em seus lábios, o mínimo dos sorrisos.
- É, tanto faz. – dei de ombros. – O que teremos hoje?
Não deu tempo de minha mãe responder. Naquele instante, Ana Júlia e meia dúzia de amigas irromperam a porta e todos gritaram surpresa. Todos menos eu, que estava estatelada observando-os abraçarem-na e juntando as peças do quebra-cabeça.
Aquilo não era para mim, era para ela.
- Vocês são loucos! – disse minha irmã, sufocada pelos braços de meus pais. – Isso tudo é por ter conseguido um estágio? – riu.
- Não é um estágio qualquer, filha. – respondeu Tiago. – É na maior empresa de propagandas da cidade. – olhou-a com ternura.
- Não é nada pai, de verdade. Foi divertido fazer a entrevista. – ela sorriu e olhou para mim. Pareceu vacilar por um segundo, mas logo me lançou um sorriso cínico. – Oi irmãzinha.
Eu, que não havia piscado até o momento, olhei-a sem humor. – Oi.
Senti primeiro o ódio deles por terem esquecido de novo de mim, depois de mim por ter passado o dia com mamãe e ter acreditado que ela poderia ter se lembrado. Deles, outra vez, por estarem sorrindo abertamente como débeis para sua filha prodígio; de mim, por estar me importando. Deles, novamente. Por todos os anos naquela casa sem receber uma gota de atenção. O pior é que eu tinha certeza não estar escondendo nada disso dos meus olhos.
- Está tudo bem, ? – ouvi meu pai perguntar, como se para manter as aparências de bom pai na frente das convidadas. As meninas olharam para mim, encorajando. – Não seja rude, sorria. – ele pediu em um sussurro.
Gota d’água.
- Claro, papai. – ironizei com um sorriso parecido com o que Ana Júlia me dirigira. Pude ver a surpresa em seu rosto, mas ele era elegante demais para esbanjá-la. – Vou servir bebida a todas. – declarei sem me virar para os convidados.
- Quero Coca-Cola diet, irmãzinha. – fez o pedido minha irmã. Sorri de volta com a raiva pulsando em meus ouvidos, clamando para ser usada.
Eu estava descontrolada. Já tinha enxotado o mínimo bom senso que pudesse ter para a puta que pariu e, sinceramente, estava pouco me fodendo para as consequências do que viria a seguir. Enchi o maior copo que encontrei na cozinha e voltei para a sala, dando uma última olhada naquele lugar, porque com certeza, depois do que eu fizesse, não ficaria mais aqui. Ah, mas eu não sairia sem estilo.
Ana Júlia não percebeu minha aproximação até ter tomado um banho de Coca-Cola e soltar um grito esganiçado. – Opa. – ri irônica. – Ah, não, não foi sem querer.
- Vadia! – ouvi-a cuspir entredentes e imaginei se teria descido do salto para me bater se não houvessem tantas pessoas naquela casa. – Pai, mãe! Olha o que a fez!
Mandei um beijo no ar para ela e me virei para o casal que se aproximava com já balbuciando castigos. – Não precisam nem se mexer, Lilian e Tiago. Vocês não fizeram isso antes por mim, não tem motivo para fazerem agora. – eles pararam onde estavam, chocados com minha declaração perante os outros. – Vamos lá, não é como se vocês não esperassem, não é mesmo? Não esperassem que a tão falada ovelha negra da família não fosse explodir qualquer dia desses. – minha mãe tinha os olhos marejados e cheios de um ódio intenso. – Deveriam estar felizes. Vão se livrar do peso morto que sustentam a dezessete anos, não estou certa?
- Cala a boca que você tem dezesseis, pirralha. – Ana Júlia berrou, interrompendo-me.
Ri. Meu Deus, como ri. Meu corpo inteiro tremia de ódio com aquela cena. Com aquela família que sempre me excluiu. Era cômico como eles faziam isso até sem perceber. – Irmãzinha, não se envergonhe mais, por favor. Não queira mostrar mais como essa casa guarda tanta gente infame. – encarei meus pais. – Fiz dezessete hoje, amorzinho, e por mais um ano vocês não se lembraram.
Um urro de surpresa encheu o local. Tiago me olhava embasbacado, como se nunca tivesse passado pela sua cabeça que hoje, há dezessete anos, sua filha pudesse ter nascido. Otário.
- Não precisa essa repercussão, minha gente. Não é a primeira vez que eles esquecem qualquer coisa relacionada a mim. – suspirei derrotada. Nem eu aguentava mais tanta farsa. – Mas será a última. Eu realmente pensei que depois de tantas babás falarem; de diretores pedirem a atenção de vocês; de psicólogos, porra! Psicólogos avisaram que eu precisava de vocês! Depois disso tudo, eu fui burra ao ponto de pensar que Lilian ter me acordado era um sinal de aproximação em anos. Anos! – uma lágrima teimosa desceu por minha bochecha. Quando eu tinha começado a ter indícios de choro? – Mas, mais uma vez, vocês me provaram que continuam os filhos da puta que me ignoraram desde que nasci. – respirei fundo. – Façam um favor a si mesmos e não me esperem acordados. – ri sem humor, pondo a mão próxima a boca e fingindo sussurrar a minha mãe. – Como se já tivessem feito isso algum dia.
Minha mãe apenas balançou a cabeça e pela última vez, sorri para meus pais. Eles permaneceram abraçados, esperando o meu pequeno show terminar e nem me viram fechar a porta de casa, prometendo mentalmente voltar para fazer a mala de roupas. Covardes.
Já dentro do táxi, enviei uma mensagem para , perguntando se ela não teria um sofá sobrando em São Paulo.
...
O Pulso estava lotado para o show de aquela noite. Um ano marcando presença naquele bar ajudou a fazer sua pequena fama na cidade e toda vez que ele se apresentava era a noite de maior faturação do local. Ele estava se aproximando de seu sonho de ser bem sucedido com a música e, mesmo que eu estivesse distante de realizar o meu como cineasta, era maravilhoso vê-lo feliz com o resultado de seu trabalho. Parecia impossível sorrir pelo seu sucesso e nossos devaneios do futuro em meio às lágrimas, mas mesmo assim eu tentei. Tinha a certeza que só assustaria as pessoas que visse pela frente.
- Tequila, Roger. – pedi e ele me olhou assustado pelo pedido e pela cara inchada de choro. – Nem pergunta, só passa o copo.
Ele hesitou, porém me deu a bebida, limão e sal. – A autoestima agradece.
- Disponha.
A bebida desceu ardendo por minha garganta ao passo em que eu me esbarrava nas pessoas para chegar até o palco. Quando cheguei perto o suficiente para olhar para , encostei-me na parede atrás de mim e esperei pelo momento em que nossos olhares se encontrariam. Ele cantava Legião tão alto quanto o público acompanhava, como se cantassem um verdadeiro hino ao rock. Não reparou na minha presença até começar outra música.
sorriu para mim e acenou, dei de ombros em resposta e ele pareceu notar minha tristeza, pois me questionou ao levantar uma sobrancelha. Tentei sorrir de novo, mas resultou em um bico choroso e algumas lágrimas. As feições de enrijeceram e pude ver seu maxilar trincar. Ele terminou a música rapidamente e disse algo ao dono do local, que observava tudo da escada do palco e assentiu.
Ele não esperou nem me perguntou nada, apenas me abraçou. – Antes de tudo, feliz aniversário, tampinha. – beijou minha testa e minhas lágrimas. Sua voz já estava bastante animada para o começo da noite.
- Você estava certo, . Era tudo para a mimada da Ana Júlia, acredita? – apertei mais seu corpo contra o meu, permitindo que seu cheiro de cerveja, suor e perfume – que era surpreendentemente bom – preenchesse meus pulmões e fechando os olhos.
- Shhh – pediu , encostando seu queixo sobre minha cabeça. – Não fala mais nada, vamos pensar em outra coisa, está bem? Lembra que você vai ter que encarar eles mais tarde e não pode estar frágil desse jeito.
Assim que as palavras atravessaram meus ouvidos, abri os olhos atordoada. Acho que esqueci de mencionar que não vou mais vê-los.
- ?
- Sim? – ele murmurou mexendo em meu cabelo.
- Eu meio que não vou morar mais com meus pais. – despejei a verdade com um estalo de boca.
Em um minuto estávamos afastados, com as mãos em meus ombros e me encarando com uma expressão indecifrável. Nós dois sabíamos que ele não estava lá tão sóbrio, mas eu olhar me mostrava o contrário. – Onde?
- O quê? – gaguejei, ainda processando sua mudança repentina de posição e de emoções.
- Para onde você vai? – ele mantinha a feição séria e eu tentei desconversar.
- Como para onde? Eu vou por aí, né. Sei lá, estou pensando ainda nos locais e...
- Só pode estar de brincadeira se acha que vai me enganar assim. – passou a mão pelos cabelos e aí sim eu notei o quão puto ele estava. – Eu te conheço o suficiente para saber que você já planejou sua vida até os quarenta anos fora de casa nos vinte minutos dentro do táxi até aqui. – ok, talvez ele me conhecesse bem demais. – É também por isso que sei que não será aqui. – balbuciou triste, olhando para o chão.
Eu estava tentando. Juro que estava tentando não pensar no seu abraço quando eu cheguei, no seu cheiro e em nossos momentos juntos nos últimos dois anos. Juro que estava tentando não sentir nada a mais por aqueles seus gestos, porém estava ficando impossível.
Desde o dia em que nos tornamos amigos, aquela atração perambulava nosso relacionamento. De primeira, eu culpei a seca. Porra, tinha um bom tempo sem me agarrar com alguém e era, sim, uma razão viável para aquela vontade. Depois, os hormônios. Não tinha outra escolha senão acreditar que aqueles arrepios que sentia com seu toque totalmente inocente em meu corpo eram causados por eles. Por fim, a tristeza. Só podia ser ela, eu tinha certeza. Ela e a saudade que eu teria de meu bom amigo. Certamente era ela.
Bom, se não era, passaria a ser.
Bufei, derrotada. – São Paulo, .
- Puta que pariu. – caiu no banco do balcão em seguida, desacreditado. – Espera, espera. – pareceu voltar a si. – Você não tem parentes em São Paulo. – neguei com a cabeça. fechou os olhos por um instante, tentando controlar seja lá o que fosse que estava sentindo. Pelo jeito, não funcionou. – Você vai morar com o pedófilo, porra. – explodiu, chamando atenção das pessoas mais próximas.
Sorri desconfortável. Já chega de piti de mulherzinha, . – Escuta aqui , não é como se eu tivesse tantas opções e você sabe disso. Eu só tenho dois amigos fiéis no mundo e eles são você – enfatizei dando um tapa na testa dele. – e . Acontece que viver com você iria acarretar em problemas com seus pais, porque eles são bem certinhos e seria, provavelmente, o primeiro lugar de buscas de qualquer delegado. Isso se Lilian lembrar que você é meu amigo. – acrescentei baixinho. – Então sim, eu vou para “casa do pedófilo” que ambos de nós sabemos que é só uma menina de dezenove anos, porra! – e dessa vez quem explodiu fui eu.
Ele me encarava com uma seriedade enorme e tão fixamente que por alguns momentos senti vergonha de estar ali. Sabia que ele só estava com raiva e que iria entender no final o motivo de eu ter ido embora, mas ter de enfrentar isso e os problemas de casa em uma noite era doído. Principalmente por que era quem eu menos queria fazer sofrer no mundo – mas ali estava eu, permitindo-me fazê-lo.
- , não fica assim, por favor. – pedi e dei um passo em sua direção. Não estávamos longe um do outro. – Você sabe que eu preciso sair daquela casa. Eu não aguento mais não ter uma família e ainda ter de ser enxotada por ela. – segurei suas mãos e ele não desviou os olhos em nenhum momento dos meus. – Foram dezessete anos, já aguentei demais daquilo lá. Não fica assim, por favor, não quero perder a única coisa que ainda me prende ao Rio. – pedi, mas tinha certeza que o que saia da minha boca eram apenas ruídos esganiçados, pois estava prestes a chorar.
Foi demais para nós dois. Ele me puxou pela mão que segurávamos e acabou com a distância entre nós em um abraço longo e terno. – Desculpa. – sussurrou em meu ouvido – Eu deveria ser mais compreensivo e menos egoísta, mas, porra... é difícil.
- Está tudo bem, novinho. Eu te entendo. – beijei suas bochechas e seus olhos. Ele sorriu fraco e mais uma vez me peguei adorando cada detalhe daquele pequeno sorriso e do conjunto que vinha com ele. Droga.
- Chega disso, está bem? Roger – ele chamou o garçom que veio ao nosso encontro. –, traz o que você tiver de mais forte para mim e uma tequila para a pequena aqui. – voltou-se para mim com um olhar quase suplicante. – Vou ter de voltar a tocar, mas não vai embora agora. Fica comigo até o fim da noite, por favor.
Assenti, já tinha programado isso de todo jeito. Com quem mais passaria minha última noite na cidade senão com ? Ele pegou o que me parecia um whisky e tomou em um gole o líquido do copo e repetiu mais uma vez o processo, devolvendo o recipiente para Roger que apenas o olhava espantado, como se soubesse a merda que aquilo ia dar. Já de cima do palco, piscou para mim e pegou seu violão.
- E aí, galera! – a plateia gritou em resposta e o sorriso no rosto de se alargou. – A próxima música vai para aquela gata de vestido preto ali. – ele apontou para mim e eu corei mais uma vez sob os olhares curiosos. O que seria de mim sem esse enjoado tentando me envergonhar sempre que podia? – Não fica vermelha, . – e riu de sua própria travessura, sabendo que eu estava procurando um buraco para enfiar a cara naquele momento. – Feliz aniversário, tampinha. – levantei o copo de tequila num brinde silencioso e o virei na minha boca.
A melodia era leve e lenta. Embora eu tentasse puxar da memória algo que pudesse me ajudar a reconhecer aquela música, era um tiro no escuro. Não a conhecia. Olhei para confusa, em busca de algo que pudesse me dar uma pista do que ele cantaria para mim, entretanto o que encontrei foram seus olhos concentrados em algum ponto próximo a mim. Balancei a cabeça para ele olhar para mim, mas, por algum motivo, ele insistia em não olhar em meus olhos. Até a música começar.
Me acostumei tanto a pensar em você
Que quando não penso parece que esqueci
Alguma coisa em casa.
Tem gente que me irrita fácil,
Tem gente que me faz bem fácil,
E tem você
Que faz os dois.
Eu sorri, achando engraçada a letra da música e lembrei da maneira como nós brincávamos um com o outro. Do seu jeito de tentar ser um irmão mais velho ciumento e protetor em algumas horas e em outras agir como uma criança boba que precisa de carinho. Lembrei, também, de como brigávamos por besteiras. Às vezes só para irritar, às vezes para disfarçar os verdadeiros sentimentos diante das situações. Desculpa se te liguei,
É que esqueci de fingir
Que não estou nem aí.
Das coisas que gosto
Você é a que eu menos gosto
De gostar
Eu não teria achado problema nenhum naquela canção se não tivesse desviado o olhar do meu no momento em que cantou as últimas palavras. Qual era o problema dele? A gente já havia ouvido inúmeras vezes, principalmente de colegas que não gostávamos na escola, acusações sobre sermos namorados e brincadeiras ridículas sobre nossa aproximação e não havíamos fraquejado diante delas. Pelo contrário, tínhamos rido bastante juntos sobre isso. Então... pra que desviar o olhar? Era só uma música, não era? Não existe um jeito certo de abraçar
Mas se existisse esse jeito
Seria igual ao seu
(exatamente igual o seu)
Nunca foi amor
(não?)
Era uma parada bem mais legal,
Muito mais legal.
Ele ainda não havia voltado o olhar para mim e eu ficava cada vez mais confusa com aquela história. E com raiva. Bastante raiva de não entender que merda estava acontecendo ali. Tem abraço bom,
Tem abraço ruim.
E tem o seu.
Alguns acordes finais e plateia aplaudiu prontamente . Uma menina próxima a mim gritou que ele era lindo e eu me virei para ela com um olhar matador. Por acaso ela não tinha ouvido que a música era para mim? Todavia, repreendi-me no momento depois que ela percebeu o que eu estava fazendo e saiu de perto. Eu não tinha o direito de achar ruim o que meninas faziam ou deixavam de fazer com meu amigo.
Ah, foda-se. Eu estava achando ruim sim e ia esculhambar quem eu quisesse.
Pelo menos por essa noite.
Ainda que estivesse agindo estranho e a raiva bombeasse nas minhas veias por isso, não deixaria que uma garotinha se aproveitasse da situação. Afinal, estávamos bem – ou pelo menos eu esperava que estivéssemos.
...
Já eram três da manhã quando desceu do palco, falando com o público meio trôpego. O garoto que o cumprimentava o ajudou a ficar de pé e eu me segurei no banco para não fazer o mesmo. Ele ainda não enrolava as palavras, porque conseguira cantar esse tempo inteiro sem muitos problemas, mas não estava tão longe disso. Embora não me importasse com um bebum há poucas horas da minha partida, o fato de ele ter passado o resto da noite sem olhar para minha cara é que me dava ódio. E eu não daria meu braço a torcer, não daria meu braço a torcer, não daria meu braço a torcer... O que aquela garota está fazendo passando o braço dele pelos seus ombros?
- Solta ele, queridinha. – disse, puxando pelo outro braço e o abraçando de lado.
- Perdão, ele não me disse que tinha namorada. – ela deu um passo para trás e esbarrou numa mesa, envergonhada.
Olhei para ela enviesado. – Mas ele tem sim, só bebeu demais. Cai fora. – rosnei para ela, que saiu o mais rápido possível da minha frente.
Mentalmente me bati. A menina não tinha feito nada demais e eu não era a namorada dele para estar pedindo satisfações, mas aquilo havia me incomodado.
- Então a gente está namorando, namorada? – ironizou ao alcançarmos o balcão.
- Não enche. – cruzei os braços. – Você me ignorou a noite toda e eu ainda não entendi o porquê.
, que já estava com uma latinha de cerveja na mão e rindo feito um idiota se virou para mim. – Não entendeu? – ele riu mais, incrédulo dessa vez, e amassou o alumínio nas mãos.
- Não, porra! – berrei perante aquela gozação ridícula.
Ele girou o banco do bar para me analisar, procurando algo que não sabia o que era. Arregalei os olhos como quem pergunta “E então?” e ele só deu de ombros e se virou para pegar mais um copo do que tinha bebido antes de tocar. Roger apareceu a tempo de dar o primeiro gole e segurou sua mão.
- Cara, você já bebeu dois desses e misturou com cerveja. Melhor parar antes que dê merda. – avisou a , enfatizando com acenos de cabeça.
Sabe o que fez? Afastou a mão de Roger e bebeu tudo em dois goles.
- Eu aguento, Roger. Não se preocupe comigo.
- Depois não diz que não avisei. – Roger saiu com as mãos para o alto como se pedindo aos céus que desse a juízo.
Amém. Pensei comigo. – Acho que foi o álcool, Samzinha. – ele disse, brincando com meu nariz. – Não faz essa cara pro , tampinha. – ele riu embolado e eu ri junto de sua bebedeira. Eu disse que não estava longe.
- Você é o maior idiota de todos os tempos. – balancei a cabeça sem acreditar que a raiva tinha passado só com a risada besta dele.
- Mas me ama você que eu sei, gatinha. – ele apontou o dedo para mim e sacudiu-o freneticamente na minha frente com um sorriso insano. Bêbados, o que fazer com eles e sua sintaxe errada?
- Vamos, garotão. Tem muita gente ali que quer te cumprimentar. – segurei pelo braço e ele escorregou do banco, quase derrubando um garçom com uma bandeja de comida. - Exagerou hoje, hein, . – dei uma bronca nele para depois pedir desculpas ao cara.
- Eu estou perfeitamente bem, vê só. – disse dançou uns passinhos esquisitos e bateu o pé no banco do bar, caindo. – Ai, porra! – ele disse segurando o pé no lugar que bateu e riu logo em seguida.
Meu Deus como é besta. – Levanta, vai, menino.
- Aaaaah, não, . Vem pro chão comigo, vem. – ele puxou meu braço com força e eu me desequilibrei.
Respirei fundo tentando me acalmar para não bater nele ali. - Deixe de ser otário, . Levanta daí. – foi minha vez de puxar seu corpo mole. se levantou meio verde e eu me assustei.
- Está tudo bem?
- , está tudo... – ele pôs a mão na frente da boca como se fosse vomitar e desistiu. – rodando. A gente pode ir lá fora? Está faltando ar. – pediu tentando se equilibrar no balcão do bar.
Passei seus braços pelos meus ombros. Deus, como ele poderia ser tão pesado se nem era gordo? Músculos. Está aí algo que havia aprimorado nos últimos anos. – O que você anda comendo? Barra de ferro? Você está muito pesado pro meu gosto.
Ele tentou rir, mas a julgar pelo tom de seu rosto, só resultou em mais enjoo, por isso tratei de arrastar seu corpo para fora dali. O barulho lá fora, impressionantemente, conseguia ser maior que dentro do Pulso e parecia não se importar. Achei melhor sentá-lo no meio fio para ele se estabilizar e me afastar para que ele pudesse respirar, porém agarrou minha perna quando eu tentei fazê-lo.
- Não vai, Samzinha. Fica aqui comigo para sempre. Eu não estou legal. – pediu me olhando de baixo para cima com uma careta e não pude deixar de rir com o jeito como aquela frase era ambígua.
Ficar ali do seu lado no chão ou ficar na cidade? Pelo estado de embriaguez de era mais provável a primeira. Meu amigo notou a minha demora para sentar e puxou meu braço para que o fizesse. Obedeci com cuidado para não rasgar o vestido nem mostrar minha calcinha e afins. Só quando estava com a bunda na calçada percebi o quanto meus pés doíam com aquele salto e os tirei soltando um urro de vitória quando estava, finalmente, descalça.
- Nossa, , você é bastante folgada. – ele brincou e fez uma careta para mim. Se não fosse pelo peso e trabalho que me estava dando, poderia continuar bêbado e inocente. Retribui a careta e ouvi sua risada esbaforida. Não demorou mais que um minuto para também ouvir o som do vômito próximo a seus pés. Ótima hora para ficar descalça, gênia.
Eca, eca, eca. - Acho melhor te levar em casa antes que sua mãe te veja desse jeito, vamos. – pus-me de pé sem conseguir olhar para os tênis dele cheios de restos de comida e , que ainda limpava o rosto com a manga do casaco, interveio.
- Mamãe não está em casa, lalalalala. – cantou , que, apesar do vômito, não tinha perdido o senso de humor. Tocante. – Me leva na sua, vaaaai. A minha é tão solitária sem você para dormir comigo. – arrastou a voz pidona que me fez sorrir em meio à nojeira que tinha presenciado.
Como explicar para um bêbado que não o levaria para minha casa, porque ela já não era mais minha era tão difícil que não o fiz. Em vez disso, acenei para um dos taxistas que costumava ficar perto do bar para nos levarmos para casa de e disse a esse último que iríamos para a minha. Ele pareceu feliz nos primeiros momentos e concordou sem desconfiar, porém adormeceu algumas ruas mais perto de sua casa.
Ao modo em que o motorista pedia as direções do apartamento de , eu velava o sono de , acariciando seu cabelo e ouvindo sua respiração tranquila. Só de lembrar que não o teria mais tão próximo de mim sentia os olhos começarem a arder. Talvez pareça ridículo e pouco, mas tinha sido um grande amigo esse tempo todo e havia me dado uma vida mais leve. Havia me ensinado que a dividir os pesos da ignorância e da tristeza com ele e me mostrado o caminho para a amizade verdadeira. Havia me tirado da frieza de meus pais e me esquentado com seu amor. Ok, isso foi gay, porém era a verdade. Era difícil perder aquilo depois de tantos anos tentando manter erguido. Anos escapando de quaisquer sentimentos adversos a nós dois. E ali estava eu praticamente dizendo adeus.
Ah, a vida. Como ela era filha da puta.
- É aí nesse prédio, moço. – ele parou próximo a portaria. Olhei o taxímetro e procurei pelo dinheiro, discretamente, no sutiã.
Não tinha dinheiro nem para a metade do que rodava no taxímetro, já que tinha gastado para ir até o Pulso boa parte do dinheiro em espécie que tinha. Dei um sorrisinho desconfortável para o taxista que me olhava impaciente e puxei a carteira do bolso de , tirando uma nota de vinte reais e entregando a ele. Sacudi para que ele despertasse e me ajudasse com seu peso, mas ele nem se mexia direito, ficava balbuciando umas onomatopeias estranhas e voltava a dormir.
- Puta que pariu, . – murmurei comigo ao carregá-lo para fora do carro.
O porteiro veio a meu socorro e transpassou o outro braço de pelos seus ombros. Agradeci mentalmente por não ter me incomodado com perguntas que preferia não responder sobre o estado de meu amigo. À porta do apartamento de , pedi ao homem que não comentasse com os pais de sobre esse incidente e o garanti que estava tudo bem. Ele, por sua vez, limitou-se a concordar e me lançou um olhar preocupado antes de descer pelo elevador.
Sem o bom moço do porteiro, eu mal suportava o peso de . Ele pendia para o lado que estava sem apoio e por um triz não cai por completo quando procurava a chave de casa em seu bolso da calça. A maioria das pessoas se sentiria envergonhada de colocar a mão no bolso da frente de um cara, mesmo ele sendo seu melhor amigo e às vezes me ego inflava por não me sentir assim. Era mais fácil agir se não houvesse malícia por trás de cada ato. Além do mais, estava dormindo ali, não iria nem se lembrar de fazer gozação no dia seguinte.
Arrastei-o até o banheiro para jogá-lo debaixo do chuveiro. A água fria o acordou bem a tempo de eu fechar o vidro do box antes que ele me puxasse para lá também.
- ! Isso está um gelo, como você tem coragem de me jogar aqui dentro, sua veada! – ele bateu no vidro que nos separava e choramingou por não conseguir fugir da água do chuveiro.
- Deixa de ser moça, . É só um banho e você está podre a vômito. Dê graças a Deus por eu estar aqui para te ajudar com isso. – dei um esporro naquele bebum teimoso. me mostrou a língua como uma criança mimada e começou a tirar a roupa.
- Hm, o que você pensa que está fazendo? – vi-me perguntando ao encarar o casaco e camisa dele no chão.
- Tomando o banho que a tampinha mandou, ué. – ele deu de ombros. E que ombros, hein. – Ou seriam duas tampinhas? , tem duas de você, olha!
Nem bêbado e sujo de vômito ele deixava de ser bonito. Quem eu estava querendo enganar? Ele não tinha como deixar de ser sensual, porcaria. Se quando nos conhecemos mesmo com os músculos pouco definidos já tinha uma beleza arrasadora, agora indo a academia com frequência ele estava um pedaço de mau caminho. Apesar de estar parecendo uma velhinha de oitenta anos com essas gírias, eram poucas as palavras que poderiam descrever a minha vontade de tocar cada centímetro de seu tórax.
Fui acordada de meus devaneios pelo barulho da fivela do cinto de e suspirei... Espera, fivela de cinto?
- Para por aí, garotão. Você definitivamente não vai ficar nu na minha frente. Intimidade tem limites, sabia? – chamei sua atenção e ele parou o que estava fazendo.
Ele fez bico e sorriu malicioso. – Mas era você quem estava me encarando como se fosse me comer, Samzinha.
- Mas o quê... – senti minhas bochechas esquentarem. – Shiu, cala a boca e vai se lavando ai que eu vou procurar a aspirina para você. – ele riu desdenhoso. Estava bastante sóbrio para o meu gosto.
Abri o armário do banheiro com as mãos espalmadas debaixo das toalhas e pude sentir o formato dos comprimidos na cartela. Peguei-os e fui para o quarto ainda sem conseguir olhar para depois de ele ter me flagrado dando uma checada no seu corpo. Estava tão ocupada, agachada desarrumando as fronhas que não notei quando chegou perto de mim.
- Você estava certa quando ao vestido, . Não existe ninguém mais sexy que você usando-o. – soprou no meu ouvido e eu senti um leve arrepio percorrer minha espinha. Não sabia se era mais uma brincadeira ou se estava tentando somente me provocar. Se era a segunda opção, estava conseguindo com uma eficiência memorável.
Ri, sem graça e fiquei de frente para ele. – Valeu, . Já escovou os dentes?
Ele fez que sim com a cabeça e me aproximou com uma mão na minha cintura e a outra no meu rosto. – Veja se está cheiroso. – enfim, deixou-nos a um suspiro de distância.
Seca, hormônios, tristeza é o caralho. Seja lá quais fossem os motivos de não ter beijado meu melhor amigo ainda, eles pareciam ter desaparecido e levado minha sanidade junto, porque quem quebrou os centímetros que nos separavam não foi . Fui eu.
Aquele beijo era diferente dos outros. Não por algo de errado nele, mas por ter algo de muito bom que eu não sabia definir. Sabia que não eram apenas os lábios macios e a língua incrivelmente habilidosa de , muito menos seu recém adquirido hálito de hortelã – graças aos céus ele não tinha brincado quanto a isso. Vômito não está na minha lista de melhores sabores do universo
Era o sentimento.
Naquele embrenhado de mãos e sensações, havia emoções. Havia paixão. Havia amor.
Aquela epifania me assustou por alguns instantes e me fez abrir os olhos durante o beijo por um segundo. A feição de era serena, quase como que liberta. Ele não havia percebido meus olhos abertos, muito menos se importado com o fato de estarmos ali juntos. Tudo bem, ele continuava bêbado, mas depois de algum tempo com as bocas coladas ele deveria ter percebido quem estava beijando, correto? Errado. prolongava as carícias ao longo de minha coluna e segurava até um riso.
Recusava-me a pensar no que aquilo poderia significar. Recusava-me a sequer pensar enquanto mantinha aquele contato similar ao magnético de nossos lábios. O tanto que durasse seria o tanto que eu seria feliz. Era minha despedida ou eu queria que fosse.
me deitou em sua cama e acabou desgrudando nossas bocas por segundos. – . – arrastou as letras de meu nome.
- O quê? – resmunguei, protestando pelo fim prematuro daquele toque.
- Eu te amo. – disparou, com uma das mãos mexendo nos fios de meu cabelo.
Estatelei processando aquela frase da maneira que me convinha no momento de necessidade de seu beijo. – Hm, também te amo, . – balbuciei tentando trazê-lo para perto novamente. Ele se esquivou.
- Não só desse jeito, . – falou como se parecesse óbvio e pensei que realmente estivesse sóbrio. – Eu te amo mais que como uma amiga desde que te ouvi falar de cinema e seus olhos brilharam. – confessou com a voz arrastada de sono e de bebedeira. – Mas você é muito lerda, porque toda que eu pegava o violão e – fez os movimentos como se tivesse uma guitarra invisível. – você não ligava os pontos.
Congelei. Ah merda. – Vai mais para lá para eu te explicar como foi, vai. – pediu e não conseguia me mexer, sentou-se no espaço que havia.
Eu permaneci quieta durante seu discurso enrolado e cheio de peripécias e gesticulação na cama. Nem sequer metade dele entrou na minha cabeça. Era bem simples: primeiro, São Paulo estava me esperando; segundo, aquela confissão estava me assustando; terceiro, que porra de terceiro! Estava à beira de enlouquecer desde o momento em que ele abriu o bico para falar que me... Ai, caramba!
Meu prêmio de consolação foi entender o motivo de não ter olhado para mim a noite inteira. A bebedeira eu meio que sabia que era por raiva. tem essa mania de afogar as mágoas em pinga, não aprovo, mas tudo bem. O beijo agora me parecia muito mais que troque de saliva qualquer. Não que eu não soubesse que não era apenas isso, porém a significação por detrás era muito maior do que eu esperava.
- Você não está prestando atenção, Samzinha. Por que você não olha para mim? – perguntou , tirando-me dos meus pensamentos. – Você não gosta de mim, eu sei. – abaixou a cabeça, triste.
Eu não sabia o que dizer. Gostava ou não gostava? Passara esse tempo de amizade empurrando os sentimentos para o fundo de meu coração, não tinha ideia do que responder.
Por hora, não precisei. Os primeiros raios de sol começavam a surgir no horizonte, alertando-me que era hora de voltar. Ainda havia muita coisa para arrumar e fazer antes de dizer adeus para o Rio. Embora também houvesse muitos parênteses abertos na minha relação com agora, eu não podia fechá-los. Eu não tinha força para fechá-los. Nem se eu quisesse eu saberia como fazê-lo. Não sabia se o amava dessa maneira, mas com certeza o amava de outras e não faria mal a o único cara que me fez bem.
- Tenho que ir. – pus-me de pé rapidamente, pegando minhas sandálias que haviam sido jogadas em cantos opostos do quarto.
- Não, espera! – se levantou cambaleante e segurou meu braço antes que eu pudesse sair do quarto. A lembrança de meu primeiro dia aqui me fez parar. – Não vai, por favor. – ele pediu com um semblante triste. – Fica aqui comigo, não me deixa sozinho.
Meu rosto queimava com as lágrimas que estavam por vir. Se era difícil deixar meu melhor amigo sem chorar, após sua declaração se tornara quase impossível.
- Vem, vamos dormir. – segurei sua mão, derrotada, e sorriu sincero. Fomos juntos até sua cama de solteiro, espremendo nossos corpos no estreito espaço acolchoado. Era o mínimo que eu poderia fazer por ele antes de abandoná-lo para morar em São Paulo sem uma resposta para seus sentimentos.
me abraçou por trás e agradeceu por não ter ido embora. Não respondi e ele continuou. – Não tem problema não responder o que eu disse. Faria qualquer coisa pra você gostar de mim, tampinha.
Sorri discretamente, imaginando se ele não estaria fazendo o mesmo e desejei poder dormir junto com ele até o amanhecer. Desejei saber o que aconteceria pela manhã, se ele se lembrasse do que havíamos vivido e dito. Eu sabia que não podia. Assim que seu abraço folgou, peguei no chão a cartela de remédios que havia derrubado durante o beijo e pus no criado mudo com um recado no bloco de notas. “Tente não se matar enquanto eu estiver longe, cabeção. Xx .”
Ainda que não soubesse o quanto ele lembraria daquela noite, queria que se lembrasse de nós como bons amigos. Queria que visse que estava tudo bem, ou pelo menos, que deveria estar. Se não iria fazê-lo feliz, gostaria que ele fosse sem mim. Dei um beijo em sua testa e peguei minhas sandálias no chão, saindo na ponta dos pés com a mente cheia de perguntas e os olhos cheios de lágrimas.
...
O sofá já estava cheio de Kleenex quando dei por mim. Depois de sair da casa de , tinha ido a de meus pais e feito as malas. Sai antes das seis da manhã sem que eles soubessem e comprei minha passagem para o primeiro ônibus com o dinheiro que tinha guardado num porquinho em casa e saquei mais cédulas do cartão que meu pai me dera antes de subir as escadas do veículo. Eles iriam se livrar de mim para a vida toda, tinham que me deixar levar pelo menos o dinheiro.
havia me buscado na rodoviária e me deixado ficar em sua casa. Tínhamos combinado que conseguiria um emprego na locadora mais próxima e poderia terminar o ensino médio na escola em que ela estagiava, afinal eu estava a um semestre do vestibular. , que estava se formando em psicologia, pareceu não ligar muito para meus choros fora de hora e só ficava preocupada com o motivo deles. Contara-lhe sobre e minha última noite no Rio no caminho para sua casa. Ela insistia que eu falasse com ele, nem que fosse para ajeitar a bagunça que havia deixado lá, mas mesmo após comprar meu chip de São Paulo, não tivera coragem suficiente para enviar uma mensagem.
Até então.
A única maneira de selar meus problemas do Rio de Janeiro era conversando com , buscando um meio de continuarmos amigos ou simplesmente acabar com essa agonia que estávamos – eu esperava que ele também estivesse. Com essas ideias, peguei o celular e digitei uma mensagem para . Não esperava que ele estivesse acordado e me surpreendi quando meu celular vibrou em cima de minha barriga.
Pensei que iria esquecer de mim, tampinha.
Sorri saudosa.
Acho que isso é impossível, novinho.
Assim espero, porque não sei se consigo fazer isso com você. Amigos?
Meu queixo caiu com aquela. Ele não havia esquecido, porém estava pondo seus sentimentos de lado para continuar o que havia dado certo para nós dois nos anos anteriores. Entendia os seus motivos para preferir desistir de algo a mais entre nós, mas não podia deixar de ficar decepcionada, principalmente agora que sabia o que sentia por ele. Rodei entre os dedos o chaveiro com o rolo de filme para lá e para cá, como se fosse ele quem respondesse por mim. Eu não iria desistir de .
Os melhores.
Parte 3: Depois de você os outros são os outros e só.
Quatro anos depois, aquelas mensagens tinham desaparecido das caixas de entrada de e . Eles mantiveram o contato pelos quatro primeiros meses que se seguiram, mas as frequentes brigas de ciúme injustificável de ambas as partes e o foco nas vidas profissionais foram mais fortes que os quilômetros de estrada que os mantinham longe. Tão logo as ligações cessaram, os torpedos se foram, seguidos do contato pelas redes sociais. Até se tornarem invisíveis um para o outro.
Os sentimentos, porém, não haviam sumido por completo. Existiam dias em que não largava seu chaveiro. Mantinha-o pendurado no criado mudo do sofá em que dormia e quando ouvia música nacional era coberta de memórias dos bons momentos ao lado de seu . Sim, ele era seu. Ela talvez não soubesse disso, mas ele não havia deixado de ser dela.
tinha experimentado bares e mulheres dos tipos mais variados nos anos que sucederam à fuga de . Tentara se recuperar por completo da garota maluca que revirou sua vida somente para descobrir que era impossível esquecê-la. Quando pararam de chegar as mensagens, ele enlouqueceu. Saia sem rumo pela noite e voltava na manhã do outro dia. Sua mãe sofria com a mudança drástica do filho, mas tentava entender e, com o tempo, conseguiu fazê-lo voltar ao normal. Pelo menos por fora, pois por dentro não se curara completamente de sua paixão adolescente.
São Paulo, 2016 – Universidade de São Paulo. .
Estava debaixo de uma árvore no campus da universidade foleando as páginas do livro de Woody Allen esperando a hora para a próxima aula quando tive a leitura interrompida por um pigarro.
- Olá, boa tarde. – cumprimentou-me um garoto mais ou menos da minha idade com um alargador enorme na orelha. – Você faz cinema, não estou certo?
Se minha câmera de vídeo não estivesse próxima a mim eu diria que ele estava me perseguindo. Como estava e bem exposta, não consegui evitar o olhar de “como você é idiota, cara”. Assenti mesmo assim, fazia cinema há três anos e meio.
- Olha, eu sou aluno de música daqui da USP e o coordenador nos pediu para entregar esses panfletos aos que fizessem seu curso ou o meu. – ele me entregou um panfleto. – Você poderia me ajudar? Eu não conheço muitos alunos de cinema e seria muito legal se você pudesse.
Dei de ombros e peguei mais daqueles papéis e ele sorriu agradecido. Juntei meu material rapidamente e comecei a entregar aos rostos conhecidos do meu curso. Foi quando uma menina do terceiro período perguntou se eu ia, que percebi não havia nem lido sobre o que eram os avisos.
“XXIII FEIRA DE CINEMA E MÚSICA DE SÃO PAULO”
Diversas emoções passaram por minha cabeça. Surpresa, tristeza, saudade, alegria. Todavia, a que ficou foi esperança. Era a primeira vez em três anos que ouvia falar desse encontro, ele ter aparecido agora me parecia um sinal do destino. Guardei um panfleto no bolso da calça e corri para entregar os outros. Com ou sem sinal, aquela seria uma feira memorável.
Rio de Janeiro, 2016 – Quarto do . .
- Filho, põe essas cuecas na bolsa. – minha mãe colocou as peças em cima da cama. – Você está levando quantas bermudas?
- Três, mãe. – disse, colocando as cuecas na mala e procurando uma calça jeans limpa.
- Três, ?! Pelo amor de Deus, , coloca mais duas dentro. – ela reclamou, procurando bermudas nas minhas gavetas. Limitei-me a revirar os olhos. Eu iria passar quatro dias em São Paulo, não um mês. Não precisava de alarde. – , cadê suas camisas polo? Você não está pensando que eu vou deixar meu filhinho viajar com esses trapos de banda que você usa por aqui, está?
Não adiantava lutar contra Dona Vânia. Se ela queria dez casacos, eu os teria na bolsa mesmo que fosse para uma praia mais quente do Brasil.
- Já que a senhora está tão chata com essa porcaria de mala, por que não termina de arrumá-la? – alfinetei rindo e senti algum tecido batendo contra minha cabeça.
- Você me respeite, hein, garoto. Só por que vai tocar em uma feira em outro estado está pensando que pode mandar em mim, é? – ela fingiu dar uma bronca, mas seu sorriso discreto entregava a brincadeira. – Venha aqui, vem menino teimoso. – puxou-me pela cabeça e me abraçou.
A doçura de minha mãe era visível mesmo que ela tentasse se mostrar durona. – Promete se comportar?
- Hm... Não. – disse, travesso e ela me deu um tapa no braço. – Está bem, vou tentar.
Ficamos unidos naquele chamego por um bom tempo. Seria a terceira vez que viajava para tocar. Na primeira, minha mãe ficou dois dias sem dormir esperando que eu voltasse. Quando cheguei, ela estava dormindo no sofá com uma revista no colo e estava tão cansada que nem notou que eu a carregara até a cama. Na segunda, tinha sido diferente, porque ela ligava e passava mensagem quatro vezes ao dia, perguntando se estava tudo bem. Pelo menos ela dormia, o que era um avanço. Agora era a terceira vez e eu iria para São Paulo para um evento maior. Ela estava uma pilha de nervos com essa apresentação e olha que quem ia estar no palco era eu.
- ?
- Sim?
- Você vai encontrar a lá?
Soltei o ar que não havia notado que estava segurando. Até tinha pensado em ver a tampinha – se é que podia chamá-la assim –, porém tão rápido veio como se foi das minhas ideias. Não nos falávamos há anos e mesmo que não tivesse esquecido dela, não sabia se ela se lembrava de mim. Esperava que não, mas não podia ter certeza.
- Não, mãe. Provavelmente, não. – dei um beijo no topo de sua cabeça e me soltei. – Acho que deveríamos ir. O ônibus sai em uma hora.
Ela desistiu de dizer algo e concordou, puxando-me pelo braço e repassando as instruções de sempre. É, a vida muda, mas Dona Vânia não.
São Paulo, três dias depois – Universidade de São Paulo.
Três dias haviam se passado desde que tive em minhas mãos o panfleto da feira de cinema – e música, não podia me esquecer da música. – e nada além disso passava pela minha cabeça. Com minha tendência natural ao desastre potencializada com a desatenção recém adquirida, já havia me batido pelos corredores da universidade com gente que nem sabia que estudava nela e derrubado as lixeiras do restaurante universitário. Antigamente eu até sentiria vergonha por isso e teria de ouvir piadinhas de meus colegas de classe. Hoje, porém, eu nem ligava, saia saltitando e rindo das minhas besteiras junto com os outros alunos.
- Bom, eu estava pensando em tocar... – ouvi alguém dizer dentro da classe e entrei assoviando, sem olhar quem estava lecionando.
Joguei minha bolsa em cima da cadeira mais próxima e procurei pelo zíper para guardar o IPod tranquilamente. Ouvia o cochicho de algumas pessoas próximas a mim, mas não liguei. Era normal conversarem antes do professor chegar, só não entendia o motivo dos sussurros. Uma mão tocou meu ombro e eu me virei.
O garoto do alargador olhava para mim com um olhar divertido. Ele seria até bonitinho se não fosse novo demais para mim. Ah, ele está falando comigo. Tirei um fone para ouvi-lo.
- ...você entrou aqui nem aí para o que estava acontecendo ao redor então achei melhor vir falar com você. – ele disse.
- Quê? – perguntei confusa.
Seu sorriso se alargou. – Você meio que entrou na sala errada.
Meus olhos passaram pela classe de rostos irreconhecíveis. Como eu havia parado no bloco de música sem nem perceber? – Foi mal, cara. – corei violentamente. – Acho que peguei, er, a curva errada por ali. – apontei para a porta e ele deu uma risada.
- Sem problemas.
- Acho que já vou, é. – caminhei até a porta decidida a sair o mais depressa possível dali e fui impedida por uma mão em meu braço.
- Espera! – girei meus calcanhares bufando dessa vez. Aquilo de contato de pele estava ficando um tanto quanto irritante. – Conheço você de algum lugar?
Olhei bem para o rosto do homem barbudo a minha frente. Seu cabelo estava bagunçado de forma charmosa e a camisa preta com o símbolo da Tropicália era justa nos seus braços musculosos. A mão que me segurava firme era máscula e apertava o suficiente para me manter ali sem me machucar. Aqueles olhos não me eram desconhecidos, nem aquele tênis azul. Na verdade, pareciam muito com os do...
- ? – perguntei, atônita.
Ele sorriu satisfeito. – Oi .
Há dois dias, quando desci do ônibus em São Paulo, eu pensava apenas no show que faria na feira. Eu sei, sou muito responsável, mas, porra, era um passo grande na minha carreira. Repassei o repertório do show o máximo que pude e acabei dormindo debaixo do violão.
No outro dia pela manhã, o setor administrativo do evento me enviou um e-mail, pedindo que, assim com os outros participantes fizeram durante a semana, eu fosse à USP conversar com os alunos de música sobre minha trajetória pelos palcos e também para divulgar a feira. Disse a eles que o melhor dia para mim era a quinta-feira, eles concordaram que não havia problema e mandaram as instruções para chegar ao local.
Tão rápido passou o primeiro dia, foi-se o segundo. Como não conhecia a cidade e estava sozinho, preferi me resguardar para o show da sexta-feira e passei a tarde no hotel tocando novamente as letras das músicas que havia escolhido. Dormi poucos minutos depois das oito, após uma conversa longa com minha mãe que insistia em encher meu saco para saber os mínimos detalhes dos meus dias. Oh, mulher difícil.
Quinta chegou e eu estava no metrô a caminho da universidade. Não sabia como era o campus de São Paulo, mas duvidava muito que superasse o da UFRJ, onde cursava música. Sim, eu não havia dado uma de vida louca e esquecido dos estudos. Olha que eu quis, hein, mas dona Vânia e meu pai não permitiram minha felicidade plena. Disseram que não tinham pagado tanta escola para eu acabar solto no mundo que nem drogado. No fim, eu estava curtindo o curso e os colegas de turma. Havíamos até experimentado tocar juntos uma vez, foi bem legal.
Achar o bloco de música não fora algo tão difícil. Era próximo ao das outras artes – cinema, cênicas e etecetera. – e possuía uma placa com o símbolo do curso à frente do prédio. Entrei e procurei pelo auditório que haviam me designado no e-mail.
Gradativamente a sala ia enchendo de alunos mais novos que eu. Era até engraçado a forma como eles pareciam pequenos e eu o idoso. Diferente de quando era mais novo e me zoava por ter nascido depois dela. Aquela tampinha. Sempre achava um jeito de me lembrar que existia. Balancei a cabeça para me livrar daquelas memórias, não era hora para saudades.
- Bom dia, galera. – cumprimentei minha plateia do dia, que respondeu de prontidão.
- E aí, cara, beleza? – um garoto de alargador que estava a menos de um metro de mim respondeu.
- Queria começar com algumas perguntas, o que acham? – alguns murmúrios assentindo percorreram a sala. – Podem mandar.
O garoto de alargador levantou a mão e eu acenei com a cabeça para que começasse. – Ah cara, o que você está pensando em tocar na sexta? – seus colegas riram e não pude deixar de acompanha-los. Aquele era dos meus, indo direto ao ponto.
- Bom, eu estava pensando em tocar... – fui interrompido pelo baque da porta na parede.
Uma garota bonita entrou na sala assoviando e jogou a bolsa na cadeira vaga mais próxima. Ela era mais velha, parecia ter a minha idade e seus cabelos estavam pouco abaixo dos ombros. Ela procurava algo na bolsa quando o do alargador foi conversar com ela. Ela não tirou os fones até perceber que ele falava diretamente a ela, o que era engraçado, porque ele estava na metade da frase quando ela se deu por vencida soltou um. Lembrava-me de e sua falta de atenção com o mundo ao redor.
- Quê?
- Você meio que entrou na sala errada. – o garoto disse e seu tom era divertido.
Ela corou violentamente novamente trazendo lembranças de . Aquela garota era sua sósia, só podia. – Foi mal, cara. Acho que peguei, er, curva errada por ali. – apontou para a porta.
- Sem problemas.
Ela se abaixou para pegar a bolsa e notei um livro de Woody Allen no meio de seus pertences. Woody Allen, eu conhecia aquele cara de algum lugar. Não era um diretor famoso de cinema? Bingo!
Antes que percebesse o que estava fazendo, corri até a porta e segurei seu braço, notando uma leve irritação dela pelo ato. – Espera! Conheço você de algum lugar? – Se eu a achava parecida com , tive minhas suspeitas confirmadas no instante em que nossos olhares se encontraram.
Ela franziu a sobrancelha e me analisou da cabeça aos pés e tudo de novo. A dúvida se esvaia ao pouco de seus olhos assim como a ruga de sua testa.
- ? – perguntou, incrédula.
Sorri satisfeito de tê-la reconhecido após esses anos. – Oi . Silêncio.
Ela colocou as mãos nos bolsos. – Está nervosinha, ? – brinquei para quebrar o gelo e ela sorriu.
- A aparência muda, mas o resto é o mesmo, pelo jeito. – foi sua vez de descontrair e eu a acompanhei com uma risada.
- Nunca. – sorri de volta.
A vinda a São Paulo não me dera esperanças de rever após nosso distanciamento durante tempo em que ela esteve aqui. Eu sabia, claro, que sua opção de curso era cinema. Contudo, afastamo-nos no período que antecedia o vestibular, de maneira que não havia chegado a saber de sua aprovação. Muito menos na USP. Encontrá-la aqui era uma surpresa tentadora. Afinal, era a primeira vez que a via sóbria depois de dizer que a amava. Quatro anos atrás.
Alguém tossiu atrás de mim. – Vocês se conhecem? – perguntou o garoto do alargador. Esse cara já estava me irritando.
- Mais do que você possa imaginar. – não fui eu quem respondi, fora . Ela também estava puta com a interrupção de nosso projeto de conversa.
Segurei o riso ao ver a expressão de constrangimento do menino. Essa era a minha . – Será que vocês podiam resolver isso depois? Estamos em aula. Teoricamente.
Olhamos um para o outro e sorrimos desconcertados. Nossa conversa estava sendo observada pelos presentes. Bando de curiosos. – Mais tarde no restaurante universitário, pode ser? – marquei com ela mesmo sem saber onde ficava.
- Eu passo no bloco para te pegar. – ela piscou sorrindo, ajeitou a alça da bolsa e saiu da sala. A filha da mãe se lembrava até quando eu estava mentindo.
Seria um dia interessante.
.
Puta que pariu.
Caso eu algum dia pensasse em reencontrar – obviamente eu já o feito. –, não fazia ideia do que se passaria na minha cabeça. Vivendo agora, puta que pariu me parecia bastante adequado.
Bastou a porta fechar atrás de mim para eu sair correndo para o bloco de cinema, com a certeza de que não daria atenção a nada que o professor lecionasse. Quem se importava com o assunto? estava na cidade. Na universidade. Na minha vida. Não há palavrões suficientes para expressar a sensação de rever , que, por mais clichê que parecesse, era meu grande amor. Meloso e real, impressionante.
As aulas daquele dia passaram voando. Tão rápido que demorei para perceber que tinha chegado ao fim e era hora de encontrar . Tão rápido que em cinco minutos me vi em frente ao bloco de música. Tão rápido que já tinha me abraçado. Tão rápido que... ah, foda-se. Aquele abraço poderia demorar a vida inteira que eu não me importaria.
- Oi tampinha. – ele beijou minha testa. Sorri ao ouvir meu antigo apelido odiado.
- Oi novinho. – provoquei sorrindo. – Senti saudades.
Não vi, mas tive a sensação que ele também sorria. – Eu também, .
- O que você faz aqui em São Paulo? – perguntei ao me soltar relutante daquele aperto confortável.
Durante a explicação de sobre os últimos quatro anos de sua carreira, fomos caminhando até o restaurante da universidade. Não era o lugar com a melhor comida com mundo, porém era o mais próximo com bancos para conversarmos. contava como fora encontrado pelos organizadores da feira em um de seus shows no Rio e eu dava risada de sua forma de falar gesticulando animado sobre a história. Nem parecia que tínhamos ficando separados tanto tempo. Pelo contrário, não estranharia se ele me chamasse para ir ao Pulso hoje à noite.
- Agora me conte sobre sua vida. Como tem sido seus dias na grande metrópole? – perguntou, com um sorriso no rosto. Há alguns anos não imaginaria uma maneira de fazê-lo mais bonito, mas aparentemente a vida encontrou. Como encontrou. Reinventaram a ideia de beleza no nascimento de , nossa.
- Já foram mais agitados. No começo, eu tinha que trabalhar numa locadora e estudar. Você mais que ninguém sabe como sou péssima com compromissos, para mesclá-los foi quase impossível. – fiz uma careta e ele riu, não sei se dela ou relembrando meus momentos de crise de desorganização. – Hoje, porém, está tudo mais fácil. Os anos de psicologia de me ensinaram a enfrentar essa loucura que foi fugir de casa aos dezessete.
Ele gargalhou. – É, aposto que o pedófilo ajudou muito com o jogo de sedução.
- Ela não é um “pedófilo”. – mostrei a língua. Ele continuava um otário. – Ei, você devia conhece-la.
- Não sei, ...
- Ah, vamos! Eu sei que você não tem porcaria nenhuma para fazer hoje e é nosso reencontro em anos. Deixa de ser chato e venha conhecer meu “lar, doce lar”. – foi a vez dele de fazer uma careta, preguiçoso. – Ah, vamos, vamos, vamos, vamos, vamos. – comecei a sacudi-lo.
- Ok, ok! – jogou os braços para o ar em sinal de trégua. – Eu vou. – gritei vivas e ele começou a rir. – Mas vai ter que rolar rango, porque estou com um vazio depressivo na barriga. – passou a mão na barriga, enfatizando e eu assenti.
Tentei não encarar demais os músculos do peitoral de , mas não foi possível e fui pega por ele enquanto o fazia. levantou meu olhar com a mão e piscou, sedutor. Eu, com minhas maravilhosas habilidades em lidar com garotos, senti meu rosto enrubescer sem conseguir pronunciar uma sílaba. estava satisfeito com isso. Pigarreei, caindo em mim.
- Claro. O melhor que você já provou. – pisquei e sorri de volta, puxando sua mão a caminho da saída da USP.
.
O apartamento de e era menor do que eu imaginara. Claramente comprado para um inquilino, parecia um cubículo tumultuado com as tralhas das duas. O único quarto da casa era ocupado por , que, como dona do local, mantinha-o fechado. explicara que era uma política entre as duas para o caso de trazerem homens para a casa garantir que não se fizesse uso da cama alheia.
O quadro mental de e outro cara em uma cama por si só me fazia trincar os dentes, de modo que quando falou do código para saber se a outra estava transando com alguém o ódio foi tanto que quebrei o copo de água que usava. Por sorte o corte do vidro não foi profundo e me rendeu a chance de dar uma nova checada no corpo de enquanto ela fazia um curativo eficaz.
com quinze anos já era bastante desenvolvida para a idade, se quer saber, mas ela com vinte e um era a visão mais próxima do paraíso que eu podia ter. Antigamente até tentava segurar os pensamentos safados de fluírem. Tentava, para respeitar os limites de nossa amizade, e já considerava uma vitória se conseguia remediá-los até o banho da noite. Hoje, com o esfriamento de nossa velha relação, digamos que agradeço por estar de calça jeans senão teria passado por uns bons vexames.
- Anda, conta para mim de sua mãe e de seu pai que eu vou fazendo a lasanha. – pediu, organizando a massa da lasanha na travessa.
- Não tem muito o que contar. – sorri com a lembrança de minha mãe, pondo-me a fuçar os objetos da sala, vulgo quarto da . – Dona Vânia continua a figura de sempre. Chegou a me perguntar se eu te veria aqui.
- Foi? – berrou da cozinha, animada com o fato de minha mãe não a ter esquecido.
- Foi, mas disse que seria difícil de acontecer. Assim que souber que te vi vai me fazer ficar uma hora no telefone contando sobre sua vida aqui. – brinquei, cutucando o abajur de franjas que devia ter lá seus quarenta anos ao lado do sofá. Era a cara de querer trazer as décadas passadas para casa. – Meu pai está bem. Focado no trabalho.
- Nem acredito que ela se lembra de mim. Achei que, hm, com a quantidade de mulheres que você deve ter apresentado para ela, iria me esquecer. – disse, a voz morrendo aos poucos. Aquilo era... ciúmes?
- Você sabe que é insubstituível. – respondi e me perguntei se ela sorria como eu o fazia.
Sentei-me no sofá e continuei a varrer a casa com os olhos. O local era simples, porém cheio de personalidade. Nas paredes, pôsteres de filmes antigos estavam enquadrados como uma noite de estreia. Essa parte logicamente era de . Ninguém nesse mundo colocaria um cartaz com o nome Festim Diabólico na sala de casa para espantar as visitas. Do outro lado, uma estante em formato de balões de fala estava cheia de com grossos livros de psicologia. Seria a de . No centro, haviam fotos pendurada em um arame, delas duas juntas com amigos e de uma família que desconhecia. Em frente a esse, estava o sofá preto que deveria se abrir em uma cama, pois dormia ali. Pelo menos era confortável, pensei, abrindo os braços para ficar mais à vontade e batendo em um arranjo no caminho.
Merda. Chequei se tinha ouvido, mas o barulho não tinha sido alto suficiente para chegar à cozinha. Procurei às cegas o que havia derrubado rezando para os santos que lembrava do nome para não ter quebrado e o puxei para mim apenas para encarar maravilhado o meu chaveiro. Ou melhor, o chaveiro dela. O chaveiro que eu havia dado a ela. Estava ali, onde ela dormia ao alcance de sua mão. Tão perto que ela via quando acordasse e quando dormisse. Próximo demais para ser a lembrança de só um amigo. Puta merda, ela gostava de mim.
- , o almoço está... – apareceu na sala. Seus olhos arregalados e o rubor de suas bochechas denunciavam as minhas palavras de maneira tão clara que eu poderia agarra-la ali e sabia que não se oporia. – O que você está fazendo? – perguntou, tentando ajeitando a blusa que usava com as mãos.
- Estava dando uma olhada no lugar e encontrei isso aqui. – balancei entre os dedos o chaveiro que a dera. – Você guardou.
Ela deu uma risadinha nervosa. Caralho, aquilo estava bom demais para ser verdade.
- Claro que guardei. Você me deu, lembra?
- Dei, mas acho que não esperava que você guardasse por tanto tempo. – sorri de lado automaticamente.
, que agora me olhava séria, andou até mim e tirou o objeto de mim. Ri me divertindo com a cena de possessão e ela me lançou um olhar matador. Eu amava seu olhar matador.
- Não enche, . Eu guardaria qualquer coisa que viesse de você. – disse, fazendo o caminho de volta ao outro cômodo e eu a segui. Imprensando-a no vão da porta da cozinha.
estava assustada com o gesto. Sua boca aberta num susto aumentava o desejo que tivera desde o primeiro dia que a vi sorrindo em meu quarto. Ou do momento em que seus olhos marejaram enquanto eu estava no palco na minha primeira noite no Pulso. Também no momento em que ela apareceu vestida de preto na noite em que me disse que ia embora. Queria beijá-la quando ela forçou o sorriso e as lágrimas caíram. Queria beijá-la há quatro anos, queria beijá-la agora. Era injusto que não lembre de quase nada do nosso primeiro beijo. Era injusto comigo e com ela, por isso repeti-lo sóbrio parecia o certo. Era o certo.
Pus meu braço esquerdo ao lado de sua cabeça, para impedi-la de fugir como havia feito antes e deixei minha mão cair sobre seu maxilar. Seus olhos esbugalhados, porém atraentes variavam entre os meus e minha boca. Eu, por outro lado, sentia-me um adolescente de doze anos que nunca viu mulher na vida. Estava sedento daquela garota.
- Eu... – ela tentou falar. Passei meu polegar pelos seus lábios num pedido mudo de silêncio e me aproximei mais.
- Não é hora para conversa. – sussurrei com os meus lábios encostados nos dela. Sua respiração calma batia na minha bochecha.
Quando estava prestes a acabar com qualquer espaço existente entre nós dois, a porta principal se abriu e nos separamos com o susto. E foi assim que levei a maior broxada da história.
- , eu espero que essa lasanha esteja pronta, porque, minha querida, meu humor está dos infernos hoje. Eu vou te contar que a culpa é daquela vadia daquela direto... – parou diante de nós, que, apesar de termos nos separado não estávamos distantes. – Olá, eu acho. Estou interrompendo alguma coisa?
Olhei para . Seu rosto estava vermelho como um tomate. Ri internamente ao ver o efeito que provoquei sem nem ter terminado o que eu queria fazer. – Não, nada. – desconversou atordoada. – Esse é o , quer dizer, . – ela apontou para mim. Estava adorando sua desatenção.
- Mentira. – disse, olhando incrédula para um sorridente eu. – do Rio? – assenti. – do Rio que toca violão e bei... – lançou o seu famoso olhar matador pela segunda vez. – E é bem legal, não é? Prazer, cara. Sou , mas pode chamar de . – ela estendeu a mão e eu apertei.
- Eu sei quem você é. Esperava que fosse mais gordo, meio que um homem que curte criancinhas e tal, mas está bem melhor assim. – sorri, malicioso e riu. pigarreou alto, interrompendo minha cena.
- Agora que já estão bem conhecidos para o meu gosto, a comida está pronta. Venham antes que esfrie. – ordenou, marchando até a mesa do almoço.
Ciumenta. – Não precisa ter ciúme, amiga. Eu deixo o bofe para você. – brincou e eu me engasguei com a gargalhada. deu um tapa nela.
- Engraçadinha.
- Você me ama que eu sei.
- Idiota. – mostrou a língua, mas o sorriso de canto a denunciava.
- Fofa. – brincou com uma careta e dessa vez nós dois rimos.
Estava ficando cada vez melhor.
.
Demorou um bom tempo até eu me recuperar daquele quase-beijo. Quando entrou pela porta achei que fosse morrer. Primeiro de coração, porque esse já estava saindo pela boca de tanta vontade que estava de receber aquele beijo depois daquela tensão sexual. Depois, do quanto meu rosto esquentou por ter que ver os dois ali e enfrentar aquela situação, no mínimo, tensa.
Sobrevivemos a tarde com aquela tentativa tinha sendo a mais drástica de nos envolvermos. Claro, estava fazendo o possível para me deixar sem graça com elogios e carinhos. Eu tentava fugir, desconversava, ia ao banheiro, ria, mas sem sucesso. Eu era dele, sempre fora. Aquela situação de tensão que vivenciávamos foi criada por nós mesmos. Inventada do começo ao fim por medo de perdermos um ao outro.
- Vamos de que filme hoje? – perguntei, segurando duas caixas de DVD.
- Casablanca ou Cantando na Chuva, ? Sério que vou assistir seus clássicos todos de novo? – ele levantou as sobrancelhas, travesso.
Fingi o choque. – Que ultraje! Meus clássicos são os melhores filmes que o homem já projetou, valeu? Falou. – empinei o nariz, ouvindo sua risada de fundo e fui até o DVD colocando Casablanca.
Se é para criar um clima, vamos criá-lo com estilo.
Cair do seu lado no sofá e passou os braços pelo meu ombro. Senti meu estômago dar voltas com o calor de seu toque. Éramos mais uma vez só nós. Ele me aconchegou em seus braços como uma criança e beijou o topo de minha cabeça ao som da introdução do filme.
Casablanca era, de longe, o melhor filme de romance da terra. Humphrey Borgart, com seu sobretudo misterioso, conseguia ser um coroa bastante sensual. Seus olhares para Ingrid Bergman, tão perfeitamente interpretados, pareciam verídicos. Se não me dissessem que era irreal, eu diria que a química entre eles estava diante de meus olhos. A forma como cada passo, cada música e lugar tinham um significado especial para os dois mostravam um amor antigo, mas não esquecido. Daqueles que se guarda para o momento certo, que faz o possível e o impossível para ver a pessoa amada feliz.
Suspirei apaixonada com a cena em que eles se reencontram ao reconhecerem a música que marcou o relacionamento deles. acariciava a palma de minha mão trazendo a sensação de calor se espalhar pelo meu corpo. Simples: um toque e meu corpo estava aceso, procurando o imã que nos grude para sempre juntos. Algo que não podia fazer há quatro anos e que hoje me parecia uma obrigação.
- Não sei por que você fica suspirando com esse filme. Eles nem acabam juntos. – protestou , alisando meus cabelos. – E esse cara? Ele desiste da mulher que ama. Qual o problema dele? – ressaltou, inconformado.
Dei uma curta risada. – O Rick Blaine a ama intensamente, por isso sabe que não deve prendê-la em lugar em que ela não terá muitas chances de ser feliz. – suspirei novamente. – Além do mais, ele acredita que ela também ama o Laszlo. Ele a deixa ir por amor a ela, não entende? Quer salvá-la. – expliquei, sentindo se mexer desconfortável atrás de mim.
- Ele pensa que abandoná-la é a melhor maneira de amá-la? E se ela quisesse ficar? Talvez só precisasse de um tempo para lidar com tudo, mas fosse feliz ao lado dele. – resmungou com a voz pingando de um realismo que estranhei.
- Vamos lá , Blaine quer que ela seja feliz acima de tudo. Ele não se importa de sofrer se souber que ela está bem. A distância o ajudará a amar outra pessoa. – rebati, agora olhando em seus olhos. – Se ela quisesse ficar teria dado um jeito, mas sabia que Blaine não aprovaria.
- E por isso ele quer virar tipo um mártir? Se ele tivesse dado uma chance, só uma, aposto que ela ficaria. – levantou a voz e eu o olhei confusa. Ele estava aplicando nossa história ao filme ou era impressão minha? – A distância talvez o tenha ajudado a esquecer, mas ela não esqueceu.
Finquei os olhos nos de , bastante séria por mais que fosse engraçado ele me por como homem da relação. Estava buscando forças para acreditar que ele trazia aquele assunto à tona depois do nosso dia juntos. – O que você quer dizer com isso, ? – gaguejei.
- Quero dizer que se você tivesse ficado na porcaria do Rio de Janeiro por mais alguns benditos dias – levantou a voz, irritado e ao perceber que estava sendo grosso, tornou a usar o tom anterior. –, se tivesse me dado uma chance, a gente poderia...
O toque de seu celular invadiu a sala quebrando seu raciocínio. respirou fundo, evidentemente irritado, olhou-me significativamente e atendeu à ligação. – Oi, mãe. – passou a mão livre na cabeça, nervoso. – Não, está tudo bem. Desculpa, eu encontrei a , a gente passou o dia juntos e eu esqueci de ligar. É, mãe, essa . – ele riu descontraído.
Ali estava o garoto por quem eu era apaixonada, exibindo seu charme sem querer. Não dava para acreditar que há alguns segundos ele estava irritado comigo por ter partido. O que eu poderia fazer? Ficar na casa com meus odiosos pais que nem sabiam minha idade e rezar para eles não me expulsarem de casa depois do vexame que os fiz passar? Ou melhor, olhar para meu melhor amigo que disse me amar sem poder dizer o mesmo? Sem saber dizer o mesmo. Ah, claro, ótima ideia. Brilhante.
Contudo, ficar frente a frente com ele e ouvir sua voz ressentida falar sobre os acontecimentos daquela época me fez sentir mal. Principalmente por que eu tinha esclarecido meus sentimentos por ele, mas também por que não tive a intenção de fazê-lo mal, embora soubesse da possibilidade disso acontecer. Ouvi o bip da ligação finalizada e emergi do meu monólogo interior.
- Olha, , desculpa falar disso agora. Estava tudo maravilhoso e eu estraguei. – disse cabisbaixo. – Desculpa por isso. Acho melhor eu ir. Mas o quê? – Já? – levantei-me num pulo. – Não precisa, , fica aqui. Está tão cedo, eu poderia fazer...
- Não se preocupe, . Eu tenho show amanhã, está na hora de voltar para o hotel. – Ele caminhou até mim e me deu um beijo terno na testa. – Me leva até a porta?
Não tive ação imediata. Fiquei parada com o queixo caído que igual a uma retardada. Estava perdendo-o de novo. – Ok. – consegui balbuciar, baixo.
O percurso até a porta – que não dava dez passos – pareceu durar uma eternidade. Não o veria mais, era o fim, pensava. Ele vai voltar para o Rio e vai ser como se nada tivesse acontecido. Vamos apagar as memórias de hoje como fizemos com as de seu quarto quatro anos atrás. Eu ia perde-lo mais uma vez e dessa vez eu sofreria por todas as outras juntas.
Abri a porta vendo atravessá-la. Ele parou, dando a sensação que havia esquecido algo, girou os calcanhares e olhou para mim.
- Olha que engraçado. – ele não ria. – Acho que nunca te disse adeus, não é? – sorriu triste e apertou o botão do elevador.
Minhas bochechas estavam fervendo, estava prestes a chorar e também estava com raiva disso. Não queria dizer adeus agora nem nunca. Deixá-lo ir podia ser o certo, mas eu o amava, como poderia?
Então, por que cargas d’água eu estava permitindo?
As portas do elevador se abriram. se virou devagar, esperando alguma reação minha, porém não desistiu de sua decisão de ir. Lá de dentro, ele olhou para mim. Parada no vão da porta e com a maior cara do que eu acreditava ser uma pateta. Ele me encarou com um sorriso triste. O último deles.
- Acho que é adeus, . – disse e as portas do elevador retomaram a voltar.
Ah, meu Deus. Eu não o perderia dessa vez.
Coloquei minha mão entre os paredões de metal que cobriam a imagem do único garoto que valia o esforço. me olhou assustado pelo movimento brusco da cabine e antes que ele pudesse dizer algo, arrastei-o pelo pescoço para fazer a única coisa correta para com nós dois desde o dia em que o larguei dormindo em sua cama.
Seus braços, ainda em choque, demoraram algum tempo para perceber o que estava ocorrendo e quando o fizeram, correram para minha cintura. Os meus o abraçavam pelo pescoço, numa posição possivelmente desconfortável por causa da diferença entre nossas estaturas, mas parecia não se importar. Pelo contrário, estava sorrindo durante nosso beijo.
Nossas bocas se completavam de uma maneira que eu não me lembrava ser tão boa. Os lábios de sóbrios, que conseguiam ser mais habilidosos que bêbados – o que eu acreditava ser impossível. –, dançavam unidos aos meus e sua língua coordenava a reviravolta de sentimentos transmitidos ali. Mágoa, tristeza, raiva. Paixão, saudades, amor. Tudo misturado num beijo voraz que parecia sugar de um para o outro a felicidade que faltava nos dois.
Aos poucos, o beijo foi ficando mais lento e eu o finalizei mordendo seu lábio inferior com um sorriso travesso, porém sincero.
- Nunca mais me diga adeus. – pedi ofegante, sem soltar nosso abraço.
Ele sorriu maravilhado o sorriso mais lindo que eu já vira. – Esperei por esse momento os últimos seis anos. Não acredito que está finalmente acontecendo.
Minha cabeça pendeu para trás com o riso inebriado que dei. – Acostume-se. Não pretendo te perder de novo, . - abracei-o sorrindo e nós rimos. – Eu te amo, novinho.
- Espere. – ele me puxou pelos ombros. – Repete.
Ri mais alto. – Eu te amo, .
- De novo, por favor. – pediu.
- Eu te amo, ! – o grito ecoou no pequeno espaço que nos encontrávamos.
Ele trocou nossos lugares e me imprensou na parede, dando-me um selinho demorado. – Eu te amo, . – encostou nossas testas. – Minha .
EPÍLOGO
Naquele dia, não voltou para o hotel. Nem no seguinte. Pelo menos, até a ele precisar se arrumar e correr para passar o som no local da feira. Já , que havia passado a semana ansiosa para conhecer o evento que lhe rendera o presente que selou sua amizade com , fora até a loja mais próxima gastar o que sobrara de seu último salário numa roupa apresentável para ver o show de quem, no fim do dia, poderia chamar de namorado.
Fim.
Nota da autora: Olá gente, obrigada por lerem "Nunca disse adeus". Espero que tenham gostado tanto quanto eu gostei de escrevê-la :)
Bom, gostaria de agradecer a algumas poucas pessoas pelo apoio nas madrugadas em que precisei de uma leitora ou só alguém para choramingar por achar que faltava tempo kkkk. Lê e Dani, suas chatas, obrigada por lerem e me aguentarem tagarelando por um mês sobre fanfic e coisas que estão longe - ou só pouco próximo - de seus universos. Cês são umas lindas. Tefinha e Nathy, que apesar de não terem lido, acompanharam o processo de perto e compreendem minha paixão pela escrita como ninguém. Às demais amigas malucas, um beijão! Enchi o whatsapp de frescura sobre a história e vocês aguentaram de boas. Por fim, a Pedo, por não ter me dado um chute na bunda por tê-lo posto de lado boa parte das férias para escrever. Amo vocês!