O alarme soou alto três vezes antes que ele tivesse forças para desligá-lo. Ao se levantar, sentiu-se tonto e caiu na cama novamente.
- Nunca tive ressaca antes, não é agora que você vai me aparecer, “belezinha”... – disse desgostoso e baixinho, tentando não irritar o próprio corpo. No caminho para o banheiro viu suas roupas largadas no chão e resmungou pelos desvios que precisou fazer. Lavou-se devagar, buscando memórias da noite passada, mas não parecia lembrar-se de nada.
- O café tá na mesa: sanduíche de queijo, como o senhor gosta! E o carro do senhor já tá esperando, viu? – gritou-lhe a secretária, para o que ele apenas bufou e apressou-se. O dia seria longo. Mais longo que a noite passada.
UM MÊS ATRÁS – DEZEMBRO
- ! Dá um jeito nesse cabelo logo, menina! Lá vem ele! – sussurrava gritando, tomando a comida da mão da colega para si.
- . . Bom dia. – o executivo andava a passos largos, afrouxando a gravata e lançando a maleta para quem conseguisse alcançá-la. A baixinha de cabelos desgrenhados o fez e acompanhou-o sala adentro, fechando a porta atrás de si numa careta de medo para a amiga.
- Deseje-me sorte! – moveu os lábios e viu sua companheira de mesa cruzar os dedos.
Julius, o executivo, já estava sentado, óculos na face e olhos na tela do computador quando tornou a chamar a estagiária.
- Soube que os vídeos dos candidatos já estão editados e os piores, deletados.
- Sim, senhor.
- Quem o fez foi você, sob supervisão de , estou certo?
- Sim, senhor.
Num supetão, virou-se para a menina e tirou os óculos numa raiva controlada:
- , for the Love of Jesus Christ, você já está aqui há quanto tempo? Dois anos? Três? Antes mesmo de entrar na faculdade você nos ajudava! Apesar do meu cargo, conhece-me melhor que minha mulher! Ignoremos esses vocativos. – disse com o sotaque americano forte, que não perdeu mesmo após 15 anos de residência brasileira.
Sem perceber, ela anotava o comentário no seu bloco de bolso, que mantinha desde o início da faculdade, por recomendação docente, para “guardar as boas dicas dos bem sucedidos”.
- ! Damn it, woman!degree, meu chefe não aprova. Eu sinto muito. Eu mesmo arco com as despesas do seu estágio, mas não posso pagar todo o tempo que gasta conosco...
- Mas eu o faço porque gosto, porque quero! Não se lastime por isso, sen... Julius. Só achei que, bem... Talvez hoje fosse o dia, sabe? Que seria promovida.
O homem passou uma das mãos pelos cabelos brancos devagar, pensativo.
- Well... Não seria uma promoção. De cargo ou salário. Mas você pode continuar atuando no backstage do programa. Vai ser de grande ajuda. – sorriu e dispensou-a antes que começasse a gritaria e a sessão de abraços.
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Longe dali, nas Laranjeiras, quatro amigos reuniam-se para ler um e-mail recém chegado da emissora de TV.
- Anda, ! Abre logo isso!
- Calma, acho que o note travou, cara.
- Porra, ! Certeza que foi queijo que caiu aí! Só come isso, caralho! Alguma hora ia dar caô, ó!
- , maneira aí a gritaria, poxa... Minha mãe não tá, mas a Luzia conta tudo pra ela, cara. E você sabe qual a da minha mãe quanto a palavrão, caraca! Aqui em casa não dá! – falou enquanto tapava a boca do amigo com as mãos.
- , acho que agora deu. Vê aqui, mestre das internets. – uma risada grupal tomou conta do cômodo.
- Rá. Rá. Tirem onda do nerd aqui, mas quem passa de ano sem preocupação e tem um mês a mais de praia nas férias sou eu. – respondeu azedo.
- , , Nerd-com-um-mês-a-mais-de-praia, aqui se encontra a resposta das nossas perguntas, o oráculo que nos guiará nesses tempos incertos, o mochileiro das galáxias, o...
- Tá, , já deu. Abre logo isso.
“Parabéns! O seu vídeo foi selecionado para participar do nosso programa, cuja estreia será em 4 semanas. Aguardamos ansiosos pelo próximo encontro.
Mais informações serão dadas num prazo de duas semanas.
Atenciosamente, seção de SELEÇÃO E EDIÇÃO DE IMAGENS A-43 referente ao programa televisivo ‘TRUC: TALENTO ESPECIAL 2014’, sob produção e supervisão de Julius Teller.
OBS.: Seu vídeo não continha nome de identificação e, portanto, precisamos de uma resposta de urgência com o nome do grupo, para este mesmo e-mail, até 5 dias úteis após o envio dessa mensagem.”
- Bom, é isso. A gente tá dentro, ô, manés! – gritou, acompanhado dos amigos.
- Galera, ainda falta o nome. E tem que ser bom, né?!
- Cara, já vi sites que geram nomes aleatórios pra bandas.
- Maneiro, porr... xa! – reprimiu o palavrão desanimado, já tomando o computador para o seu colo e digitando a pesquisa para “random band name generator”. - The Crackhead Entity. Mutant Roaches. The Hindu Elvis Mac… Não vai sair nada bom daí, ô, ! Que ideia de anta, ein?
- Eu ouvi que Lady Gaga se inspirou numa música do Queen. A gente podia ver uma música foda e pá! Temos um nome. – sugeriu .
- É, e tem banda que só pega palavras aleatórias do dicionário! – animou-se .
Começaram, então, cada um num canto do quarto, a buscar um nome que agradasse a todos e, ainda, passasse uma ideia legal.
- Fanfarronada. Acho que é a nossa cara.
- E a cara de uma banda de pagode dos anos 90 também. Hm... Du Hass, da música do Rammstein?!
- Cara, isso se traduz pra “você tem” ou “você me tem”. E é quase uma onomatopeia.
- Qual o problema de onomatopeias? Pode sair um nome duca! Ó: Cabum Pow.
- Ok, não é o melhor, mas tá indo! Que tal... Bang Pow?
- Bam Bang Pow?
- Bong Slam Pow?
- Bang Boom Pow?
- Galera, o que é isso com o Pow? Vamos voltar pro dicionário que tava bom, né?
- Diz uma válida, então.
- Assim, sob pressão, não dá.
- Ah, moleque! Então vai no Bang Boom Pow? Como vai ser a escrita?
- Acho que Bang Bang Pow fica legal.
- Fechou, então.
- Os grupos de música no camarim 6, por favor? – a baixinha parecia desesperada naquele mar de gente. “Essa não é a minha função. Gente do meu tamanho não pode receber essas funções!” era tudo o que passava por sua cabeça. – Galera! Atenção aqui, poooooooor favooooooor! – gritou o máximo que pode, em pé sobre uma cadeira.
Com os olhares voltados para si, passou a guiar cada tipo de atração para um camarim diferente.
- O programa é ao vivo e começa em 15 minutos, . Acho que vou morrer. Ninguém me obedece! Tá todo mundo zanzando pelos corredores! Eu não fui feita pra isso... Eu só queria filmar, tirar foto, editar... Meu trabalho é fora, não no meio dessa bagunça! Ei, você, de camisa vermelha brilhosa! – virou-se de costas para a colega – O camarim dos ginastas é o 4. É a terceira porta à esquerda. Vai pra lá e de lá não sai, pode ser? – seguiu seu caminho antes de receber uma resposta.
- Gente, sei que estamos aqui como rivais, mas podíamos nos unir um instante, antes de tudo começar e... – a riponga não teve tempo de terminar a sua frase, pois as atenções voltaram-se para o televisor do cômodo, que começara a transmitir o novo programa de caça talentos.
- Cara, acho que vou vomitar. – disse num sussurro.
- Caralho, ! Controla aí essa barriga! Eu avisei que hoje não era um bom dia pra começar novos hábitos... Incluindo, vejamos bem, cerveja. – respondeu baixo. – , tá com o tênis da sorte, né? Porque se depender da sorte “nérdica”, estamos todos fodidos.
- To, to... ‘Cê acha que eu ia esquecer meu companheiro? Esse All Star azul tá apertado, rasgado e se desfazendo... Mas sem ele não tem a mágica da guitarra, cara! – disse, dedilhando o ar numa pose roqueira.
O restante do camarim estava muito concentrado na tela da TV para ouvir a conversa e, em 40 minutos, encontrava-se vazio – os participantes já haviam se apresentado, recebido seu “sim” ou “não” e encaminhavam-se para o bar-barra-boate que locaria a festa de estreia do show.
A Bang Bang Pow havia se saído bem – não ótima ou péssima, apenas bem, com 3 aprovações dos 4 jurados – atacando com a chiclete “Ciúmes”, de Ultraje a Rigor e conquistando o público feminino com seu charme de boy band adolescente.
Após alguns muitos drinques, karaokê improvisado, os garotos já estavam alterados e animados demais. Já a produção, exausta, não via a hora de ir embora ou achar uma diversão mais fascinante que crianças bêbadas.
- E aí, gatinha, você gosta mais de Red Label ou Ice? – assustada com a pergunta, virou-se atônita para encontrar o guitarrista da banda de nome tosco quase sem se aguentar em pé.
- Com licença?
- Tudo bem, pode ser vodka ou água de coco, pra mim tanto faz.
- Olha, eu não sei o que você tá tentando fazer, mas te digo que não terá um resultado positivo. – tornou para a amiga: – Fala sério, ... Tenho mesmo que aguentar isso numa quinta-feira à noite?
- Tecnicamente é sexta. De madrugada, ok, mas é sexta. – disse, divertindo-se com o sofrimento da colega, que apenas rolou os olhos.
- Vai, gatinha... Só o seu celular. – completou com uma piscadela desastrosa.
- Ah! Não sabia que você tava precisando de uma babá. Podemos discutir os horários e o preço do serviço depois?
Recebendo gargalhadas dos que os rodeavam, deu um sorriso falso forçado e apenas distanciou-se.
- Muito engraçado, rá, rá, rá.
E, antes que chegasse na mesa dos amigos, apagou.
-
- Valeu, Luzia... O sanduba tá uma delícia, como sempre. – deu um beijo no topo da cabeça da moça rechonchuda e não tentou esperar o elevador, sempre lerdo. Desceu as escadas depressa, com a mochila nas costas, até onde o motorista o esperava para levá-lo ao colégio.
Do alto de seus 16 anos, não havia muito que não tivesse feito – e o seu grande sonho, tocar guitarra na TV, estava, agora, realizado. Era rico, filho de pais ricos: já havia visitado todos os continentes, viajava todo mês, surfava, andava de skate, tocava guitarra e violão, ia a todas as festas e shows, passava de ano – meio sofrido, desconfiando de uma ajuda paterna no quesito, mas passava. Seu pai o queria estudando Direito em uma das universidades da Ivy League, e ele bem sabia que seu sonho de graduar-se em música não se concretizaria enquanto dependesse do salário de seu pai e aceitava quieto, pois havia muito a arriscar – seu pai não era o mesmo desde aquele 7 de Julho. era cético, odiava comprometimento e jamais havia sido rejeitado por uma mulher – independente da idade – até... bem, até a noite anterior, quando uma baixinha de cabelos desgrenhados e joelho engraçado havia lhe cortado o barato. E de uma forma simplesmente genial, precisava admitir.
Sorriu sozinho no banco de trás do carro, pensando na menina e no fora bem bolado. Os cabelos castanhos transformavam-se em loiros nas pontas de modo quase imperceptível, longos e ondulados, volumosos demais pra alguém daquela altura. Uma mecha verde escondia-se na parte de trás da cabeça, como ele percebeu quando ela se virou para a amiga gordinha, com cara de pin-up. Mas ficou curioso com o joelho... Não sabia ao certo se era torto, se parecia assim pelas sombras, se era uma mancha, um sinal ou mesmo uma tatuagem. E isso era tudo o que lembrava dela.
Balançou a cabeça, apagando as imagens e voltando à realidade: era apenas um estudante do Ensino Médio, no ano de vestibular e precisava de boas notas para satisfazer seu pai; não era hora de ficar pensando em mulher.
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acordou com o barulho de liquidificador. devia estar fazendo uma vitamina ou qualquer coisa que as pusesse de pé e prontas para trabalhar. Não tinha aulas na sexta-feira, o que dava mais tempo de estudo ou ganho de experiência, também conhecido como estágio. Há dois anos dividia apartamento com a companheira de trabalho e ajudava como podia nas contas.
Com apenas 19 anos, sentia-se como se tivesse ao menos 30, idade da colega, tanto pelo que havia vivido quanto pela alma de cinéfila apaixonada pelo cinema antigo. Havia fugido de casa assim que sua admissão na Universidade de Cinema foi oficializada. Sua família era de renome: grandes médicos, engenheiros, juízes e qualquer outra carreira que seja “melhor” que outras. Todos, parte de pai e de mãe, eram assim. Mas não ela – sempre se sentiu diferente, excluída... A verdadeira ovelha negra da casa, da rua, do condomínio privado! Era mente aberta, praticava yoga, stand-up paddle, andava de longboard no calçadão, lia o horóscopo de Leão, seu signo, todos os dias. Visitava Gerusa, a moça do tarô, no segundo domingo de cada mês e levava a sério qualquer previsão que lhe fosse feita. Envolvia-se em protestos de rua frequentemente e guardava o que podia para viajar para a Índia. Sonhava em ser beijada na chuva após uma briga feia, como em Bonequinha de Luxo e, então, viver feliz para sempre com o tal beijoqueiro. E, ainda, fazer uma cirurgia que tirasse aquele sinal meio borboleta-meio coração que se encontrava no seu joelho esquerdo, que tanto a irritava e causava curiosidade em quem via.
Lembrou do pirralho que havia se oferecido pra ela na noite anterior e sorriu orgulhosa do fora que havia dado. Talvez se ele fosse uns 3 ou 4 anos mais velho tivesse dado certo. Afinal, aquela tez queimada de sol e o cabelo negro nem grande nem curto, nem liso nem encaracolado tinham lá seu charme. Era alto – mas quem não era, perto dela? –, com ombros de nadador e, apesar do nome onomatopeico esquisito da banda, ele era um bom músico.
Ligou o chuveiro forte, esperando que a ducha levasse tais pensamentos embora. Ela precisava trabalhar e agora não era o momento de se envolver com ninguém, muito menos um participante do programa em que encontrava seu sustento e fazia o que gostava.
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Chegou ao prédio da emissora 15 minutos atrasada, mas não havia sinal de Julius, então o problema não seria tão grande. Parecia um dia rotineiro, sem nada muito interessante e com uma sensação de ressaca inacabável, além da expectativa para o final de semana – e o que ele trouxesse.
- Meninas, preparem-se. Hoje iremos para uma Field trip. – foi a única frase que Julius disse após o intervalo de almoço, enquanto entrava na sua sala e saía rapidamente, já com a gravata arrumada e a maleta embaixo dos braços, encontrando as assistentes estáticas. – Vamos, o que estão esperando? Já passamos da hora.
- Senh... Julius, para onde estamos indo, exatamente? – perguntou , quase correndo para acompanhar os passos do chefe.
- Vamos fazer uma visita surpresa aos participantes... Filmar seu dia a dia, ter um vídeo de introdução para o próximo episódio. – explicou, apressando-as para dentro de uma van com câmeras e apresentadores e maquiadores e tantos outros profissionais que parecia impossível cabê-los todos ali.
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- Caraca, , tava marcado o ensaio hoje! A gente mancou pra caralho ontem no programa, cara... Temos que fazer bem feito no próximo!
- Eu sei, eu sei... Eu encontro vocês lá em 20 minutos, só preciso passar em casa pra buscar o baixo.
- Na-na-ni-na-não! Vou com você. A cerveja não te faz bem, caro amigo. Sai dessa antes que todos nós percamos nossa chance no programa, valeu? – se ofereceu e iniciou a caminhada com o colega.
O grupo dividiu-se antes de se encontrar no apartamento 7001 do prédio de , nas Laranjeiras. Para a surpresa dos últimos a chegarem, havia uma van da emissora estacionada bem em frente ao edifício, mas nenhuma movimentação que merecesse reportagem. Subiram desconfiados e encontraram os amigos no quarto. batucando alguma coisa no Guitar Hero e observando a rua pela varanda.
- Fala, pessoal! Vamos começar? – gritou , recebendo um “shhh” de e sendo ignorado por .
Este observava as cabeças saindo da van da emissora e pode reconhecer aquele tufo capilar tricolor, sorrindo para si mesmo ao vê-la reclamando com os outros ao seu redor. Logo estranhou a presença daquelas pessoas ali e, finalmente, caiu-lhe a ficha:
- Caraaaaaaaaalho! – seus amigos viraram assustados com o grito que, além de alto, era um palavrão. – O pessoal da TV veio filmar a gente.
- O quê?! – responderam, mantendo a gritaria.
- Vai, vai! Pega a bateria e liga logo esses fios, ! Deus, Jah, Alá, Shiva, Zeus ou quem estiver aí em cima – balançava as mãos para o alto –, faz com que tudo saia certinho, valeu?
Mal tiveram tempo de passar uma música, câmeras, microfones, pinceis de maquiagem e ao menos 10 pessoas irromperam cômodo adentro.
- Aqui, no bairro das Laranjeiras, estamos fazendo a nossa primeira visita surpresa! Na casa do...
- . – responderam em coro.
- Na casa do ! – continuou a apresentadora.
- Caraca, moleque! – disparou, baixinho, enquanto a loira alta falava coisas sobre o programa e a banda. – O seu tênis, ! Pega o seu tênis!
Percebendo a movimentação de cabeças atrás da apresentadora, se aproximou de forma discreta, tentando não interromper a gravação ou atrapalhar a filmagem.
- O que vocês tão procurando? – disse baixinho – Se for algo ilícito que não queiram que seus pais vejam, não tem problema... Na edição eu procuro e escondo, beleza? Agora fiquem quietos. – e se afastou, fazendo sinal de silêncio com o dedo na boca.
O desespero dos meninos aumentava ao que a apresentadora terminava sua fala, até perceberem a baixinha da edição em pé sobre o tênis. Tentaram todas as mímicas e apontaram das mais diversas formas, sinalizando o All Star azul embaixo dela. Mas o que aconteceu foi que ela tirou os próprios tênis – um vans vermelho – e levou até eles.
- Não acho que vá caber em nenhum de vocês, mas já que insistem. – entregou-os sussurrando e saiu de lá sem que algum deles pudesse explicar a situação.
pôs o par número 35 ao lado do microfone de e a loira alta não os deu alternativa senão tocar:
- Agora com vocês, ao vivo das Laranjeiras, Bang Bang Pow! Tocando...
- Lanterna dos Afogados, de Paralamas do Sucesso. – apresentou o cantor e iniciaram a performance.
Foram aplaudidos por toda a staff no fim: era uma das melhores apresentações que já tinham visto. A correria, o puxa-puxa de fios e câmeras e outras coisas seguiam enquanto os meninos comemoravam sua apresentação bem sucedida.
- Parabéns. Foi mesmo muito bom. – estava abaixada pegando seus tênis e sua voz fez com que o grupo virasse para ela, justo quando se levantava, causando um choque de sua cabeça com a guitarra de .
- Ai, porra... Desculpa! Eu não quis te machucar, sério, desculpa.
- Tá tudo bem. – disse, incerta, alisando a cabeça. – Acho que eles deram sorte, não? – balançou o par de sapatos vermelhos.
- Certeza que tá bem? – aproximou-se da garota, tentando olhar dentro daquele emaranhado de fios. – Talvez pra nós tenha dado, já pra você... – deu um sorriso amarelo.
Os amigos já estavam afastados e a produção da emissora já estava com quase tudo preparado para a próxima visita.
- Tenho. De verdade. To bem, eu acho. – olhou os dedos, buscando sangue. – Acho que vou sobreviver. – disse, sorrindo ao reconhecer o garoto. Tirou um bloco do bolso e rasgou um pequeno pedaço de papel após rabiscar nele seu nome e número. – Se ainda estiver procurando uma babá, me liga. – lançou-lhe uma piscadela e saiu saltitante junto com o resto da produção.
ficou parado, sem ter certeza do que havia acontecido. O grupo de garotos se juntou a ele, comemorando o seu pequeno sucesso pessoal com tapinhas nas costas:
- Ah, moleque!
- É, parece que ninguém pode mudar o meu jeito moleque de ser... – disse, piscando para os amigos e abrindo os braços enquanto abaixava uma reverência de mágico.
Já fazia 7 meses desde que e foram ao seu primeiro encontro. Ele a ensinou a surfar e ela o mostrou mantras da yoga. Andaram juntos de longboard e skate. Foram a shows de rock, pop, jazz e MPB. Viajaram para o interior. Foram a mostras de arte e de dança e leram sobre religião, futebol e política. Eram um casal incomum, improvável, mas apaixonado. Não do tipo que é meloso e se chama com voz de bebê, mas do tipo que não dependia da aprovação do resto do mundo e se gostava e aprendia um com o outro e brigavam, mas logo faziam as pazes.
O programa havia acabado há tempos, sem a vitória da Bang Bang Pow não que isso os tivesse impedido de assinar um contrato com uma gravadora internacionalmente conhecida. Agora eles abriam grandes shows ou faziam os seus próprios, estes menores.
bebia cada vez mais, não apenas cerveja, e já não se dava tão bem no colégio ou na música, muitas vezes atrasado ou faltando aulas, provas, gravações e concertos.
- Cara, vamos conversar sério. – sentou-se numa cadeira em frente ao amigo, na cama de seu quarto.
- Manda.
- Ou você se interna numa clínica de recuperação ou algo parecido ou não podemos continuar como uma banda.
- Quê?! Fala sério, ! Sou seu amigo de infância!
- Eu sei! E por isso to tão preocupado, poxa! Logo você... Se fosse o ou o , ou mesmo eu, ok. Mas você?! Cara, o único com futuro garantido aqui era você e se isso não parar aqui, agora, nem você vai estar salvo! Já falamos com sua mãe e ela concorda e...
- Você falou com a minha mãe? Você falou O QUE com ela, ein?
- , você tá bêbado, fedendo a cerveja. Eu vou embora. – levantou-se.
- Ah, vai mesmo... Aproveita e se fode no meio do caminho, amigo uma porra! –pegou o resto da cerveja em sua mão e virou na cabeça do amigo.
- Caralho, ! Tá louco?! Tenho um jantar daqui a pouco, cara!
- Vai é foder a namoradinha, né? Vai, que eu sei... – disse, apoiando-se na parede para recuperar o equilíbrio.
- Você sabe que ela não é minha namorada e, mesmo que não sendo, não gosto que você fale assim dela.
- Vá tomar no cu, ! Você e aqueles escrotos daquela banda otária de nome imbecil! – e, tentando socar o amigo, quebrou-lhe a garrafa de cerveja no rosto.
- Puta que o pariu, ... – pensou em avançar no amigo, mas seu rosto ardia com os cortes novos, havia sangue quente descendo pelo seu pescoço e estava banhado em cerveja. O outro já estava caído na cama. Como se não fosse suficiente, estava atrasado para o jantar com .
Considerou ir em casa, se banhar, tratar e trocar de roupa, mas não queria deixá-la esperando e pediu que o motorista levasse-o até a casa dela “o mais rápido possível e sem perguntas sobre o meu estado, por favor”.
-
Sentia-se bonita com aquele vestido, tão diferente do que ela costumava usar. Usava um salto alto, queria impressioná-lo – um Jimmy Choo dado por sua mãe há alguns anos, quando ainda esperava que a filha fosse se tornar uma médica, muito valioso para se jogar fora. Era a primeira vez que o usava desde que o havia ganhado e estava orgulhosa de si mesma e de , que lhe ajudou na transformação. Seus cabelos estavam arrumados num rabo de cavalo alto e longo, deixando à mostra sua mecha verde e seu rosto modificado pela maquiagem profissional, que lhe custou quase um mês de trabalho.
A campainha tocou e as amigas levantaram-se de supetão, animadas com a surpresa que tomaria.
- Ai, meu Deus! O que aconteceu?! – puxou delicadamente o garoto cabisbaixo para dentro do apartamento. – , traz uns panos molhados! Rápido! , o que aconteceu?! – ela tocava o garoto em todos os lugares que conseguia, tentando entender aquela confusão.
Tirou a camisa molhada dele e levou-o ao banheiro.
- Senta aí, vou te dar um banho, tá bem? Vou cuidar de você. Vai ficar tudo bem, ok? – dizia, tentando acalmar mais a si mesma que a ele, dando-lhe beijos no topo da cabeça.
Ligou o chuveiro e, enquanto buscava gelo e toalhas, não percebeu que o menino chorava, agora com a cabeça entre os joelhos, face escondida pelas mãos. Ele já não sabia se chorava de dor, raiva ou tristeza – havia perdido um de seus melhores amigos, tinha a face cortada e sabia que tinha estragado o que quer que fosse que havia planejado.
- , meu Deus... Por que você tá chorando? O que aconteceu?! Não me deixa preocupada assim... Explica o que foi, hã? – disse, desligando o registro e sentando-se no vaso sanitário em frente ao garoto, tirando os sapatos.
Enquanto ela improvisava curativos e tentava lavá-lo e secá-lo, ele lhe contou sobre e se deixou adormecer no colo dela, no sofá, recebendo um carinho de teor parte materno, parte fraterno, parte conjugal.
- ... ... , olha, eu sei que é sábado, mas o seu pai já ligou várias vezes. – a menina o balançava devagar, ainda produzida da noite anterior. – Fiz um sanduíche de queijo pra você, também. – sorriu cuidadosa.
- Meu pai? Meu pai ligou? Quantas vezes?
- Bem... Algumas vezes.
- Exatamente...
- Trinta e sete. – o garoto levantou de supetão sentindo a cabeça latejar da pancada da noite anterior.
- Olha, perdão por ontem. Sério, desculpa. Mas eu tenho que ir, tá? – pegou o sanduíche da mão da garota e a camisa que estava no varal – A gente se fala. – e saiu sem ao menos se despedir.
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- Mas não dá pra você ir agora, cara! Esse é o nosso momento... Já temos que achar outro baixista! Vamos perder o guitarrista também?
- Aparentemente...
- Caralho, ! Você nem quer ir, porra!
- Controla essa boca, , por favor! Minha mãe tá no quarto ao lado!
- Caraca, ! To com o nessa... Essa fase da gente vai passar alguma hora se não pudermos aproveitar o máximo e transformar isso em alguma coisa que dure, poxa!
- , por isso mesmo que meu pai quer que eu vá pra lá! Porque pra ele é uma fase e acabou e sei lá, talvez seja bom pra mim.
- Porra, ! Deixa de ser pau mandado! Bem que você podia ser mais que nem o às vezes, ein?!
levantou-se rápido, apontando o dedo na cara do amigo e com o maxilar contraído de raiva:
- Você não fala no ! Não fala! Você não sabe de nada sobre ele, falou?! Sai daqui, ... E você também, . – sentou-se de costas para a porta e para os amigos, enfiando a cabeça nas mãos e sem segurar um grito.
Seu celular tocava pela vigésima vez, sempre com o mesmo nome na tela: . Não conseguiria contá-la o que estava acontecendo. Já havia tirado todas as suas coisas do armário, passado para as malas, estava pronto para ir.
“, o que tá acontecendo? Atende o celular, por favor. To preocupada.” Leu a mensagem mais recente e apagou-a ainda dentro do elevador, encontrando seu carro já pronto para ir ao aeroporto quando as portas se abriram. Não queria admitir, mas estava bastante nervoso e desapontado consigo mesmo. “O que faria? O que ele faria?” era o único pensamento rondando sua cabeça.
- Eu sinto muito, . De verdade. – disse baixinho antes de jogar seu celular na lixeira do check-in.
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Já não ouvia de há 3 dias e, mesmo chateada que ele não houvesse se lembrado do seu aniversário naquela noite – assim como havia esquecido a comemoração de 6 meses juntos –, sua preocupação maior era “o que caralhos havia acontecido com ”. Desistiu de ligar para o seu celular ou mandar mensagens. Seus amigos também não a respondiam e sua cabeça não conseguia se manter focada em estudos ou trabalho.
- , diga a Julius que passei mal, minha avó morreu, qualquer coisa! Eu preciso ir até a casa de , ok?
- Tudo bem, vai, menina! – encorajou-a com um sorriso de mãe.
- Boa tarde, . Pode subir. – o porteiro, já conhecido, abriu a porta e sorriu para a garota que, no momento, não tinha tempo para tanta educação.
Entrando no quarto dele, logo percebeu algo... Alguns pôsteres e seu vídeo game não estavam à vista, a cama estava bagunçada, não havia roupas largadas no chão. Desesperou-se com a ideia de que ele tivesse sido assaltado, sofrido algum acidente, ido embora dali.
Dirigiu-se ao armário, mas antes mesmo de abrir as portas, sabia que nada ali parecia certo. O armário estava vazio, apenas um cabide dentro, com seu All Star azul amarrado a ele e um papel despontando de dentro do sapato. Não podia acreditar no que via, no cenário em que estava inserida: ele se foi sem ao menos avisá-la, sem se despedir.
Puxou o tênis do cabide com força, rasgando o primeiro e quebrando o segundo. Sem que percebesse, estava chorando.
“Eu sinto muito, mas não pude fazer nada quanto a isso. Estarei de volta antes mesmo que percebamos – mas não espere por mim. Eu amo você, menina linda. Demais até.
Acho que nunca cheguei a te contar, mas tenho um irmão. O filho perfeito, genro perfeito, cunhado perfeito, amigo perfeito... Tudo que jamais fui. Eu nasci quando ele já tinha mais que a minha idade. Todos o amavam... Eu tinha, então, um modelo bem difícil pra seguir, ein? Eu mal sabia falar e ele estava em Harvard, estudando Direito. Formou-se com louvor, o único aluno summa cum laude daquele semestre. Orgulho de toda a nação, não é mesmo?
Mas isso nunca subiu a cabeça dele. Ele era quase como você: acreditava em astrologia e seguia a “religião” de SERENDIPIDISMO. Sabe o que é isso, ? É achar boa sorte, felicidade, coisas boas ao acaso. Ele se contentava com pouco, via nas pequenas coisas as melhores. Fazia, sozinho, um caminho feliz – sem esperar nada em troca.
Mas há alguns anos, num 7 de Julho, ele me levava à sua nova casa – sua mulher estava lá, esperando por nós – quando um pedaço da barreira em que a estrada se encontrava desmoronou, levando-nos com ela. A queda não foi grande e nem ficamos soterrados, mas os vídeos estavam abertos e ele, sem cinto. Mas que má sorte, não? Logo que o garoto perfeito descumpriu a lei, veja no que deu. O impacto o lançou para fora do carro, fazendo com que ele caísse num monte de lixo acumulado ali pela chuva. Podia ter servido como amortecedor, não fosse o arame farpado no topo de tudo, arrancando-lhe pedaços de carne de... bem, do corpo todo.
Não sei se se a ambulância tivesse sido mais rápida teria adiantado alguma coisa, mas o que teria acontecido já não me interessa. se foi e levou com ele toda a alma da família. A mim, sobrou continuar seu destino, fazer o seu esforço valer a pena, entende? Honrar o seu nome.
Eu sinto muito, mas não há outra opção pra mim senão tornar-me o reserva, . Eu sinto muito mesmo.”
Ela não conseguia mais sentir o rosto, dormente com o choro. Levantou-se depois de alguns minutos, sentindo um ardor na mão – estava cortada pelo cabide quebrado. Tentou recolocar o tênis de volta onde estava quando chegou e saiu dali ainda perturbada com o que havia lido.
Não sabia se sentia raiva, desapontamento, saudade antecipada, tristeza... Sabia que, no fundo, ele estava fazendo a coisa certa; só não conseguia aceitar tal fato. Voltou para a sua casa e, sem que pudesse controlar as lágrimas, adormeceu.
Quatro anos passaram desde que deixou o Brasil. já estava formada, dirigia a seção de filmagem e edição de imagens da emissora de TV e planejava abrir, junto com amigos, seu próprio negócio. Lembrava-se do menino vez ou outra, mas não mantinha nenhum relacionamento desde aquele término abrupto.
estava a alguns dias de concluir o curso – não era o melhor aluno, mas havia se saído melhor que o esperado e sua relação com o pai melhorara por isso. Ainda sentia falta de , principalmente quando conversava com sua nova namorada, Ana Júlia. Ele tinha consciência de que o físico de Ana Júlia que o havia atraído, pois ela o lembrava de . Não tinha, porém, o cabelo tão longo ou com tantas cores, era mais alta e esguia e suas personalidades não podiam destoar mais. Mas ele estava satisfeito e isso era o suficiente.
- Mãe? Como descobriu o meu número?
- , filha, eu sinto sua falta... Sua irmã finalmente vai voltar pro Brasil! Já faz 6 anos que ela foi. Queria a família reunida mais uma vez. Por favor, faça um esforço, sim? Daremos um jantar de comemoração à nova graduada do MIT! E ainda arranjou um belo partidão. Arrume-se bem. Amanhã, aqui em casa, às sete. Estou com saudades, querida! – e o aparelho ficou mudo.
Apesar de sentir-se rejeitada, só ela sabia o quanto sentia falta de casa. E ficou animada com alguma coisa pela primeira vez em meses! Já sabia que sapato usar e precisava de um novo vestido.
- ! Você tá linda! – passava a mão pelo vestido novo e tinha os olhos brilhando, assim como a amiga, que se surpreendeu com o próprio reflexo.
- É... Acho que to sim, . Muito obrigada. – abraçaram-se longamente. – Deseje-me sorte! – disse, fechando a porta apenas a tempo de ver a outra cruzando os dedos.
- ! Que bom que veio! Meu Deus, todo esse tempo te fez tão bem, querida... Você tá... Deslumbrante! Maravilhosa! Senti tanto a sua falta, querida! – abraçou-a.
- Mãe, também senti saudades. – disse envergonhada.
- Vamos, entre, entre! Acho que encontrará algumas amigas de escola por aqui, querida! Venha, venha... Estamos espalhados pelas salas, ainda a espera de sua irmã e do namorado novo dela. Como anda sua vida amorosa, filha?
A garota sorriu:
- Tá tudo... indo, mãe. Não se preocupe, ok? – a mãe depositou um beijo na bochecha da filha e saiu ciceroneando mais pessoas.
não se sentiu perdida ou excluída do ambiente, como costumava se sentir. Ao menos não fisicamente. E tentava, ao máximo, não deslocar seu psicológico dali. Queria uma família novamente.
Saiu zanzando pela casa, relembrando os cômodos, sorrindo sozinha com as lembranças que surgiam.
- O jantar será servido! – ouviu alguém gritar do andar debaixo e resolveu voltar à sala.
No caminho, viu o quarto que costumava dividir com a irmã abarrotado de malas, mas sem ninguém dentro. Sentou-se na cama, relembrando o que já haviam vivido ali. Sentiu os olhos quentes, lacrimejantes, mas freou o choro com uma fungada. Levantando-se, acabou pisando em alguma saliência no chão e abaixou-se para encontrar uma carteira de couro cor de rosa, obviamente de sua irmã. Jogou-a na cama, fazendo com que abrisse e deixasse a mostra uma foto 3x4 masculina.
Curiosa, aproximou-se para encontrar , agora com o cabelo mais curto, maxilar mais másculo e com uma barba curta, negra como os cabelos. Sua pele tinha perdido o tom queimado de sol e a foto sorria grande, dentes perfeitamente alinhados e brancos que, de alguma forma, não combinavam com aquele torso engravatado. Não pode evitar que as lágrimas de antes agora caíssem livres, não enquanto segurava aquela pequena foto.
- O que você tá fazendo no meu quarto? Conheço você? – ouviu a voz fina da irmã e virou-se devagar.
- Conhecia... Ao menos antes de sairmos de casa, Ana, você era a minha irmã.
- ! , é você mesmo?! – a irmã acenou com a cabeça devagar e sorriu meio amarelo. – , como senti a sua falta! – sorriram num abraço apertado.
- Então... – fungou e secou as lágrimas. – Esse é o seu “partidão”? – mostrou a foto.
- Sim! Ele não é lindo?! Eu tive muita sorte, sabe, ... – e desatinou a falar sobre o novo namorado, ignorando o fato de que a irmã estava chorando e, no momento, não ouvia mais nenhuma palavra que saía da boca da gêmea.
- Meninas! Estamos esperando vocês para começar o jantar, venham logo! Que cena bonita, as duas assim, juntas de novo! – bateu palminhas e puxou-as escada abaixo.
- Mãe, – sussurrou – não vou poder ficar para o jantar.
- !
- Eu sinto muito mesmo, mas precisa ir ao hospital, está doente... – inventou na hora – E, além de mim, ela só tem a família, que mora longe daqui.
- M-mas...
- Eu volto, mãe. Eu apareço novamente, ok? Amo você. – deu um beijo estalado na bochecha dessa e um abraço corrido na irmã, sem olhar para o lado ou para trás enquanto caminhava até a porta.
Da sala de jantar, via aquela bem conhecida cabeça passar rápido pelo corredor e, então, sair da casa.
-
Passou-se um mês antes que sua mãe ligasse novamente. E tudo o que pensava era em como tinha acabado junto com Ana Julia. “O mundo é mesmo muito pequeno... Minúsculo.”
- , por favor... Daremos um brunch no domingo. Venha e fique para a refeição dessa vez, sim?
- Tudo bem, mãe. Eu prometo.
- Ótimo! Anseio pelo domingo, então! – sorriu com a animação verdadeira na voz da mãe e guardou a carta que esperava uma resposta há mais de duas semanas no fundo da gaveta de calcinhas.
O domingo chegou rápido e aprontou-se mais uma vez para o encontro familiar. Chegando lá, todos já estavam sentados, a sua espera. O único assento vago era ao lado de , na ponta contrária a de seus pais.
- Agora que já estamos todos aqui, podemos começar! Ritinha, traga a comida, por favor? – e uma horda de garçons apareceu no jardim com pratos diversos e coloridos, quase distraindo os dois nervosos na ponta da mesa.
- , você cresceu... Acho que nem precisa mais de babá, hã? – disse baixo enquanto colocava alguma fruta goela abaixo.
- , você leu, não leu? A carta que eu deixei.
A garota apenas acenou com a cabeça, ignorando o olhar preocupado do vizinho de cadeira.
- Ah... li! Lindo texto, não? Quase uma história de filme! Algum produtor pode querer financiá-la e eu filmarei pra você, ok?
- ! – deu um sussurro esganiçado. – Eu não queria ir, de verdade. Mas foi bom para nós dois termos esse tempo, não? Ju me contou que voc...
- Ah. Ju. Juuuuuuuuu... Você deve ter uma cara de pau muito grande, não é?! Vai embora sem dizer nada, não me atende ou responde minhas mensagens, some completamente e me dá adeus por uma carta em que justifica esse cenário louco falando do seu falecido irmão. Opa, correção: do seu PERFEITO falecido irmão... – sua voz crescia com as palavras e toda a mesa encarava os dois nesse momento. – E você tá seguindo bem o script, não é? Arranjou a mulher perfeita também!
- , para com isso, por favor!
- O problema é que... bem, a mulher perfeita é a gêmea da louca que foi largada há 4 anos, sem nenhum motivo de verdade!
- , Ana Julia não tem nada de perfeita e você deve saber muito bem! – gritou, esquecendo-se de onde estava. – Caramba, ! Você era perfeita pra mim e todo mundo sabia!
- Não era perfeita o suficiente pra te fazer ficar...
- Ninguém seria, você sabe! , – respirou fundo – se estou com ela eu te desejo... E-eu sonho em cometer esse pecado.
- Você o que?! – dessa vez, Ana Julia que gritou.
- E-eu... É complicado, Ju. – disse , finalmente realizando onde estava.
- Você sabe alguma coisa de sintaxe?! Porque pelo que disse, não sabe! Isso nem faz sentido! Essa frase, essas palavras juntas... Nada disso faz. , sabe o que não é complicado? Acabar um namoro. E é isso que tá acontecendo A-GO-RA! Não estamos mais namorando pois você ama outra, : essa sim é uma frase sintaticamente bem construída, vê? – levantou-se num impulso, derrubando a cadeira atrás de si e deixando a mesa. – Se me dão licença, acho que não irei mais comer.
O resto da mesa estava estático, sem saber o que fazer ou falar.
- Eu devia ir indo... – disse , já em tom de voz normal.
- Ah, não... De novo não! – sua mãe falou. Mas já era tarde demais, o triângulo havia se retirado.
x
- , tem certeza que tá indo porque quer? Não é só pra fugir de tudo? Pra fugir do ? – sabia que nada do que dissesse impediria a amiga de entrar no avião, mas não custava nada tentar.
- , você bem sabe que passei esses últimos anos vivendo pro trabalho porque esperava por ele. E veja só no que deu. Sair daqui, respirar novos ares, conhecer novas pessoas... Tudo isso vai ser bom pra mim. Vou sentir sua falta, mas trago muitas lembrancinhas da Europa inteira pra você! Vou fugir da Alemanha sempre que tiver uma folguinha...
- É realmente uma oportunidade de ouro... Só que você demorou tanto pra responder a carta deles e depois do que ocorreu a decisão foi tão rápida, fatal.
- É, eu sei, amiga... Mas ainda vamos nos falar. Sempre! E me mantenha informada quanto a Julius, sim? – sorriram juntas.
- Boa viagem, ! Aproveita! E tenta arranjar uns novos amores, tá bem? – soltaram-se de um longo abraço.
- Eu volto, ... Espera que eu volto! – deu um tchau animado com a mão e passou pelos portões sorridente: era um novo começo. Sem passado e sem .
já estava indo para o trabalho quando percebeu aquele homem bem vestido em frente ao seu prédio, deitado num banco, fedendo a álcool.
- ? , é você?!
Ele acordou devagar, com a cabeça pesada do choro e da bebida da noite passada.
- , cadê ela?! Cadê ?! Como eu pude deixá-la aqui, hã? Como eu pude ir embora? Como pude fazer isso com ela?
- Ah, querido... – disse, levando-o para o seu apartamento. – Vamos, sente-se. Como veio parar aqui?! – levou um copo de água com açúcar para o homem.
- Você não vai acreditar se te disser que eu dormi na praça pensando nela? Esperando-a aparecer? Vai?
- Ah, meu bem! Tome a água, você vai precisar para quando ouvir o que tenho a dizer. – ele deu um longo gole, enxugando as lágrimas com as costas da mão. – Ela se foi, .
- ELA MORREU?!
- Não, não... – não pode segurar uma risadinha. – Ela recebeu um convite para trabalhar fora do Brasil e... Bem, depois do que aconteceu, resolveu aceitar.
- Pra onde ela foi, ?! – disse, já em pé, ignorando a dor de cabeça. – Diz, ! Onde ela tá?
- Ela foi pra Alemanha, querido. Sente-se, vai acabar desmaiando.
- Não posso, tenho de ir atrás dela! – não soube bem o que fazer e apenas franziu o cenho, sem ter certeza de como ajudar. – Pra que cidade ela foi?
- Não tenho certeza... Mas ficará em Berlim por pelo menos uma semana.
- Obrigado, . De verdade, muito obr...
- Menino, cuidado com o que vai fazer. Não acha que já causou muita dor? Você tem certeza do que está fazendo? Deixe-a recomeçar sozinha...
- E-eu... Eu tenho de ao menos contá-la como me sinto. Mostrá-la as opções. Eu sinto muito, . Mas irei. – deu um beijo no topo da cabeça dela e saiu, com a ressaca curada pela determinação. Estava a caminho da Alemanha. Iria reencontrá-la: o grande amor da sua vida.
-
Saiu do avião com pressa, sem malas, ainda fétido por causa da bebida do dia anterior e com a roupa amarrotada do banco da praça. Não tinha malas, celular ou dinheiro em mãos. Apenas o comprovante de compra de um café, sua passagem só de ida para a Alemanha e um cartão de crédito internacional no bolso.
Por suas contas, estava apenas 5 ou 6 horas na sua frente, já que havia viajado durante a madrugada e, ele, pela manhã. Pôs seus anos de cursinho de alemão e francês em prática enquanto explicava sua situação para o diretor de segurança do aeroporto, pedindo para que descobrisse como ela havia ido embora dali.
Como o diretor era um velhinho de alma romântica, procurou pelas imagens da câmera a tal garota e achou-a saindo com um dos táxis credenciados. Olharam a placa e esperaram que o taxista aparecesse novamente pela região, o que aconteceu cerca de 25 minutos depois.
- Pra onde ela foi? – perguntou num alemão porco, ao que o diretor da segurança ajudou-lhe:
- Pode levá-lo até lá? São amantes desafortunados... Star crossed lovers. Ajude-o.
O taxista acenou com a cabeça e, animado com a aventura, correu o máximo que pode.
- Mas não pode ser! Esse quarto tá reservado pela empresa! Ligue para eles e confira, pode ligar... Estou esperando aqui há horas! Você já é a terceira pessoa que vem me dizer que não tem um quarto no meu nome e eu já sei disso, porque está no nome da em-pre-sa! – falava um inglês rápido, irritada com aquelas pessoas que falavam uma língua esquisita, sempre irritada e que seria a sua a partir de agora. – Vamos, ligue para esse número e confira! – entregou um cartão à moça e apontou-lhe o número, fazendo o sinal universal de telefone com as mãos nos ouvidos.
Virou-se bufando para se encostar no balcão e, ao levantar os olhos, encontrou buscando, perdido, alguma coisa por ali. Assustou-se e tentou cobrir a face com um folheto, mas ele já a havia visto – e ela sabia.
- ! ! – tirou o folheto de seu rosto e respirava afobado por causa da correria. – , eu sinto muito. Por tudo. Por tê-la deixado no Rio sem avisar, por não manter contato, por fazê-la sofrer, por achar que, estando com alguém fisicamente parecida com você, seria suficiente; por não compreender a dor que estava te causando... Eu sinto tanto!
- Moça, o seu quarto está liberado. – a recepcionista falou num inglês mequetrefe.
- Finalmente! – levantou os braços e agradeceu, pegando a sua chave e indo até o elevador.
- ! Por favor, me dá uma chance de consertar tudo?!
- Você tem uma máquina do tempo, ? Pra voltar 5 anos no tempo e me devolver todos os meus preciosos segundos gastos com você? – inspirou fundo. – Se não tiver como fazer isso, por favor, vá embora. – piscou rápido, tentando não chorar.
- ... Não faz isso, por favor. Você sabe que eu não tinha opção. Eu te amo tanto! – puxou seu braço. – Não faz isso... Não faz comigo o que eu fiz com você! Só você pode entender as consequências disso!
Ela parou, soltou uma bufada e respondeu-lhe baixo:
- Não tente me tornar a culpada disso tudo.
- Você é muito teimosa mesmo, ein, menina?! – ele disse, sorrindo.
- Você também não é nada cabeça dura... – respondeu-lhe com um rolamento de olhos.
- Ai, como eu te amo, menina linda! Você não tem ideia do quanto! Eu sei que você deixou de viver durante um tempo e acredite: eu também. Mas podemos recuperar esse tempo. Juntos, , como tem de ser!
- ...
- Por favor, vamos nos dar uma chance?
- Eu acabei de aceitar esse emprego e é uma chance única, maravilhosa... Eu não posso desistir de tudo agora e simplesmente voltar para o Brasil!
- Ninguém te pediu pra fazer isso, meu amor. Eu te acompanharei onde você for – até você enjoar de mim, porque aí eu me afasto um pouquinho. Pode ser? – disse, arrancando uma risada da menina.
Ela balançou a cabeça incerta:
- Acho que... Acho que pode.
Juntos há 3 anos, residindo na Alemanha pelo mesmo período e loucos de saudades do Brasil, e arrumavam as malas para voltar ao país natal. Ela, com ajuda do namorado-barra-advogado bem sucedido, tinha conseguido iniciar seu próprio negócio, contando com alguns amigos de trabalho novos e antigos.
- , vamos dar uma caminhada no Rheinpark? Uma despedida... Que tal?
- Ah, ... Temos tantas coisas pra arrumar, acha mesmo que é uma boa ideia?
- Sim! Vem logo! – puxou a namorada num beijo e tirou-a de casa.
Caminharam uns bons 15 minutos admirando a paisagem e as pessoas, conversando besteiras, antes que parasse no ponto mais bonito do local, florido pela primavera.
- Vamos parar aqui? Só um tempinho? Sei como você adora esse lugar. – ela concordou sorrindo e dando um giro de olhos fechados, absorvendo todo o cheiro alemão de que ela sentiria falta.
Voltou-se para o namorado, que agora estava abaixado em um joelho, como se estivesse amarrando os sapatos. Só que ele estava com sandálias sem amarras.
- ... Isso é o que eu to pensando?
Ele sorriu nervoso e tirou uma caixinha aveludada vermelha do bolso:
- Acho que sim.
A garota levou uma das mãos à boca enquanto o garoto tomava a outra na sua própria mão, beijando-a.
- , sei que o nosso caminho foi feio, cheio de perrengues e de pedras, empecilhos grandes e pequenos... Mas aprendi muito com tudo isso. Queria começar falando um pouco na sua linguagem natural: a das câmeras. Sei que você conhece os melhores ângulos para se filmar toda e qualquer cena, tirar fotos perfeitas e, o mais importante: sabe de que ângulo a vida deve ser vista. Aprendi com você que esse ângulo tem que ser aquele mais aberto, distante dos acontecimentos. Porque temos de compreender o cenário por completo. Temos de ver a tela inteira para entender aquele pontinho da cena. Eu sei que não sou perfeito, mas sei que, com você, me sinto completo. A minha sorte deixa de vir de um par de tênis azul e passa a vir de um minúsculo par de tênis vermelho. O meu sabor de sanduíche favorito deixa de ser de queijo e passa a ser o dos seus lábios. E eu sei que esse caminho não é só de ida. Sei que há retorno. Sei que junto de mim, você esquece esse seu complexo do joelho (que por sinal, acho lindo). Sei que esquece de anotar as suas dicas preciosas no bloquinho se eu estiver te distraindo. Sei que adora me falar sobre seus filmes antigos e sobre meditação e incenso e tudo o que eu acho besteira. – ela deu-lhe uma tapa leve no braço, rindo. – Mas não quando vem na sua voz. Aí tudo parece importante, essencial. E eu sei que você gosta quando eu toco música até que você adormeça. E me encoraja a estudar música, como eu sonho. Mas sabe, , esse sonho se torna quase invisível quando você aparece. Aí o sonho maior é ficarmos juntos... Agora e sempre. Constituirmos uma família. Termos novos sonhos. Sonhos para serem realizados juntos. Então me ajuda a segurar essa barra que é gostar de você... Casa comigo? – abriu a caixinha e deixou à mostra um anel delicado, com pequenas pedras brilhantes.
- Claro que sim, ... – disse em meio a lágrimas e a multidão que havia se juntado, mesmo não compreendendo as palavras ditas, aplaudiu.
Uma garoa começou a cair enquanto ele tentava tirar o anel e ela ajoelhou-se próxima a ele, ajudando-o. Antes que ele colocasse o aro em seu dedo, ela leu o que estava marcado na circunferência interna e encontrou:
“To te esperando” - No meu tem a continuação: “Vê se não vai demorar”. – riram juntos, abraçando-se na chuva.
Ele colocou o anel em seu dedo e pegou a pequena face dela em suas mãos.
- Como eu te amo, menina linda. – sussurrou.
- Também te amo tanto... – respondeu apenas movendo os lábios, já próxima demais do rosto dele para que ele pudesse ver. E uniram-se num beijo apaixonado, na chuva, prontos para serem felizes para sempre juntos, como ela tanto havia sonhado.
Eu e você
Não é assim tão complicado
Não é difícil perceber
Quem de nós dois
Vai dizer que é impossível
O amor acontecer
- Eu sinto muito. – disse, deixando-nos a sós na sala. estava encolhida na cadeira, o rosto escondido pelas mãos, num choro que parecia inconsolável.
- Vai dar tudo certo, meu amor... Nós vamos fazer dar certo, tá bem? – disse sem acreditar nas minhas palavras, acarinhando sua cabeça. Seus braços se apertaram ao meu redor e não pude segurar o meu próprio choro. – Não se preocupe, vai dar tudo certo...
Se eu disser
Que já nem sinto nada
Que a estrada sem você
É mais segura
Eu sei você vai rir da minha cara
Eu já conheço o teu sorriso
Leio o teu olhar
Teu sorriso é só disfarce
O que eu já nem preciso
parecia diminuir a cada dia e nada parecia surtir efeito. Não estávamos juntos há nem 5 anos quando recebemos a notícia... O quão injusto era isso? Finalmente felizes, até ela adoecer.
Mesmo magra em demasia, ainda exalava uma beleza fora do comum. E sempre com uma alegria estampada.
- , temo que minhas notícias não sejam boas. – virei-me para encontrar o médico com um rosto preocupado. Olhei-o já compreendendo: não havia dado certo. De novo. Tornei a olhar pra minha mulher, agora adormecida, e não me aguentei em pé, caindo na cadeira atrás de mim e chorando sozinho.
Sinto dizer que amo mesmo
Tá ruim pra disfarçar
Entre nós dois
Não cabe mais nenhum segredo
Além do que já combinamos
- Oi, meu amor! Quanta falta senti de você...
- Mamãe! – o pequeno abraçou-a mais forte do que ela podia aguentar.
- Como você tá lindo! Gostou da festinha? – ele balançou a cabeça. – Ah, que bom! Faz pra mamãe quantos anos você tem agora! – ele levantou quatro dedinhos.
- Bom dia, menina linda... – beijei-a carinhosamente. – tem pedido pra ver as vovós e os vovôs sempre, acredita? Pede pra visitá-los quase todo dia...
Rimos juntos.
- Se eu soubesse que deixá-lo um final de semana com os nossos pais daria nisso, teria pensado duas vezes. – disse rindo e segurando uma tosse doída, com traços de sangue. – Ah, mas que droga... Achei que isso já tivesse passado!
- Shhhhh... Descansa essa garganta, dorme, meu amor. – depositei um beijo em sua testa.
No vão das coisas que a gente disse
Não cabe mais sermos somente amigos
E quando eu falo que eu já nem quero
A frase fica pelo avesso
Meio na contra mão
E quando finjo que esqueço
Eu não esqueci nada
- Já estamos há muitos anos tentando todos os tipos de tratamento... E nada tem funcionado. Talvez seja melhor você ir pra casa, descansar. – o rosto, apesar de magro, estava inchado e vermelho com o choro. Ela balançou a cabeça, segurando uma tosse.
- Não, e quanto àquele tratamento novo que surgiu na Ásia? O senhor me falou de alguns e eu tenho pesquisado por conta própria também! Há novos medicamentos, novas formas de tentar combatê-lo, eu e-eu...
- Tá na hora de ir pra casa, ... Eu quero ir pra casa, tá bem? – disse calma, segurando a mão do filho, agora já crescido.
Virei-me de costas pra ela e solucei forte... Como ela podia desistir de tudo, de nós agora?
E cada vez que eu fujo, eu me aproximo mais
E te perder de vista assim é ruim demais
E é por isso que atravesso o teu futuro
E faço das lembranças um lugar seguro
Não é que eu queira reviver nenhum passado
Nem revirar um sentimento revirado
Mas toda vez que eu procuro uma saída
Acabo entrando sem querer na tua vida
- Eu amo tanto vocês... E eu sinto muito por todo esse tempo que os fiz sofrer. Todos vocês. Agradeço àqueles que me apoiaram e me ajudaram a passar por todas as fases de todos os tratamentos. Aprecio o carinho de todos os presentes que recebi. Obrigada, querida amiga , você foi uma parte essencial da minha vida: me acolheu quando precisei e cuidou de mim quando não pude cuidar sozinha. Mamãe e papai, sinto muito por não estar presente sempre e por tê-los desapontado tanto. – nessa hora todos tinham rostos vermelhos e chorosos. – Ana, perdão por ter tirado o partidão de você... Mas dizem que se escreve certo por linhas tortas e, no fim das contas, você arranjou outro partidão, um que te amasse. , meu menino lindo... Perdoa a mamãe por não poder te ver crescer, não te ajudar a andar de bicicleta, ensinar a surfar, andar de skate, tirar fotos... Tantas coisas que perdi e perderei. Eu sinto muito, mas sei que o papai vai te ajudar nisso e em tanto mais, viu? E a você, , que posso dizer? Depois de tudo o que passamos, queria dizer que acabou e viveremos felizes para sempre. Mas eu não posso. Infelizmente eu não posso. Ah, , como eu te amo tanto... Minha mão tá dormente e não consigo escrever muito mais: sinto muito por isso também. Não posso te dar ao menos uma despedida digna... Obrigada. Por tudo. E me perdoe por ter tirado todos esses anos de você. Encontre alguém pra cuidar de você, meu amor, e do . Boa noite, meus queridos. Acho que vou dormir agora.
O salão estava todo em lágrimas e o papel com os escritos na letra de estavam molhados pelas minhas. chorava no colo do meu pai e, se o padre não tivesse tomado alguma iniciativa, talvez ficássemos lá, chorando, por mais algumas horas.
- Vamos agora rezar um Pai Nosso em memória dessa doce mulher, sim? – disse em meio a fungadas, secando as lágrimas.
Eu procurei qualquer desculpa pra não te encarar
Pra não dizer de novo e sempre a mesma coisa
Falar só por falar
Que eu já não tô nem aí pra essa conversa
Que a história de nós dois não me interessa
Se eu tento esconder meias verdades
Você conhece o meu sorriso
Lê o meu olhar
Meu sorriso é só disfarce
O que eu já nem preciso
- , o caminhão da mudança já chegou! Já pegou sua mochila?
- Já, pai! – respondeu o impaciente menino, agora com 10 anos.
- Não tá faltando nada, né? – ao sinal negativo do filho, continuei: – Bem, então despeça-se da sua casa, filho... – disse, enquanto perambulava devagar pelos cômodos. – Ah, ... Como teríamos sido felizes aqui. – disse choroso, já no nosso quarto, olhando para uma foto do casamento. Peguei a moldura e dei uma última checada em gavetas e armários, buscando algo que estivesse faltando.
No banheiro achei uma escova vermelha, ainda com alguns tufos de cabelo daquele dia.
ANOS ATRÁS
- , tá pronta? Vamos cantar o parabéns do ... Dá pra acreditar que ele já tá com 1 ano?! Ei... – encontrei-a chorando, sentada no vaso, com a escova vermelha na mão. – O que aconteceu, meu amor?
Ela não olhou pra cima, apenas me entregou a escova. Olhei-a e vi bastante cabelo nela.
- Ah, ... Por que comigo, hã? – à minha falta de resposta, continuou: – Sabe, acho que estou com você nessa de que não há ninguém lá em cima... Nem Deus, nem Jah, nem Alá, nem a trindade hindu, nem Zeus, nem seu ninguém! Se tivesse alguém lá, por que faria as pessoas passarem por isso, hã? Que bom motivo teriam?
- ... Vai ficar tudo bem. Não se preocupa, vou cuidar de você, vamos cuidar do . Vamos ser felizes juntos e vai ficar tudo bem. – peguei a escova e soquei-a na última gaveta.
- Você acha, realmente?
- Você é a pessoa mais teimosa que eu conheço, vamos sair dessa, tá bem? – beijei-a na cabeça e ela foi comigo até a sala, encontrar nossos convidados.
E cada vez que eu fujo, eu me aproximo mais
E te perder de vista assim é ruim demais
E é por isso que atravesso o teu futuro
E faço das lembranças um lugar seguro
Não é que eu queira reviver nenhum passado
Nem revirar um sentimento revirado
Mas toda vez que eu procuro uma saída
Acabo entrando sem querer na tua vida
Antes de ir dormir, fiz o meu ritual diário de ligar para o , que agora estudava culinária na França. Era um homem feito, muito parecido com o meu irmão e com a mãe dele, . Ah, ...
Peguei aquela sua última carta, já deitado, e a reli por completo, como o fazia todas as noites. Havia aquela última frase, pequenininha no canto direito de baixo da página que me fazia sorrir tristonho todas as noites:
“To te esperando” Li-a mais uma vez, selando-a com um beijo e coloquei o papel na minha cabeceira, apagando o abajur para dormir. Nessa noite o sono veio rápido, tranquilo... Senti uma paz diferente, que não sentia há muito tempo. Ficou tudo claro e uma brisa batia no meu rosto. Abri os olhos sorrindo, pois sabia que ali na minha frente se encontrava ela, me esperando para sermos felizes para sempre.
