A Donzela em Perigo e o Herói




ELA


, a garota dos cabelos , já estava cansada de tanto andar. Podia dizer-se que era uma tortura fazer aquele longo caminho todos os dias. Mas, no final, ela ficava contente de ver sua avó. Ela já estava aos setenta anos e sua mãe punha-lhe pressão dizendo-lhe que a velha não resistiria por muito tempo, e era bom aproveitar enquanto ela estava ai. Não adiantava chorar as pitangas depois. De qualquer jeito, ela caminharia o tempo que fosse para ver sua avó.
Mas também não podia negar o cansaço e perguntar-se se aquilo tudo era em vão. Mesmo que soubesse que não era.
A estrada era de terra e o sol batia-lhe o rosto. As pernas doíam e lhe pediam um arrego. A franja loira colada já estava em sua testa há tempos. O suor escorria-lhe em várias partes do corpo, ainda mais que estava com roupas justas e longas. Estava terrível.
Mais meia hora andando foi o que precisou para avistar as primeiras casas do bairro de sua avó. As casas eram de madeiras e decadentes. A situação só não era pior do que a própria rua de . Eles tentavam dar o melhor para sua avó, e ali estava ela.
Foi de repente que ao caminhar, uma mão pousou-lhe no ombro. De início assustou-se. Mas ao virar-se e olhar para o rapaz atrás de si, o seu olhar foi de ódio.
Ele tinha os cabelos pretos e caídos sobre os olhos. Era oriental. Tinha praticamente a mesma idade que , alguns meses de diferença, talvez. Aos lábios finos trazia um sorriso debochado que conseguia ser lindo. Apesar de o seu interior nem tanto.
Ninguém precisava olhar para ele, sequer, para descobrir que ele era o cobiçado da cidade. Suas roupas eram refinadas e deixavam qualquer um naquele lugar com inveja da riqueza exposta em suas roupas. Em seu ser. Isso intimidava, até mesmo, , que não ligava para as roupas que usava.
— O que é agora? — ela perguntou, ríspida. Demonstrando em sua voz que não estava feliz com sua visita. — Cansou de ver ouro e veio ver miséria?
Ele sorriu de lado. Deu de ombros.
— Vim ver você, . Sabe que te amo.
não gostou de ouvir aquilo. Uma repugnância subiu-lhe a garganta. Não poderia imaginar que uma pessoa como ele pudesse amar alguém. Não. Isso era inimaginável. Tudo que ele sabia fazer era o mal.
— Qual é, , não brinque comigo. E sabe que não gosto de, sequer, olhar em sua cara. Se puder me dar licença agora, agradeceria.
O sorriso dos lábios de sumiu de seu rosto quase que instantaneamente. Ele comprimiu os lábios e apertou os olhos.
— Eu não queria fazer isso — ele disse, pacífico —, mas você não me deixa escolha.
— O que vai fazer? Jogar minha avó na rua por que ela mora na sua “casa”? — Ela soltou uma risada.
— Isso é exatamente o que farei se não sair comigo.
Isso fez perder a fala. Ela respirou fundo. E respondeu-lhe com calma, antes de começasse a espancá-lo com toda a raiva que estava.
— Você sabe que não pode tirar-lhe a casa. Ela já é velha, tem os direitos dela.
— Então... é isso? — O olhar de ódio que mandou-lhe foi como quando ele olhava para os mendigos. Como olhava para todos que não eram de sua família. Desprezo e nojo. — Ainda vamos nos ver, . Em breve.
E saiu do caminho de . Isso pesou em sua consciência. Todos sabiam que não batia muito bem da cabeça. Talvez um ou dois parafusos faltassem-lhe por ser tão insano.
Pouco depois a sua avó apareceu na janela de sua casa. Os óculos ovais postos e o sorriso contagiante. O momento de raiva deixou assim que viu sua avó, sorriu. E o esforço de ter andado até ali, já tinha sido recompensado.
Ao entrar na casa de sua avó, foi bombardeada com o cheiro de bolos e biscoitos frescos. Sua barriga roncou alto. Caminhou para a cozinha, onde sabia que sua avó se encontrava.
Com as costas curvadas para o forno, a senhora de idade trajava um vestido de bolinhas e longo.
— Que bom que chegou, querida. — Ela falou, e deu uma olhadela para trás. — Achei que não viesse. Ia ter que comer os biscoitos sozinha...
riu. Ajudou sua avó a retirar a forma de biscoitos do forno e colocar em cima da mesa.
— É de chocolate — avisou a avó. ignorou o arder de sua mão e pegou um biscoito da forma. Sua avó deu-lhe um tapa fraco no braço. — Não come agora, tá quente.
riu e ignorou a avó. Colocou o biscoito na boca e engoliu rapidamente. Sua língua ardeu ainda mais que suas mãos, mas isso não a fez deixar de provar a delícia que estava o biscoito. O sabor de chocolate como recheio a fez sentir-se nas nuvens.
— Isso tá muito bom. — Ela pegou outro biscoito. — Sabe quem veio me atormentar? — perguntou a avó.
Sua avó sentou-se uma cadeira. sentou-se de frente para ela.
— Quem?
. Diz que vai tirar a casa da senhora, mas se ele o fizer, vai realmente conhecer a pessoa que diz estar apaixonado.
Sua avó deu de ombros.
— Deveria dar uma chance a ele. Só trocou poucas palavras, não o conhece direito.
riu.
— As poucas palavras que trocamos foram as piores de minha vida. E sei muito bem quem ele é.
— Se você diz. Vou acreditar.
pegou mais um biscoito, pensativa.
(...)
Ver sua avó, por ser uma grande razão, não era a única para ela andar até ali. O seu pai morava com ela, também. Tinha um pequeno escritório bagunçado atrás da casa. Ele passava praticamente o dia inteiro concentrado ali. Ninguém nunca soube o que ele fazia. E quando não estava ali, o mistério era onde ele estaria. Nunca contou a ninguém.
Entretanto ainda deixava entrar em seu escritório, mesmo que nunca lhe contara o que fazia para viver. Ela abriu a porta com cuidado, para não assustá-lo. O piso de madeira rangeu quando ela pisou em uma tábua solta. Sorriu sem graça, quando seu pai olhou para ela.
— Oi — disse tímida.
Sua mãe e seu pai estavam separados. Apesar de tudo, os dois ainda mantinham um bom relacionamento. Amigável. A causa da separação fora por que a mãe de alegava que o pai da garota não tinha tempo para mais nada a não ser o trabalho.
E estava terrivelmente certa.
— Oi, querida — ele respondeu. Retirou os óculos que o deixavam vibrados na tela. — Tudo bem?
— Sim.
Ela se aproximou. Passo por passo até estar perto do pai para dar-lhe um abraço. Trocou poucas palavras com ele, e continuou observando a sala, em silêncio. Seu pai encarava o computador, novamente.
— Pai — chamou , observando o local —, cadê o tapete de lobo que eu te fiz?
Por segundos seu pai manteve-se quieto. Seus lábios comprimidos.
— Coloquei para lavar — ele explicou.
Isso aliviou o peito de , achando que ele teria se livrado do tapete que tanto lhe custara a fazer.
— Legal. Acho que vou deixá-lo trabalhar.
— Sim, sim — falou meio desnorteado. — Como vai sua mãe?
Ela caminhou para porta, um sorriso aos lábios.
— Bem — respondeu, e deixou o escritório.

ELE

, o rapaz corpulento, dos olhos s e cabelos castanho-claros, estava sentado em sua picape cinza. O jazz alto soava de seu carro. Ele balançava a cabeça de frente para trás. De trás para frente. Constantemente. Não se cansava da música, poderia ouvi-la para sempre.
Era noite. Os faróis ligados iluminavam a estrada de terra. Estava indo para a parte pobre da cidade.
A noite e a garrafa de vinho o fizeram começar a ter alucinações, pois jurava ter visto uma hiena do outro lado da rua.
Mas foi somente quando ouviu um grito morrer ao lado do seu carro que percebeu que não fora uma alucinação. Os faróis focaram o animal, e logo ele saiu correndo. Media aproximente 1,5 metro de comprimento. As patas dianteiras maiores que as traseiras. Os pelos castanho-escuros. Não era agradável de ser visto. Mas ele já tinha ido.
Foi ouvido o barulho de algo se chocando com a água.
desacelerou o carro e parou-o num encostamento. Desceu e correu para o lago que havia ao lado. Por estar escuro não conseguiu enxergar muita coisa. Mas a água estava agitada.
— Socorro! — O grito era feminino. Isso fez desesperar-se. Poderia ser alguém que ele conhecesse, alguém que ele amasse. — Socorro!
Com o desespero pairando em sua pele, obrigou-se a enxergar por cima da escuridão. Viu braços se agitando sobre a água. O corpo afundando-se.
Não pensou muito. Jogou sua blusa para trás e pulou no lago. Se soubesse fazer algo bem, isso era nadar.
Mergulhou e nadou até onde os braços se encontravam. Agarrou-os. Um déjà-vu passou por sua mente. Ele sentia que já estivera ali. Ao menos, tinha sonhado com o lugar. Com tais braços. Só lhe restava saber se era a mesma pessoa.
Mas não teve tempo de observar a feição da garota. A apoiou-lhe em si e, com cuidado, levou-a para a beira do lago. Era extenso, realmente, nem mesmo os pés de alcançavam o fundo.
A garota tossiu em cima de seus ombros. Ele escutou seus dentes baterem ferozmente uns com outros. Ela tremia demais. Demais.
Mesmo estava começando a ficar com frio.
Ela foi a primeira a deixar a água. Ainda consciente, rastejou o quanto conseguiu até a estrada de terra. Depois caiu desacordada. saiu do lago e, com dificuldade, levou-a até seu carro. Colocou-a no banco de trás. A blusa que jogara no chão, ele usou para cobrir-lhe os braços.
Montou no carro e deu a volta. A noite de festas, a mulherada, a bebedeira ficaria para mais tarde. Ele se obrigaria a deixar a embriaguez de lado, naquela noite, ainda mais. Tinha um grande peso nas mãos.
Pois a garota que estava no banco de trás do seu carro, era a que sonhara durante anos.
Essa era sua chance de saber por que ela sempre aparecia em seus sonhos.
Mal a conhecera e já sabia que ela mudaria várias coisas que estariam por vir. Ainda mais, sua vida.
(...)
Foram algumas horas mais tarde que a garota acordou. Os olhos esverdeados encararam , preocupados e confusos. Ela se levantou da cama rapidamente. Cambaleou e caiu de volta. soltou uma risada sem humor, observando-a.
— Ela não quer alguma coisa? — perguntou um dos seus colegas de casa. deu de ombros.
— Nos dê privacidade — pediu . — Vou conversar com ela. Qualquer coisa eu lhes grito.
Os três rapazes, que estavam presentes, deixaram o local.
A garota continuou quieta. Encolheu-se na grande cama, quando sentou-se na beirada.
Seus olhos estavam sendo puxados para ela. Mesmo que não quisesse olhar, era impossível. Sua beleza era única. E, ela sempre fizera parte de si, em seus sonhos inexplicáveis.
— E aqui está você — murmurou ele, sorrindo —, somente você. A mesma visão, aquela do sonho que eu sonhei.
— O que disse? — perguntou ela. Tímida. Reservada. Afastou-se mais um pouco de , e deu de costas com a parede.
— Pensei alto — explicou ele. — Está se sentindo melhor?
Ela assentiu. Os cabelos, agora, já estavam secos. A mulher da casa, que cuidava das coisas, tinha cuidado deles para ela.
— Por que estou aqui? — ela perguntou.
Ele deu de ombros.
— Te sequestrei. Vai virar escrava sexual.
O olhar de desespero da garota o fez rir. Ele se aproximou dela, mas a mesma o estapeou ao aproximar-se.
— Não! — Ela gritou. — Não me toque. Seu... seu porco!
desatou a rir. Sua gargalhada soou alto no quarto inteiro. A garota ficou atônita, desatenta com a situação. O seu olhar de desespero ainda preso em seus olhos.
— É mentira — contou —, você caiu no lago e eu fui te ajudar.
E então o olhar sumiu de seus olhos e algo como lembranças os tomou.
— É verdade — disse ela, sorrindo envergonhada. — Eu caí por que vi uma hiena. Eu estava de bicicleta e não queria atropelá-la e o seu carro estava passando... Sabe... hienas não são muito rápidas.
— Mas está melhor? — perguntou ele, preocupado. — Quer algo? Uma maçã? Bolo? Bolacha?
— Estou bem. Mas eu aceitaria uma xícara de chá.
— Tudo bem. Já volto.
deixou o quarto. Caminhou pelo imenso corredor de sua imensa casa luxuosa. Ele morava ali com mais seis caras, e às vezes, suas esposas estavam ali. Cada um tinha uma suíte grande, como a que a garota estava agora.
O longo corredor de cor creme encurtou-se quando chegou ao final. Desceu as escadas e encontrou Susete, uma das esposas, e perguntou-lhe se não poderia preparar um chá.
— É claro que sim! — concordou ela. — Já levo lá pra cima.
E ele voltou para o quarto. A garota estava deitada novamente. O cobertor que antes estava dobrado agora cobria o seu corpo e modelava-o.
Quando fechou a porta, foi que ela percebeu que ele teria voltado. Primeiro seu olhar pousou em suas mãos, a procura do chá, depois se voltou para o seu rosto.
— Susete está preparando o chá — explicou —, já vai trazer.
— Quem é Susete?
— A esposa de um dos meus amigos — respondeu ele. Caminhou para a cama e sentou-se na beirada, de forma que não se encostasse ao cobertor. — Ela gosta de cozinhar qualquer coisa.
— Isso é legal. — A conversa morreu.
não queria que isso acontecesse, mas aconteceu. Justo quando ele mais queria assunto. Queria perguntar-lhe do por que ela aparecer em seus sonhos, por que nunca a tinha visto antes. Questões rondavam sua mente, mas nenhuma queria saltar de seus lábios.
Foi ela quem quebrou o silêncio.
— Qual seu nome? Devo chamá-lo de herói?
riu e negou com a cabeça.
— Chame-me de . E você? Devo chamá-lo de donzela em perigo?
— Meu humilde nome é — ela sorriu, demonstrando covinhas que até agora, não reparara. E de repente, ela estava sentada na cama. Jogou a coberta para o lado e levantou-se, dessa vez, não cambaleou.
Os seus sapatos, que estavam ao lado da cama, o tempo todo, calçou.
— Aonde vai? — perguntou , atônito com a mudança de humor da garota. — ?
— Preciso ir pra casa.
Ele levantou-se para ampará-la. Ela desviou-se, mas conseguiu agarrá-la antes que deixasse o quarto.
— Não precisa ir agora — falou ele. — Está tarde, bem tarde. — O hiperativismo de abaixou-se. Ela relaxou as costas, antes, tensas. — E Susete está trazendo um chá. Pode dormir aqui hoje, prometo que ninguém lhe fará mal.
— Tem certeza? — ela perguntou desconfiada. — Onde você vai dormir? E os outros? O que acham disso?
— Eles estão bem, já os contei o que houve. Relaxe.
E foi o que fez. Deitou-se de volta na cama. lhe cobriu e ela sorriu em agradecimento.
— Não respondeu onde você vai dormir — ela retomou, com um sorriso aos lábios. — Não quero incomodá-lo em sua própria casa.
— Vou colocar um travesseiro ao chão, e arrumo uma coberta pela casa — disse , dando a volta pelo quarto. — Não se preocupe.
Ele colocou a mão na maçaneta.
chamou-o. Ele virou-se para ela, esperou que começasse a falar. — A cama é de casal. E não me mexo à noite. Por favor, não quero que durma no chão. É muito ruim.
— Tem certeza? — perguntou ele
Ela assentiu graciosa.
Ele soltou a maçaneta e voltou-se para ela, sentou-se na cama, ao seu lado.
— Acho que ainda não o disse — começou ela a dizer —, mas, obrigada por me salvar.
sentiu uma pontada em seu coração. As palavras haviam acabado de ser escritas ali. era a primeira pessoa que lhe dissera tais pronunciamentos. Ninguém nunca estava satisfeito com as coisas que fazia. E isso de alguma forma, o fez sentir-se especial.
Um especial que o fez sorrir.
— Tudo bem, donzela em perigo.
— Vou te chamar de herói — disse ela, e os dois riram.
Duas batidas soaram da porta, antes de Susete aparecesse com uma bandeja prateada e duas xícaras em cima.
ajeitou-se na cama, sorrindo. Susete aproximou-se envergonhada.
— Está melhor? — perguntou a — fiquei sabendo do que aconteceu.
— Estou sim — respondeu —, obrigada.
Susete colocou a bandeja no meio dos dois. Depois deixou o quarto, dando uma piscadela para que o fez corar.
Os dois já tinham terminado de tomar o chá, que Susete sendo uma boa pessoa, havia levado para também. Agora, caminhava com a bandeja e as xícaras para fora.
Deixou o quarto. Caminhou para a cozinha.
— Ela está bem? — perguntou Jonny. Seu amigo, do quarto ao lado. — Ela estava tremendo bastante.
— Acho que ela está bem, Gênio — respondeu , rindo do apelido que arrumara para Jonny. — Não contraiu nenhuma hipotermia.
— Até por que ela não estava com esfriamento das mãos e pés — ele numerou com os dedos —, dormência nos membros, pulsação lenta, inchaço na face. — Nesse momento, Jonny olhou para que tinha uma expressão de desgosto ao rosto. — Estou fazendo de novo, não é?
— Com certeza, sim — respondeu . — Sabe com é, Gênio, tem que parar com esses ataques de sabido que você tem... Às vezes é chato.
não queria admitir, também, que tinha inveja, um pouco, do tamanho da esperteza que Jonny demonstrava. Não costumava ter um bom histórico escolar, e isso era algo que admirava. Mas nunca iria contar à Jonny. Era preferível mentir a contar que o admirava.
— Vou tentar. — Ele deu de ombros. — Mas é algo legal.
— Se você diz. Quem sou eu para falar que não?

ELA


observara deixar o quarto com a bandeja nas mãos e as xícaras por cima.
nunca estivera em um lugar tão luxuoso quanto aquele quarto.
Um guarda-roupa de marfim estava ao longe. Uma pequena cômoda pairava ao seu lado. A cama tinha o lençol de seda que a fazia querer se espreguiçar e tomar toda a cama. Era maravilhoso estar ali. Mas não podia ficar por muito tempo, ela tinha que ir embora.
Isso a fez pensar em sua mãe. Por sorte eles não tinham telefone, pois nesse instante sua mãe devia ter telefonado à sua avó. Quando percebessem que ela não estava em nenhuma das casas, a coisa ficaria feia.
Tinha que ir mais rápido o possível. Amanha.
Segundos mais tarde, retornou.
— Posso desligar a luz? — perguntou ele. Parado ao lado do interruptor.
— Claro — respondeu ela. O medo do escuro tomou-lhe. Não deveria contar isso a ele. Mas contou. — Hum... ? — Ele olhou para ela. Seus olhos focaram-se nos seus. — Poderia deixar, pelo menos, uma vela acessa?
O olhar que deu à foi de confusão. Ele sorriu e deu de ombros. Saiu do quarto, e segundos mais tarde, voltou com uma vela acessa em cima de um prato pequeno.
Colocou-a ao lado da cômoda de . Ela sorriu.
— Obrigada — agradeceu. deu de ombros. Deu a volta na cama, e deitou-se ao seu lado.
— Só tem uma coisa que deve saber sobre mim — disse , sua voz contendo uma risada. sentiu o peso de na cama, quando ele deitou-se. — É que gosto de puxar a coberta. Ainda mais quando estou dormindo.
riu com a afirmação de .
— Tudo bem — ela disse, por fim.
Minutos mais tarde, realmente puxou o cobertor. , ainda acordada, riu. Depois se virou de costas para ele e observou a chama da vela, queimar.
(...)
Foi cedo quando acordou. não estava mais ao seu lado na cama. Não que isso importasse. De qualquer maneira, levantou-se. Ajeitou a coberta e esticou o lençol. Calçou seus sapatos, alisou sua roupa. O quarto tinha um banheiro. entrou nele, um Box transparente. Um grande espelho seguido de uma pia. Lavou as mãos, o rosto e escovou os dentes com os dedos.
Ajeitou o cabelo, prendeu-o em um coque firme e deixou o banheiro.
Não tinha como voltar, a bicicleta de sua avó lhe emprestara, agora estava no fundo de um lago, e provavelmente ninguém nunca fosse lhe achar.
Teria que voltar a pé.
Claro, se não tivesse entrado no quarto antes e lhe oferecido uma carona. Isso alegrou o seu dia.
— É claro — ela aceitou.
estava com os cabelos castanho-claros arrepiados para cima. Os olhos brilhavam a exposição ao sol, que entrava pela janela. Usava calça jeans e uma blusa regata azul, que deixava seus músculos expostos. Ele também era bastante alto, e mesmo também o sendo, ela era pequena ao seu lado. Ele era tão alto com um ogro. Isso era estranho, mas ela gostava. O deixava, de algum jeito, maravilhoso.
— O.K.. Vai querer ir agora?
assentiu.
— Vamos lá, então.
seguiu , e só então, pôde ver a imensidão que era a casa que estava. Um longo corredor, várias portas, uma escada com poucos degraus, uma sala exuberantes e várias outras portas.
O carro no estacionamento era uma picape cinza. jurava já tê-la visto, mas não se recordava de onde. Foi no carona, e logo, estava dirigindo. explicou-lhe o local de sua casa.
Primeiro: ele franziu a testa, o local era horrível, muito pobre.
Segundo: ele deu de ombros, como se não importasse.
Durante o percurso do caminho, eles trocaram poucas palavras. O caminho foi longo, não podia reclamar de nada. Era a primeira (ou segunda?) vez que ela estava em um carro.
Ao completar dezesseis anos, fora a primeira vez que sua mãe deixara-a sair de casa. Não havia deixado a garota sair antes disso. E agora, podia ir da casa de sua avó, para a dela própria.
, às vezes, sentia-se como no clássico conto de fadas da Rapunzel, em uma torre. Aprisionada. Não pôde deixar o local até os dezesseis, e isso a fez ser muito inocente com o mundo. Mas também a fez boa.
Entretanto, ali estava ela. Em um carro com um desconhecido. Mal conhecia , mas era como se o conhecesse há tempos.
— E cá estamos — falou , fazendo-a voltar para a realidade.
O carro parado de frente a sua casa.
retirou o cinto de segurança.
— Quer entrar?
olhou-a confuso.
— Sério?
assentiu. Ela sorriu e deixou o carro. estacionou o carro ao lado de sua casa. Desceu e caminhou até ela.
A casa estava vazia, como esperava. Não sabia ao certo, se era bom levá-lo ali, mas, poxa, ele tinha lhe oferecido sua cama para o seu conforto.
A casa de não tinha nada de mais. Um sofá simples, um televisor simples. Dois quartos, um banheiro. O piso de madeira, as paredes de madeiras. Móveis, os melhores que conseguiram. Tudo na medida do possível. O bom quanto podiam.
não pareceu se importar com sua pobreza.
— E essa é minha humilde residência.
— É bonita — falou , com relutância — de qualquer forma.
— Eu sei que não está acostumado com ambientes pobres. Mas é como estou acostumada. Sabe? Com o tempo, você para de se preocupar com o nível de riqueza da pessoa.
— Eu não... não... Eu não ligo, . — Ele olhou-a nos olhos. sentiu a verdade sob eles. Transpareciam, também, uma tranquilidade. — Eu não me importo. E eu não sei por que, mas eu sinto, como... como se você fosse se tornar alguém importante para mim, entendeu? Meu pai sempre prezou riqueza. Mas você me faz não me importar com isso. Apesar de minha criação.
Aquilo pegou de surpresa. Alguém importante. Era algo que também sentia. Talvez estivessem conectados de alguma maneira.
— Sabe, isso é estranho, sinto isso também. Acho que nos conhecemos na vida passada. Sinto como se já te conhecesse há anos.
sorriu, deu de ombros.
— Quer ver minha coleção? — ela perguntou, animada. Não a mostrava para ninguém mais do que seus pais. A animação de saber o que outras pessoas achariam encheu-a. — Está no meu quarto.
— Claro.
Eles caminharam para o quarto de . Algo ainda mais básico. Uma cama de solteiro simples, um tapete, que ela também fizera, e vários quadros postos à parede.
Os olhos de focaram justamente o que ela queria, os seus quadros.
— Eles são... lindos! — admirou . Ela olhou para ele. Seus olhos brilhavam de excitação.
Alguém achava seus quadros bonitos, lindos. Aquilo repetia em sua mente. Ela sorria, o melhor sorriso, o maior de todos, exposto em seus lábios.
Mas o que respondeu foi:
— Obrigada!
caminhou até o seu lado. Ela pairava perto dos quadros.
— Sabe, eu tenho uma porção de coisas lindas nesta coleção. — Ela começou a dizer. — Posso dizer que eu sou alguém que tem quase tudo com elas. A cada quadro, cada traço da pintura exposta na tela — ela soltou um sorriso — me faz sentir-me única. Só, amo fazer o que faço.
Às vezes as garotas colocam roupas curtas. Elas vestem suas melhores roupas. Enchem seu rosto de maquiagem. Demonstram que elas têm o que mostrar aos outros. não tinha, mas naquele momento, os olhos de brilharam ao perceber que ele sabia de que forma seria especial em sua vida.
— Eu queria ter a coragem que você tem — ele disse, um tempo depois. Após observar os cinco quadros pendurados na parede. — Seguir meus sonhos...
falaria alguma coisa, mas prosseguiu.
— Sou saxofonista. Quando pego o saxofone — ele riu pelo nariz — eu me sinto único. Como se a perfeição tivesse me atingido. Mas... eu só não posso.
— Que importa o mal que te atormenta — disse ela, um sorriso aos lábios —, se o sonho te contenta e pode se realizar?
— Não é assim tão fácil — ele respondeu rindo. — Mas obrigado, . Você é uma pessoa especial.
— Obrigada.
Eles permaneceram observando os quadros. Depois apresentou o seu quarto. mostrou a sua coleção de livros que ela também tinha. E a cada momento que eles ficavam juntos, sentia-se grata. Pequenos momentos felizes.
Quando estava prestes a ir embora, soltou uma pergunta que deixou desprevenida.
— Posso te levar para sair amanha?
Ela não sabia muito que responder. Seus anos em casa nunca a deixaram saber como se lida com garotos. Como se deve dizer o sim sem demonstrar-se muito animada, ou um não sem magoá-los. Mas, o que soube fazer foi assentir e dar-lhe um sorriso. Assim, os dois sorriram e ele partiu.

ELE

Era um pouco tarde quando ele chegou a sua casa.
Não que seria exatamente a sua casa. Mas ele fazia parte. E isso o deixava feliz. morava com mais seis caras. O que era estranho, mas eles não eram homossexuais, e até tinham suas devidas esposas. Mas a real razão de isso ter acontecido, fora que fugira de casa aos doze anos. Desde então, fora criado por esse bando de marmanjos e suas mulheres. E dizia-se feliz.
Mas não tanto. acostumou-se à ir para festa, beijar mulheres de montão e não se importar com as coisas importantes da vida. E ainda acostumara-se a mentir para as garotas, dizer-lhes que ligaria depois. Ele nunca o fazia.
Entretanto, ver a garota que sonhara desde pequeno ali em sua frente, foi com certeza, um sinal de que ela seria diferente. Não diferente como ele dizia a todas. Mas realmente diferente. era alguém especial. Isso era inevitável. E mesmo conhecendo-a tão pouco, a conhecia muito. E os noventa segundos, que de acordo com Gênio, demoravam ao seu cérebro decidir se estava apaixonado ou não, já tinham decidido.
Ele estava.
E dessa vez, queria fazer as coisas diferentes. E foi. Talvez, desejasse não o ter feito. Se isso fosse evitar certas situações que viriam.
No dia seguinte, acordou animado. Apesar de que sentira que algo estava faltando-lhe. Vestiu um short jeans, uma regata azul e calçou seus tênis. Ajeitou os cabelos para cima, lavou o rosto e fez sua higiene matinal.
Pegou um cesto que Susete havia guardado na cozinha e encheu-o com vários tipos de guloseimas. Um pano longo e montou-se em sua picape na direção da casa de .
Mas antes de chegar, recebeu uma ligação.

ELA


A manha de tinha sido completamente normal. Ela não fora visitar a avó, como costumara fazer, mas procurou algo legal em seu guarda-roupa para usar.
nunca se importou com suas vestimentas, mas de uma forma que não sabia explicar, ela queria estar atraente naquele dia. Queria estar bonita. Sua mãe percebeu sua frustração rapidamente. Correndo de um lado para o outro da casa, a mãe parou-lhe e disse:
— Que horas ele vira?
— Eu não sei — respondeu — daqui a pouco, eu acho... Mas, mãe, não tenho nada para usar!
— Sem drama, querida.
As duas caminharam para o quarto de , pacientemente, sua mãe procurou por uma roupa adequada para ela. E achou. Optou por um vestido rosa, uma palma acima do joelho, e sua mãe emprestara-lhe sua sapatilha branca. Os dois tinham a cor clara, que a deixavam com uma aura alegre. E no fim, suas vestimentas caiam-lhe bem.
O que fizera no cabelo fora simples. Pegou o pente do banheiro e penteou-o para cima e prendeu-lhe em um coque firme e pôs-lhe um apetrecho a segurá-lo. Ao finalizar, observava-se ao espelho, achando-se esbelta.
Pouco antes de ir para porta esperar por , sua mãe chamou-lhe em um canto.
— Querida?
— Sim?!
Sua mãe aproximou-se, trazendo um objeto em mãos.
— Quero que fique com isso — falou ela, entregando-lhe algo pesado. — É um celular. Qualquer coisa me ligue. Sabe como usar, não é?
assentiu.
— Como a senhora conseguiu um desses?
— Não importa — ela foi um pouco rude. não quis aprofundar-se muito no assunto. — já chegou?
? — indagou , confusa. — O nome dele é .
O rosto de sua mãe empalideceu. A campainha soou.
— Está tudo bem? Mãe? — Ela assentiu.
caminhou-se para porta. Ao abrir deparou-se com . Sorriu. Ele estava lindo. Uma regata azul que destacava o seus músculos, novamente, que dessa vez, reparara mais. Um short jeans básico e sorria alegremente. Nas mãos, ele trazia com sigo um buque de rosas vermelhas.
Eram maravilhosas.
Ele entregou-lhe o buque. aceitou de bom grado.
— Obrigada — disse a ele.
— Você está linda, — observou ele. Ela sorriu envergonhada.
— Você é que está.
entregou o buque de flores à sua mãe, pediu-lhe para colocar água. Até então, sua palidez já tinha sumido de seu rosto. Gritou-lhe um tchau e caminhou ao lado de para o carro. A todo instante envergonhada.
— Então — começou , pondo o cinto de segurança — o que faremos?
encarou-a. Inclinou-se para ela.
— Bom, é que antes, tinha planejado para fazermos um piquenique, mas surgiu uma proposta melhor. A cesta está até ai atrás e tudo mais. Mas, achei melhor esse novo plano. Que tal um almoço?
deu de ombros.
— Maravilhoso!
(...)
Maravilhoso não seria bem o termo que usaria novamente para descrever esse “almoço”. A palavra certa seria aterrorizador. nunca soubera como era ter um encontro. Mas imaginava duas pessoas em uma lanchonete trocando altas ideias maneiras e se conhecendo melhor. Aquele “almoço”, que não era um termo muito adequado, fizera-a sentir-se nua perto de todas as outras pessoas.
Várias mesas estavam postas sobre um gramado. Não diretamente na grama, mas com um pequeno “chão” branco sob. Havia um lago ali por perto. E ela ouvia um sapo ali. Também havia a fonte de um anjo, o barulho constante da água caindo.
A maioria das mulheres usavam vestidos longos e refinados. Os cabelos muito bem feitos, e a maquiagem davam-lhe uma aparência muito melhor do que elas realmente deveriam ter. Os homens usavam terno e gravata. Mesmo no sol escaldante que fazia.
E havia um banquete para que os próprios “clientes” servissem-se, sob uma tenda bem organizada. E não parecia um simples cliente, pois ao entrarem no local, várias pessoas o conheciam. Era uma reunião ou algo do tipo.
Quando se sentaram em uma mesa mais afastada, encarou-a com um olhar animado.
— O que achou?
— Achei que deveria ter me avisado para eu ter me vestido um pouco melhor — ela riu sem humor. — Isso é tipo, uma reunião de elite?
riu.
— Não — ele falou — é só a minha família.
O queixo de foi ao chão. Não literalmente, calma. Mas ela estava perplexa. A família de era rica. Ela sabia que ele era rico, mas nem tanto. Isso era estranho. Não estava acostumada a ver mais luxo do que vira no quarto de .
— Eles são daquela casa que você mora? Os carinhas?
balançou a cabeça negativamente.
— Na verdade — começou ele —, aqueles caras lá são meus amigos. É que... eu fugi de casa quando tinha doze anos. Desde então meu pai vem tentando me levar de volta para casa. Ele me convidou para esse almoço, sem fins, e achei que seria legal te trazer. Conhecer eles, meus primos, irmãos e irmãs. Somos uma família grande.
— Adoraria conhecê-los — ela foi sincera.
sorriu e levantou-se. Ele estendeu a mão a e ajudou-a levantar-se. Enquanto andavam a direção do bufe, os dois permaneceram com as mãos dadas.
A primeira pessoa da família de que encontraram fora Ellie. Sua irmã. Ela tinha, praticamente, a idade deles. Mas não achou muito agradável conhecê-la. Ellie tinha um ar superior, parecia metida e esnobe. Isso não fora legal para . Mas não disse nada, disse-lhe boas palavras e riu, às vezes.
O restante da família de fora agradável de conhecer. Mais um irmão, John e duas irmãs, Jeanine e Marcily. John fez piadinhas de sobre o “encontro” dos dois. Jeanine e Marcily, que estavam juntas, contaram o que aprontava na infância. Isso fez rir muito.
— Ele não gostava de tomar banho — contara Jeanine —, mas não se preocupe que hoje a coisa funciona normalmente.
E tinha saído e deixado-as três sozinhas. Depois que se foram, voltou-se a mesa e sentou-se. Esperou por , observando ao longe, com os olhos desatentos. Várias pessoas ainda a observavam. Isso de uma maneira, não a intimidou mais.
— Olha, olha — uma voz disse ao pé de sua orelha. virou-se assustada para o lado e deparou-se com um sujeito muito conhecido. — O que faz aqui, querida?
? — engasgou-se . — O que você faz aqui? Eu deveria ter imaginado que era uma reunião de elite...
— Reunião de quê? — Ele riu. — É a reunião de minha família. O que uma intrusa como você faz aqui?
aproximou-se da mesa com um sorriso aos lábios.
— Irmão — ele deu duas batidas nas costas de . — Conheceu ? Trouxe-a aqui.
tentou distinguir qual o olhar que estava transmitindo. Raiva. Ódio. Inveja. Ela não sabia dizer. Ele ficou pouco pálido. Encarou com uma expressão seca, sem vida. Não disse nada. Mas moveu-se e deixou o local.
ficou confuso, mas deu de ombros e sentou-se de frente para .
— O que deu nele? — Ele riu. — Não se preocupe, não foi você.
Mas era certo que fora . Ou . Ela já não sabia mais dizer. passou por perto balançando chaves de carros. Isso atormentou e um sentimento ruim encheu seu coração. Olhou para , ele encarava-a com as sobrancelhas arqueadas. Depois sorriu.
— Vamos comer? O pessoal vai demorar um pouco ainda, mas já podemos nos servir.
— Claro — respondeu . Eles levantaram-se. pegou em sua mão novamente.
Eles caminharam para o bufe, havia diversidades de coisas para ela experimentar. A maioria, ela, sequer, tinha visto em toda a sua vida. O cheiro maravilhoso de várias coisas diferentes preencheu suas narinas de uma forma deliciosa. O sentimento ruim em seu coração escondeu-se no meio de tantas comidas gostosas — ou imaginava que fosse.
pegou um grande prato e começou a servir-se. copiou-o. Não sabendo muito bem o que escolher, optou por coisas que conhecia e adicionou coisas que não sabia em pequenas proporções, caso não gostasse.
Ela escolheu macarronada, com um molho banco que cheirava excepcionalmente bem. Espiando o prato de viu que ele também escolhera a mesma coisa.
Para beber, ofereceu-lhe algo chamado “refrigerante de cola”, que mesmo já tendo visto e ouvido falar, nunca provara. Aceitou de bom grado e os dois caminharam para sua devida mesa.
— Bom — disse — depois, se quiser, podemos fazer aquele piquenique.
riu, enquanto se sentava.
— Não sei se vou conseguir comer algo a mais depois daqui.
riu.
— Sempre cabe um pouco mais.
sorriu.
De repente, ficou sério.
— Sabe, — ele começou, sua voz calma, suas bochechas estavam avermelhadas. Ele sorriu. — Eu venho sonhando com você desde que eu tinha... seis, sete anos? Cinco? Talvez?
corou.
— Isso é fofo, .
Ele balançou a cabeça, rindo.
— É real — contou ele. — É muito real. — Riu, um pouco apavorado — E eu estive preocupado hoje de manha. Mas positivo por que são somente sonhos.
— Como assim real? — questionou, atônita.
— Acontece, sabe? Eu sonhei com você se afogando um dia antes te conhecer e só tem um problema.
— O que?
— Eu parei de sonhar com você hoje.
— Talvez — sorriu, sem graça —, agora seja a hora de você tomar suas decisões não é?
— Acho que sim — ele deu de ombros. — Só queria te dizer. Achei muito estranho não ter sonhado com você essa noite. Mas seu argumento tem sentido.
sorriu, envergonhada, não era todo dia que se encontrava alguém dizendo que sonhou com você desde pequeno.
— Isso é fofo — comentou ela. — Você sonhando comigo.
— Posso dizer que na maioria das vezes, sonhar com você me animava. Me dava vontade de te procurar, te achar, saber o por quê.
ficou um pouco envergonhada. Encarou bem e notou uma peça brilhante em seu pescoço.
— Isso é um boneco? — ela perguntou, mudando o assunto, e apontando para a pequena corrente que ali estava.
— É — respondeu meio sem graça. — Tem uma história por trás...
apoiou sua cabeça em suas mãos.
— Tenho o tempo todo para ouvir.
olhou para baixo uma porção de vezes, depois, olhou para e deu de ombros.
— Posso ser breve? — perguntou-lhe. — Não me sinto muito bem falando disso. Tem um significado enorme.
— A história é sua. — sorriu, incentivando-o.
— Isso era de minha irmã. A mais nova. Ela sempre gostara de bonecas e bonecos. Eu sempre fui mais próximo a ela. Brincava com ela, mesmo estando mais crescido. E não me cansava. Ela era única. Às vezes o seu jeito de me deixar entretido em seus olhos me lembra dela. — Ele sorriu. — Não sei se isso é bom. Mas teve uma vez — sua voz falhou. Ele pigarreou. — Uma vez... ela... ela... atravessou a rua sem olhar e bum. Se foi. Assim. Sem dizer um eu te amo. Sem dizer um nada. Eu sempre disse para ela, tem que olhar para os dois lados antes de atravessar. Mas, ela nunca me ouviu mesmo.
— Nossa. — Foi a única coisa que soube dizer no momento. Estava envergonhada de ter pedido que contasse algo tão pessoal. Mas de uma maneira estranha, estava feliz por ele ter desabafado com ela.
— Posso te contar algo a mais, se quiser.
— Só se você não se importar — ela respondeu.
— Depois que ela se foi — ele começou, encarando-a. — Eu comecei a levar a vida meio que “não quero mais saber de nada”. Meu coração não se emenda, tudo é tão lindo no início, mas a razão diz: se contenha, se não quiser ir pro sacrifício. E usei essa frase para os próximos seis anos de minha vida. Não me orgulho disso. Teria feito às coisas diferentes, agora. E de uma forma, é bom contar isso a você, . Acho que será alguém especial para mim.
— E o mais estranho — disse — é que acho o mesmo.
Eles ficaram em alguns segundos de silêncio.
enrolou alguns fios de macarrão em seu garfo e colocou-os na boca. Mastigou enquanto observava encarar-lhe com os olhos brilhantes. Um azul lindo. Claro. Magnífico.
— Está sujo aqui ó.
Ele colocou o polegar um pouco ao lado de seus lábios e arrastou o dedo devagar. Tornando então, um momento de troca de olhares que teve que deixar o garfo ao ar e encará-lo.
Intenso. Profundo. Mágico. Único.
Nunca tinha achado alguém tão lindo como . E não dizia só de beleza, o que era bastante, mas considerava-o bonito por dentro. E tinha tanta coisa para conhecer mais dele, ainda. E estava ansiando por isso. Conhecê-lo. Explorá-lo. Ela poderia descobrir muitas coisas ainda, e não tinha tanta certeza se uma delas a deixaria de bom... começar a amá-lo.
Um toque estranho e irritante começou a tocar em cima de . O celular. retirou seu dedo rapidamente de seu rosto e voltou a encarar a comida. pegou o celular e olhou para .
— Atende — ele aconselhou, e foi o que ela fez.
— Alô? Quem é?
— Amor? — A voz era de seu pai, urgente. Amedrontada. — ? Úrsula deu encolhida, mas estou. Bem. Preciso que vá para casa, por favor, querida. Não pode ficar mais ai. Já deu o seu horário, sua mãe precisa de você em casa.
— O que? — Ela balbuciou.
— Eu te amo, tá bom? Amo mesmo.
— Eu tamb...
Ele finalizou a ligação. O PI, PI, PI incomodou . O que seu pai queria dizer com A Úrsula encolheu? Úrsula era um dos quadros que ela teria pintado. Estava confusa.
encarou-lhe, também, confuso.
— Posso perguntar quem era?
— Claro — ela assentiu descontraída. — Era meu pai, com uma história de que meu quadro encolheu.
— Isso é estranho — voltou a comer seu macarrão. — O que mais?
— Ele quer que eu vá para casa.
bufou baixinho. O único encontro que tivera em toda a sua vida, precisava ir embora antes, pois tinha um horário para voltar. Que tinha sido exposto naquele exato momento. Além de ser esquisito, era frustrante.
— Pode me levar?
— Óbvio que sim — ele sorriu — o piquenique fica para amanhã pode ser?
— Vou adorar — sorriu.
Mesmo que tivesse que ir embora, não deixaria de terminar seu macarrão. Limpou o prato e até experimentou o tal do “refrigerante”, mas ela odiou. E deixou lá. pareceu não se importar.
Ela se despediu das irmãs de . Não sabia onde estava, e nem queria saber. John estava sumido.
Subiram na picape.
— Esse seu carro é muito legal — observou .
— Obrigado — riu. — Ganhei dos meus amigos de casa.
— Caramba, eu quero morar com uns caras desses — brincou, depois riu.
— Quem sabe não te levo pra morar lá?
ficou sem palavras e corou muito.
— Não sei... você puxa muito o cobertor.
Mas a piada morreu quando ligou o motor. A barriga de revirou-se. Não estava mal de estômago, isso ela tinha certeza. O sentimento ruim estava lhe causando isso.
Pontadas no coração. O reviramento em sua barriga. Os arrepios nos braços e o pessimismo em sua mente.
Começou a raciocinar. Passou e repassou várias vezes a conversa estranha que teve com seu pai. Então sua barriga se reviravolteou e ela soube que algo estava errado.
Seus olhos marejaram e um arrepio percorreu-lhe dos pés à cabeça.
— ela falou. Sua voz demonstrando o quanto estava com medo — leve-me para a casa de minha avó? Por favor?
— Vai ficar por lá?
— Algo está errado com meu pai — ela contou. — Claro! — Deu um tapa na própria testa. Suas mãos começaram a tremer rapidamente. — Sempre conversávamos em código quando não queríamos que outras pessoas soubessem o que estávamos falando. — Os olhos de começaram a marejar e a estrada começou a distorcer diante de seu olhar. Limpou o resido de água por ali. — Ele falou ajude-me.
Por sorte a casa de sua avó era mais perto do que a de sua mãe. Quando desacelerou, pulou do carro e correu em direção ao escritório de seu pai. Cambaleou um pouco, mas conseguiu.
Observou pela janela pequena que havia. Seu pai estava em pé, as mãos ao alto, o corpo reto. A sua frente estava . Ele segurava uma arma. E algo a mais.
Um tapete de lobo. O tapete que fizera. O que dera para o seu pai.
— Isso aqui não me serve mais de nada! — gritara . — Ela não me ama! Não me quer! Quer a bosta do meu irmão — ele gargalhou alto. Uma risada do mal. Demonstrando suas intenções, suas más intenções. — Do que me serve então? Do que você me serve? Nem pagar mais você paga! Eu vou jogar a velha para fora e acabar com a vida dela. Dela. Da sua filha. Mas antes, a sua primeira.
Outro arrepio cobriu o corpo de .
Ela deu a volta pelo escritório. Em frente à porta, entreaberta.
Os olhos de seu pai captaram rápidos o seu corpo. Seus olhos esbugalharam-se. Ele mexeu a cabeça em discordância.
— Qual seu último pedido? Querido papai?
— Por favor, . NÃO!
Mas era tarde demais. já tinha entrado no escritório e se jogado em frente ao seu pai. Ela tinha se sacrificado por ele. O barulho do tiro soou por todo o ambiente. O local. O lugar. E o corpo dela caiu ao chão.
ELE
tinha acabado de finalizar a ligação com a policia quando ouviu o tiro, seu corpo entrou em choque. Ele correu para a sala onde tivera entrado. Seu corpo tremia somente com a possibilidade de que...
Era melhor nem pensar.
Quando entrou no escritório e a viu-a caída, seu corpo parou. Paralisou. Seu corpo tremendo ainda mais. Um homem agarrava-a. Estava sobre ela, chorando em cima de sua barriga, onde um buraco e muito sangue estavam expostos.
Outro rapaz também chorava em cima dela. Mas ele o reconheceu. Era seu irmão. A maneira estranha como agira com antes, claramente, agora, tinha um propósito. Ele tinha feito isso.
Agarrou-o pelo colarinho e jogou-o na parede. tinha mais força. Eram filhos de mães diferentes. E por sorte, a de era meio ogra.
escorregou ao chão. pulou por cima dele e de repente, havia sangue escorrendo de seu nariz. Deixou-o recuperar-se. Depois deferiu-lhe uma séries de socos em seu rosto. Seu irmão gritava, e o homem velho chorava atrás de si. Balbuciando palavras sem sentido para a emergência.
Não demorou em seu irmão cair ao chão.
— Você fez isso! — Ele gritou. A raiva era o seu ser. E o seu irmão, o tinha irritado. Chutou-o. Chutou-o. Chutou-o com a maior força possível. — Você! — Então o chutou-o de novo.
E quando desmaiou, escorregou pela parede de madeira e caiu cansado ao seu lado. Então ele chorou. Dobrou os joelhos em direção ao seu rosto e apoiou-se ali. Seus soluços misturados ao do senhor que, sequer, conhecera, mas sabia que era alguém importante para .
Ela era importante para ele.
A polícia não demorou a chegar e prender . A ambulância não demorou a chegar e prestar socorros a .
(...)
A bala já havia sido retirada. No mesmo dia que chegara ao hospital.
Ele não podia visitá-la agora. Estava restrito aos familiares e ele não era um. estava preso há mais de uma semana. Uma vez ou outra foi chamado à delegacia, mas não foi acusado de nada.
Em casa, ficava o dia inteiro na cama. Não estava deprimido, mas queria dormir para sonhar com ela. Mas não sonhou. Nem mesmo no domingo. Na segunda. Na terça. Na quarta. Na quinta. Na sexta. No sábado. E nem no próximo domingo.
Isso o deixava aflito. Não sonhara com ela uma única vez em seis anos e agora ela jazia em um hospital. Correndo risco de vida ou morte. Queria se matar.
(...)
Quando o risco de vida de diminuiu, ele pôde visitá-la. Ao receber o telefonema de sua mãe, ficou grato dela ter ligado-lhe. Correu para o hospital. Infelizmente, eles tinham o horário de visita. Permaneceu na cadeira durante cinco horas até poder ir vê-la.
Quando um homem de jaleco branco caminhou ao seu lado, levando-o para o local que ela estaria, o coração de bateu fortemente. Ferozmente. Rápido. Muito rápido.
— Ali está — ele disse e deixou-lhe.
Ele caminhou devagar até ela. Agora coberta e de roupas brancas. Estava pálida. Desacordada. Em coma.
A agulha perfurava seu corpo. quis tirá-la. Poderiam estar machucando-a, mas sabia que não o faria. Era necessário.
Os cabelos estavam espalhados para os lados. Lindos.
Havia uma cadeira ao lado de sua cama. Sentou-se nela. Perto de seu rosto. Mexeu em seus cabelos e então começou a falar.
— Caramba — ele riu sem humor — você é bonita até mesmo no hospital. Mas sabe como seria mais bonita? Falando comigo. Acordando.
Ele pegou em sua mão. Apertou-a. E uma lagrima molhou-a.
Era como se conhecessem há tempos. Conectados de uma maneira estranha.
— Poxa, , o que preciso fazer para que volte para mim? Já disse que te acho especial. Que é linda. E acho que você tirou minha mania de mentir para mulheres. Acho que nunca o fiz com você. Sabe, eu queria voltar a sonhar com você. Essa situação toda tem me desanimado. Vê-la acordada em meus sonhos me traria uma energia que só você é capaz de me dar.
Ela apertou sua mão. tremeu e olhou para seus olhos. Ainda fechados, se debatiam sob sua pálpebra.
Ele inclinou-se para ela, e soube o que tinha de fazer.
Mesmo sendo idiota.
Mesmo sendo coisa de contos de fadas.
Ele o fez. Mirou seus lábios e lhe beijou.
Ao afastar-se a boca da garota era um sorriso. Os olhos abertos. A energia restaurada.
— Meu herói — balbuciou ela, ainda fraca.
— Donzela em perigo — ele respondeu. Mais uma lagrima escorreu-lhe dos olhos. — Sempre vou salvá-la.
— Assim espero — retrucou e riu baixinho.
Depois voltou a adormecer.
(...)
Os dois estavam deitados na cama de . Eles riram de alguma besteira que fizeram. Os dedos entrelaçados. Os olhos com um brilho único.
Fora tão rápido se apaixonar por ela.
As coisas aconteceram tão rápido.
De uma maneira, o rápido agradou .
Fora rápido tê-la de volta. Mesmo que tivesse parecido um ano.
— chamou , prestes a dormir. Ele olhou para ela. — Eu fiquei pensando ontem. Eu acho que esse é um mundo ideal, um mundo que eu nunca vi. E agora eu posso ver e lhe dizer que estou num mundo novo com você.
— E não quero que ele acabe. Você quer?
— Não.
— Então posso dizer que esse é o nosso “e foram felizes para sempre”.

UM POUCO LONGE DALI


A mulher fechou o livro de capa dura.
— Fim — ela disse à garota que acabara de contar a história. — O que achou?
— E o resto? Não gosto de felizes para sempre! Qual foi a primeira coisa que ela fez depois que saiu do hospital? E os quadros que ela pintou? Ele virou saxofonista?
A história que era para fazê-la dormir tinha deixado-a alerta.
— Querida — a mãe afagou-lhe os cabelos morenos —, agora é a sua vez de imaginar. Boa-noite.
Um pouco longe dali, o maior saxofonista e a melhor pintora da cidade observavam, pela janela, as estrelas. Sequer imaginando que sua história estava sendo contada para milhares de pessoas. Para mostrá-las de que também existe o tal de “amor verdadeiro” na vida real.



FIM



Nota da autora: 10/04/2015 Quatro noites mal dormidas e o anseio de terminar. Espero que tenham gostado, assim como gostei de escrevê-la, e claro, ligar os pontinhos.


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