poderia ser a menos preparada para a função, mas aparentava estar melhor do que qualquer um. “Aparência é o suficiente no mundo em que vivemos” pensou.
Quando sua presença finalmente foi solicitada no escritório, não hesitou nem um segundo dando passadas firmes sobre seu salto alto. Podia estar vestida ridiculamente naquela roupa de empregada, mas sua aura não sofria impacto algum.
- Sente-se, por favor. – a mulher loira usando uma blusa sofisticada apontou a poltrona branca do outro lado da mesa. Sem levantar, sem cumprimentar, sem sorrir. Sobrancelhas finas erguidas e olhar desdenhoso: . – Convença-me.
- Boa tarde, senhora . Meu nome é e sou formada em psicologia infantil. Meus estudos foram focados na faixa etária dos 7 aos 12 anos, objetivando o desenvolvimento de personalidades de grande sucesso. Tive o melhor desempenho na Universidade e...
- Posso ver isso. – olhou-a por cima do currículo. engoliu a raiva que tinha de ser interrompida, não demonstrando alteração alguma. – Ouça bem. Por algum motivo desconhecido, você foi a única das candidatas a quem meu marido deu alguma atenção na hora de selecionar. Espere, eu disse por motivo desconhecido? Sinto muito, eu quis dizer por causa do seu rosto bonito e das ancas sobressalentes. Mas lembre-se de que cedo ou tarde ele vai cansar de você, assim como de todas as outras. – apesar da beleza que possuía, era absolutamente claro para que era insegura e se autoafirmava tentando fazer os outros menores. – Está me entendendo?
- Perfeitamente.
- Gosto quando abaixam a cabeça para falar comigo. – obedeceu, dirigindo o olhar firme para o tapete com estampa floral. – Muito bem. Quero você e suas coisas aqui amanhã antes das seis. Alguma pergunta?
- O horário da criança na escola, por favor. – direcionou o assunto para o foco daquele emprego.
- Pergunte para a babá que mandei embora. Ela ainda deve estar choramingando e colocando as malas no carro. – fez um gesto displicente com a mão.
- Sim, senhora.
- Ah, e não precisa usar essas roupas horrorosas. Isso foi só para você se lembrar de se por no seu lugar. – a loira alisou sua blusa com uma fina estampa animal e levantou a mão. – Pode ir.
saiu da mansão silenciosamente, mas sem passar despercebida. Fez algumas perguntas à antiga babá que, de fato, chorava e caminhou por longos metros até seu carro, fazendo questão de desviar do caminho normal várias vezes para que não houvesse desconfianças.
Conferiu a maquiagem no espelho retrovisor do carro e viu que seu batom vermelho estava impecável como sempre.
- Mas é uma cadela mesmo. – murmurou para si mesma enquanto sorria sozinha.
não era nada perto do que ela realmente tinha que lidar. Fingir-se de babá e lidar com uma famosa colérica era apenas parte do plano. Era por um bem maior.
Quanto a , só para começar, esse não é seu nome verdadeiro, mas isso não é importante. Ela é repórter investigativa e isso sim é relevante, já que desde a adolescência havia descoberto que possuía o curioso poder de saber quando os outros estavam mentindo e fazê-los falar a verdade. Tal habilidade seria excelente em um confessionário, mas apenas recitar os erros não a fazia feliz, ela gostava de fazê-los se arrepender. Digamos que isso fazia com que tivesse uma vida paralela.
- Feito. – disse assim que a outra atendeu o celular.
- Ela caiu mesmo no currículo falso? – Tress perguntou um pouco surpresa.
- Ela e o marido pelo visto, mas desconfio. Creio que seja mais esperto do que isso. – retirou a roupa azul marinho e se dirigiu para a banheira.
- Você não acha que está se arriscando muito por uma matéria?
- É mais que uma matéria. Eu tenho certeza que esse homem está envolvido em tráfico internacional de pessoas. Certeza. – um arrepio percorreu seu corpo tenso enquanto entrava na água quente.
- Não sei não, . Às vezes acho que você leva isso tudo a sério demais.
- Isso tudo é sério demais. – suspirou. – Já está tudo encaminhado, Tress. Começo amanhã e as ligações devem ser mais cuidadosas. Deseje-me sorte.
- Não é como se você precisasse, mas... – ouviu a risada amigável e única da parceira de trabalho. – Boa sorte.
desligou e dedicou-se em se banhar com um ar de nostalgia antecipado em relação ao seu próprio apartamento. Não sabia quando voltaria ali novamente.
Nome:
Idade: 7 anos
Gosta de: Super Heróis
Não gosta de: Perfume
Horários: Segunda a sábado- 7:00 – 13:00 – Colégio
Terças e Quintas – 14:00-17:00 – Aula de Francês
Segundas, Quartas e Sextas – 14:00-18:00 – Classes de Ballet
Segunda a Sexta – 18:00-20:00 – Aulas de Música (teoria musical, piano, violino e harpa)
Sábado - ....
sentiu dó da menina antes mesmo de conhecê-la ou terminar de ler a lista. Mas não precisava de dó, ela precisava de carinho e boas histórias de super-herói.
De qualquer forma, a falsa babá se atrasara e chegara à mansão pelas seis e meia da manhã. Sempre se atrasava e isso era um hábito que tinha que vencer. Felizmente, seu atraso não fora um grande problema, porque não estava acordada. Então, foi até o quarto da criança. Havia paredes cor de rosa semi escondidas por pôsteres com brasões, fotos de jornal e figuras com personagens como a Mulher Maravilha, o Lanterna Verde e a Arlequina (?). Não sabia muito bem lidar com crianças, mas não podia ser tão difícil assim. Podia?
- Bom dia. – abriu as cortinas de uma vez e esperou a menina acordar, mas não houve se quer movimentação em baixo das cobertas do Capitão América. – Bom dia. – falou mais alto. – Bom dia. – retirou o lençol de cima dela, que se encolheu e escondeu o rosto com a cabeleira loira. – Acredito que está na hora de levantar, portanto bom dia.
Ainda sem resposta, tomou uma decisão aleatória e começou a fazer maria chiquinhas no cabelo da menina enquanto ela dormia. Com a movimentação inusitada, a criança despertou.
- Quê? – perguntou com a voz cheia de sono.
- Como você não acordava, resolvi te arrumar adormecida mesmo.
saltou da cama e riu da própria cara quando viu maria chiquinhas mal feitas e desalinhadas em seu reflexo.
- Você não sabe fazer isso. – começou a tirar com pouco jeito, arrancando vários fios do cabelo.
- Ora, eu sou a pessoa que mais sabe fazer penteados que eu conheço. – ajeitou o próprio coque por puro perfeccionismo. – Sente-se que vou arrumá-la.
- Uma estranha não vai pentear meu cabelo.
- . Prazer. Agora sente.
Diante da firmeza mista de uma peculiar simpatia, a menina obedeceu instintivamente. Observou a mulher que lhe fazia uma pequena trança com cinco mechas de cabelo de cada lado de sua cabeça. Viu que era bem bonita e que tinha traços energéticos. Ela poderia ser uma super-heroína. É, devia ser boa moça.
- Então, , vi que você é uma menina ocupada. Quando você arruma tempo para ler as HQ’s ou ver os desenhos e filmes? – puxou assunto enquanto unia as tranças atrás da cabeça da menina.
- Depois da escola e antes do curso. E antes de dormir.
- Qual seu herói favorito?
- Não se pode fazer uma pergunta dessas! – a menina pareceu muito ofendida.
- Sinto muito, sinto muito! – ergueu as mãos em um pedido de desculpas bobo. – Você gosta de heróis por causa do seu pai?
- Não!
- Por causa da sua mãe? – colocou o elástico.
- Não! Vilões não gostam de heróis, dã.
- Então você é uma heroína no meio de vilões?! – continuou a conversa enquanto buscava uma bacia com água no banheirinho branco da suíte.
- Não sou heroína. – respondeu enquanto lhe ajudava a lavar o rosto e tirar as remelas.
- E por que não?
- Porque eu vivo com medo, e gente sem coragem não pode ser herói.
- Ora, então tem que criar coragem. E sabe por quê? Porque não se ganha a guerra com gentileza. Se ganha a guerra com coragem. – secou o rosto bonito de . – Acho que posso te transformar numa heroína.
- Pode nada.
- Claro que posso. E eu vou usar de um segredo para isso. Mas você não pode contar para ninguém.
- Mas a gente acabou de se conhecer! – a menina arregalou seus olhos azuis.
- E eu sei que posso confiar em você. Isso faz parte do meu segredo. Você quer saber ou não quer?
- Quero!
- Então vai ter que tomar um banho primeiro.
- Ah, assim não vale!
- Claro que vale. E se não tomar banho não vai saber.
correu para a suíte e se fechou lá dentro. suspirou, aliviada. Era uma boa menina.
Forrou a cama da garota e organizou seu material escolar até ela finalmente sair do cômodo branco, enrolada com as meias.
- Agora conta!
- Vai ter que me prometer que vai guardar segredo para o resto da vida.
- Prometo.
- De dedinho? – levantou o mindinho e enroscou seu dedo mínimo no dela.
- De dedinho!
- Eu sou uma super-heroína. – sussurrou com as mãos em volta da boca.
- Eu acredito. – a pequena se surpreendeu com o que disse, já que pretendia dizer o oposto. Então, afastou-se mal humorada.
- Viu? É claro que acredita. – cruzou os braços e voltou a sussurrar: - Esse é meu poder.
- Parece muito bobo. – ela sentou-se no puff roxo no canto do quarto e a babá aproveitou-se disso para colocar os sapatos nela.
- Não é nada bobo quando eu faço os vilões se confessarem para a polícia. – falou sabendo que isso soava mesmo bobo.
- Você faz isso?! Tudo bem, não é bobo. Qual é seu nome de herói?
- Não pensei nisso ainda. Você pode me ajudar a decidir isso. E também fazer uma roupa legal.
- Caramba, ! Isso vai ser demais!
- Vai mesmo! Mas lembre-se que é nosso segredo. – esticou a mão para a menina e a ajudou a se levantar. – Agora temos que seguir com nossas identidades secretas.
Juntas saíram do quarto e se dirigiram para a sala de refeição simples, onde um homem muito bem arrumado revirava um jornal.
- Definitivamente tenho que parar de ler essas coisas físicas. – depois, largou o papel em uma bancada auxiliar e dirigiu o olhar para a criança e sua babá. Seu olhar avaliou a mulher e o movimento de suas sobrancelhas mostrou sua aproximação com o que viu.
- Bom dia, senhor . - sorriu levemente para o irmão de .
- Bom dia, querida. Como devo chamá-la? – ele perguntou de uma forma que não lhe fez parecer um flerte, o que surpreendeu a repórter.
- Meu nome é .
- Seja bem vinda, . – depois se voltou para a menina. – Bom dia, .
- Não gosto desse nome! – a menina deu língua.
- Briga com a sua mãe que escolheu ele. – ameaçou bagunçar seu cabelo e ela o parou segurando seus pulsos. Ele, então, fingiu que a força da menina era suficiente para contê-lo.
- Já briguei. Vou brigar com você também se mexer comigo.
- Mostra o seu poder, pequena maravilha.
lhe deu língua e foi para a mesa do café sem lhe dar muita confiança. Enquanto isso, se esforçava para não dar um sorriso bobo. Estava em missão, mas ainda era um ser humano passível de comoção com cenas randômicas. “Foco, ” pensou.
Vamos aproveitar o momento do silencioso café da manhã e da locomoção até a escola para descrever a família . Essa é uma família que investiu no ramo da cervejaria e hoje vende uma das mais admiradas marcas da bebida. O faturamento é tanto que eles possuem uma pequena mansão em Bel Air, onde vivem os irmãos e , além da esposa e filha deste último, e .
Primeiro as damas. Já foi apresentado um pouco da garotinha, então é preciso analisar um pouco a mãe. é uma socialite desde que sua existência é conhecida no mundo. É dessas famosas de quase trinta anos que se deixam levar pelo dinheiro, fama e falta de juízo. A filha lhe categoriza enquanto “malvada”, mas essa não é sua verdadeira natureza, é só sandice causada por futilidade. Acontece com certa frequência.
é o grande culpado dessa missão. Aos dezoito anos, sofreu um acidente de helicóptero que deixou seu belo rosto marcado para sempre com uma cicatriz do lado esquerdo. Passou por alguns dos melhores psicólogos para se livrar do trauma e, afinal, ele parecia reagir bem. Era um homem sociável, mesmo depois de perder seus pais um ano após o acidente. Conseguia administrar bem a empresa e fazia excelentes festas. Apesar disso, pessoas fazem escolhas estranhas e decidiu começar um “programa de intercâmbio ilegal”. Moças bonitas querem conhecer o mundo. sabia disso e as fazia conhecer as piores partes dele. Ele era uma pessoa lastimável.
teve sua atenção desviada de seus pensamentos por uma voz que lhe agitara as entranhas.
- Se importaria de me acompanhar por um momento, senhorita? – um homem de terno apareceu na cozinha. . Era impossível não reconhecê-lo.
assentiu e caminhou com ele até a sala de estar, onde ele expulsou com pouca educação os demais criados. Depois, voltou-se para ela:
- Você é a responsável pela agora, certo? – aproximou-se com uma taça de champagne assim que colocou os pés na casa novamente. – Escolhi muito bem. Tenho bom faro. – ele absorveu o ar de forma repugnante.
reconheceria aquele rosto em qualquer lugar. Mesmo que não tivesse cicatriz alguma. Por algum motivo, ele não a reconhecia e isso era uma vantagem tamanha que ela não podia demonstrar o tamanho de sua gratidão.
analisou o vestido preto simples de sua funcionária que ia até o meio das canelas, o que o deixava insatisfeito. Tocou o detalhe da gola branca de sua roupa, sendo completamente obsceno:
- Vejo que minha esposa não quer que você use o uniforme. Uma pena, em parte, porque você deve ter ficado linda. Mas também é bom porque a verei variar de figurino diariamente pra mim. Não é mesmo?
sentia um nojo demasiado daquele homem, mas não podia demonstrar. Essas eram as regras do jogo: demonstrar apenas o que era favorável para o momento. O golpe de retorno iria chegar em boa hora.
- Você não tem língua? – perguntou.
- Tenho.
- Então imagino que foi muito bem treinada.
- Pelos melhores.
- Então você vai ser uma boa moça e começar a usar roupas que me agradem mais.
Seus olhos tinham a cor parecida com os da filha, mas, diferentemente dos dela, eram profundos e cruéis. Ele tinha um sorriso constante no lado direito o rosto, em contrapartida ao lado da cicatriz que lhe dava uma aura endemoniada. Mas, ainda assim, ele transmitia um ar curiosamente despreocupado.
Colocou a mão dentro do paletó e puxou de um bolso interno um colar de pérolas:
- Quero que use isso. Gosto de colocar uma boa coleira nos meus bichos, para eles não esquecerem a quem pertencem. Mas lembre-se que você é apenas uma argola dessa corrente, não dê muito trabalho para , tudo bem?
- Obrigada, senhor.
O agradecimento era verdadeiro. Agradecia verdadeiramente pelo presente. iria retribuir quando fosse preciso. Mais do que nunca soube que iria derrubar aquele homem.
Não podia simplesmente invadir o escritório de . Tinha que reconhecer terreno, captar informações, gerar confiança, e depois pegar as provas que necessitava. Passou por uma longa semana colhendo informações e horários de todos na casa e isso era algo um tanto incerto devido às viagens repentinas de um dos irmãos ou às vontades aparvalhadas de . De fato, a pessoa com mais rotina era , que se mostrava uma excelente companheira.
Levava a menina para o colégio e também para todos os seus cursos diariamente mesmo que o motorista se propusesse a fazê-lo sozinho, e sempre levava HQ’s e comida decente para ela. detestava as histórias em quadrinho e tentava fazer a criança ficar de pé à base de grãos e folhas simplesmente porque achava a menina obesa. não se importava nem um pouco. já sofria demais para ser privada de gibis e refeições de verdade. E quando perguntava, respondia firmemente que suas ordens não poderiam ser acatadas de forma melhor.
penteava os cabelos de uma sonolenta quando entrou no quarto:
- Vamos ao cinema hoje. – avisou sem empolgação alguma. – Vista umas roupas de menina hoje pelo menos. - entrou no closet e revirou as peças, escolhendo um vestido rosa claro com mangas brancas. – E coloque um perfume também. – jogou a roupa em cima da cama e espirrou a fragrância na criança, que começou a espirrar e fazer caretas.
- Odeio esse perfume. – ela disse coçando o nariz.
- É o meu perfume. Você deve amá-lo. – e deu um tapa na mão da menina. – Para de coçar o nariz! – revirou os olhos e se voltou para a babá. – Hoje ela não fará as atividades costumeiras. Vamos ao cinema com o . Ideia dele. Você vem também para cuidar da garota. Coloca um arco no cabelo dela e vamos antes que eu desista.
E saiu do quarto batendo a porta. não sabia se algum dia iria se acostumar com o fato de tratar como se não fosse sua filha.
Independentemente disso, pegou uma faixa de cabelo cor-de-rosa que combinava com os detalhes do vestido e colocou na menina.
- Desculpe por fazê-la sair assim. Sei que não gosta. – se desculpou, alisando os cabelos da menina.
- Odeio esse perfume. – insistiu.
- Já vai passar. – pegou um bicho de pelúcia que reconheceu como Kripto, o Super Cão, e estendeu para . sorriu quando se deu conta de que agora conhecia o nome do triplo de personagens “heroicos” e “vilanescos” do que conhecia antes de trabalhar ali. – Vamos, vai ser divertido. O Kripto vai te acompanhar. E o tio também.
A menina se animou um pouco e, abraçando o cachorro de mentira, saiu do quarto de mãos dadas com .
Quando chegaram ao salão, estava ao telefone:
- Lucrou muito com o último serviço que eu lhe dei, não foi? Eu sempre sei onde elas estão. – ria, satisfeita consigo mesma. – Mas agora o que importa é que eu vou sair com a e acho bom você estar lá para fotografar esse “programa de família”. – disse a última expressão com certo deboche. – Todos querem ver esse momento agradável nesses tabloides inúteis. Você sabe disso. – ela ouvia a pessoa do outro lado da linha. – Sim, quero cinquenta por cento dessa vez, só para eu fingir que estou ganhando alguma coisa com isso. E você vai me pagar sim porque já entreguei para você gossip demais! Você deve o seu sucesso nessa carreira idiota a mim! Portanto, ouça bem: você vai fotografar a mim e à garota, e quando o tio dela chegar você vai embora ou vai fotografar outras pessoas. Não quero especulação maliciosa sobre mim e o irmão do , está entendendo?! Não me decepcione.
E desligou, finalmente percebendo a presença das outras pessoas no lugar. era uma dessas socialites que negociavam com os papparazzi. Ela não saía apenas para se divertir com a filha, mas para posar de boa mãe. Atitudes desprezíveis e típicas.
Entraram no elegante carro da senhora e partiram para o cinema. Era um local enorme e de estruturas que faziam qualquer Shopping Center de cidade mediana parecer uma casa da roça. desfilava de mãos dadas com .
- Solta esse bicho um pouco, as pessoas tem que ver seu rosto. – murmurou entre dentes.
andava um pouco mais atrás, não se deixando impressionar pelo lugar ou pelo comportamento de .
- Eu quero ver esse filme aqui! – apontou para um telão que mostrava a imagem de um herói aleatório.
- Não aponta, garota! – seu sorriso ia quase de uma orelha a outra e seu tom de voz era doce, ainda que as palavras fossem cortantes. - Nós vamos ver um desenho qualquer. Olha esse aqui que aparece na televisão o tempo todo! É esse que vamos ver.
- Mas é chato!
- Agradeça por eu estar sendo tão boazinha e não seja pirracenta. Aliás, eu vou te deixar comer pipoca por hoje e isso já é bem além do que eu deveria fazer! A partir de amanhã sua dieta volta ao normal.
Depois conduziu a criança até uma parte de recreação dentro do próprio cinema, onde ela ficaria “distraída” enquanto fazia outras coisas. Beijou a cabeça da menina e acenou para ela enquanto uma atendente com um uniforme elegante levava para dentro da área cercada e colorida. Tirou algumas fotos, fingindo orgulho da filha, mas logo se cansou da personagem.
- Onde o está?! – olhava para o celular impaciente ao ver que ele não atendia suas ligações. – A ideia foi dele e ele não está aqui! – ela respirava pesadamente, tentando manter as aparências por mais que quisesse explodir. – Garota, liga para ele porque se não eu vou ter um ataque de nervos. – estendeu o enorme celular para .
- Perfeitamente.
Rediscou o número mais frequente das chamadas recentes e aguardou.
- , eu já falei que estou saindo de uma reunião! Será que você consegue entender?! – disse com uma voz irritada.
- Sinto muito, senhor . É que a senhora pediu que eu realizasse outra ligação. Ela só está esperando o senhor para comprar os ingressos. – a babá disse sentindo um pouco de impaciência com aquela situação toda.
- ! Sinto muito pela grosseria. – sua voz mudou instantaneamente. – Acho que você já percebeu como a é e não dá para ser totalmente paciente com ela. Eu não sabia que você iria, mas devia ter previsto...
- Eu irei acalmá-la dizendo que o senhor já está chegando.
- Mentiria por mim? – ele riu.
- Espero que não seja uma mentira muito grande. – ela abaixou o tom de voz para que não escutasse.
- Estou indo para aí voando. Até logo.
Mesmo com a “tranquilização” de , reclamou o tempo todo até que chegasse. De fato, ele não demorara muito. Pediu desculpas pelo atraso, mais direcionado para do que para , e logo foram assistir ao filme que fora tão entediante que quase dormira. também não gostara muito, mas tentava fazer a menina se interessar pelo filme, debochando de todos os personagens.
Depois, desapareceu com , deixando e sozinhas. Tal situação fizera do dia um pouco melhor, já que assim, as duas puderam assistir ao filme de super-herói que queria assistir antes, e comer doces escondidas.
Passaram o resto do final de semana discutindo e imitando as cenas do filme que tanto gostara, mas, infelizmente, a rotina tinha que voltar ao normal. Uma nova semana começara.
- , olha a hora.
- Eu nem queria ir para a escola mesmo. – disse, mal humorada.
- Com grandes poderes, vem grandes responsabilidades.
A menina colocou o resto da torrada com 0% de gordura e farelo de trigo e fez uma careta. deixou-se sorrir ao ver a menininha com as pequenas quatro tranças atadas sobre a cabeleira loira, o uniforme do colégio e a mochila do Batman correr com empolgação para o lado de fora da casa.
Acompanhou-a logo em seguida, quando se aproximou e tocou-a no ombro. O toque fora cordial, mas fizera ficar na defensiva.
- Vou levá-la hoje, tudo bem?
- Comunicou ao senhor ? – perguntou enquanto desviava de seu toque. Olhava para além do homem que estava bem na sua frente.
- Sim, é claro. – ele olhou-a com cuidado, com um olhar desconfiado. – Por que você olha para as pessoas assim?
- Desculpe, assim como?
- Como se as atravessasse com o olhar só para não ter de olhar diretamente para elas.
- Eu estou olhando para o senhor.
- Com licença. – guiou o rosto de , forçando seu olhar na direção de seus olhos. – Agora sim está olhando para mim.
detestou aquilo. Não podia olhar para ele daquela forma. Ele não podia tocá-la.
- Perfeitamente, senhor. – virou o rosto e desviou do .
Caminhou para fora e avisou à da mudança de planos, o que fez com que a menina comemorasse. entrou no banco de trás do negro carro de luxo junto com a criança, enquanto se colocara no banco da frente. Pôs um DVD do Homem de Ferro e se esforçou para não revirar os olhos. gostava mais de alguns vilões do que daquele suposto herói.
- É o herói favorito do tio. – disse. – Quem é seu herói favorito, ?
- A Mulher Gato.
- Ela não é heroína. – disse. – É vilã.
- Acredito que ela seja uma anti-heroína.
- Pode ser. – ele deu de ombros e sorriu de lado. – Podíamos fazer uma festa de heróis e vilões. Você ficaria muito bem de mulher gato.
- E você ficaria muito bem de armadura.
- Eu ficaria irreconhecível.
- Perfeitamente. – sorriu. Aquela, definitivamente, era sua palavra favorita.
- Que ideia ótima, tio! Vou pedir pro meu pai fazer uma festa assim. – disse, animada.
- Você sabe que ele não gosta muito desse tipo de coisa. Você não pode nem ir às festas dele... – falou enquanto estacionava o carro na frente da enorme escola.
- Não custa tentar. – ela deu de ombros, um tanto chateada.
Saíram do carro e Bem deu um grande abraço na menina. Enquanto isso, colocou uma maçã, um chocolate e uma HQ do Aquaman na mochila de . Deu a mão para a criança e levou-a até a portaria, onde ficou até a menina desaparecer entre as outras miniaturas.
- Então é por isso que ela anda mais feliz. – provocou de forma mansa.
- Perdão?
- Você se faz de desentendida com certa frequência. – sorriu, abrindo a porta da frente do carro para .
- Ir atrás seria mais adequado. – evitou-o.
- Não faça a desfeita. – lançou-lhe um olhar cativante, e desviou seus olhos rapidamente. Acabou sentando-se no banco da frente. – Sabe, não vou falar nada com . Eu também faria a mesma coisa. é uma criança, não é o chaveiro bonitinho dela. Obrigado por fazer isso.
- Obrigada por ser a válvula de escape familiar dela. – disse firmemente, sem demonstrações emocionais, ainda que fosse algo totalmente do gênero.
- É uma boa menina... – e então mudou de assunto repentinamente. – É impressão minha ou você tem um sotaque?
Ele não podia perceber. praticara tanto para aquele sotaque desaparecer. Tinha que inventar algo.
- Há uma jardineira espanhola na mansão e ando conversando bastante com ela. Devo ter pegado alguma coisa do sotaque dela. – mentiu.
- Faz sentido. Posso fazer outra pergunta? – ele mostrou-se interessado.
- Acho melhor mantermos um contato mais profissional, senhor . – cortou-o e toda a empolgação no olhar de desapareceu.
- Compreendo.
levou-a de volta até a mansão e não lhe procurou mais. Era um homem que se feria facilmente. não poderia se permitir aproximar de alguém tão frágil se comparado a ela. Não há pesquisas que aleguem que fragilidade emocional seja contagiosa, mas o fato é que o emocional da mulher fora afetado. Naquela noite, tivera pesadelos.
Haviam invadido a sua casa. Era um cubículo, mas era sua casa. Era o teto que dividia com sua irmã, era aonde sentia um pouco mais de segurança. A moça sempre planejara o que faria se tentassem ameaçá-la ali, mas, naquele momento, não soube o que fazer. Então seguiu seus instintos, abraçou a figura pequena, abriu a janela e tentou sair, mas as fardas seguraram-na.
Arrancaram sua irmã de seus braços e gritaram com ela. Mas a moça não abaixou a cabeça e gritou de volta:
- Nu! Parasi Ne in pace!
Mas eles não ouviram. Ela fizera de tudo para mantê-las escondidas, vivas, juntas. Não fora suficiente.
Um mês se passara. observara bastante, sabia o que fazer. Precisava de momentos adequados. E há poucos momentos mais adequados do que uma festa.
- Frequentei eventos inacreditáveis que tiveram discursos igualmente qualificados. – o homem segurou a taça de champanhe com firmeza. – Entretanto, em minhas festas nunca fiz ao menos um discurso, e essas são e permanecerão sendo os melhores eventos por isso. Portanto, aproveitem. – ergueu a taça em brinde, assim como os convidados e beijou sua esposa.
era atraente em vários sentidos, sua influência, comportamento exagerado e beleza fazia com que todos os olhos se voltassem a ele, desviando-se apenas quando focavam em seu lado esquerdo. Os convidados direcionavam o olhar, então, para sua esposa com seus cabelos loiros, olhares penetrantemente castanhos e roupas tão exuberantes que era impossível não notá-la. Naquela noite ela usava um vestido cheio de pedrarias, o fundo bege quase não aparecia diante do brilho das pedras. Nunca se vira algo tão brilhante e tinha certeza de que só aquela peça de roupa valeria uma quantia que alimentaria três ou quatro gerações de uma família.
Eles pareciam o casal mais apaixonado do mundo, mas durante todo esse tempo de convívio com eles, só vira ironias e discussões banais. Além, é claro, das traições de e do assédio que sofria de .
Tantas pessoas comendo, bebendo, falando e rindo naquele salão. A decoração era de encher os olhos, e cada pessoa parecia mais elegante do que a outra.
já tinha sido posta para dormir enquanto havia sido obrigada por a comparecer àquela festa. Usava um vestido longo rendado e escuro, sem grande decote, mas com os ombros à mostra. Se quisesse estar realmente em destaque provavelmente faria um penteado, mas deixara seus cabelos soltos e, como sempre, focara sua maquiagem no batom vermelho. Naquele momento, ela era apenas uma peça do jogo.
Mordiscou um canapé enquanto observava que os flertes mal educados eram quase uma tradição entre os homens daquela festa. Desviou educadamente de todas as conversas e aproveitou a movimentação da casa para tentar entrar no escritório. Porém, quando subiu as escadas encontrou pessoas no corredor escuro do lado das salas de trabalho. Duas pessoas muito específicas. e .
- Você gostava mais da emoção há alguns anos atrás, agora você é só um menino com medo do próprio irmão. – ela sussurrou venenosamente.
- Não tenho medo dele. Eu sinto desprezo. – ele disse em uma voz angustiada.
- Você devia matá-lo que nem ele fez com seus pais.
- Não pode acusá-lo assim.
- E você não acha que foi ele?
- Acho. – um tremor perpassou o corpo de . Ele nunca admitira aquilo plenamente nem para si mesmo. A presença de o fizera dizer a verdade e, de fato, se sentira observado. – , tem alguém aqui.
recuou rapidamente, usando toda a sua perícia para não fazer barulho com os sapatos, e logo deu um encontrão em que subia as escadas.
- Perdoe-me, querida. – a forma como ele falava “querida” era imensamente indigna se comparada com a forma que o fazia, mas aquele não era um momento de comparações. Quando olhou para trás viu os olhos inteligentes de a encarando: ele sabia que ela havia visto tudo, era um homem de discernimento.
- , o que acha do colar que me deu com esta roupa? – procurou distraí-lo
- Acho que está belíssima. – ele se aproximou do ouvido dela. – Estou cansado de vê-la ostentando meu presente, andando por aí com esse quadril ao invés de me ocupar. Até às 3 da manhã vai beber um gole de whisky com sonífero e vai apagar, e então eu vou me satisfazer. Entendeu? – mordeu sua orelha, e sentiu o corpo tremer de repulsa interiormente.
- Perfeitamente. – ela arranhou seu pescoço usando apenas a unha do indicador, revelando uma perícia provocadora. – Mas agora, é melhor voltar para seu evento, senhor. Enquanto isso, eu verei se sua filha repousa bem.
Ele sorriu de forma pervertida e desceu as escadas, voltando para a festa. voltou seu olhar para o corredor escuro. puxou-a pelo braço:
- O que você fez?
- Eu limpei a barra de vocês. – ela disse com simplicidade, puxando seu braço para si.
- Resolva isso agora, . Tenho que voltar para a festa. - fuzilou com o olhar e desceu as escadas de forma elegante e furiosa.
- Você me salvou dessa. – respirou pesadamente quando ficou sozinho com .
- Há quanto tempo vocês...
- Não seja intrusa. – interrompeu-a. Logo depois, arrependeu-se instantaneamente, pois que era um homem muito valoroso e sentia culpa segundos depois de qualquer grosseria. – Desculpe, é que essa é uma situação complicada. Não sei quando isso começou. Devíamos estar bêbados em uma festa dessas e o estava com outra, então aconteceu. Depois não consegui mais me livrar.
- Conheço pouco os dois, mas realmente parecem incompatíveis. – ela disse um tanto seca, já que não havia perdoado ainda a interrupção. Também sentia raiva por estar com uma pessoa tão desprezível.
- Odiamos a mesma pessoa. – referia-se a . - Isso é suficiente para formar aliados.
- Acho que entrei nessa aliança ao ocultar vocês. – sentou-se e apoiou as costas contra a parede, olhando para o escuro.
- Por que fez isso? – ele perguntou enquanto sentava-se ao lado dela, mas sua mente deu a resposta mais rápido do que a mulher. – O estava fazendo neste lado do corredor?
- Ponto certo. Eu não conto. Você não conta.
- Mas você sabe o que eu estava fazendo aqui, e eu não sei das suas intenções.
- Quem vai ter que dormir com seu irmão mais tarde sou eu. A desvantagem continua comigo. – buscou os olhos de e viu a tonalidade típica da família, além de sua silhueta iluminada por uma coloração alaranjada vinda do lado de fora de uma janela distante.
- Aqui no escuro eu até diria que te conheço de algum lugar. – ele brincou, mas havia um quê de dúvida em sua voz.
- Sou uma babá muito famosa. – ela desvencilhou.
- Mesmo?
- Não.
levantou-se e mesmo que tenha lhe chamado, ela simplesmente não se voltou para ele novamente. Desceu as escadas, indo direto para o banheiro. Encarou-se no espelho e seus olhos eram duros, mas tinha a sensação de que poderiam marejar a qualquer momento.
- Você não se lembra de nada. De nada.
Deu um tapa no próprio rosto, tentando sair de devaneios, e olhando para o chão negro do banheiro, segurou a respiração.
- Não é algo pessoal. Você não se lembra de nada. De nada.
Quando ergueu o rosto novamente, a coragem havia retornado. Retocou seu batom ligeiramente e saiu do lugar com confiança. Dirigiu-se ao bar e se concentrou em virar copo após copo, até se sentir zonza, mas não inconsciente. Queria estar ciente do que faria, mas não sóbria o suficiente para recordar mais alguma coisa. Faria o que fosse preciso para que pudesse reestabelecer a justiça. Faria o que fosse preciso para fazê-lo se arrepender.
****
Não dormiu. Apenas fingiu perfeitamente. Sem fazer nenhum barulho, recolocou seu vestido, retocou o batom, calçou os sapatos e saiu do quarto de com toda a dignidade que podia fingir ter. Era uma pecadora miserável, mas também os castigava. Seria tão diferente deles assim?
Balançou a cabeça afastando o pensamento. Não era momento para esse tipo de filosofia.
Sentia raiva de . Era mesmo indigno de qualquer consideração. Mas não se arrependia de ter dormido com ele, pois que colocara um pó nos ferimentos que lhe fizera com as unhas que lhe deixaria apagado por boas horas. Enquanto dormira, ela trancara a porta do quarto e achara um cofre dentro do closet, na segunda elevação atrás da parte de ternos em um fundo falso. Pouco criativo. Diferentemente da senha. Um curso de lógica dedutiva para códigos fora a melhor coisa que fizera em sua vida. Obviamente, umas perguntas enquanto ele dormia também lhe fez obter a verdade. A senha era o comprimento de sua cicatriz e o ano do acidente. Uma boa senha. Retirou os documentos de inúmeras vítimas de tráfico internacional e guardou.
“Preciso te ver imediatamente” enviou a mensagem para Tress.
Combinou as coordenadas com a amiga e se dirigiu para lá assim que terminou de tomar banho.
- Atrasada como sempre. – Tress disse, tentando disfarçar a curiosidade.
- Isso não é importante. – foi direta. – Mas o pacote que eu encontrei é.
- Agora é só entregar para a polícia. – a ruiva parecia aliviada ao ver o pacote bem lacrado.
- Não. Ele deve se arrepender primeiro. – declarou.
- Ele vai se arrepender na cadeia.
- Tress, você não sabe de nada. Gente rica não vai presa. E mesmo se for, não é suficiente.
- As pessoas da Redação já estão querendo saber de você. , você é uma repórter investigativa, não uma justiceira.
- Eu sou uma justiceira. – sentiu o corpo ferver.
- Você está levando isso para o lado pessoal. Para mim, isso parece sede de vingança.
- Você não sabe do que está falando. – levantou da cadeira abruptamente e tomou de volta o pacote.
- Quem você acha que é? A dona da verdade?
- Eu sou A Dona da Verdade. – todas as pessoas do lugar a encaravam, então ajeitou a postura e lançou um último olhar a única amiga que tinha. – Adeus, Tress.
Caminhou pesadamente para fora do ambiente e pegou um taxi até seu apartamento. Abriu o pacote uma última vez. Por alguns segundos, sentiu a instabilidade da situação. Ali dentro estavam seus próprios documentos. Ou, ao menos, os documentos da pessoa que costumava ser. Procurou os documentos de sua irmã, mas, apesar das documentações de inúmeras mulheres, as dela não estavam ali. estava levando para o lado pessoal.
- Isso não faz de mim menos leal à justiça. – secou uma lágrima do rosto e se levantou. – Você não se lembra de nada. De nada.
Pela primeira vez reconheceu: ela mentia para si mesma.
Quando voltou para a Mansão , ainda havia convidados dormindo no salão apesar de já ser manhã. Jogou-se na cama e se permitiu dormir.
Mas não permitiu.
- Bom dia, ! Bom dia! – a menina abriu as cortinas e depois saltou na cama, bagunçando todo o seu cabelo. – Bom dia! Nossa! Você dorme maquiada?!
- Esqueci-me de tirar. – soltou um muxoxo.
- A festa foi boa?!
- Festa de adulto é sempre chato. Você não escutou a música do seu quarto? – sentou-se, desistindo de dormir.
- Não, o colocou uma espuma na parede de todos os quartos.
- Isso explica muita coisa. – fui para o banheiro e me acompanhou no trajeto. – Por que você não o chama de pai?
- Ninguém chama o próprio arqui-inimigo de pai!
- Ah, então se ele é seu arqui-inimigo, ele é meu arqui-inimigo também. – retirou toda a maquiagem, apenas para recolocá-la de forma que ocultasse suas olheiras e poucas imperfeições.
- Ele é arqui-inimigo de todo mundo.
- Por quê?
- Porque ele é ignorante e de pouco entendimento. – ela disse imitando uma voz grossa, o que me fez rir.
- Quem disse isso?
- O tio . – ela sentou na tampa do vaso sanitário. - Queria que ele fosse meu pai... – suspirou.
- Não é assim que as coisas funcionam, mas você pode fazer de conta. – engoliu em seco pensando que havia certa possibilidade.
- Seria legal se você e o cuidassem de mim.
- De onde você tira essas ideias?! – perguntou enquanto fazia um rabo de cavalo em si mesma.
- Ah, não sei. Você é forte e poderosa, parece até que é filha de um Deus. E o tio é “um gênio, bilionário, playboy e filantropo”.
- Ele é o Stark?
- Tipo ele.
- Não gosto do Stark.
- Ah, mas devia gostar. – ela correu para pegar um caderno e voltou logo em seguida. – Olha o que eu fiz!
- Que é?! – perguntou curiosa.
- Só depois que você tomar café da manhã!
- Não vale!
- Claro que vale!
riu vendo toda a imitação de estratégia e obedeceu a menina. Deu a mão para ela e foram até a sala de refeições. Amava o coração sincero das crianças que não precisavam de poder ou tempo para confiar nas pessoas certas.
- Bom dia, meninas. – revirava novamente o jornal, o que fez um deja vu agradável acontecer.
- Bom dia. – elas disseram em uníssono.
Enquanto colocava a refeição da pequena na mesa, bebia seu café e a criança mostrava o caderno.
- Fiz uma história!
- Ah, conta para a gente. – disse.
- Tem desenho também, chega perto pra ver.
Os dois se aproximaram e viram no primeiro desenho uma mulher muito grande vestida de preto com um colar de pérolas no pescoço, uma venda vermelha nos olhos e um batom tão rubro quanto.
- Wow, que bonita. Quem é? – perguntou fingindo que não sabia de um jeito muito encantador.
- É a .
- Captou muito bem a beleza dela. Parece até que é de outro século com esse estilo... retrô? – ajeitou os óculos que lhe caiam muito bem.
- Muito generoso da sua parte. – revirou os olhos, brincando. – Mas e esse pontinho verde aqui do lado?
- É o tio .
- Ele é uma formiga?
- É.
- Captou muito bem a beleza dele. – permitiu-se brincar.
- Às vezes me sinto uma formiga perto de uma mulher como essa. Mas por que sou verde, ?
- Porque você fica com raiva e quando você fica com raiva você bebe aquela coisa que você e meu pai fazem e vomita.
- Nossas cervejas são de muita qualidade. Vomito porque não tenho limites. Que fique claro. – disse encenando seriedade.
- Muito nobre explicação, senhor. – disse. – Mas por que ela usa essa faixa nos olhos?
- Porque ela é que nem a moça que segura a balança. Justa.
- Onde você aprendeu isso? – ficou impressionada.
- Na escola. – ela deu de ombros. – Mas me deixa começar a história. – esperou o silêncio. - Certo. Tinha a Justiça Vermelha e o Homem Comum.
- Sou um homem verde, não um homem comum! – protestou.
- Homem comum. Pronto, acabou. Não me interrompa. – ela contestou e sorriu. – O Homem Comum se apaixona pela Justiça Vermelha, mas ela não vê porque ela é muito grande, linda e poderosa. Ela estava muito ocupada em salvar o mundo com a sua escudeira Gata da Sorte. – apontou para o desenho de um gato voando.
- A Gata da Sorte é minha favorita. – alegou.
- É minha favorita também, ela tem uma luta muito legal no meio da história. Mas antes disso acontece um monte de coisa. Devagar! O homem comum faz de tudo para a Justiça Vermelha notá-lo, mas ele não consegue porque a Justiça só liga para o seu arqui-inimigo: O Homem Perdido. – virou a página e mostrou uma figura de um homem com uma enorme cicatriz.
- , isso não é certo, já conversamos sobre isso. – a repreendeu seriamente.
- Desculpe. – ela apagou a cicatriz com a borracha de qualquer jeito, apenas disfarçando, mas sabia que ela iria redesenhar. – Continuando. Um dia, a Justiça jogou o Perdido em um alçapão e fez ele se arrepender das mentiras dele. Depois, ela cresceu e cresceu e pisou no lugar com o Perdido dentro. E então, ela pôde prestar atenção no Homem Comum, que cresceu e ficou tão grande como ela.
- E ele nunca deixou de amar ela?
- Nunca! Porque ele tem sexto sentido e adivinhou que ela ia gostar dele um dia.
- Mas ele não era um homem comum?
- Qualquer homem comum decente tem sexto sentido! – disse como se fosse a coisa mais óbvia do mundo.
- Estou interrompendo o café da manhã da família de margarina? – a voz de ressoou roucamente no lugar. O homem era mais resistente do que pensara.
Olhar para o lado de seu rosto bonito e o feio lhe causava contrações repulsivas internas. Ela havia dormido com as duas faces.
- De forma alguma. – respondeu sem se intimidar. – Pedirei o seu desjejum.
- Não se preocupe. – ele bebeu direto de uma garrafa. – Tenho o que preciso. – pegou pelo braço e a puxou para fora do aposento, voltando apenas para dizer: - você vai viajar com a sua mãe. , vá arrumar alguma viagem de última hora.
- E a ? – perguntou.
- A vai ficar cuidando de mim.
- Tomara que ela pise em você! – a menina segurou o seu caderno, pisou no pé do pai e correu escadaria acima.
- Que você fez, garota?! – ele apertou o pulso de que fraquejou por alguns momentos ao ver a mágoa no rosto da menina. – Sua gorda endiabrada!
puxou sua mão e por muito pouco não deixou sua fúria escapar. Era uma criança! Era sua própria filha! Sua cabeça latejou.
“Chore se quiser. Não importa. Não vai ser suficiente. O mundo é cruel, garota. E eu também sou. Eu vou fazer você sofrer tudo o que eu quiser, tudo o que você teme. E depois eu vou ter largar na miséria da sua própria companhia.”
- Não me lembro de nada. De nada. – disse para si mesma, enquanto ouvia aquela voz ressoando em sua cabeça.
- E você, o que é?! – gritara simultaneamente com e com .
se erguera, mas apenas lhe dirigiu um olhar mais controlado:
- Vá com e . Por favor.
- Isso, obedece a minha cadela.
Logo, todos os convidados da última noite saíram, juntamente com o resto da família e até mesmo os funcionários, que foram expulsos a tiros sem alvo. Estava muito claro que aquela era uma situação habitual. estava completamente descontrolado. Dois meses haviam se passado desde que chegara àquela casa. E, finalmente, havia chegado o momento.
desarmou-o e deu-lhe um golpe na cabeça com a arma, o que o fez apagar. Arrastou-o até uma cadeira desconfortável da cozinha e amarrou-o com nós fortes. Depois, tratou de apagá-lo toda vez que acordava, até que ela se sentiu satisfeita com a condição que ele acordou, horas depois: sóbrio e com dores.
- Que carregamento bonito eu tenho aqui. – ela disse.
- Que você está fazendo?! – gritou.
- Sh! Não vai fazer diferença gritar. Tem espuma na parede, lembra? – ela colocou o indicador sob os lábios vermelhos, começando a se divertir.
- Ah, você gosta desse tipo de brincadeira, não é? – ele tinha um sorriso pervertido de um lado do rosto, mas do outro lado a visão era terrível.
- Gosto. – ela retribuiu o sorriso.
– Qual vai ser a palavra ou frase de segurança?
- Que você acha de Tráfico Internacional de Pessoas? – disse e ele silenciou. – É, parece bom. Mas isso não garante a sua segurança. No momento, o que garante a sua segurança é ligar para a sua querida esposa e mandá-la desaparecer junto com o resto da “família feliz” até que você os mande voltar.
- Por que eu faria isso?
- Porque se não eu vou mandar você para um fim de mundo, onde você vai ser escravo de uma pessoa mais insignificante que você. E olha que eu já arrumei um cantinho especial para você. – ela pegou sua bolsa e desdobrou uma foto de um lugar imundo e mal iluminado. – Você não acha isso pior que a morte?
- Sim. – surpreendeu-se com sua própria fala já que não intentava respondê-la.
- Muito bem. – ela discou o número no celular do homem, cuja senha era também o dia de seu acidente.
“, será que você pode ser um pouco menos estúpido?! Sinceramente, eu não aguento mais essas suas crises de mandar todo mundo embora! Droga! Se quer que eu viaje ao menos transfira mais dinheiro pra minha conta!” a voz de ressoou com o viva-voz.
- Se vira com o dinheiro do seu pai. Quando você voltar eu reembolso e te compro um diamante novo. Agora escuta: só volta para cá quando eu ligar autorizando, entendeu?
“Como sempre! Você...” a mulher ia continuar a falar, mas o telefone lhe foi tomado por .
“, o que você tem na cabeça? Onde está a ?”
- Quer realmente saber? – disse com uma voz cheia de duplo sentido, que fez desejar atirar no meio de sua testa, mas continuou em silêncio para que a ligação fosse completada.
“Eu vou voltar agora!” sua voz estava furiosa.
- Volta e te tiro a herança , além de abrir um recurso para te tirar da sociedade da empresa. E você sabe que eu sempre ganho os recursos.
“, sua cela no inferno está reservada” desligou. Era a frase de sua própria derrota. fora derrotado por uma ameaça de perda de bens. Era um homem bom, mas era fraco.
- Satisfeita?
- Não é fácil me satisfazer. - colocou o celular no chão e pisoteou-o com seu salto. – Por muito tempo, eu tenho me lembrado de coisas e tenho feito uma coisa muito feia comigo mesma: mentir. Eu dizia que não lembrava, mas eu lembrava sim. Havia duas menininhas muito bonitas...
- Sempre há. – ele interrompeu-a com uma risada.
- Calado! – deu-lhe um tiro de raspão no pé, e ele gritou absurdamente. – Não me interrompa.
- Eu estou sangrando, sua desgraçada!
- Você acha que isso é sangue? Não, não é. – pisou, o que o fez gritar ainda mais. Chegou bem perto de seu rosto, sem receio algum da cicatriz ou de seus olhos. - Você sangra? Vai sangrar.
- Que você quer?!
- Para começar, contar uma história. – disse deixando escapar um pouco de seu sotaque.
E então, finalmente ligou os pontos. O sentimento de dizer a verdade quando nem desejava responder algo. Os olhos nebulosos. O sotaque. Ela estava muito diferente. Abrasadoramente linda, mas era a mesma, afinal.
- Olha só para isso... Parece que sua máscara caiu. – sorriu cruelmente, ignorando a dor e sentindo a satisfação de solucionar um pequeno enigma. – É minha romena. – um arrepio percorreu a espinha de , mas ela não demonstrou. Não podia temer. Não podia fraquejar.
- Parece que o senhor não é tão ignorante quanto eu me lembrava. Mas eu prefiro que fique calado agora, a menos que queira um tiro mais certeiro. Você quer?
- Não. – respondeu sem vontade, mas dominado pelos poderes da outra.
- Vou começar a contar a história. Havia duas menininhas muito bonitas. Duas irmãs que moravam em um país chamado Romênia. Quem liga? Elas ligavam. Órfãs também têm sonhos. A irmã mais velha trabalhava em qualquer emprego honesto e digno para tentar pagar o cubículo onde se escondia com a irmã de cinco anos. Mas um dia, a polícia encontrou-as e levou as duas meninas, porque órfãs menores de idade não podem ficar sem pais. Elas foram separadas. E então, um dos policiais, que era amigo de um aproveitador com cicatriz, resolve levar uma delas para passear. Mas onde está a mais nova? Desaparecida. E a mais velha? Está na casa do aproveitador. Que importa se ela só tinha dezesseis anos? Não importa. Veste ela de empregada, humilha, deflora, explora, maltrata. Dois anos infernais. E depois, quando cansa tenta jogar ela em uma casa de prostituição. Conhece essa história, ? – ele não respondera. - Conhece?!
Ela deu-lhe um tapa no lado belo da face, e ele enfim respondeu:
- Conheço! – o prazer de desvendar o enigma já se dissolvera. Agora, dividia o sentir com a tensão da situação, a dor no pé e o orgulho ferido pelo tapa que recebera. Mas, assim como , não se deixava abalar fácil. – A pequena de olhos nevoentos e medrosos. Tive trabalho para trazê-la para cá com esses seus talentos. Não conseguia mentir na sua frente, então quando eu passava pelas fronteiras eu tinha que te deixar longe... – riu nervosamente. – Foi a menina que mais durou por aqui. Boa submissa. E agora veja só nossas posições, minha romena. Que aconteceu com você quando saiu daqui?
- Não deixei me levarem para o prostíbulo. Fugi no meio do caminho. Então, achei as pessoas certas que me ensinaram a lidar com armas e com gente como você. Depois, foi só questão de disfarce.
- Não é tão ignorante como eu lembrava que fosse.
sentiu-se impaciente com a brincadeira dele. Quebrou a garrafa na cabeça do , que desmaiou. Ela revirou os olhos, pois que não tinha a intenção de fazê-lo ficar inconsciente, mas talvez assim fosse melhor. Precisava se acalmar.
Buscou um kit de primeiros socorros na cozinha e água. Resolveu fazer um curativo rápido no pé de . Queria feri-lo, mas também desejava mantê-lo vivo até o momento em que se arrependesse. Depois, bebeu uns goles do líquido e despejou o resto no rosto do homem, que ainda sangrava devido aos estilhaços do vidro.
- Vamos continuar.
Ele sacudiu a cabeça, respingando a água de seus cabelos. Seu rosto era um misto de susto e cansaço.
- Ainda insiste nessa loucura?
- Só fale quando eu perguntar. – engatilhou a arma e apontou na direção dele. não demonstrou mais anseios por comunicar-se. – Muito bem. Agora responda: você sabe onde está a garota mais nova?
- Não. – ele não mentia. Não podia mentir com ela ali. Mas ela não queria acreditar.
- Onde ela está?!
- Não sei! – continuava sendo verdade.
- Onde ela está?! – ela atirou em seu braço, fazendo-o berrar; -O que você fez com a minha irmã, seu crápula?!
- Eu não sei! – sua voz falhava em meio ao choro. – Eu queria estar mentindo!
arfou, tinha que se controlar. Concentrou-se no choro do homem e sentiu um prazer cruel com aquilo. Sentiu-se então um pouco mais tranquila.
- Como não sabe?
- Não sei porque não me importo! – soluçou com fúria na voz. – Não me importo com nenhuma delas! Não me importo com você, ! Não me importo nem comigo! Extermina comigo!
- Eu não vou matar você, eu só vou te machucar bastante.
Um arrepio percorreu o corpo de , que sentia a dor e o pavor se misturar diante dos olhos enormes e escuros como nuvens de .
- Lembra quando eu era uma garotinha de apenas dezesseis anos quando você me trouxe pra esse lugar e me fez ser sua escrava? Você me forçou e me humilhou... Mas, você me fez descobrir o meu um talento. Eu percebia que você tinha que me afastar para poder continuar as suas farsas. E agora, eu sei das minhas possibilidades. Eu sei fazer as pessoas se arrependerem do que elas fazem de ruim. E eu também sei agradecer pelo que elas me fizeram. – ela beijou o lado deformado do rosto de . Havia perdido a sanidade que lutara tanto para conquistar.
- Você vai se fazer pagar por isso também?!
- A vida vai me recompensar.
- Não se tem medidor de certo e errado! Tortura é tão crime quanto tráfico de pessoas, estupro, roubo... Passou tempo demais pensando em se vingar e em ser a boa moça! A vida te fez uma antítese burra! – ele tentou cuspi-la, mas ela desviou com facilidade e deu-lhe um tapa no lado direito do rosto.
- Eu sou a Dona da Verdade. Sei o que estou fazendo.
- Você mente para si mesma! Como pode saber o que é mentira e o que é verdade? – ela sentiu seu corpo gelar por um tempo, mas não poderia voltar atrás. – É uma farsante tão boa quanto eu. Aprendeu muito bem, minha romena.
- Pare de me chamar assim! – ela pegou o chicote que guardava em sua cintura e chibatou-o. O chicote enrolou-se no pescoço dele, fazendo-o sentir uma dor absurda, mas não se deixou intimidar.
- , , Dona da Verdade, Justiça Vermelha, minha romena... Não faz diferença! Você não sabe nem aos menos os conceitos de verdade e mentira. A sua verdade é relativa e isso é uma falácia! – a última frase fez com que ela retirasse o chicote do pescoço do homem. O que ele falava lhe despertara o interesse.
- Do que está falando?
- Se a verdade fosse relativa, e essa afirmação não fosse relativa, ela seria mentira. Falácia.
- Acho que estou exagerando nos seus ferimentos. – ironizou.
- Você sabe que há sentido nisso. Mas você não sabia disso antes. Você começa a enxergar agora que não é a Dona da Verdade, você é dona das certezas emocionais e de pouco embasamento das pessoas. Você as faz falar o que acham que é verdade e isso é subjetivo a elas, mas não necessariamente a verdade. Se eu acreditar que algo é verdade, mesmo que não seja, eu minto para você.
- É uma pena que não consiga isso. – ela disse sem demonstrar o nervosismo que começara a sentir. Fazia total sentindo.
- Não consigo. Mas no dia que alguém conseguir, você será a Dona do Nada. Além disso, você não é portadora nem da sua própria verdade. – sentiu o corpo tremer em um riso doentio. – Você é tão inútil com seus próprios poderes! Mentiu tanto para si que não se lembra do que aconteceu com a sua irmã. Eu sei tanto sobre ela quanto você.
- O que quer dizer? – seus dedos roçaram no chicote, ansiosos.
- Você esqueceu o fato de ela ter ido para um orfanato antes de eu buscar você. Esqueceu-se disso porque quis acreditar que não lembrava de nada. – o coração de parou de bater por um instante e depois voltou muito lento. Todas as lembranças se tornaram claras novamente em sua cabeça. Era a verdade. Ou ao menos, a coisa mais próxima de verdade que tinha em suas concepções. - Sua arma foi sua fraqueza.
virou-se de costas para ele. Não era o momento para sentir ainda. Era o momento de fazer justiça. Aquele pensamento revolucionou sua mente.
não sentia mais a fúria habitual ou vontade de chorar, não sentia nada. Apenas um êxtase que lhe impulsionava a continuar.
- Eu vou pensar bastante sobre o que você está me falando depois que eu acabar com você. Você é um homem muito influente, obrigada. – utilizou-se da ironia como escapismo.
- Alguém vai aparecer e quando eu sair daqui eu vou destruir a sua existência. – ameaçou em vão.
- “Chore se quiser. Não importa. Não vai ser suficiente. O mundo é cruel, garota. E eu também sou. Eu vou fazer você sofrer tudo o que eu quiser, tudo o que você teme. E depois eu vou ter largar na miséria da sua própria companhia.”
Retirou o colar de pérolas de seu pescoço, colocou no dele e apertou até que ele apagasse.
****
Permanecera naquele salão com ele por dias. Não havia notícias de , , ou . Não havia ninguém que o amasse o bastante para se importar. Ela o deixara sem comida, humilhara-o, ferira-o gravemente e o deixara a ponto de parar de pensar com clareza. Mas a pior tortura era ser deixado sozinho.
Conforme os discursos dele começavam a fazer sentido para ela, deixavam de fazer sentido para ele mesmo. Ele fora reduzido a um corpo com uma mente afetada pelos discursos e cuidados de .
Ele não se reconhecia. Não sabia quem era. Não queria imaginar a própria aparência e muito menos pensar sobre a pessoa que era. A dor o corroía física e emocionalmente. Destroçara a vida de milhares de meninas. Destruíra as pessoas que o amavam. Reduzido a uma existência insignificante, seus erros pareciam gigantescos. colocara a culpa no acidente que sofrera, alegando que tinha afetado sua mente, mas ele finalmente reconhecera que era apenas uma desculpa para poder descontar seus instintos ruins. Ele reconhecia sua culpa.
- ! – ele gritou por ela depois de acordar de mais um longo período apagado. Sua língua estava inchada. Sentia sede. Mas acima disso, queria ver sua romena. Não aguentava mais ficar sozinho naquele salão. Não sabia quanto tempo estava ali, mas ficar só consigo mesmo começara a enlouquecê-lo. – !
- Você matou. – ela cantarolou.
- ...
- Aqui.
- Por favor... – ele chorava, ficando pior que uma aberração. – Por favor... Eu... Eu fui fraco. Eu poderia apenas ter me esforçado para melhorar. Mas fui fraco o bastante para destruir os outros para me sentir engrandecido.
- Você faria de novo?
- Faria. – respondeu forçado pelo poder da garota. – Mas eu me arrependo. Eu fui construído por esse arrependimento. E se eu não tivesse feito, eu não seria o que sou agora. Talvez eu não conseguisse melhorar. Mas o que realmente importa é que eu me arrependo. – a verdade.
- Muito bem. Não foi tão difícil assim. – sorriu e pegou a faixa vermelha. – Você vai se matar?
- Vou. – a verdade.
- Fez uma boa escolha, . É justo. - cobriu os próprios olhos com a venda e aguardou. A justiça é cega.
- ... Eu queria dizer algo antes.
- Seja breve.
- Eu odeio você. Mas você é a única que se importa. – ele olhou para a arma como se ela fosse o objeto mais belo do mundo. Seus olhos para o mundo eram o de um homem morto. Mas naquele momento, eles tinham um brilho vivo de redenção. - Eu sinto muito.
A pistola foi disparada. tirou a venda e colocou sobre o corpo dele.
- O mundo é menos cruel agora.
Sentiu sua garganta apertar tanto que imaginou se as pérolas em seu pescoço não a sufocavam. Ela não compreendia o que sentia, mas permitiu que seu corpo reagisse e chorou. Chorou intensamente, até que se cansasse. Sua mente estava tão enevoada quanto seus olhos e uma pergunta torturava seus pensamentos:
Aquilo era suficiente?
enviou o pacote com as provas para a polícia anonimamente, vendeu seu apartamento, juntou suas coisas, fez uma identidade falsa. Fugiu.
Logo descobriram a morte de e tudo foi um grande escândalo. Três meses se passaram até que conseguisse contatá-la. Alegava que não pretendia prendê-la, que sabia quem ela era. Aquilo fez o coração de pesar. Mas o que fê-la se convencer não foram as súplicas de em si, mas quando ele disse o quanto sentia sua falta. A menina lhe fazia lembrar-se de sua irmã em tantos aspectos, anda que vivessem vidas completamente diferentes. se apegara a , assim como era apegada à sua irmã. Permitira-se, então, encontrar e uma última vez. Havia convivido um trimestre com eles e um trimestre sem eles e sentia uma falta descomunal.
Os três chegaram ao restaurante isolado. não gostou de ver por lá e sentiu-se tentada a partir, mas ela não oferecia ameaça alguma. foi justamente a primeira a se aproximar:
- Foi você, não foi? Não minta. – ela mexia em sua blusa de seda cor de rosa.
- Não preciso mentir.
- Mas mente, não é? – ela suspirou. – Eu posso não ser a criatura mais inteligente do universo, mas sou uma mulher bem posta e esperta o suficiente. Foi você. – ela olhava para a mesa e finalmente a encarou nos olhos pela primeira vez sem desdém. Havia cansaço, mas também alívio. Era, afinal, uma mulher de difícil interpretação. – Obrigada.
- Perfeitamente. – abaixou a cabeça, dando-se ao luxo de um sarcasmo.
- Até quando você abaixa a cabeça tem essa aura orgulhosa. – sorriu tristemente, e levantou-se. – Insolente.
Depois, veio . Os olhos de marejaram. Sentia uma conexão enorme com aquela criança, e pela primeira vez sentira algo que identificara como culpa. Não podia sentir aquilo.
- Oi, . – ela não sabia. Os olhos diziam que não sabia.
- Oi, .
- Por que você foi embora? Eu estava com saudades! – ela fazia força para não chorar.
- As coisas ficaram ruins para todo mundo. Tive que salvar umas pessoas.
- Eu estive treinando pra ser corajosa que minha heroína favorita. Corajosa que nem você.
- Não, . Não. – ela balançou a cabeça. Não queria imaginar aquela menina linda com sangue nas mãos, com os pensamentos que teve durante os últimos três meses.
- Mas por quê?
- Porque eu não sou corajosa, . Você é corajosa. Você é uma super-heroína. Eu sou uma menina boba.
- Mas você tem poderes, !
- Vilões também têm poderes.
- Você...
- , olha pra mim. – ela levantou de seu lugar, abaixou-se e ficou de frente para a menina, sem conter mais o choro. Sem conter a verdade. – Eu não sou a pessoa boa que pensei que fosse. Eu fiz coisas erradas e vou ter que pagar por isso. Eu quero que você cresça e acabe comigo. Mas não leve para o lado pessoal. Seja justa de verdade.
- , você vai embora? – ela também começara a chorar.
- Com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades. – disse. – Promete pra mim que vai me procurar quando você crescer?
- Prometo. – ela fungou o nariz e me abraçou. Depois colocou algo em na mão da mulher e nem por mais um segundo pôde ficar ali. Levantou-se e deixou-a.
Ela correu atrás da mulher, mas foi mais rápida. Ouviu apenas seus gritos “! Não vai embora, !”.
andou e andou, sem saber o que estava fazendo. Tinha que dizer tudo o que tinha para dizer. Chorar tudo o que tinha para chorar. Depois não lembraria mais.
- !
Parou. Sentiu que devia. Viu olhá-la desolado. Os olhos claros eram os mesmos de anos atrás. Enquanto ela mudara absurdamente, vencera seus medos, criara objetivos e tinha conseguido fracassar mesmo vencendo, permanecera o mesmo. O mesmo homem pelo qual ela se apaixonara quando era uma menina amedrontada. O mesmo homem que sabia o que o irmão lhe fazia, mas nunca tivera coragem de ajudá-la a fugir dessa condição.
- Eu não pude reconhecer... Você era uma criança. Eu sinto tanto...
- Não é sua culpa.
- Venho sido um covarde toda a minha vida. Eu lhe amei... – havia tristeza em seus olhos. - tomou você...
- Eu o matei. – fora direta. Não queria permanecer ali perto daquele homem fraco. Não queria constatar que amara aquele homem fraco. Não queria perceber que ainda tinha possibilidade de amá-lo.
- , foi uma escolha ruim. Ele fez escolhas ruins. Você fez. E eu faço todos os dias. Mas eu posso fazer uma escolha boa e você também. – enquanto falava, o passado passava na cabeça de . sabia que abusara dela, sabia que ela tinha uma irmã, sabia o quanto ela sofria. nunca tentara salvá-la. Era um Homem Comum porque era fraco, porque era covarde. – Podemos procurar sua irmã juntos e pegar a guarda da . Podemos ter uma família.
- Você pensa que mudou, mas continua o mesmo homem que pensa que se resguardando do que está ruim ao seu redor pode viver bem. Você não pode me salvar e eu não posso fingir que nada aconteceu.
- ...
- Pare de me chamar assim! matou-a há muito tempo e você foi cúmplice!
A verdade se chocara contra de uma forma tão agressiva que ele não pôde reagir.
continuou:
- Estou farta de ser uma antítese burra. Vou refletir tudo o que o seu irmão disse até o último dia da minha vida e eu vou continuar tomando escolhas erradas, porque essa é a minha sina. Eu sou uma vilã e a vida não é se quer um conto de fadas. O mundo é cruel.
- Não o torne mais cruel.
- Eu vou eliminar o mal. Um por um. E quando o mal acabar, eu me acabo.
- Isso é insano. Você está cega!
- A Justiça é cega. E esse é o meu castigo.
o abandonou. Não olhou para trás. Não podia mais amá-lo. Nunca mais encontraria sua irmã ou teria uma vida normal, porque estava morta. A Justiça lhe tinha sentenciado àquela vida.
Quando entrou em seu carro, começara a chover. Olhou rapidamente para a mão e viu o presente de : uma Gata da Sorte de pano. Aquele pequeno objeto seria sua conexão com o passado e ela não desejava lembrá-lo. As pérolas em seu pescoço eram suficientes para funcionarem como as correntes de sua punição. Deu partida e jogou o brinquedo pela janela.
O carro estava em velocidade tão alta que fazia a paisagem passar de forma agressiva e a noite estava nublada como seus olhos. “Nós somos uma mistura química que cria caos. Nós somos... uma bomba relógio” relacionou-se. Verdade e Mentira. Justo e Injusto. e Justiça Vermelha.
A resposta para sua pergunta finalmente aparecera.
O mundo era cruel demais para que fosse suficiente.