Biology II
Escrita por: V. | Betada por: Gabriella
Que delícia.
Suspirei profundamente ao caminhar pelo corredor da faculdade, cerrando os olhos ao receber uma intensa dose de raios solares enquanto passava pelas vastas janelas do terceiro andar. Assim como várias pessoas andando ao meu redor, tirei meus óculos escuros da bolsa e já os coloquei, voltando ao meu estado de tranquilidade gratuita, típico de sextas-feiras após a última aula.
– Quer ir à festa dos calouros no sábado à noite? – Dianna, uma das poucas garotas com quem havia feito contato mais do que duas vezes desde que iniciara o curso, perguntou ao me alcançar quando já descia as escadas para o primeiro andar – Eu e Ashley vamos comprar roupas mais tarde. Se quiser vir com a gente...
– Desculpe, não posso – falei, porcamente demonstrando um desapontamento que não existia porque eu odiava aquele tipo de festa; se eu quisesse ver cerveja, drogas e pessoas aleatórias transando, Skins satisfazia muito bem meu desejo – Meu fim de semana já está preenchido.
– Vai sair com o seu namorado, é? – Ashley piscou, entrando na conversa com um sorrisinho sacana – Acha que ele consegue preencher o meu fim de semana também?
– Não seja egoísta, tem bastante pra nós três – Dianna complementou com a voz esganiçada, rindo de sua própria ousadia.
Não pense que meu excelente humor fora afetado por aquela conversa podre que entrava por um de meus ouvidos e saía pelo outro sem deixar vestígios em seu caminho. Ou talvez apenas alguns, porque meus olhos reviravam sozinhos a cada idiotice que elas diziam.
– Ele não é meu namorado. Não precisamos de rótulos desse tipo. Estamos juntos, ponto final. – Sorri com cinismo, sem nem sequer olhar para alguma das duas – Ah, acabei de me lembrar de uma coisa. Não preciso dar satisfações a vocês! Então podem continuar molhando suas calcinhas enquanto eu vou procurá-lo no estacionamento. Divirtam-se na festa, comprem lingeries devassas e pelo amor de Deus, não fiquem grávidas.
Ouvi as duas rirem de minha resposta ácida, já sabendo que eu não fazia a simpática quando o assunto era aquele. Uma mulher precisa deixar bem claro que seu território não seria invadido, e eu não media esforços para realizar essa tarefa com excelência.
Deixei o prédio, imediatamente grata pelo tempo agradável daquele meio-dia, e nem precisei procurar muito. Com os braços cruzados firmemente sobre o peito, cobertos por sua jaqueta preta, ele me esperava sobre sua moto amarela, examinando todos os alunos que conversavam descontraidamente ao seu redor com o cenho franzido pela luz do sol por detrás de seus óculos escuros. Assim que comecei a caminhar em sua direção, um dos lados de sua boca se ergueu num sorriso milimétrico, e mesmo estando a metros de distância, me arrepiei. Que indignação adorável aquele charme me trazia.
– Você precisa parar de seduzir minhas amigas – falei tediosamente quando cheguei até ele, que agora estava de pé me esperando – Qualquer dia elas me prendem no banheiro e te atacam. É sério.
soltou uma risada rouca ao lançar um olhar breve para o portão por onde eu havia saído, recebendo dois acenos promíscuos de Ashley e Dianna. Revirei os olhos pela décima nona vez.
– Que amigas? – ele perguntou, dissimulado, me puxando pelo pulso até me aprisionar num abraço apertado e aproximar seu rosto do meu de forma que seus lábios roçassem nos meus a cada palavra que ele dizia – Não vi ninguém... Estava distraído imaginando o conteúdo dessas suas calças justas pra notar as outras pessoas.
Dei um sorriso desconfiado, um tanto embriagada com sua respiração tão próxima da minha e o perfume que vinha dele. Ele era, facilmente, o amontoado de células mais odiosamente atraente que existia.
– Não estou convencida – resmunguei, vendo-o dar um sorriso sujo e erguer uma sobrancelha. Postando suas mãos em minha cintura, me puxou para ainda mais perto e venceu a distância restante entre nossos lábios, beijando-me calmamente. Agarrei sua jaqueta, sorrindo ao perceber que ele me torturava com os movimentos vagarosos de sua língua, e admiti minha derrota.
– Já está convencida agora? Porque eu posso fazer isso de novo, e de novo, e outra vez... – ele murmurou, aproximando sua boca de meu ouvido enquanto eu amolecia em seu abraço. Golpe baixo detectado.
– Você é terrível – suspirei, fechando os olhos com a respiração baixa dele contra minha pele. Maldito feitiço que ele colocou em mim.
– Eu tento – ele riu baixo, voltando a me encarar com a expressão divertida, e percebendo que um grupo de estudantes prestava certa atenção em nós, mudou-a para algo entre a confusão e o desprezo – Vamos sair daqui?
– Por favor – concordei, rindo ao me aproximar da moto enquanto ele retirava o capacete extra do bagageiro e o oferecia a mim.
– E aí do nada veio esse barulho horrível e agudo, e todo mundo achou que fosse um alarme de incêndio ou algo do tipo, porque sério, era muito alto – relatei, falando depressa demais sem perceber – Até que eu vi que o som era nada mais, nada menos que o grito de um cara!
– Quê? Um grito? – ele perguntou enquanto parava a moto no estacionamento do prédio após nosso almoço num restaurante italiano. Não agüentei e comecei a rir, lembrando-me da cena.
– É, ele deve ser metaleiro, porque tinha um cabelo enorme e tava dando o agudo mais agudo que eu ouvi na vida no meio do pátio da faculdade! – expliquei, ouvindo-o gargalhar comigo ao imaginar a cena bizarra – Eu não conseguia nem respirar de tanto rir, foi muito engraçado.
– Meu Deus, esse cara deve ter fumado muita erva pra ter feito uma coisa dessas – comentou, tirando o capacete ainda sem parar de rir – Tô começando a achar que você corre perigo naquela faculdade.
– Nah, eu vou ficar bem – falei, fingindo que fumava um baseado, e ele riu mais ainda. Me livrei de meu capacete também e descemos da moto, caminhando até o elevador.
– Deixa que eu levo isso pra você, tá pesado – ele pediu, pegando minha bolsa com estampa de docinhos e ursinhos felizes e colocando em seu ombro – Além do mais, fica bem melhor em mim.
Cerrei os olhos, vendo-o desfilar ao meu lado parecendo a Gisele Bündchen com labirintite e alguns quilos a mais de massa muscular.
– Olha, o grito do metaleiro drogado da faculdade eu até agüento, mas você levando minha bolsa e andando como se estivesse constipado não dá – avisei, tentando me manter séria, o que deu totalmente errado depois que ele virou o rosto pra mim com uma expressão ofendida digna de Kelly Smithers – Me dá isso aqui, !
– Tá bom, foi mal – ele disse ao me devolver a bolsa, e logo em seguida me pegou no colo, fazendo-me gritar de susto – Agora vou ser bem macho pra compensar.
– Gostei dessa idéia – sorri, abraçando-o pelo pescoço e aproveitando a carona sempre bem-vinda.
Chegamos ao apartamento sem demora, e ele se sentou no sofá, ainda me carregando. Ri alto de alguma besteira que ele disse, e mal pude retomar o fôlego, já que me beijou assim que minha gargalhada cessou. Massageei sua nuca com as pontas de meus dedos, arranhando suavemente e bagunçando os cabelos dali enquanto minha língua viajava por sua boca e as mãos dele, pelo interior de minha blusa.
– Vai dormir aqui hoje? – ele murmurou quando partimos o beijo, porém ainda com os rostos muito próximos – E amanhã também?
– Se você quiser... – suspirei, e recebi um movimento positivo de cabeça como resposta – Sim, senhor.
contorceu o rosto ao me ouvir, e simulou um choro.
– Nem me fale a palavra senhor – ele gemeu, abaixando a cabeça e tocando sua testa em meu ombro – Eu vou fazer 31 anos, . Trinta e um! Quer dizer... Eu quase poderia ser seu avô!
Revirei os olhos diante de tanto drama, e dei risada daquela crise de meia idade.
– Por favor, , isso é ridículo – falei, olhando-o com ceticismo quando ele voltou a erguer a cabeça – Meu avô? Impossível. Nem meu pai você poderia ser exatamente, a não ser que engravidasse uma garota aos treze anos.
– Pff... Eu até teria tentado, mas a única pessoa que me dava chances naquela época era meu primo – ele pensou alto, encarando-me com a expressão enojada que eu também ostentava – Acho que até hoje o sonho da vida dele é que eu... Deixa pra lá.
Fechei os olhos, rindo só de imaginá-lo com treze anos sendo azarado pelo próprio primo. Bem que dizem que primos nunca são só primos...
– Voltando ao assunto – sugeri, lançando-lhe um olhar firme – Você não tem que se sentir velho, pelo amor de Deus. Pelo contrário, você ainda é jovem e tem muita coisa pra viver. Além do mais, muitos caras da sua idade já são calvos, barrigudos e presos às suas vidas conjugais frustrantes, enquanto você ainda está lindo, gostoso e livre para fazer o que quiser. Resumindo: pare de reclamar, homem!
arregalou levemente os olhos, parecendo convencido por meus argumentos, ou talvez amolecido por meu tom autoritário ao inflar seu ego. Conhecendo-o como eu o conhecia, com certeza a segunda opção era a correta.
– Obrigado pela revolta – ele riu, fazendo-o também com os olhos de uma maneira que sempre me fazia sorrir junto – Mas eu não estou exatamente livre para fazer o que quiser... A não ser que isso tenha sido um pé na bunda e eu não tenha percebido.
Revirei os olhos mais uma vez, agora também bufando. Porque raios ele estava levando tudo que eu estava dizendo ao pé da letra? Talvez ele estivesse mesmo em crise.
– Você acha mesmo que vai se livrar de mim tão fácil assim? – falei, erguendo as sobrancelhas num tom esnobe – Pois saiba que no dia em que eu te der um pé na bunda, vai ser colossal! Eu vou arrancar muito dinheiro de você, ou como dizem, vou arrancar até suas calças, e ainda vou espalhar pra todo mundo que você usava minhas roupas quando estava sozinho em casa e gravava vídeos interpretando o musical Chicago para postar no MySpace!
jogou a cabeça para trás, recostando-a no sofá, e não parou de rir desde que eu havia começado a falar num ar sensacionalista.
– Nossa, espero que isso não aconteça tão cedo – ele disse, forjando temor enquanto voltava a me olhar – Se bem que a parte de você arrancar minhas calças soou bem interessante...
– A parte de você usando minhas roupas, nem tanto! – dei risada, recebendo um tapa em minha coxa.
– Que bom, porque se isso fosse um fetiche seu, você morreria insatisfeita – ele avisou, transtornado, arrancando mais gargalhadas minhas.
– Se bem que você ficou fofo naquele dia em que você me deixou encher seu cabelo de presilhas coloridas... – lembrei, voltando a rir assim que ele me lançou um olhar mortífero.
– Deixei coisa nenhuma, eu estava dormindo! – justificou, enfezado, e eu apenas fiz uma cara sapeca – A gente pode parar de falar disso? Vou entrar em crise de novo.
– Não, não, sem crise, desculpa! – murmurei, puxando seu rosto devagar na direção do meu e beijando-lhe calmamente. Ele sorriu ao retribuir, postando as mãos em minhas costelas e puxando-me para si com delicadeza. Acariciei seus ombros com as palmas de minhas mãos, mordendo seu lábio inferior e sem pressa deixando-o deslizar por entre meus dentes.
– É... Acho que com mais alguns desses, minha crise some – ele murmurou, deslizando sua mão de minha coxa para meus glúteos e apertando o local. Não pude evitar um sorriso repreensivo, retribuindo o tapa que havia recebido na perna, só que em seu braço. Voltei a beijá-lo, empurrando-o pelo peito com as duas mãos e me apoiando ali para passar uma de minhas pernas para o outro lado de seu corpo.
Ficamos alguns minutos entre poucas risadas bobas e várias indecências leves, até que um ruído começou a emanar das calças de , e somente após algum esforço, percebemos que era seu celular tocando dentro do bolso. Com um Merda entre dentes, ele pegou o aparelho, e soltou um suspiro resignado ao ver o número no visor.
– Quem é? – sussurrei, curiosa, porém ele atendeu sem me responder. Pelo menos não diretamente.
– Oi, mãe.
Meus olhos se arregalaram assim que ele atendeu à chamada. Eu nunca o havia visto falar com algum parente, muito menos a mãe. Ele já havia me falado sobre ela algumas vezes – como meu pai costumava dizer, um cupcake humano: tão adorável de olhar que até dava pena de comer (o que eu achei meio rude) -, mas nada se comparava a uma ligação. Eu me mordia de curiosidade para ver como ele reagiria a um contato direto com a família.
– Tudo, e com a senhora? – ele falou, dando um sorrisinho amigável, e eu aproximei meu ouvido do aparelho, tentando ouvir o que ela dizia.
– Tudo ótimo, filho – a senhora disse, e eu instantaneamente imaginei uma mulher muito doce devido à sua voz carinhosa (ela devia parecer um cupcake mesmo) – Você sabe por que estou ligando, não sabe?
– Hm... Porque amanhã é meu aniversário? – chutou, fazendo uma careta ao mencionar o fatídico evento.
– Também... Mas tem outro motivo – ela respondeu, um tanto empolgada, o que só me fez imaginá-la ainda mais adorável – Este ano, anteciparemos a reunião familiar. Ben precisará passar por um procedimento cirúrgico no próximo mês, e decidimos mudar a data da reunião para este domingo.
ficou sério por poucos segundos, e eu me perguntei se isso se devia à operação do tal Ben ou à antecipação da reunião familiar. Ou pelos dois.
– Este domingo? – ele repetiu com desanimação, e jogando a cabeça para trás – Mãe, é realmente necessário que eu vá? Eu tenho compromissos...
– Que bom, querido, mamãe fica muito feliz por saber que você virá! – ela o interrompeu, como se sequer tivesse ouvido os protestos do filho, e eu não pude evitar uma risadinha – Seu quarto já está pronto, pode vir hoje mesmo se quiser.
– Só a senhora pra me fazer dirigir até aqui no meu próprio aniversário – ele bufou, já resignado, o que eu achei surpreendente e engraçado ao mesmo tempo – Ninguém tem pena de mim nessa família.
– Ah, e prepare-se: seu pai está louco pra consertar aquele Camaro antigo que mais parece uma múmia de um Transformer na garagem – ela complementou, no legítimo tom de socialite falando sobre algo que julga fútil – Vai sobrar pra você fazer aquela sucata andar de novo, ou pelo menos, parecer que anda.
– Mãe, desde quando a senhora sabe o que é um Transformer? – ele perguntou por impulso, surpreso com o nível de modernidade da mãe, mas logo sacudiu a cabeça rapidamente e voltou ao assunto principal, me fazendo rir – Tudo bem, eu conserto o Camaro. Já tinha prometido que faria isso desde a última reunião.
– Então está tudo certo, apareça quando quiser – ela disse, parecendo bastante feliz com o combinado – E se quiser, traga a sua namorada, ou como preferir chamá-la.
me lançou um olhar de dúvida, e alguns segundos depois, um sorrisinho torto surgiu em seus lábios.
Oi? Eu ouvi direito ou estava alucinando? Como ela sabia que eu existia? Ele já havia falado sobre mim? O que ele havia dito?
Hiperventilação em 3, 2, 1...
– Pode deixar, mãe – ele concordou, satisfeito, e sua mãe desligou com um Até logo, querido.
Fiquei em silêncio, já prevendo o convite que estava por vir, mas sem conseguir ficar totalmente empolgada com ele. Era algo que eu queria, e muito, mas... Eu tinha medo. Quer dizer... E se não gostassem de mim? Eles tinham muito dinheiro, podiam muito bem me rejeitar por eu não estar à altura de pertencer, de certa forma, àquela família, financeiramente falando. Eu sabia que não ligava para esses padrões, mas era a família dele... E se isso nos prejudicasse de alguma forma?
Lendo minha expressão insegura, ele largou o celular no sofá e suspirou, me encarando com tranqüilidade.
– Sei que parece monstruoso... – ele disse, inclinando um pouco a cabeça para o lado – Mas acredite, eles mal podem esperar para conhecer a pessoa que finalmente fisgou .
Abaixei um pouco a cabeça, sorrindo fraco e pensando no que poderia dar tão errado assim. Talvez eu estivesse sendo um pouco preconceituosa, rotulando aquela família por seu status social. era um ótimo exemplo de que nem todos ali selecionavam seus contatos pelos números em sua conta bancária.
Voltei a encará-lo, já com um sorriso um pouco mais aberto e o olhar mais confiante. Vi seus lábios imitarem a curvatura dos meus, e enquanto colocava algumas mechas de meu cabelo suavemente para trás de minhas orelhas, ele oficializou o convite:
– E então... Pronta para conhecer minha família?
(’s POV)
Soltei um suspiro cansado quando entrei no elevador, rapidamente apertando o botão no painel. Tive que fazer hora numa livraria enquanto o carro era revisado para a viagem da manhã seguinte e levei mais meia hora para finalmente me livrar do trânsito do horário de pico. Teletransporte, ainda te aguardo ansiosamente.
Esperei as portas se abrirem para poder me jogar no sofá e vegetar por alguns minutos, porém me surpreendi quando cheguei a um 23º andar totalmente escuro e vazio.
– ? – chamei, franzindo a testa ao deixar o elevador, e quase fiquei cego com a súbita iluminação do ambiente.
– Surpresa! – várias pessoas exclamaram em uníssono, surgindo de trás de todos os móveis com sorrisos nos rostos.
– Mas o que... – arfei, assustado, até que reconheci um rosto... E mais um... Espera aí.
– Ih, o velho travou. Alguém vai lá dar um tapa pra ver se volta a funcionar? – ouvi a voz de Brad, meu amigo desde os tempos de faculdade, dizer num tom divertido, e todos caíram no riso.
Era mesmo o que eu estava pensando?
– Peguem leve com ele, a culpa é minha! – sorriu, saindo de trás do sofá e vindo até mim – Afinal, eu o mantive alheio a tudo isso, e muito bem por sinal.
– Metida! – Jules, a mulher de Brad, gritou, e deu língua para ela enquanto algumas risadas voltavam a ecoar pelo apartamento. Eu ainda estava confuso demais para esboçar reação.
– ? – murmurou com um sorriso – Está tudo bem?
– Você... Vocês armaram isso pra mim? – gaguejei, completamente surpreso, e recebi acenos positivos como resposta – Mas... Eu nem desconfiei de nada!
– Esse é o objetivo de uma festa surpresa, oras – Brad revirou os olhos – Como te deixaram ser professor um dia?
Lancei-lhe um olhar cético ao ouvir risos novamente e não consegui evitar me juntar a eles.
– Vocês me pegaram – assumi, impressionado com a quantidade de rostos familiares ao meu redor, e voltei a olhar para – Principalmente você, sua pestinha.
Ela fez uma reverência, sorrindo orgulhosamente do sucesso do plano.
– Tá, agora que você chegou podemos beber, o que significa que você já não é mais o centro das atenções da festa – Brad brincou, me olhando com desdém por um momento antes de rir e me receber decentemente – Parabéns, cara.
– Vai ter troco, pode anotar – prometi, apontando para ele e depois para Jules, que veio me abraçar logo em seguida.
A partir daí todos vieram me cumprimentar, e de repente eu fui engolido por um bando de amigos que eu via quase sempre e outros que não via há anos, o que rendeu bons minutos de conversas. Somente quando enfim consegui atravessar a sala me dei conta de que estava faltando o abraço de alguém.
Olhei ao redor e encontrei rindo numa conversa com , Ewan e Joshua, um amigo que trabalhava com organização de eventos. Por sorte ela olhou na minha direção poucos segundos depois, permitindo que eu pudesse chamá-la discretamente. Segui até o quarto e esperei que ela entrasse atrás de mim.
– O que foi? Algo de errado? – ela perguntou, atenciosa.
– Sim – respondi com o semblante sério, puxando-a pela cintura – Eu não te beijei ainda.
sorriu quando aproximei meu rosto do dela, e levou suas mãos ao meu pescoço, deslizando suas unhas por minha nuca num carinho aconchegante. Mantendo seu corpo grudado ao meu, iniciei um beijo intenso, porém bastante calmo para nossos padrões. Ela correspondeu com vontade, descendo suas mãos por meus ombros e peito enquanto eu seguia na direção oposta e subia por sua cintura. Partimos o beijo com um selinho demorado, ofegantes, e ela me deu um sorriso lindo, com os lábios avermelhados e o rosto bem próximo do meu.
– Você tinha razão – ela sussurrou, assentindo levemente – Está bem melhor agora.
– Obrigado por tudo isso – murmurei, roubando mais um selinho dela – Eu realmente não esperava.
– Jura mesmo? – ela sorriu, satisfeita – Foi tão difícil guardar segredo! Eu estava muito ansiosa.
– Preciso tomar cuidado com você... Está se saindo uma excelente atriz – cerrei os olhos, vendo-a morder o lábio inferior com falsa inocência – Daqui a pouco vai estar fingindo orgasmos ou algo parecido.
jogou a cabeça para trás numa gargalhada, e eu prendi o riso.
– Se está com tanto medo disso, é melhor fazer sua parte direitinho – ela murmurou com um ar malicioso, brincando com a gola de minha camiseta – Você me ensinou a ser exigente. Agora aguente as consequências.
– A cada dia que passa você se revela uma aluna melhor – sorri, sentindo a empolgação do desafio me atingir. Ela sabia mesmo como me atiçar.
– Obrigado, professor – ela soprou, buscando minha boca com a sua e prendendo meu lábio entre seus dentes demoradamente. Fechei os olhos, desfrutando da provocação, e percebi que já estava ficando difícil conter os pensamentos impuros rodopiando dentro de minha cabeça.
Puxei seu corpo para mais perto do meu, ouvindo-a soltar um suspiro delicioso de aprovação. Tortura.
– Vamos voltar pra sala – ela sussurrou de repente, me dando um selinho rápido e afastando seu rosto logo em seguida – Não podemos deixar os convidados sozinhos.
Franzi a testa, ainda um tanto desnorteado.
– Claro que podemos – resmunguei, avançando para beijá-la, mas seu indicador sobre meus lábios frustrou meus planos.
– Mais tarde – piscou, dando um sorriso maldoso – Agora... Pra sala.
Bufei, contrariado, e deixei que ela me arrastasse para fora do quarto, onde peguei uma cerveja e logo fui fisgado para uma conversa entre alguns antigos colegas de profissão.
A noite voou. Depois de algum tempo para que todos colocassem a conversa em dia e bebessem um pouco, alguém achou tequila no armário da cozinha e a diversão de verdade começou. Resultado: meia hora depois, a grande maioria – somente os motoristas continuavam sóbrios – estava bêbada. Incluindo .
– Tem alguma coisa muito errada com você! – Dustin, irmão de Jules, exclamou com um riso indignado ao vê-la comemorar por ter virado um shot mais rápido que ele.
– Eu tenho mandíbula de cobra! – ela riu, e quase tropeçou nos próprios pés ao dar um rodopio. Sorte dela que eu estava por perto para segurá-la.
– Chega de álcool por hoje, você já bebeu muito – falei, tentando parecer autoritário diante da gargalhada bêbada dela, e aproveitando-me da distração dos outros, sussurrei em seu ouvido – Além do mais, eu quero você bem lúcida pro nosso mais tarde.
– Oh, sim – ela cochichou, como se fosse um segredo super secreto, tornando minha tarefa de não rir ainda mais difícil – Pode deixar.
A partir dali, não demorou muito para que o nível de sonolência começasse a se tornar insuportável e aos poucos todos fossem embora, alguns carregando outros, alguns sendo carregados. Brad e Jules foram os últimos, já que insistiram em me ajudar a arrumar a bagunça na sala e cozinha. , já um pouco menos alterada, tentou me impedir de participar da organização, mas desistiu de resistir quando percebeu que seria inútil.
Assim que a porta do elevador se fechou, deixando-nos finalmente sozinhos, soltei um suspiro de alívio. A porção moderada de álcool em minhas veias também estava me deixando sonolento, mas não a deixaria me derrotar. Afinal, eu ainda tinha assuntos pendentes a resolver.
– E então... – falei, virando-me para , e ergui uma sobrancelha – Já está tarde o suficiente para o mais tarde?
Ela deu de ombros, disfarçando um sorrisinho.
– Isso só depende de uma única coisa... – ela respondeu, tirando os sapatos devagar – Do quão rápido você conseguir me pegar!
Com uma gargalhada, ela saiu correndo sem aviso prévio, rumo ao interior do apartamento. Surpreso, corri atrás dela, sentindo uma leve tontura devido ao álcool que insistia em me atordoar, até as escadas. Não sei como ela conseguiu subir aqueles degraus tão depressa sendo que mal conseguia ficar de pé algum tempo atrás, mas ela o fez. Deus abençoe o metabolismo rápido dos dezoito anos.
Percebendo que eu não estava muito longe, ela soltou um grito desesperado digno de filme de terror, e acelerou na direção da área externa. Quase dei de cara com a porta ao passar, e quando finalmente a encurralei na borda da piscina, ela esperou que eu a abraçasse pela cintura para se jogar na água, me levando junto.
– Você achou que eu não pularia, não é? – riu, assim que minha cabeça emergiu e eu finalmente consegui respirar direito.
– E por acaso eu tive tempo de achar alguma coisa? – retruquei, tossindo um pouco – Mas pelo menos eu te peguei.
– Claro que não! Eu deixei! – ela reclamou, indignada, jogando água em meu rosto – Eu ganhei, , aceite isso!
– Pra sua informação, esse foi só o primeiro round – falei, avançando na direção dela rápido demais para que ela pudesse fugir, e a prensei contra uma das beiradas da piscina – E eu acho que tivemos um empate.
Ela me deu um sorriso contrariado, analisando minha versão dos fatos com um aceno discreto de cabeça, e seu veredicto não demorou a sair.
– Tudo bem... Mas saiba que eu não estou disposta a facilitar pra você de novo.
– Você não costuma facilitar muito as coisas pra mim... – soprei ao pé de seu ouvido numa risada rouca, levando minhas mãos até suas costas lentamente – Ficar perto de você sem perder o controle já é difícil, e você ainda me provoca...
Dei um beijo demorado em seu maxilar, trazendo minha mão para sua nuca e prendendo algumas mechas de seu cabelo entre meus dedos. Senti seu corpo se encolher de leve quando minha outra mão puxou seu vestido para cima, ao mesmo tempo em que eu misturava nossas pernas. A água gelada era mais um motivo para que buscássemos o máximo de contato físico.
– Não se faça de coitado, eu também sofro na sua mão – ela riu baixinho, deslizando as mãos por meu tronco com a respiração fraca – Acho que temos um empate no quesito provocação também.
Afundando as pontas de meus dedos na pele de sua cintura, desci meus lábios por seu pescoço, empenhado em enlouquecê-la antes de mim, o que eu sabia que não funcionaria tão bem quanto o esperado. Ela estava apenas desfrutando de minhas provocações, sem exatamente corresponder, mas ainda assim era como se ela me excitasse por simplesmente me deixar tocá-la. Seu perfume fazia minha mente girar numa velocidade alucinante, como uma droga, e ver o tom avermelhado de sua pele respondendo às minhas carícias só me fazia querê-la mais e mais. Às vezes eu me perguntava como não a machucava. Ela parecia sempre tão jovem e sensível...
Minha respiração tornou-se pesada rapidamente conforme minha boca viajava por seu pescoço. Baixando o rosto devagar para atrair minha atenção, ela capturou meus lábios com os seus e iniciou um beijo intenso, no qual nossas línguas travavam uma luta sem regras. Trouxe meu polegar para seu rosto, determinado a provar que era possível aprofundar ainda mais aquele beijo, e consegui. Seus dedos gelados iniciaram caminhos por meus braços, deixando rastros ferventes por onde passavam, até atingirem meus ombros e darem lugar para seus braços, que o envolveram sem pressa. Enroscando seu indicador em meu cabelo, ela partiu o beijo por um momento para que ambos pudéssemos respirar um pouco, e sussurrou:
– Estou morrendo de frio!
Concordei com um risinho, e olhei rapidamente para o interior do apartamento.
– Estamos molhados... Nossas roupas vão encharcar o chão – observei, tentando encontrar uma solução prática, mas não precisei me esforçar muito. Ela já tinha a solução.
– Não precisamos entrar com as roupas.
Ergui as sobrancelhas, compartilhando um sorriso divertido, e deixei que ela saísse da piscina para então segui-la. Ao chegar à porta, ela tirou o vestido sem a menor cerimônia e correu para dentro.
– Vem! – ela chiou, abraçando o próprio corpo, e eu me desfiz da camiseta, calça, sapatos e meias. Mal havia terminado, ela me puxou para dentro e me abraçou, tremendo de frio.
– Sua fracote – brinquei, cambaleando com ela pelo pequeno corredor até chegarmos à sala (fazendo uma pausa supersônica no banheiro para pegar algumas camisinhas). Com um sorriso sapeca, ela se sentou no tapete e me puxou consigo, rapidamente colocando uma perna de cada lado de meu corpo.
– Quem é fracote agora? – ela riu contra meus lábios antes de me roubar um beijo, e eu não hesitei em correspondê-lo, explorando suas coxas nuas com urgência. As mãos dela passeavam por meus cabelos, bagunçando-os e puxando-os sem qualquer pudor, e agora que as roupas e a água não nos atrapalhavam mais, cada toque parecia muito mais intenso, contribuindo para que rapidamente nossas poucas peças de roupa se tornassem um incômodo.
Pressionei seu corpo sobre o meu, segurando seus quadris, de forma a mostrá-la o quanto exatamente eu estava excitado. Ela soltou um gemido quase inaudível ao sentir minha ereção cada vez mais evidente, e um sorriso metade maldoso, metade satisfeito surgiu em seu rosto.
– Não adianta reclamar... Eu disse que não seria fácil – ela soprou em meu ouvido, arranhando meus ombros lentamente a cada palavra. Fechei os olhos ao sentir seu corpo relaxar em meu colo, aumentando a pressão sobre meu membro, e aos poucos ela iniciou um movimento de vai e vem que provocava uma fricção dolorosamente deliciosa. Com um palavrão baixo, afundei meu rosto na curva de seu pescoço e inconscientemente comecei a me mover com ela, como se as roupas mal estivessem ali ainda. Soltando o ar ruidosamente contra sua pele, deixei que ela deslizasse minhas mãos por suas costas até atingir o fecho do sutiã, e antes que eu pudesse ver o que havia feito, ele já estava longe dali.
Ela estava totalmente no controle. E eu não estava exatamente reclamando... Mas tinha que tomar uma atitude. Afinal, tínhamos um empate a decidir.
Por isso, não hesitei em levar uma de minhas mãos até sua barriga e rapidamente deslizar meus dedos para dentro de sua calcinha.
sibilou ao sentir meu toque, e eu pude desfrutar de seu colo quando jogou a cabeça para trás. Brinquei com um dedo em sua entrada, sem pressa, enquanto meu polegar estimulava seu clitóris. O calor que emanava de dentro dela me causava arrepios, eu adorava aquela sensação; era como uma forma explícita de sentir o que ela sentia, e somar tudo isso ao que se acumulava dentro de mim.
– ... – ela suspirou, voltando a me olhar com as bochechas rosadas, e o desejo repuxou os cantos de meus lábios para cima diante daquela visão. Nos beijamos mais uma vez, sem nos preocuparmos com qualquer tipo de delicadeza, e eu escorreguei dois dedos para dentro dela, sentindo suas paredes se contraírem em volta deles conforme suas costas se arqueavam e suas pernas ficavam rígidas. Ela cravou as unhas em meus bíceps, respirando contra meus lábios, e eu me controlava para não acabar logo com aquilo a cada gemido que ela soltava. Empatados novamente.
– Você quer mais? – provoquei com a voz falha, notando sua reação agressiva ao curto alcance proposital de meus dedos e me divertindo com minha vantagem – É só pedir.
– Eu quero... Isso – ela arfou, rapidamente descendo suas mãos até a barra de minha cueca, capturando meu pescoço com seus lábios ao abaixar seu tronco. Respirei fundo ao sentir as pontas de seus dedos tocarem minha virilha, me arrepiando com a expectativa, até que sua mão o envolveu, com um leve carinho de seu polegar. Sentindo-o bastante duro, os dedos dela se fecharam, exercendo uma pressão que fazia as veias de meu pescoço saltarem, e iniciaram movimentos vagarosos. Me concentrei na parte de mim que estava dentro dela enquanto meu lóbulo era caprichosamente sugado, e meus olhos se reviraram com seu toque sutil em meu abdômen, passeando sobre meus músculos tensos.
– Assim você vai estragar toda a diversão – avisei após alguns minutos, com o que restava de oxigênio em meus pulmões, sentindo uma fina camada de suor recobrir nossos corpos. Com uma trilha de beijos, ela chegou até minha boca e mordiscou meu lábio inferior antes de responder:
– Então me impeça.
Você está perdendo, . Hora de virar o jogo.
– Você sabe mesmo com quem está mexendo, não é? – murmurei com um sorriso sujo, recebendo um igualmente impuro em resposta – Como queira.
Puxei seu rosto para perto do meu, sem beijá-la, e acelerei os movimentos de meus dedos, atingindo fundo nela. Travei meu maxilar ao ver o prazer em seu rosto, juntamente com o movimento de seu quadril contra minha mão. Esperei até que o choque inicial passasse, e engolindo os gemidos que se aglomeravam em minha garganta, ordenei:
– Agora seja uma boa menina e me ajude aqui.
Com a mão livre, tateei pelo tapete até encontrar a pequena embalagem, e tomando cuidado para não danificar o preservativo, rasguei o plástico externo com os dentes, estendendo-o a ela. Respirando fundo, ela se forçou a seguir minhas ordens, e com um pouco de dificuldade, concluiu sua tarefa. Sentindo que ela estava perto de um orgasmo pelas contrações internas de seu corpo, prossegui.
– Tire a calcinha.
Num movimento brusco e um certo contorcionismo, ela me obedeceu, e sem que eu precisasse pedir, fez o mesmo com minha cueca, recebendo minha ajuda. Intensifiquei meu trabalho, ajudando-a a atingir seu ponto máximo em pouco tempo, e retirei meus dedos úmidos de dentro dela, deslizando-os suavemente por entre seus seios para que minha língua provasse de seu orgasmo logo em seguida ao passear por sobre a pele da região. Com um suspiro profundo, ela demonstrou sua aprovação. Empate.
– Você me deixa louca – ela sussurrou perto de meu ouvido, alisando meus ombros com as mãos espalmadas, e sem aviso empurrou meu tronco para baixo, me fazendo deitar no tapete – Hora de retribuir o favor.
Movendo sua pélvis sobre a minha, ela me posicionou em sua entrada, e cobrindo minhas mãos com as suas, desceu devagar, permitindo que eu a invadisse aos poucos. Uma onda de calor percorreu meu corpo ao nos encaixarmos, arrancando grunhidos baixos de minha garganta e enrijecendo meus músculos. Nossos dedos se entrelaçaram conforme ela continuou se movendo, permitindo que eu sentisse meu membro invadi-la por completo incontáveis vezes.
Por mais que eu pudesse enxergar tudo deitado, me senti muito distante dela, e após algum tempo preferi voltar a me sentar, podendo desfrutar do atrito irregular de seu tronco subindo e descendo rapidamente contra o meu. Ela trouxe seu rosto para perto de mim, apoiando-se em meus ombros, e eu lhe dei suporte com minhas mãos em sua cintura, ambos com rostos contorcidos e respirações irregulares. Um ardor gostoso indicava que as unhas dela haviam arranhado minha pele, sofrendo o impacto de nossos movimentos, tão rápidos que quase conseguiam superar a velocidade de nossos batimentos cardíacos frenéticos. Por entre minhas pálpebras quase fechadas, observei que ela mordia seu lábio inferior, tentando segurar seus gemidos sem muito sucesso, e a vermelhidão de sua boca, juntamente com o leve inchaço, só me ajudou a atingir meu limite. Eu era um amante dos detalhes, e todos os dela me enlouqueciam.
Ainda estávamos empatados, mas eu estava prestes a anunciar minha rendição.
– Eu não vou agüentar muito mais – arfei, respirando com dificuldade.
– Não precisa me falar – ela respondeu num sussurro, e aproximando sua boca da minha, completou sua frase – Só faça.
Ligeiramente trêmulo e com muita adrenalina correndo em minhas veias, me desfiz da tensão que ajudava a me conter, sentindo uma resposta imediata de meu corpo através de uma explosão de torpor que durou alguns segundos. Investi pela última vez, apoiando minha testa em seu ombro e respirando fundo até ter fôlego o bastante para me mexer de novo. Também se recompondo, acariciou minhas costas calmamente, em silêncio, até que eu a abracei pela cintura e a ouvi rir baixo.
– Feliz aniversário – ela murmurou, retribuindo o abraço em meu pescoço. Sorri.
– Eu te amo – falei com a voz serena, sem nem pensar antes. Só depois percebi o quão gay isso soou, mas eu estava exausto e minha cabeça estava cheia de pensamentos abominavelmente fofinhos, então não foi exatamente minha culpa.
– Que delícia ouvir isso – ela disse, manhosa – Eu também te amo.
– Eu sei que não falamos isso tanto quanto deveríamos... Desculpe por isso – continuei com um certo remorso, traçando linhas imaginárias em suas costas – Acho que o certo seria dizer pelo menos uma vez ao dia, e não ao mês...
– Eu não quero que você peça desculpas por isso – ela falou com autoridade, desfazendo nosso abraço para me olhar – É exatamente por não dizermos todo dia que valorizamos tanto quando dizemos. Fico feliz por não usarmos essa palavra como se fosse algo banal... É muito mais do que isso.
Meu sorriso, que antes havia se enfraquecido, voltou a se alargar, e o dela fez o mesmo. Nós realmente tínhamos algo único ali.
Gay de novo? Nem vem.
– Bom... Eu raramente uso essa palavra – comentei, erguendo uma sobrancelha com a expressão séria – E sempre é pra falar de você.
Ela fechou os olhos, dando um sorriso tímido.
– Eu sei que não somos exatamente um casal romântico... E isso é uma das coisas que eu mais adoro – ela suspirou, arrumando meu cabelo desgrenhado – Então nem pense em pedir desculpas de novo, entendeu? Senão eu vou ter motivos pra me desculpar depois que quebrar essa sua cara charmosa todinha.
Soltei uma risada curta, sentindo minhas pálpebras pesadas, e mais uma vez, uni nossos lábios.
Ela tinha razão. Podíamos não seguir certos padrões, mas éramos muito mais íntimos e apaixonados que muitos casais convencionais.
E ser convencional não era algo que estava em nossos planos.
– Tem certeza de que eu estou decente?
Revirei os olhos, fingindo que sua pergunta era digna de minha atenção. Era a sétima vez que ela repetia aquelas mesmas palavras.
– , você precisa se acalmar – falei, tentando não rir da agitação dela – Não tem nada de errado com a sua roupa, nem com o seu cabelo, nem com nada. Você está linda.
– Desculpe... Acho que eu estou um pouco nervosa – ela suspirou, ajeitando-se no assento do carro timidamente. Olhei para ela com as sobrancelhas erguidas.
– Está pronta? – perguntei, recebendo um aceno positivo dela, e assenti de volta, ligando o carro. Deixamos a garagem em poucos segundos, deparando-nos com um sol revigorante, apesar das baixas temperaturas. Tínhamos cerca de duas horas e meia de viagem pela frente, e como da última vez que viajamos para a casa de praia eu havia determinado a trilha sonora, dessa vez ela escolheu as músicas que ouviríamos durante o trajeto. Não me importei muito, já que ela parecia ter achado uma boa maneira de se distrair. Prendi o riso quando ela tentava alcançar as notas mais altas e soava bem... Diferente do esperado.
– Quem vai estar lá mesmo? – ela indagou do nada, observando distraidamente o encarte de um dos CDs. Franzi a testa tentando me lembrar de todos.
– Meus pais, meus tios paternos e maternos, meu primo gay, minha prima que é irmã dele, o filho dela e... Acho que só – dei de ombros, sem conseguir me lembrar de mais ninguém – São poucas pessoas. Nossa família não é grande, você não tem que ter medo de nada.
– Não estou com medo, só estou... Nervosa – ela corrigiu, mudando de música freneticamente até encontrar a que queria – É normal se sentir assim nessas situações.
– Eu só não quero que você se sinta diminuída diante deles de forma alguma – expliquei, vendo que ela erguera o olhar para mim – Eu sei que você não se deslumbra com dinheiro, mas não quero que se sinta intimidada por ele.
desviou o olhar de mim e não respondeu de imediato. Percebi que havia tocado num assunto delicado.
– Eu só tenho dezoito anos, – ela murmurou, com os ombros encolhidos – Sou só uma pirralha que mal começou a faculdade. Se eu fosse rica, pelo menos teria alguma coisa pra ostentar...
– Então você acha que o dinheiro nos atrapalha? – interrompi, inconscientemente apertando o volante com mais força – Acha que as pessoas vão olhar pra você e tudo o que verão será a namorada do cara rico? A aproveitadora?
– Não, claro que não! – ela exclamou prontamente, me olhando com incredulidade – Não é isso que eu tô dizendo! Eu jamais tocaria no seu dinheiro!
– Então por que você age assim? Ninguém tem que nos julgar por nada – falei, um tanto ríspido, sem olhar para ela – Enquanto dermos certo, ninguém precisa nos aprovar além de nós mesmos, e eu sei que você não é esse tipo de pessoa. Você está feliz comigo?
– C-claro – ela gaguejou, assustada com minha súbita mudança de humor.
– Eu também estou com você, e é só o que importa – rosnei, irritado – Não precisamos de ninguém apontando nossos defeitos. Droga, eu sabia que não daria certo trazer você.
Através de minha visão periférica, vi que seu rosto havia mudado de intimidado para magoado. Seu olhar caiu até seu colo, e um silêncio horrível caiu sobre nossas cabeças.
Exceto pela música.
Some people want it all
(Algumas pessoas querem tudo)
But I don't want nothing at all
(Mas eu não quero nada)
If it ain't you, baby
(A não ser você, baby)
If I ain't got you, baby
(Se eu não tiver você, baby)
Some people want diamond rings
(Algumas pessoas querem anéis de diamante)
Some just want everything
(Algumas simplesmente querem tudo)
But everything means nothing
(Mas tudo significa nada)
If I ain't got you
(Se eu não tiver você)
Fechei meus olhos por um momento, cheio de arrependimento, enquanto reduzia a velocidade e parava no acostamento. nem se mexeu.
– , eu... Me desculpe – pedi, olhando-a com aflição – Eu me expressei mal.
Nenhuma reação. Continuei.
– Se você soubesse quantas vezes o fato de meu pai ter se dado bem na vida me deu dores de cabeça... Toda vez que eu tentava ter algo sério com alguém, a ganância sempre falava mais alto e eu tinha que voltar atrás. Sempre que eu levava alguém ao meu apartamento, eu sabia que não tinha mais chance de ter um relacionamento mais duradouro que uma noite. E você... Até nisso você me surpreendeu. Eu confio em você, sei que não está comigo para me dar um tipo de golpe ou algo parecido. Eu não quero que você mesma destrua isso, entende? Que você se sinta mal por achar que não tem nada a oferecer por ser muito nova ou por não ser rica.
Levei meu indicador até a base de seu queixo, erguendo seu rosto e virando-o na minha direção. Seus olhos brilhavam um pouco mais que o habitual, e eu me senti péssimo.
– Eu não quero alguém da minha idade, eu não quero alguém rico... Porque não seria a mesma coisa. Porque não seria você... Não seríamos nós. E eu gosto desse nós. Como eu nunca gostei de nada antes. E eu não quero perder isso logo agora que eu finalmente consegui... Agora que você finalmente está comigo.
Ela esboçou um sorriso tristonho, com os olhos fixos nos meus, e com a voz baixa, disse:
– Nem eu.
– Mal fiz 31 e já estou virando um velho ranzinza... Como você vai me suportar, ? – resmunguei de brincadeira, conseguindo arrancar um sorriso dela, e voltei a falar sério – Me desculpe mesmo... Eu não queria te magoar.
– Tudo bem – ela assentiu, sincera – Só preciso de um tempinho pra voltar ao normal.
– Eu vou ficar bem quietinho aqui, tá? – falei, me afastando dela o máximo que pude e vendo-a rir baixo – Não vou falar nada, só vou dirigir. Quando você ficar bem me avise e eu prometo que só vou falar de arco-íris, unicórnios e borboletas.
– Bobo – ela murmurou com olhos carinhosos, e eu não consegui evitar me reaproximar o suficiente para que nossos rostos ficassem a poucos centímetros de distância.
– Nada vai estragar nosso fim de semana – sussurrei, indeciso entre fitar seus olhos ou sua boca – Está bem?
assentiu, me dando um lindo sorriso envergonhado, e eu a beijei delicadamente, o que era relativamente raro. O máximo de drama que tínhamos era discutir sobre o fato de que ela roubava o lençol inteiro para si quando dormíamos juntos... Aquilo era algo completamente diferente e assustador.
– Podemos continuar a viagem? – ela pediu, partindo o beijo não muito tempo depois de iniciado – Eu estou com um pouco de fome... E ansiosa para comer comida de rico.
Soltei uma gargalhada alta, voltando à minha posição normal no assento.
– Golpista! – exclamei, vendo-a cair no riso enquanto voltava a dirigir.
(’s POV)
– Tô ficando gorda.
– Hã?
Ouvi soltar uma risada curta, e o olhei com ceticismo.
– É sério! – resmunguei, sem me importar com o vento que bagunçou meus cabelos ao entrar pela janela quando virei minha cabeça na direção dele – Olha!
Levantei minha blusa até expor minha barriga, e o fato de estar com os pés sobre o painel do carro só piorava a situação calamitosa de minha gordura localizada.
– Nossa... Sua nojenta, sai do meu carro – ele disse, cheio de sarcasmo ao me olhar, mas antes de direcionar seus olhos para a frente algo chamou sua atenção em minha cintura, fazendo-o franzir a testa – Esse hematoma é obra minha?
– Acho que sim – respondi distraidamente enquanto ele voltava a focar sua atenção no trânsito quase inexistente, pressionando o pequeno roxo em minha pele e sentindo-o um pouco dolorido – Mais um pra coleção.
deu um charmoso sorriso de canto, daqueles que faziam uma febre inexplicável subir pelas pernas, e eu baixei a barra da blusa, frustrada com as reações idiotas que meu corpo demonstrava por quase tudo que ele fazia.
– Sua pirralha – ele falou, revirando os olhos por detrás dos óculos escuros, e eu, indignada, lhe dei um soquinho no ombro – E nem adianta querer dar o troco, porque além de pirralha você é fraca.
– Eu consegui deixar a marca dos meus dedos no seu braço uma vez! – lembrei, tentando não rir das provocações dele – Você mesmo assumiu que ficou dolorido.
– Não me lembro disso – ele rebateu na mesma hora, mentindo descaradamente.
– Argh, você me tira do sério! – exclamei com os olhos cerrados, dando vários tapas em seu braço antes de cruzar os meus e olhar na direção oposta à dele – Não quero mais falar com você.
– ? – ele chamou, sem receber resposta imediata. Fiz bico, irritada com a facilidade que ele tinha de me irritar (não de um jeito sério... na verdade era até divertido, se é que isso existia), e percebi que ele olhava meu reflexo no retrovisor do carro.
– Que é? – rosnei, sem conseguir evitar que meus lábios formassem um sorriso contrariado em meu rosto, e o vi sorrir de volta enquanto reduzia a velocidade.
– Chegamos.
Virei meu rosto na direção do dele, subitamente séria, e ele fez uma curva, parando diante de um alto portão de metal que interrompia uma cerca viva igualmente imponente.
– Bom dia, senhor – um homem sorriu cordialmente ao reconhecer , que retribuiu o cumprimento com um aceno de cabeça, e permitiu que entrássemos na propriedade. Engoli em seco ao ver a mansão, precedida por uma extensa área verde.
– Bem vinda à casa dos meus pais – ele anunciou com certo embaraço, parando a poucos metros da porta.
Respondi com um sorriso indeciso entre ansiedade e alegria. Estava na hora de finalmente conhecer sua família.
Assim que o ronco do motor cessou, uma senhora saiu pela porta da frente do casarão, sorrindo docemente ao nos ver.
– Querido! – ela suspirou, caminhando até , que saiu do carro direto para seu abraço.
– Oi, mãe – o ouvi dizer enquanto também deixava o automóvel. Não consegui conter um sorriso ao ver os dois se cumprimentando tão carinhosamente.
– Fizeram boa viagem? Minha nossa, como você está magro. Está com fome? O almoço está quase pronto – ela disparou, acariciando o rosto de enquanto o examinava de cima a baixo e depois olhando para mim conforme eu contornava o carro até parar ao lado deles – Oh... E você deve ser a famosa .
Tive certeza de que meu rosto ficou roxo de vergonha ao dar um sorriso tímido em confirmação, e senti os dedos de se entrelaçarem aos meus.
– Você é mesmo muito bonita – ela sorriu, me observando com interesse e depois lançando um olhar cúmplice ao filho, que sorria disfarçadamente de volta – Muito prazer.
– O prazer é todo meu, senhora – falei educadamente, e qual não foi minha surpresa ao vê-la se aproximar e me dar um abraço. Aquilo foi totalmente inesperado. Eu previa no máximo um aperto de mão.
– Ora, por favor – ela riu ao se afastar – Estamos numa reunião familiar, vamos dispensar as formalidades. Me chame de Audrey. Venham, vamos entrar!
Respirei fundo, involuntariamente apertando a mão de com mais força, e ao lançar-lhe um rápido olhar nervoso, vi um sorriso divertido muito confortável em seu rosto.
Acompanhamos a senhora – digo, Audrey – até o interior da casa, tão elegante e bonito quanto seu exterior. Passamos pelo hall de entrada, que já me permitia ter uma noção do quão grande o resto seria, e chegamos até uma bela escadaria, de onde seguimos para a direita.
– Estávamos colocando a conversa em dia e aproveitando o dia ensolarado enquanto vocês não chegavam, mas agora podemos mandar servir o almoço – ela disse enquanto caminhávamos na direção de uma grande porta que dava para o exterior novamente. Minhas entranhas reviraram de ansiedade a cada passo que dávamos até finalmente deixarmos a casa, chegando na área da piscina, onde algumas pessoas conversavam. Engoli em seco.
... Olá, família ?
– ! – uma das mulheres sorriu ao ver que nos aproximávamos, e pelas discretas rugas em seu rosto, logo presumi que deveria ser uma de suas tias – Só faltava você!
– Oi, tia Margaret – ele disse com um meio sorriso, e então mais sete pares de olhos caíram sobre nós. O que basicamente significa que todos estavam me analisando dos pés à cabeça. Eu sabia que devia ter escolhido um jeans mais escuro.
– Como vai, meu rapaz? – o homem bastante calvo ao lado de Margaret perguntou enquanto ela cumprimentava o sobrinho com um abraço, fazendo o mesmo que ela logo depois.
– Vou bem, tio Joseph, obrigado – respondeu, voltando a envolver minha cintura com seu braço assim que o tio se afastou – Esta é minha namorada, .
– Minha nora em potencial – Audrey disse gentilmente, me lançando um olhar maternal – Ela não é linda?
apenas suspirou, lançando um olhar de censura à mãe, que revirou os olhos em resposta. Se não estivesse tão intimidada, teria sido difícil não rir.
– Muito prazer – gaguejei para os tios dele, sorrindo cordialmente.
– Muito mesmo, com o namorado que você tem... – uma voz masculina murmurou atrás deles, que se viraram para olhar seu dono – O apelido dele não é britadeira por acaso.
Franzi a testa ao observar o homem incrivelmente bonito sentado numa das espreguiçadeiras, que me olhava de cima a baixo com vago interesse para depois fixar seus olhos entediados nos meus.
havia me dito que seria um choque, mas eu definitivamente não estava esperando por uma apresentação tão marcante, primo gay.
– Elliot! – a mulher que dividia a cadeira com ele chamou em tom de repreensão – Quanta grosseria!
– Que seja – ele deu de ombros, disfarçando uma risada maldosa e depois olhando para o primo – Oi, .
– Oi, Emily – rebateu, dando ênfase à palavra ao dar um sorriso forçado à moça, que eu logo deduzi ser sua prima e portanto, irmã de Elliot – Essa é , minha namorada.
Elliot fingiu não sentir o fora que havia levado enquanto Emily prendeu um sorriso maldoso e me olhou com simpatia.
– Prazer em conhecê-la – ela disse com humor na voz, e eu sorri timidamente de volta. Ela era tão bonita quanto o irmão, o que basicamente me fazia a pessoa mais feia no recinto. Nem os mais velhos perdiam de mim.
– Mamãe, eu achei uma minhoca! – uma voz de criança exclamou, se aproximando em rápidos passos até Emily – Olha!
Um sorriso enorme se abriu em meu rosto ao ver um garotinho parar ao lado da espreguiçadeira, arfando, e estender o braço para a mãe, mostrando o pequeno bicho que havia encontrado no jardim. Elliot revirou os olhos, enojado, e se levantou, esbarrando em meu ombro ao passar por mim. Ignorei sua atitude imatura completamente, disposta a fazer exatamente o mesmo pelo resto do fim de semana.
– Filho, você já sujou sua roupa? Eu pedi pra não brincar na terra antes do almoço! – Emily suspirou, prendendo um sorriso diante da empolgação do menino – Agora largue isso e diga oi para o seu tio e a namorada dele.
– Oi, tio! – ele disse alegremente, piscando várias vezes ao dirigir seus olhos de para mim – Oi, namorada do tio!
– Fala, pequeno – sorriu, bagunçando os cabelos do garoto, que soltou uma breve risada – Ben, esta é .
– Oi, ! – Ben corrigiu, evidenciando suas bochechas coradas ao sorrir ainda mais para nós antes de voltar a falar com a mãe – Tô com fome... Já podemos almoçar?
– Só se você largar essa minhoca e subir comigo para trocarmos essa blusa antes – ela respondeu, ficando de pé e estendendo-lhe a mão. Na mesma hora, ele a obedeceu, e os dois entraram em casa.
– Que garotinho adorável! – guinchei com os olhos brilhando. apenas assentiu, me conduzindo até o pequeno grupo de pessoas que conversavam a alguns metros de distância.
– Esses são meus tios paternos, Sarah e Leonard – ele prosseguiu, indicando uma mulher que com certeza aparentava muito menos idade do que realmente tinha e um homem com um bigode incrivelmente medonho, que sorriam gentilmente para nós; cumprimentei os dois com um gesto respeitoso de cabeça – E este é meu pai, Anthony.
– Que bom que ainda se lembra dos nomes de todos – o homem de mais ou menos cinquenta anos ao lado de Leonard riu ao enfim ser apresentado, tão charmoso quanto o resto da família. Mas que coisa, não tinha ninguém feio naquele raio de casa?
Ah, sim, tinha. Eu.
– Me poupe do drama, mamãe já se encarregou dessa parte – revirou os olhos, cumprimentando o pai com um abraço – Esta é .
– Muito prazer, – ele sorriu, estendendo sua mão para que eu lhe desse a minha, e quando o fiz, recebi um leve beijo próximo ao pulso – Seja bem vinda.
– Obrigada – falei, um tanto surpresa pelo tom galante que ele havia usado ao pronunciar meu nome... Seduzir estava no sangue da família, pelo visto.
– Vamos entrando... O almoço será servido em poucos minutos – Audrey anunciou, seguindo para o interior da casa, e todos a acompanharam. voltou a segurar minha mão com firmeza, e rapidamente ergueu uma sobrancelha quando o olhei, o que só tornou seu sorriso discreto mais charmoso. Acho que aquilo era um sinal de que estava fazendo tudo certo até então...
O almoço foi bastante tranqüilo. A comida estava simplesmente deliciosa, e apesar de muitas perguntas serem dirigidas a mim e , ele conseguiu fazer com que eu não me sentisse pressionada ou sem graça diante da curiosidade de seus familiares. O único que parecia insatisfeito era, obviamente, Elliot, que comia em silêncio, só falando quando lhe perguntavam alguma coisa, e ainda assim num tom desgostoso. Eu nunca imaginei que estivesse tão certo quanto à obsessão do primo por si.
– Vocês devem ter acordado cedo e passado horas naquele carro, merecem um descanso – Audrey sorriu quando todos já se levantavam da mesa – O quarto já está preparado para recebê-los.
– Obrigada – agradeci gentilmente ao seguir com para as escadas, porém algo nos parou no meio do caminho. Ou melhor, alguém.
– Nós redecoramos seu quarto, espero que goste – Elliot comentou, parando à nossa frente e olhando para o primo, que já havia cerrado os olhos em desconfiança – Que pena você não ter trazido a Kelly esse ano... Ela iria adorar as novas cortinas!
Com um sorriso falso direcionado a mim, ele rapidamente subiu para seu quarto. Não era como se eu realmente fosse fazer alguma coisa de que ele devesse ter medo, já que de repente respirar havia ficado difícil.
– Kelly? – repeti após algum esforço, quebrando o silêncio tenso entre nós – Kelly Smithers?
apenas suspirou, levando uma mão ao rosto em sinal de frustração, e eu imediatamente senti uma forte náusea.
– Eu não acredito nisso – gaguejei, sem reação. Meu almoço estava voltando pelo caminho por onde havia entrado e eu estava tão incrédula que tudo o que fiz foi me deixar ser arrastada por para o quarto. Ele mal teve tempo de fechar a porta atrás de nós antes que eu finalmente explodisse.
– Por que você não me contou antes? – disparei, olhando-o com indignação – Por que não me contou que Kelly já esteve aqui?
Ele abriu a boca para falar, mas antes que qualquer palavra saísse de sua boca, o interrompi.
– Em nenhum momento você julgou relevante mencionar esse pequeno detalhe? Não passou pela sua cabeça um segundo sequer que talvez fosse sensato de sua parte compartilhar esse fato? Eu não acredito, eu juro que não acredito nisso...
me encarou com um misto de desespero e arrependimento enquanto eu andava de um lado para o outro, até enfim se aproximar de mim e postar suas mãos em meus braços.
– Você tem razão... Eu devia ter contado antes – ele disse com sinceridade, tentando me acalmar – É que tudo aquilo foi tão insignificante perto de trazer você aqui... Eu não queria estragar esse momento.
– Mentir nunca é a melhor opção – rosnei, me desvencilhando de suas mãos e dando-lhe as costas – A verdade sempre acaba aparecendo e estragando tudo.
– Você quer saber a verdade? – ele bufou, irritado – Tudo bem, eu conto. Não tenho nada a esconder.
– Ótimo, pode começar – assenti, voltando a me virar em sua direção com os braços cruzados sobre o peito numa postura hostil – Sou toda ouvidos.
– Sim, eu já trouxe a Kelly aqui – iniciou, e eu senti o enjôo subir por minha garganta novamente ao ouvir as palavras saírem de sua boca – Mas nunca significou nada para mim, muito menos para a minha família.
– Realmente, estou me sentindo muito mais confiante agora – dei risada, sem me preocupar em dosar meu sarcasmo.
– Será que você não entende? – ele exclamou, novamente se aproximando de mim com urgência no olhar e na voz – Eu nunca senti nada por ela, absolutamente nada! Eu só a trouxe aqui porque estava cansado de ficar sozinho! Não agüentava mais querer alguém que me fizesse morder a língua por todas as vezes em que menosprezei o amor, que me fizesse parecer um idiota só de olhar pra mim e realmente me fizesse sentir quando me tocasse... Não só perceber.
Ele se sentou na cama ao nosso lado, respirando fundo e esfregando o rosto com as mãos. Mantive minha postura séria.
– Eu estava cansado de querer você.
A raiva em meus olhos desapareceu por alguns segundos enquanto meu coração respondia às suas palavras com batimentos cada vez mais acelerados, mas logo respirei fundo e voltei a adotar uma expressão centrada.
– Não foi uma boa idéia, mas pelo menos ela me ajudou com o Elliot – murmurou, cabisbaixo – A cada ano que se passava ele ficava cada vez mais ousado e eu não agüentava mais as provocações dele... Ninguém mais agüentava, na verdade. Então eu a trouxe no ano passado numa tentativa de afastá-lo, e felizmente, funcionou.
Franzi a testa involuntariamente, impressionada com o que ele estava me contando. Elliot estava começando a me dar medo de verdade.
– No fim das contas foi um erro trazê-la aqui – ele prosseguiu com uma risada ácida – Meu pai não parava de paquerá-la, e... Bem, você conhece a Smithers. Não é tão difícil assim cair nas graças dela.
Pisquei algumas vezes, ainda processando o que ele havia acabado de dizer. Eu só podia ter entendido errado.
– A Kelly... Dormiu com o seu pai? – soprei, chocada demais para encontrar minha voz.
– O que você esperava? Ela é jovem e fácil, meu pai é rico e tem seu charme... Um tinha o que o outro queria – ele deu de ombros, balançando negativamente a cabeça – A única coisa que me decepciona nessa história toda é minha mãe.
– Ela sabe? – perguntei imediatamente, sentando-me ao lado dele, ainda mais horrorizada com tudo o que estava ouvindo e deixando a raiva de lado por um momento. Aquilo era muito mais sério.
– Ela sempre sabe – ele disse com certa amargura – Não foi a primeira escapada dele e com certeza não foi a última. Ela sabe que ele é infiel... Eles têm um acordo.
– Acordo? – repeti, tão entretida no que ele contava que nem me dei conta de que talvez estivesse me intrometendo demais.
– Eles se amam, de verdade – explicou, retribuindo meu olhar atento – Mas meu pai tem... Necessidades que minha mãe já não pode mais suprir. Então ele procura quem possa preencher esse posto fora de casa... E ela não se importa.
Engoli em seco, lembrando-me do quão próximos Audrey e Anthony foram durante todo o tempo em que estávamos reunidos. Se não tivesse me dito tudo aquilo, eu jamais adivinharia que algo daquele tipo acontecia. Permitir que o próprio marido seja infiel, apesar de ser uma atitude compreensiva da parte dela, não deve ser a tarefa mais fácil do mundo.
– Isso não significa que eu não me importe... Mas eu sei que eles são felizes assim, e é tudo o que eu quero – ele suspirou com um sorriso fraco – Assim como é o que eu quero para nós.
Seus olhos se fixaram nos meus com muita intensidade, como se ele quisesse ter certeza de que eu entenderia o quão sincero ele estava sendo através daquele olhar. Suas mãos envolveram as minhas com suavidade, espalhando arrepios por meu corpo.
– Me desculpe... Eu devia ter te contado sobre a Kelly antes, mas foi tudo um erro tão desagradável que eu não pensei que teríamos que tocar nesse assunto novamente. Eu devia saber que o idiota do Elliot não pensaria duas vezes antes de jogar sujo.
Respirei fundo, um tanto arrependida por ter ficado brava agora que sabia o que havia acontecido.
– Vai passar – murmurei, fechando os olhos por um momento numa tentativa de afastar os pensamentos ruins de minha mente – Me desculpe por ter reagido daquele jeito, eu não sabia...
– Tudo bem – ele disse com a voz baixa, observando nossas mãos vagamente – Eu entendo.
Sorri fraco para ele, que parecia um tanto chateado, e sem me importar com mais nada daquilo, o abracei. Mal havíamos chegado e já estávamos brigando... Não era assim que eu queria que as coisas acontecessem.
– Eu sempre vou fazer de tudo para sermos felizes – ele disse contra a pele de meu pescoço – Eu não posso perder você.
Um mau pressentimento subitamente provocou um calafrio em minha espinha. Por que ele estava dizendo aquilo?
– Não mentir para mim já é um bom começo – murmurei, lutando contra a insegurança que repentinamente crescia dentro de mim.
Desfiz nosso abraço, olhando fundo em nos olhos dele, que agora pareciam preocupados.
– Eu confio em você – sussurrei, com toda a minha honestidade – Não me faça perder uma das coisas que mais amo sobre nós dois.
Ele respirou fundo, baixando o olhar por um segundo, e assentiu.
– Eu não vou deixar isso acontecer – ele disse, e eu esbocei um sorriso antes de unir nossos lábios num breve, porém significativo beijo.
Não era uma promessa. Era um pedido mútuo.
Por favor, não estrague tudo.
Acordei um tanto alarmada devido ao fato de que havia adormecido inesperadamente. e eu estávamos deitados vendo TV antes de cair no sono – por quantas horas eu havia dormido, a propósito? – e agora eu estava sozinha no quarto. Esfreguei os olhos ao procurar pelo relógio no criado-mudo, e ao ver que havia cochilado por apenas meia hora, reparei num pequeno bilhete ao lado da luminária.
Você dorme demais. E olha que o velho aqui sou eu.
Fui para a garagem resolver algumas coisas para o meu pai. Está um calor horrível, então tome um banho se quiser se refrescar e vista algo leve – sua mala já está no quarto! – antes de vir me procurar.
– Panaca – resmunguei com um sorriso sonolento, me espreguiçando demoradamente antes de levantar e seguir suas instruções. Demorei um pouco mais que o aconselhável no chuveiro, deixando que a água me relaxasse, e vesti um shorts jeans, uma camiseta branca larga – porque era dele e cobria até boa parte de minhas coxas – e sapatilhas azuis. Prendi o cabelo numa trança simples e segui para o exterior da casa. Onde raios ficava a garagem?
Não levei muito tempo para encontrar o lugar, após alguns minutos caminhando pela propriedade. Me surpreendi ao ver que uns cinco carros – e quando eu digo carros, me refiro a carros de verdade, não os meros meios de transporte que pessoas normais geralmente têm – estavam estacionados no grande espaço coberto. já havia me dito que seu pai tinha amigos que trabalhavam em grandes empresas automobilísticas e de certa forma isso contribuía para que a família tivesse carros excelentes, mas ainda assim me surpreendi. Eu sempre me surpreendia, e duvidava muito que um dia deixasse de me surpreender.
– Bom dia! – sorriu ao surgir de trás de um dos veículos, e eu pulei de susto – Achou muito difícil me encontrar?
Abri a boca para responder, mas qualquer palavra que eu pudesse dizer se tornou insignificante quando ele começou a se aproximou de mim.
Ele estava apenas de calça jeans.
Ele sabia que eu tinha um fraco por ausência de camisas.
Desgraçado.
Com uma risada sacana ao perceber que sua pergunta havia se tornado irrelevante, ele parou a poucos centímetros de mim, perto o suficiente para que sua respiração batesse em meu rosto, porém longe o suficiente para que eu somente o beijasse se realmente quisesse.
Em meio aos tremeliques de meus joelhos e pensamentos impuros, me perguntei pela milésima vez como ele era capaz de fazer aquele tipo de coisa.
Que se dane, eu podia pensar nisso mais tarde.
Coloquei minhas mãos sobre seus ombros, tomando impulso para envolver minhas pernas em seu quadril, e nossos lábios colidiram sem a menor gentileza. Meus dedos buscaram seus cabelos da nuca, um pouco úmidos de suor, enquanto suas mãos escorregavam por minha cintura para tirar proveito de minhas coxas em seguida. Apesar do movimento brusco, o que predominava em nosso beijo era a intensidade.
deu alguns passos na direção da garagem, e não demorou muito para que ele me apoiasse sobre uma estante onde algumas ferramentas repousavam. Por vários minutos continuamos nossa batalha de nervos, dispostos a resistir bravamente até que o outro assumisse a derrota.
Quando já estava ficando difícil respirar e eu estava prestes a partir o beijo, ouvi um gemido baixo escapar pelos lábios dele, e então anunciar sua desistência.
– Ganhei – sorri debilmente com a boca inchada, ofegante.
– Se o seu shorts não fosse tão curto... Talvez eu tivesse mais chances – ele arfou, enterrando o rosto em meu pescoço e dando uma mordida no lóbulo de minha orelha. Cruzei minhas pernas ao redor dele, aproximando nossos corpos, e pude sentir que ele estava empolgado por debaixo da calça. Joguei a cabeça para trás, sentindo meu coração bater tão rápido que me causou uma leve tontura.
– Quais são as chances de alguém nos pegar aqui agora? – sussurrei, cheia de segundas intenções.
Com um suspiro, ele ergueu o rosto para me encarar, com a testa franzida em desapontamento.
– Eu tenho que consertar o carro do meu pai – ele murmurou com desânimo, encolhendo os ombros – Ele não deixa mais ninguém tocar nele a não ser eu, e precisa que esteja pronto até amanhã cedo, quando um possível comprador virá avaliá-lo.
Revirei os olhos, recostando-me na parede atrás de mim. Um carro era mais importante do que eu. Inacreditável.
– Posso pelo menos ficar aqui com você? – perguntei, fazendo beicinho – Não quero ficar sozinha pela casa.
– Claro que pode... Desde quando você precisa pedir uma coisa dessas? – sorriu, achando graça de minha pergunta, e me deu um selinho – Só não garanto que será divertido, já que não vou poder te dar muita atenção.
Dei de ombros, sem muita escolha, e o observei pegar algumas ferramentas na caixa ao meu lado para voltar a trabalhar no motor do carro de onde ele havia surgido alguns minutos atrás. Tentando lutar contra o tédio (sem falar na frustração), entrei no carro e me acomodei no estreito banco de trás.
– Ei, isso aqui funciona? – perguntei quando meus olhos caíram sobre o que parecia ser um rádio próximo ao painel.
Fiquei de joelhos no banco e esgueirei meus ombros pelo espaço entre os assentos da frente, mexendo no que me parecia ser o tuner. Não obtive resposta, e virei meu rosto para descobrir o motivo do silêncio. Revirei os olhos ao vê-lo me olhar através do vidro traseiro. Piscando algumas vezes, com o rosto vazio e uma leve demência momentânea, ele finalmente notou o que havia acontecido.
– Desculpe – murmurou, me fazendo balançar negativamente a cabeça e soltar um risinho – O que você disse?
– Nada, deixa pra lá – falei, passando o resto de meu corpo para o banco do motorista, a fim de não distraí-lo para que terminasse logo de arrumar aquele carro – Pode continuar o seu trabalho.
Ainda rindo disfarçadamente do momento puberdade dele, continuei tentando fazer o rádio funcionar, e depois de alguns minutos de trabalho, consegui destravar o botão velho que o ligava.
– Não acredito que você conseguiu arrumar essa coisa! – ele riu, fechando o capô do carro para me olhar com a expressão espantada.
– Pois é, nada que um toque de delicadeza feminina não resolva – pisquei, ignorando o fato de que quase havia arrancado o painel inteiro do carro para destravar aquele botão. Ele franziu a testa, duvidando de minha resposta, e ambos caímos no riso.
Passamos boa parte da tarde ouvindo músicas antigas, conversando, rindo, e confesso, nos amassando. Já havia escurecido há um tempo quando ele terminou o conserto, e sem aceitar não como resposta, me carregou até a casa.
– Aí estão vocês – Audrey sorriu ao nos ver subindo as escadas – O jantar está quase pronto.
– Ótimo, estou faminto – disse, sem nem parar para respondê-la, e quando já estávamos a uma distância razoável, sussurrou em meu ouvido – Em todos os sentidos.
Prendi uma gargalhada, afundando meu rosto em seu pescoço enquanto percorríamos o caminho até o quarto, e ele me prensou contra a porta assim que a fechamos.
– E então... Onde estávamos? – ele sussurrou, beijando meu pescoço sem pudor.
– Na parte em que você vai tomar banho – respondi, mordendo meu lábio em seguida e empurrando-o pelos ombros – Você está sujo de graxa, nem pensar.
Ele levou alguns segundos para entender, e mais alguns para se conformar.
– Ugh, tudo bem – resmungou, dando-me as costas e indo para o banheiro – Mas não pense que isso vai ficar assim, você ainda me paga!
– Fique limpinho, amor – dei risada, afinando a voz, e recebi uma careta mal educada em resposta. Caminhei até minha mala para escolher uma roupa, cantarolando uma música qualquer que ouvimos na rádio mais cedo, porém um burburinho no corredor se destacou sobre o barulho do chuveiro. Franzi a testa, preocupada, e me aproximei da porta, tentando entender o que estava acontecendo.
– Você não vai fazer isso, eu não vou deixar! – uma voz feminina disse, num volume razoavelmente baixo.
– Ela precisa saber, e eu aposto que ele ainda não contou! – um homem rebateu, e então eu reconheci as vozes de Elliot e Emily. Cerrei os olhos.
– Não é problema seu, portanto não se meta! – ela rosnou, parecendo apavorada – Quando você vai parar de destruir a vida das pessoas?
– Destruir? Eu só quero ajudar! Talvez ela o ajude a entender que o Ben precisa do pai! – Elliot respondeu, irritado – Por quanto tempo você pretende continuar mentindo pro seu próprio filho? Você não acha que ele merece saber a verdade?
Os dois continuaram discutindo, mas meu cérebro não foi capaz de processar o resto da conversa. Meu corpo havia paralisado, o choque entorpecendo meus músculos e fechando minha garganta num segundo, meus olhos arregalados, perdidos num lugar qualquer da parede.
Por alguns segundos que me pareceram horas, eu não consegui formar a frase dentro de minha cabeça. Porém, as palavras encontraram seu rumo sozinhas.
era pai de Ben.
Dormência.
Por mais que eu tentasse afrouxar o aperto de minha mão ao redor da maçaneta, meus dedos implorando por circulação sanguínea, meu cérebro estava muito ocupado tentando pensar em alguma saída para a súbita revelação que caíra como uma bigorna sobre minha cabeça.
Quando finalmente fui capaz de reagir, fiz a primeira coisa que me ocorreu, por mais estúpida que ela pudesse ser.
Num milésimo de segundo a porta estava aberta, e Elliot e Emily me encaravam com olhos surpresos.
– ... – ela começou num suspiro assustado, apesar de meus olhos estarem fixos no irmão – Desculpe pelo barulho, eu...
– É verdade?
Minha voz saiu rouca e grave, e só então me dei conta de que mal havia respirado desde que começara a ouvi-los. Não consegui regularizar a situação, que por sinal só piorou, já que eu estava prestes a receber uma resposta e a adrenalina em meu sangue pareceu duplicar.
– O quê? – Emily perguntou, franzindo a testa em confusão. Bufei, revirando os olhos. Não era hora para desconversar!
– O que você ia me dizer – insisti, ainda focada em Elliot – Sobre o Ben... Ele é...
Ele é filho do ?
–
Quê? – Elliot riu, olhando para a irmã com incredulidade e levando alguns segundos para voltar a falar, como se o choque que minhas palavras o causaram tivesse roubado as dele – Eu já tinha percebido que você era bobinha, mas maluca também? Como ele traz uma doida dessas pra cá?
– Eu não sei o que você ouviu... – ela o interrompeu antes que ele pudesse continuar, lançando-lhe um olhar de censura e abafando seus risinhos antes de se voltar para mim, que apenas franzi a testa e esperei pelo momento em que tudo faria sentido de alguma forma – Mas o que você acabou de dizer é simplesmente absurdo.
– Eu ouvi a conversa de vocês... Eu... Mas...
– Você...? – Elliot ergueu as sobrancelhas, parecendo impaciente e me olhando como se eu estivesse numa camisa de força. Emily ostentava a mesma expressão, porém bem mais atenuada. Engoli em seco.
Talvez eu tivesse interpretado erroneamente a conversa dos dois... Talvez eles nem estivessem falando sobre . Eles não estavam exatamente próximos da porta... E se eles estivessem apenas passando pelo corredor discutindo sobre
alguém ser pai de Ben e eu tivesse inventado todo o resto em minha cabeça?
Que vergonha.
– Uh... Eu... Me desculpe – gaguejei, olhando de um para outro com extremo embaraço, na certeza de que meu rosto ficava cada vez mais vermelho a cada segundo – Mas é que eu ouvi vocês conversando e por um momento... Por um momento eu pensei que...
– Pensou errado – Elliot concluiu por mim num tom irritado, erguendo uma sobrancelha – Agora pare de ficar escutando a conversa alheia pelo outro lado da porta e vá se arrumar para o jantar. Audrey é pontual quanto às refeições e você ainda está horrorosa.
– Desculpe – murmurei apenas, tensa demais para me esboçar alguma reação decente, e o observei puxar a irmã (que mal me olhara depois de meu vexame eterno, provavelmente constrangida demais com a ideia de ter um filho com o próprio primo) pelo braço corredor abaixo até se afastarem da porta e entrarem num dos últimos quartos. Assim que me dei conta de que estava sozinha, soltei todo o ar involuntariamente preso em meus pulmões, mortalmente envergonhada e extremamente aliviada. Eu podia não conhecê-los direito, mas ambos pareceram bastante convincentes em sua represália, o que tirou de minha cabeça a imagem de e Ben como pai e filho.
Fechei a porta do quarto novamente, respirando fundo por alguns segundos para estabilizar as batidas de meu coração e o ritmo frenético de minha mente. Bati a cabeça contra a madeira repetidas vezes também, me detestando por ter sido tão lunática. Elliot provavelmente tinha razão; eu devia ter alguns parafusos a menos.
– Sua doida! – me permiti cochichar, tapando o rosto com as mãos ao dar as costas para a porta e me atirar sobre a cama macia. Claro, eu havia acabado de cometer suicídio social diante de dois membros da família , o que seria cômico se não fosse trágico, mas eu sempre poderia tentar ressuscitar com um pedido de desculpas... Ou talvez não.
Eu pensaria nisso mais tarde, quando as ondas de alívio e vergonha parassem de percorrer minha espinha.
A porta do banheiro se abriu e eu me virei em sua direção, a tempo de observar surgir com apenas uma toalha amarrada aos quadris enquanto secava os cabelos despojadamente com outra menor. De certa forma, revê-lo depois de todo o vexame de alguns minutos atrás me causava uma sensação de proteção. Eu não pretendia contar sobre o ocorrido, mas sabia que se alguém o fizesse, ele me entenderia e não me julgaria tão duramente como seus primos. Foi apenas um mal entendido, nada mais.
– Merda... Aquele motor velho me cortou todo – ele comentou ao baixar os braços, observando as palmas das mãos com a testa levemente franzida, e eu tentei manter minha atenção no que ele dizia e não na fina gota que escorria por seu peito e abdômen, rumo a... – É a última vez que me meto numa furada dessas.
– Deixa eu ver – pedi, me levantando e segurando suas mãos com cuidado ao me aproximar, notando alguns machucados nas pontas de seus dedos – Hm... Acho que eu sei como fazer sarar.
fez beicinho, arqueando as sobrancelhas, e eu não pude deixar de sorrir diante de seu rosto suavemente corado pela água quente do chuveiro enquanto levava cada um de seus dedos até meus lábios, cobrindo-os de beijos rápidos.
– Prontinho – suspirei, erguendo meu olhar até o dele, agora totalmente diferente de antes, infantil e ingênuo. Não posso dizer que meus olhos também não haviam sido afetados por uma leve malícia; isso acontecia a cada vez que havia qualquer tipo de contato físico mais íntimo entre nós, especialmente quando uma das partes envolvidas estava praticamente nua.
– Esqueceu um lugar – ele disse, trazendo seu rosto para perto do meu até que nossos lábios ficassem a milímetros de distância. Meu corpo imediatamente reagiu à sua respiração batendo contra meu rosto e ao toque firme e preciso de suas mãos ao redor de minha cintura, espalhando arrepios por toda parte. Deslizei rapidamente a ponta de meu indicador por seu tronco, descendo pelo pescoço até atingir a toalha. Senti a tão familiar corrente elétrica passar de seu corpo para o meu, e encarei seus olhos quentes, tão próximos, antes de propositalmente beijar seu queixo.
Antes que eu pudesse analisar sua reação, estava sendo praticamente carregada até a cama, minhas gargalhadas se misturando ao riso baixo e contrariado dele contra meu pescoço e minhas sapatilhas escorregando de meus pés pelo curto caminho.
– Espertinha – ele rosnou, com um sorriso brincando em seus lábios e íris ao cairmos sobre o colchão sem a menor delicadeza – Não pense que eu me esqueci de onde havíamos parado antes do banho.
– Se importa de refrescar minha memória? – perguntei num risinho divertido, erguendo as sobrancelhas ao deixar minhas mãos viajarem por seus braços e ombros. apenas alargou seu sorriso cafajeste antes de finalmente unir seus lábios aos meus num beijo cheio de empolgação. Apertei seus cabelos úmidos em minha mão, retribuindo as carícias ávidas de sua língua e afastando qualquer negatividade restante em meus pensamentos de uma vez por todas.
Estávamos juntos há meses e os efeitos de seu feitiço só pareciam se fortalecer a cada dia; não havia mal que durasse muito tempo quando ele me beijava, daquele jeito que só nós dois sabíamos fazer.
– Você só de toalha me lembra aquela noite na minha casa... O baile de primavera – sussurrei contra seus lábios, e ambos sorrimos.
– Nada disso estaria acontecendo se eu tivesse ido embora quando você me pediu – ele rebateu, mordendo o lóbulo de minha orelha lentamente e fazendo meu corpo inteiro se retorcer discretamente sob sua doce tortura.
– Talvez sim... Eu provavelmente teria corrido atrás de você, praticamente nua no meio da rua – confessei, mordendo o lábio inferior em sinal de vergonha – Eu já estava envolvida até o pescoço naquela época.
– Eu devia ter pagado pra ver então... Te carregar pra dentro de casa naqueles trajes teria sido um dos muitos ápices da noite – ele riu, sua voz um tanto embriagada por nossas carícias, passando sua mão por trás de minha cintura e descendo um pouco mais até seus dedos se fecharem ao redor de meus glúteos – Ou então não... Não quero que ninguém mais te veja sem roupas.
– Mesmo que vissem, não conseguiriam nada comigo – afirmei, afagando sua nuca com minhas unhas num carinho possessivo e enfatizando bem as palavras seguintes – Eu sou comprometida.
– Não interessa... Só eu sei o quanto me esforcei pra conseguir acesso liberado a todas as partes de você, não admito que outras pessoas tenham privilégios – ele retrucou, iniciando mais um beijo, dessa vez cheio de tesão e pressa. Uma de suas pernas estava entre as minhas, e eu desejei que minhas roupas e aquela maldita toalha evaporassem naquele mesmo instante para poder sentir cada centímetro de contato entre nós sem nenhuma barreira.
O relevo de suas costas deslizando sob as palmas de minhas mãos fez meus olhos revirarem lentamente, num gesto de boas-vindas a todas as sensações que ele me causava. Seu peso sobre mim só parecia intensificar o calor que emanava de cada poro de nossos corpos, ainda mais quando sua respiração ruidosa se confundia com um gemido baixo perto de meu ouvido ao dirigir sua mão a meu seio e sentir meu mamilo se enrijecer sob seu toque. Minha cabeça rodopiava, minha consciência flutuando em meio à névoa de prazer que aos poucos se apoderava de mim.
– Nós vamos nos atrasar... – ouvi minha própria voz soprar, mal compreendendo de onde aquelas palavras haviam surgido – Para o jantar.
cessou os movimentos de sua língua em meu pescoço por um momento, um tanto ofegante ao responder:
– Eu estou duro há horas... Acho que minha mãe pode esperar alguns minutos.
Sorri, satisfeita com o que acabara de ouvir, e mordi meu lábio para prender um suspiro ao senti-lo pressionar sua pélvis contra a minha, me fazendo sentir a alta prioridade de sua necessidade. Minhas costas se arquearam de leve numa demonstração clara de que meu corpo não queria se afastar do dele, o que arrancou um riso rouco de sua garganta.
Sua mão subiu por minhas costas, levando consigo minha blusa, e eu me desfiz dela sem hesitar quando ele me deu espaço, aliviada por estarmos diminuindo a quantidade de tecido entre nós. Voltando a beijar meus lábios com fúria, ele levou suas mãos a meus seios imediatamente, apertando-os com uma força deliciosa sobre o sutiã. Gemi baixo, sentindo o interior de minha calcinha cada vez mais úmido, e joguei a cabeça para trás conforme descia seus beijos mais uma vez, agora avançando por meu colo. Suas mãos trabalhavam no fecho em minhas costas, e rapidamente senti o aperto ao redor de meu peito afrouxar. Agradeci mentalmente, atirando a peça íntima ao chão em poucos segundos.
tomou um de meus mamilos em sua boca, alternando entre circulá-lo com a ponta de sua língua e sugá-lo, mordiscando-o algumas vezes enquanto sua mão brincava com o outro. Estava cada vez mais difícil ficar quieta, e eu mantive meu lábio inferior sob meus dentes para evitar algum acidente sonoro. A expressão concentrada em seu rosto, como se nada mais importasse a não ser me satisfazer, só tornava tudo ainda mais intenso e excitante.
Sua mão livre desenhou a curva de minha cintura, deslizando por meus shorts e acariciando vagarosamente a região entre minhas pernas. Meu corpo se retesou sob sua palma, movendo-se sem pressa, apenas me instigando, e arrancou um suspiro ruidoso de meus pulmões.
– Quietinha – ele sorriu, beijando minha barriga – As paredes daqui são finas.
Fechei fortemente os olhos, rompendo contato com os dele, extremamente luxuriosos. Ele sabia que estava me torturando, e como era de se esperar, estava amando a ideia.
Sua trilha de beijos atingiu o cós de meus shorts sem demora, suas mãos já trabalhando no botão e zíper antes mesmo de concluir o trajeto.
se ajoelhou entre minhas pernas, despindo-me também da calcinha ao retirar os shorts, e eu apenas o observei me olhar com um desejo insano antes de se colocar sobre mim novamente. Recebi seus lábios com a mesma devoção que os dele ao nos beijarmos mais uma vez, e sem rodeios, me livrei da toalha que o cobria, envolvendo seu membro com uma mão e sentindo seu corpo responder ao meu toque.
– Podemos elaborar mais depois do jantar – ele se desculpou num sussurro, esticando o braço para pegar a carteira sobre o criado-mudo e tirar dali um preservativo. Cuidei das precauções com um sorriso discreto, sem me importar por irmos direto ao ponto; passamos a tarde toda nos provocando, estava mais do que na hora de consumar o ato.
– Não se preocupe... Hoje é seu dia – lembrei ao pé de seu ouvido –
Faça o que quiser comigo.
Ambos sorrimos ao relembrarmos o que aquela frase significava, e sem mais delongas, ele encaixou seu corpo ao meu devagar, saboreando cada segundo. Calei nossos gemidos com um beijo que não durou muito, pois logo estava investindo depressa, retirando-se por completo e voltando a me preencher num ritmo alucinante. Contraí todos os músculos de meu corpo para não gritar conforme o prazer crescia dentro de mim, e ele parecia não estar tendo muito sucesso, grunhindo baixo contra meu pescoço.
Um leve cansaço começou a se manifestar após longos minutos de êxtase, sinal de que logo chegaria ao ápice; a julgar pelo quão saltadas as veias de seu pescoço estavam, era bem provável que ele só estivesse me esperando para atingi-lo. O que estava prestes a acontecer, considerando-se que sua mão escorregou por meu tronco até atingir minha intimidade com seu dedo e friccioná-la circularmente.
Logo estremeci sob seu corpo, relaxando em alívio e sendo rapidamente seguida por ele, desmontando sobre mim algumas investidas depois. Fechei os olhos, ambos nos concentrando em respirar e normalizar meus batimentos cardíacos disparados.
– Bom saber que ainda não estou velho o bastante para morrer de infarto – ele brincou, deitando-se ao meu lado após retornar do banheiro para se livrar da camisinha. Revirei os olhos, rindo preguiçosamente.
– Se depender de mim, seu coração continuará excelente – avisei, ajeitando algumas mechas de seu cabelo completamente revirado – Em todos os sentidos.
– Sei disso – murmurou, beijando o canto de minha boca demoradamente antes de prosseguir, falando ainda mais baixo que antes, porém com muito mais intensidade – Nunca pensei que pudesse ser tão feliz, e a culpa é toda sua.
Olhei fundo em suas íris , completamente derretida pelo calor que encontrei nelas, provindo de toda a sinceridade de suas palavras. Desci minha mão de seu cabelo desarrumado para seu rosto, apertando seu nariz rapidamente antes de repousá-la em seu ombro.
– Eu sei exatamente como você se sente – falei, compartilhando um sorriso cúmplice, e de repente me lembrei de uma coisa.
– Aonde você vai? – ele perguntou, completamente confuso, ao me ver levantar num pulo.
– Feche os olhos! – exclamei, correndo até minha mala e retirando uma pequena caixa retangular de dentro de um dos bolsos.
– Mas o que... – ele começou, dando de ombros antes de finalmente compreender e adotar uma expressão indecisa entre incrédula e contrariada – Eu não acredito que você comprou um presente pra mim!
– É
claro que comprei – respondi num tom ultrajado, ignorando seus olhos cerrados em reprovação – Não é tão caro ou valioso quanto deveria, mas como você sabe, eu não tenho muito poder aquisitivo.
– Eu disse que não precisava de presente – ele resmungou, fechando os olhos e erguendo as sobrancelhas por um instante.
– Eu disse a mesma coisa no meu aniversário e ganhei uma caixa de bombons trufados de morango e um par de brincos maravilhoso que deve ter custado a minha vida ou talvez até um pouco mais – rebati, voltando a me sentar na cama ao lado dele com um sorrisinho forçado – Agora pode ir deixando disso e abrindo meu presente com um sorriso bem bonito, mesmo que você o deteste, ou eu vou ficar magoada.
riu de minha chantagem e hesitou um pouco antes de pegar o embrulho de minhas mãos e desfazer o laço que o mantinha fechado. Mordi meu lábio em expectativa, e meus olhos não deixaram seu rosto enquanto ele finalmente abria a caixinha.
Ele piscou algumas vezes, seus traços se dissolvendo num sorriso deslumbrado ao ver a fina corrente prateada com um
pingente em formato de tartaruga marinha. Por mais simples que fosse meu presente, sua reação era semelhante à de ter recebido um pedaço da Lua.
– Eu sei o quanto você gostava de dar aulas, por mais que negue até a morte, e não posso deixar de me sentir culpada por tirar isso de você – falei com cautela na voz, ainda analisando sua expressão – Então eu pensei em... Te dar algo mais ou menos relacionado à biologia. E como eu sei que você ama tartarugas, pensei que... Você fosse gostar.
balançou a cabeça sutilmente, parecendo incrédulo com o que via e ouvia. Com as pontas dos dedos, tocou o pingente como se pudesse quebrá-lo se não medisse sua força. O silêncio estava me matando, mas eu não queria pressioná-lo a dizer nada.
Não demorou muito para que ele falasse, sua voz fluindo num riso baixo.
– Você sabe que eu faria tudo exatamente igual mesmo que pudesse voltar atrás, não sabe? – ele murmurou, erguendo seus olhos deslumbrados até encontrar os meus – Que em nenhum momento eu me arrependi do que estava fazendo, mesmo correndo o risco de perder tudo, porque eu preferia mil vezes qualquer coisa a nem sequer tentar conquistar você?
Um sorriso tímido surgiu em meu rosto, acompanhado por batimentos cardíacos acelerados. A única coisa que se passava em minha mente naquele momento era: como um homem como ele podia amar alguém como eu?
Por ora, desisti de tentar entender e me contentei em continuar sorrindo e agradecer por qualquer que fosse o motivo por trás de seus sentimentos.
– Eu já te agradeci por não ter desistido de mim hoje? – perguntei, vendo-o rir e me beijar em seguida, seus braços apertados ao redor de minha cintura.
– Obrigado... É lindo! – ele sorriu, empolgado com o presente, e passou a corrente ao redor de sua cabeça, confirmando minhas suspeitas de que seu comprimento estava perfeito: comprido na medida certa para ficar debaixo da blusa caso ele quisesse usá-lo de tal forma – E não se sinta culpada... Por mais que eu gostasse de dar aulas, estou bem melhor agora, acredite. Além do mais, se existe algum culpado nessa história toda, esse alguém sou eu!
– Eu sou cúmplice, também tenho parte da culpa – insisti, e ele revirou os olhos, arrancando mais um beijo meu – Não adianta tentar me inocentar.
– Parceiros no crime – brincou, ainda com os lábios próximos aos meus, e eu ri junto com ele, distribuindo beijos por todo o seu rosto antes de voltar à boca.
– Nem pense nisso – murmurei, percebendo que já estávamos há alguns minutos enrolando e a situação começava a mudar de rumo – Chega de sacanagem, sua mãe está esperando!
Ele fez cara feia, porém não ofereceu resistência ao me ver levantar e não demorou a me seguir. Nos arrumamos em poucos minutos, deixando o quarto e já ouvindo algumas vozes vindas da sala de jantar enquanto descíamos as escadas. Fomos recebidos com sorrisos ao nos unirmos ao resto da família.
A não ser por Elliot, que parecia distraído demais com seu reflexo nos talheres para notar nossa chegada.
Emily, por sua vez, agiu normalmente, como se o infeliz ocorrido de alguns minutos atrás nunca tivesse acontecido. Suspirei aliviada, sorrindo abertamente para Ben, que apesar de levemente pálido e aparentando cansaço, retribuiu com alegria.
– Você está muito bonita hoje, – Anthony comentou ao nos sentarmos à mesa, e eu não pude evitar engolir em seco ao me lembrar do que me contara sobre ele e Kelly. Sorrindo fraco, lancei um rápido olhar a Audrey, que me observava com leve interesse, e antes de murmurar um tímido
obrigada e encerrar o momento constrangedor.
O jantar foi ainda mais divertido que o almoço, já que não era o primeiro contato e parte do gelo havia sido quebrado. Muitas perguntas sobre como eu e nos conhecemos e sobre minha faculdade e planos para o futuro foram feitas, e apesar de um tanto contrariado, ele me ajudou a respondê-las com sinceridade. Mentir era desnecessário, eles pareciam conhecer o suficiente para não se surpreenderem com nosso passado turbulento; pelo contrário, havia um quê de paz em seus olhares, como se comemorassem nossa felicidade apesar de todos os contras.
A conversa se estendeu por um longo tempo antes de todos se levantarem, seguindo para a sala de estar, onde tia Margaret me puxou para uma sessão de fotos de família antigas regada a vinho e cigarro. tentara me resgatar, mas seu pai o chamara ao escritório. Não me importei; pelo menos não ficaria sozinha enquanto ele estivesse ausente.
– Pelo amor de Deus, mãe – Elliot riu, parando à nossa frente com um olhar constrangido – Tenho certeza de que ela não quer ver nada disso.
Engoli em seco, envergonhada, mas antes que pudesse dizer algo, ele me puxou pelo pulso, arrastando-me até a larga sacada onde o burburinho não parecia tão ensurdecedor.
– Obrigada – foi só o que consegui dizer, sem entender porque justo ele estava sendo gentil comigo.
– Não estou fazendo isso por você – ele retrucou, não no esperado tom ríspido, mas com certa urgência na voz – Agora me escute, pois se alguém nos vir aqui sozinhos, é bem capaz de que desconfie de mim e aí eu não terei a menor chance de falar com você de novo.
Franzi a testa, subitamente alarmada com a seriedade de suas palavras.
– O que houve? – perguntei num sopro, meu coração batendo cada vez mais rápido em meu peito.
Elliot respirou fundo antes de responder.
– É verdade. é pai de Ben.
– O quê?
De alguma forma, as palavras escaparam por minha boca, mesmo que eu duvidasse de que era capaz de falar.
– Ele sabe disso, Emily também, é claro, a família toda sabe – Elliot continuou, detendo-se aos fatos e ignorando minha pergunta – Ele não quis assumir o filho e manda algum dinheiro todo mês como pensão, mas nunca...
– Elliot, você está aí!
Eu teria pulado de susto se já não estivesse completamente paralisada ao ouvir a voz de Emily unindo-se a nós na sacada.
– É, eu... Eu vim fumar – ele mentiu, colocando a mão no bolso e tirando um cigarro dali no maior estilo blasé, como se eu mal estivesse ali. Excelentes atores, eles.
– Você pode fazer isso mais tarde, papai quer falar com você agora – ela disse, tirando o cigarro de sua mão e me lançando um sorriso rápido – Desculpe, se importa se eu roubá-lo um pouquinho?
Balancei a cabeça negativamente, forçando-me a reagir. Não adiantaria de nada ficar parada ali feito pedra e dar bandeira agora, por mais que eu não quisesse ter que encarar aquela situação.
Emily voltou para o interior da casa com o irmão em seu encalço, e ele me lançou um último olhar cheio de segredos antes de sumir de vista. Dei as costas para a porta da sacada, respirando fundo algumas vezes, o pânico de antes reinando novamente, agora muito mais forte e mesclado a outro sentimento que eu infelizmente conhecia bem.
Traição.
Ele sabe disso.
Ele nunca quis assumir o filho.
Fechei os olhos, minha mente rodopiando perigosamente e me forçando a apoiar as mãos sobre o parapeito.
Havia algum motivo para tudo aquilo. Ele não teria simplesmente ignorado um filho por nada, não era possível. Ele não teria abandonado a própria prima com uma criança que também era sua e se livrado de todas as responsabilidades com apenas uma pensão mensal sem uma boa razão.
Uma peça muito importante estava faltando. E só havia uma pessoa que poderia completar o quebra-cabeça.
– Até que enfim te achei.
Meu corpo se retesou ao ouvir a voz de , e logo em seguida seus braços envolvendo minha cintura. Tentei agir naturalmente.
– Pois é, eu... Precisava de um pouco de ar fresco.
– Com toda aquela gente fumando em cima de você, imaginei que você escaparia mais cedo ou mais tarde – ele riu baixo, plantando um beijo na curva de meu pescoço – Mas está frio aqui fora e você está sem casaco.
– Eu estou bem – falei apenas, desviando o rosto do dele e implorando para que ele não percebesse minha mudança de humor.
Obviamente, não funcionou.
– Aconteceu alguma coisa?
Meu coração quase parou ao ouvir sua pergunta. Por onde começar?
– Não... Eu só estou um pouco zonza mesmo – respondi, sem coragem de dizer a verdade e fingindo um sorriso – Minha cabeça está um pouco pesada.
franziu a testa por um momento, desconfiado.
– Você está um pouco pálida... O que mais está sentindo? – ele murmurou, virando-me de frente para si e analisando meu rosto.
Havia tantas coisas que eu gostaria de responder! Mas eu ainda não estava pronta para aquele confronto. Minhas pernas tremiam e eu tinha medo de desmaiar a qualquer momento, subitamente sem chão. Como o homem que eu conhecia e o homem que abandonara seu filho com a própria prima podiam ser a mesma pessoa?
– Um pouco de fraqueza – falei, evitando contato visual – Eu acho que vou me deitar.
– Tem certeza? Não é melhor chamarmos um médico? Você estava bem há pouco tempo – ele disparou, impedindo que eu me movesse quando ameacei seguir para a sala de estar – Isso não é normal, .
Muitas coisas sobre você não são normais também, é o que descubro a cada minuto que passo aqui.
– Só preciso descansar – neguei, empurrando-o pelo peito discretamente, sentindo-o me acompanhar ao caminhar até a porta – Não precisa subir comigo, fique com a sua família...
– Não vou te deixar sozinha – me interrompeu, com a expressão firme e preocupação nos olhos. Lembrete: não tente contato visual outra vez a não ser que queira mesmo desmaiar.
Nos despedimos de todos rapidamente, seguindo para o quarto em silêncio. Vesti meu pijama enquanto ele me observava, prestes a se atirar no chão caso eu perdesse a consciência – sua reação quando eu quase tropecei na calça do pijama foi prova suficiente disso – e sem mais conversa me deitei, de costas para seu lado da cama.
– Me avise se sentir algo diferente, está bem? Eu não vou sair daqui – o ouvi sussurrar algum tempo depois, deitando-se ao meu lado e beijando o topo de minha cabeça, aconchegando-me contra seu corpo. Fechei os olhos com força, afastando algumas lágrimas confusas que ameaçavam se formar neles, e assenti de leve.
Mal fui capaz de pregar o olho pelo resto da noite.
demorou a cair no sono, alerta para qualquer chamado meu, que nunca veio. Já era quase manhã quando seu braço finalmente relaxou sobre minha cintura, e com todo o cuidado que pude juntar, me esgueirei para fora da cama, calçando as mesmas sapatilhas do dia anterior e deixando o quarto.
A casa estava deserta conforme eu caminhava silenciosamente rumo à área externa. De braços cruzados para combater a fria brisa matinal, ainda intocada pelos primeiros raios de sol, vaguei pelos jardins sem pressa, muito menos direção. Minha mente trabalhava sem parar desde a noite anterior, ruminando as palavras de Elliot e tentando preparar meu coração para o que mais cedo ou mais tarde viria.
Eu precisava conversar com .
Me sentei sob uma árvore, abraçando minhas pernas dobradas contra o peito e afundando o rosto entre meus joelhos. Estava com dor de cabeça há horas e minhas pálpebras imploravam por descanso, apesar de meus pensamentos agitados. Fechei os olhos, soltando um suspiro angustiado que havia prendido a noite toda, e tudo ficou silencioso por um segundo.
– Querida... O que você está fazendo aqui?
Acordei num pulo, olhando na direção da voz, e me deparei com Audrey a alguns metros de distância, alarmada com minha presença. Já estava mais claro, o que me fez deduzir que eu havia pegado no sono por algum tempo.
– Eu... Me desculpe – murmurei, esfregando os olhos com as costas das mãos, só então percebendo que estava congelando – Eu não consegui dormir e resolvi dar uma volta... Acabei cochilando.
– Tudo bem, não precisa se desculpar – ela sorriu, aproximando-se e agachando ao meu lado, com uma mão solidária em meu ombro – Você parecia fraca ontem à noite... Está melhor?
Hesitei antes de responder, sem saber o que dizer. Eu queria, precisava me abrir com alguém, e quem seria melhor que a mãe dele?
– Não exatamente. Na verdade... Tem uma coisa que eu preciso perguntar.
Audrey franziu o cenho levemente.
– Pois então pergunte.
Mais hesitação. Respirei fundo.
– Por que... Por que abandonou Ben?
As feições antes leves deram lugar à seriedade e contenção. Eu sabia que seria assim. Ela não me responderia com toda a felicidade do mundo depois de trazer à tona tão inesperadamente um assunto íntimo de família.
Levou algum tempo, mas ela finalmente respondeu, esboçando um sorriso sem humor.
– Creio que isso é obra do Elliot... Acertei?
– Não quero prejudicar ninguém – respondi evasivamente, mas ela não precisava de minha confirmação para tirar suas próprias conclusões.
– Eu não sou a pessoa mais apropriada para responder suas perguntas – Audrey disse, num tom baixo e educado – Só... Por favor, tome cuidado. Não é o assunto preferido entre os familiares... Então procure a pessoa certa para sanar suas dúvidas. E vá para dentro, faz frio de manhã aqui fora.
Observei Audrey se levantar com um olhar contido, sem deixar margem para mais perguntas. Mesmo que eu tivesse todo o discurso preparado em minha mente, as palavras jamais sairiam de minha boca depois de sua resposta. Era nítido que ninguém se comprometeria a falar sobre aquele assunto, nem mesmo Emily... A não ser Elliot, que agora, como ele mesmo havia dito, não teria a mínima chance de conversar comigo depois que descobrissem o que me contara.
E .
De volta à estaca zero.
Levei alguns minutos para me recompor, levantando-me e seguindo para o interior da casa. O corredor ainda estava deserto quando voltei para o quarto, e me sentei na poltrona próxima à cama, observando o homem que dormia pesadamente sobre o colchão.
Quem era ele?
Estava na hora de descobrir. Chega de temer, chega de fraquejar. Eu precisava saber.
Assim que ele acordasse, eu o confrontaria. Não conseguiria passar mais um minuto sequer perto dele sem externar tudo o que estava enjaulado em minha cabeça.
E então eu esperei. Foi menos difícil cochilar algumas vezes agora que eu tinha tomado uma decisão, mas eu acordava sempre que ele se remexia na cama, esperando encontrá-lo de olhos abertos a cada vez.
Enfim, isso aconteceu.
– Bom dia.
Abri os olhos, piscando algumas vezes até focalizá-lo, e meu coração parou por um instante. Não me permiti voltar atrás.
– Bom dia.
– Por que não está deitada? – ele perguntou, sentando-se sobre a cama e ostentando leves olheiras sob seus olhos atentos – Aconteceu alguma coisa?
– Eu estou bem – afirmei, me sentindo culpada por tê-lo deixado preocupado com meu suposto mal estar – Só tive uma noite difícil.
Uma leve confusão tomou conta de seu rosto.
– Difícil? O que eu perdi?
Respirei fundo, sem perder a determinação, e comecei uma conversa que poderia acabar muito mal.
– Eu sei que o Ben é seu filho.
Um longo silêncio caiu sobre nós, tornando nosso contato visual quase insuportável combinado à tensão que nos envolvia. Ele soltou um riso nervoso, me olhando como se eu tivesse três cabeças.
– O que você está dizendo?
– Eu já sei de tudo, não adianta negar – insisti, firme em minhas palavras – Eu sei que você sabe, eu sei que todos sabem... Eu sei.
Seus olhos se arregalaram levemente, e depois se fecharam com força, desviando-se dos meus ao se abrirem outra vez. Sua testa se franziu como se estivesse sentindo dor, e gradativamente, ele voltou a me olhar.
Tentei engolir o choro, mas antes que meus esforços pudessem fazer efeito, meus olhos já estavam marejados. Eu já estava plenamente convencida de que era real, mas a parte de mim que vivia num mundo onde utópico onde nada jamais doeria ainda esperava que ele pudesse tirar aquela certeza de mim. Perceber em seus olhos derrotados que isso não aconteceria fez com que minhas resistências fraquejassem.
– Agora eu entendo o seu comportamento estranho de ontem à noite – ele soprou, sem conseguir sustentar meu olhar – Você descobriu a única coisa que não podia saber sobre mim.
– Como você foi capaz? – falei, mal esperando que ele terminasse de falar, deixando todos os pensamentos que me torturavam há várias horas escaparem por minha boca sem filtro – Como você consegue dormir à noite sabendo que seu filho pode estar precisando de você? Ou então, que ele nem sabe que você é o pai dele?
não se mexeu, apenas me ouviu, sem mover um músculo. Ele sabia que tudo que eu dizia era a mais pura verdade, e impulsionada por minha raiva, continuei despejando minha indignação nele.
– Você já parou pra pensar que ele sente sua falta? Que durante esses poucos anos de vida, ele se pergunta por que você o deixou? Você sequer passa algum tempo com ele quando visita seus pais? Você sequer fala com ele? Você sequer sabe que ele existe?
– Eu não estava pronto pra ser pai! Aquilo foi um acidente, nós não devíamos ter deixado acontecer! – ele exclamou, levando uma mão ao rosto e em seguida puxando seus cabelos para trás em sinal de nervosismo – Eu não estou preparado pra isso... Não posso encarar uma situação dessas, você não entende?
– Não, , eu não entendo – respondi, sentindo as primeiras lágrimas rolarem por meu rosto conforme ficava de pé, incapaz de controlar minha agitação – Eu não entendo como você está preparado para transar com a sua prima e não está preparado para criar o filho que fez com ela!
– Aquele filho arruinaria minha vida! – ele exclamou, com os olhos úmidos – Eu era jovem, estava apenas começando a minha vida fora da faculdade, não podia me prender a um filho, ainda mais da minha própria prima! Seria o fim de qualquer chance de ser feliz pra mim! Seria um peso, uma responsabilidade eterna que eu não queria!
Fiquei em silêncio, sem acreditar nas palavras que saíam de sua boca. Observei-o escorregar para fora da cama pelo outro lado, andando de um lado para o outro, tão decepcionada como nunca estive.
– Como você pode dizer essas coisas e não ter nojo de si mesmo? – murmurei, deixando as lágrimas caírem livremente; ele baixou seu olhar, afetado por minha pergunta, mas eu não me importei – Ele é só uma criança, ... Você já parou pra pensar que ele não tem culpa por ter nascido?
Fiquei em silêncio por poucos segundos, deixando que minha voz reverberasse em sua mente e o fizesse entender a profundidade dos danos que causara ignorando aquela criança desde que nascera.
– E quanto à Emily? – continuei, soltando um riso medíocre – Ela tinha praticamente a minha idade quando tudo aconteceu... E você a abandonou. Sozinha com um filho pra criar... Sabe, isso me faz repensar o quanto posso confiar em você.
– Não tente comparar duas situações completamente diferentes! – ele disse, exaltado – Eu... Eu amo você, jamais faria isso!
– Então o que a tornou tão diferente de mim foram seus sentimentos? – rebati, sem me deixar impressionar – Realmente, é assim que homens de verdade lidam com seus erros... Julgando-os pelo quanto se importam com as conseqüências deles!
– Por que você está me julgando? A vida é minha, o erro foi meu e você não tem nada a ver com nada disso! – explodiu, avançando em minha direção, e eu não me mexi, finalmente recebendo uma resposta honesta – Eu não preciso da repreensão de ninguém, muito menos da sua!
Senti lágrimas queimando em meus olhos, desesperadas para caírem por meu rosto, mas eu as contive. Apenas encarei os olhos lunáticos dele, esboçando um sorriso satisfeito.
– Você tem razão – soprei, erguendo as sobrancelhas em tom de aprovação, e vi o turbilhão de sentimentos em seu rosto virar vazio enquanto ele se dava conta do que havia dito – Me desculpe por me importar.
Respirei fundo, vendo seus olhos rapidamente encherem-se d’água, e caminhei devagar até a porta, sentindo meu corpo inteiro tremer. Antes que eu pudesse girar a maçaneta, ouvi sua voz perguntar num tom rouco.
– Aonde você vai?
Encarando o chão, sem forças para olhá-lo de novo, respondi friamente.
– Achar um jeito de voltar para casa.
– Espera, não faz isso... Calma, vamos conversar.
– Eu não quero mais conversar – falei, me encolhendo ao sentir que ele se aproximara e tentava segurar meu braço – Não com esse desconhecido.
Encarar a porta era mil vezes mais fácil que olhar para ele depois do que havia me dito. Por mais que seja difícil assumir um filho, nada justificava seu egoísmo e a maneira imatura com a qual resolveu a situação.
– Não sou um desconhecido – ele murmurou, sua voz fraquejando assim como minha respiração ao sentir a dor em seu tom – Eu só cometi alguns erros... Mas eu nunca... Nunca esperei que você seria a pessoa a me julgar por eles.
Fechei os olhos, desmoronando por dentro e tentando conter as lágrimas furiosas que se acumulavam em meus olhos.
– Eu sinto muito... Eu realmente sinto – solucei, virando-me de frente para ele e sentindo meu coração se contorcer ao ver sua expressão derrotada – Ter um filho não é uma questão de estar pronto ou não. Nunca se está pronto para ter um filho... Mas não é algo de que se possa fugir, uma vez feito. Essa criança precisa de você. E ela não pode esperar até que você esteja pronto para assumi-la. Você precisa se ajustar, não ele.
Enxuguei meu rosto com as mãos trêmulas, olhando-o com desapontamento. encarava o chão, com o maxilar travado e os olhos inundados. Quando ele ergueu o olhar até mim, senti como se aquelas verdades estivessem sempre ali, enterradas em sua consciência, mas ninguém, nem mesmo ele, jamais as tivesse trazido à superfície. E agora que elas estavam tão nitidamente jogadas sobre seus ombros, o peso da culpa era quase maior do que o suportável.
– Não vá embora... Por favor – ele implorou, respirando profundamente na tentativa de se manter íntegro – Vamos conversar, me deixe explicar...
– Eu não tenho mais nada pra te dizer... E não sei se ainda há algo que você possa me explicar – suspirei, baixando meus olhos numa tentativa de reunir forças – Eu... Eu não sei se ainda posso confiar em você.
Seus olhos pareciam gritar, feridos com minhas palavras, e eu tive que me apoiar contra a parede para que minhas pernas não cedessem. Doía tanto em mim quanto nele, mas eu não podia voltar atrás agora que tudo já havia sido externado.
– Por que você está dizendo essas coisas? – ele perguntou num sopro, um tanto desesperado. As lágrimas agora caíam livremente por meu rosto.
– Eu preciso me afastar de você – respondi, fitando-o com o máximo de autocontrole que me restava, o que era praticamente nada – Talvez seja temporário, talvez...
Deixei a frase no ar, sem conseguir pronunciar seu fim, embora este ecoasse em minha cabeça. Talvez seja definitivo.
– Não – reivindicou, segurando minhas mãos com os olhos vidrados – Não, você não pode fazer isso comigo! Isso não tem nada a ver com você!
– Eu não posso ignorar uma coisa dessas – falei, sentindo minhas mãos arderem dentre as dele, já sentindo uma falta que eu sequer podia mensurar de tocá-las – Eu não consigo. Eu olho pra você... Mas não é você que eu vejo... É outra pessoa. É o pai do Ben.
vasculhou meus olhos, buscando algum fio de fraqueza no qual ele pudesse se agarrar e me fazer mudar de idéia, mas não havia nenhum. Por mais que aquilo doesse de uma maneira assustadora, eu sabia que estava fazendo a coisa certa por todos nós. Eu precisava seguir a razão daquela vez, e continuar agindo como se um filho não tivesse aparecido era simplesmente inaceitável, além de impossível.
– Por favor, me perdoe – ele soprou, apertando minhas mãos e me olhando com súplica – Eu sei que fui um monstro, mas eu quero consertar isso! E sei que não vou conseguir sozinho, não vou conseguir sem você, eu não posso te perder, muito menos agora!
– Eu não posso ficar se não confiar em você – sussurrei, com o olhar dilacerado por deixar aquelas sinceras e dolorosas palavras saírem – Enquanto eu não tiver essa confiança... Não vai acontecer. Eu não vou voltar.
Ele afrouxou a força em minhas mãos, e seu rosto esvaziou-se de emoções. Só havia o choque e a desolação. As lágrimas pareciam queimar minha pele, e antes que eu não tivesse mais forças para acabar com aquilo de uma vez por todas, me forcei a dizer uma última palavra antes de deixar o quarto:
– Desculpe.
Enxuguei uma lágrima que escorria pelo canto de meu olho enquanto o trem me levava de volta para Londres. O sol estava a pino, iluminando mais um lindo dia, mas dentro de mim só chovia.
Me despedir de todos não foi tão fácil quanto pensei; Audrey tentara me convencer a ficar, mas foi em vão. Emily chorava silenciosamente, me olhando como se tivesse destruído minha vida, o que não era bem o caso, apesar de doer da mesma forma. Ben apenas cochilava no sofá, alheio a tudo como sempre estivera.
havia sumido. Depois que o deixei no quarto para arrumar uma maneira de ir embora, não o vi mais. Não consegui ir procurá-lo, o orgulho me dominando e a ele também; talvez mais adiante nós pudéssemos conversar de novo, quando parasse de doer tanto...
Abracei minha bolsa, respirando fundo e tentando dormir um pouco depois de uma noite inteira em claro... Sem sucesso.
Mesmo que eu conseguisse dormir, só o que conseguiria seriam pesadelos.
Novamente, meus pensamentos voaram para ele, por mais que eu tentasse desviá-los. A decepção em seus olhos, tão límpidos antes, tão escuros agora, o ardor de todas as palavras impensadas e cruelmente honestas... Era como se eu nunca mais fosse conseguir deixar aquela dor para trás.
Não, disse a mim mesma. Levaria algum tempo... Mas ele entenderia que fiz a coisa certa. Semanas, meses, anos, mas ele entenderia, e faria a coisa certa também. Eu sabia que ele faria.
E então, quem sabe, pudéssemos tentar de novo.
Mas por ora... Precisávamos aprender algumas lições e curar algumas feridas separados.
(’s POV)
O pôr-do-sol banhava com gentileza a faixa de asfalto em meio à grama, uma fria brisa de fim de tarde encontrando seu caminho por entre os galhos das árvores e fazendo as folhas silvarem timidamente.
Respirei fundo, absorvendo a paisagem solitária. O vento atingia meu rosto em golpes macios, entrando pela janela do carro como se tivesse medo de que eu o repelisse com minha indiferença. Meu coração batia forte, meu olhar perdido no horizonte deserto. Em pouco tempo, eu estaria de volta à vida real, de volta a todos os problemas dos quais tentei escapar pelas últimas duas semanas.
Eu não sabia se estava pronto para voltar. A cada vez que piscava, olhos cheios de dúvida me encaravam no auge de sua inocência, mil perguntas colidindo em suas grandes íris.
A palavra pai parecia estrangeira, nem um pouco familiar para ambos, por mais contraditório que isso soasse. O abraço, apesar de apertado, não fora íntimo; o sorriso, por sua vez, compensara a falta de um dente com a perfeita materialização de um sonho realizado, expandindo seus horizontes como nada antes fizera.
O leve estrangulamento intensificou-se ao redor de meu pescoço, ainda que mal representasse ameaça à sólida sensação de tomar a atitude certa reinando em meu peito. Ali estava mais uma pessoa – ou um pequeno ser humano que mal podia esperar para que eu o ajudasse a se tornar uma – que esperava algo de mim.
Pelos resquícios de integridade ainda presentes em mim, pedi para que aquele olhar esperançoso não fosse mais um dos muitos outros que manchei com decepção.
Eu não sabia se estava pronto para voltar. Mas eu precisava voltar.
Engoli em seco, apertando o volante e tentando me focar na estrada. Difícil. Minha mente divagava à medida em que me aproximava de minha última parada, minha última relação com o surreal, com o inexistente. Com o passado.
Me perguntei se ainda doeria. Fazia tantos anos... Por mais que o tempo já tivesse cumprido seu dever e se encarregado de amenizar a dor, a cicatriz emocional sempre existiria, impedindo-me de esquecê-la, mesmo que já desbotada.
Parei o carro rente à grama, levando comigo a singela rosa em meus dedos trêmulos ao caminhar por sobre o verde. Não olhei ao meu redor; eu já sabia que caminho seguir sem precisar me orientar.
Meus pés desaceleraram ao me aproximar do granito antigo. O nó em meu peito, que a anatomia chamava de coração, apertou-se; tudo estava acontecendo exatamente como sempre. Quis rir de mim mesmo por pensar que algo mudaria.
Ajoelhei-me de frente à lápide, meus dedos abandonando a rosa diante dela e percorrendo a fria superfície onde letras em dourado resistiam ao tempo, persistentes em sua função de representar a dor ali enterrada.
Lucy Hayes
(17/02/1980-10/09/1993)
Amada filha
Minha garganta se fechou ao fitar a foto sobre os dizeres. Não ousei encará-la por mais que dez segundos, as lembranças fluindo livremente por todo o meu corpo e me causando arrepios.
Muito do que eu era podia ser explicado por elas. Eu me recordava de tudo, com tamanha intensidade que relembrá-las era como voltar no tempo. A culpa se enroscava ao redor de meu estômago como uma serpente, aniquilando-o em seu aperto e provocando náuseas. Em meio à tortura silenciosa sob a qual minha mente submetia meu corpo, fui capaz de pedir, mais uma vez, desejando mais do que tudo ouvir alguma resposta.
– Me desculpe.
Não seria diferente. O perdão nunca viria.
Respirei fundo ao fechar a porta do carro, minha última missão pendente antes de regressar à vida que eu planejava consertar cumprida. Esfreguei os olhos, afastando as incertezas que ainda os assombravam, e mantive-os baixos por alguns segundos.
Um brilho prateado em meu pescoço atraiu minha atenção, e instintivamente meus dedos se fecharam ao redor do pequeno pingente sob minha blusa. O presente sempre encontrava uma maneira de se fazer notar.
Duas semanas. E enfim, seus olhos corroídos pelo desapontamento haviam perfurado a última barreira que protegia meus raros sonhos.
Afinal, não se pode sonhar se não se dorme, certo?
Relembrando como minha vida era poucos dias atrás, duvidei da teoria. Sonhos podiam sim acontecer mesmo de olhos abertos.
Pesadelos não eram exceção, aprendi mais tarde; a dor era igualmente ou talvez ainda mais real que a alegria.
Me perguntei se tudo havia sido um devaneio. Talvez se eu me esforçasse para despertar de meu transe, acordaria em minha cama, atrasado para dar aulas. Nos encontraríamos nos corredores por uma coincidência muito bem arquitetada, e eu lhe sopraria algumas palavras infames para me divertir com a irritação em seus olhos. Com alguma resposta inteligentíssima ardendo em meu rosto como um tapa, eu olharia por cima de meu ombro para vê-la fugir de mim, e gravaria sua imagem para me fazer companhia mais tarde, nas noites em que o sono me faltasse e não houvesse outro alguém para realizar a função de minha mão.
Sim... Tudo aquilo me parecia muito mais crível que a decepcionante versão que minha mente insistia em considerar verdadeira, e da qual eu já não podia mais fugir.
Eu a havia conquistado; ela havia sido minha, porque realmente quisera ser. Pela primeira vez em muito tempo, eu sentia. Meu coração batia, meus olhos viam, minhas mãos tocavam. Mas sem que eu pudesse fazer qualquer coisa, ela havia me deixado. E então, eu deixei de sentir. Meu coração ainda batia, meus olhos ainda viam e minhas mãos ainda tocavam; porém, nada era como antes. Parecia não haver nada para ser bombeado a não ser o remorso, nada para ser visto a não ser o cinza, nada para ser tocado a não ser o frio.
Novamente, eu estava sozinho. Mas a solidão se mostrava muito mais hostil depois que me permiti conhecer a felicidade, como se guardasse rancor do tempo em que lhe fui desleal. Uma lição que eu aprendia pela segunda vez: não se entregue a ninguém, não deseje ninguém; uma vez feita a troca, corre-se o risco de, na pior das hipóteses, perder ambos.
Acontece que as piores hipóteses tinham um fraco por mim.
Demorei a perceber que havia voltado a dirigir, perdido em pensamentos; pouco mais de uma hora se passara, porque já estava em Londres. Felizmente, consegui completar o trajeto sem me envolver em acidentes ou infringir leis de trânsito, apesar de minha mente estar bem longe da estrada. Reforcei a atenção nos últimos minutos do caminho, dirigindo com toda a concentração que pude reunir, até estacionar na garagem de meu prédio.
Lar, doce lar.
Refreei meu pensamento. O que me esperava a alguns metros de altura? Nada além de paredes frias, escuro e vazio.
A palavra lar e a sensação de conforto que trazia consigo parecia alienígena em meio à imagem que surgiu em minha cabeça. Algo estava faltando, algo essencial; desejei com todas as minhas forças que todo o resto desaparecesse se este fosse o preço para recuperar o que havia perdido. Mas como eu já havia aprendido muito bem, quando o assunto era , não havia muito que o dinheiro pudesse fazer.
Relutante, peguei minha mala e subi para meu andar, encontrando-o exatamente como previra. Nada estava fora do lugar, o que teria sido um tanto incomum para meus padrões se eu já não soubesse que ela fazia questão de deixar tudo em perfeito estado antes de ir embora, como se fosse responsável por cada centímetro de bagunça.
Quem eu estava tentando enganar? Eu não duraria dois dias sem ela. Não ali, onde tudo ainda tinha seu cheiro e parecia acostumado à luz e ao calor de um relacionamento feliz.
Abandonei a mala em algum lugar e de imediato preparei um drinque, necessitando do ardor do álcool em minha garganta para me distrair mesmo que minimamente. Fitei o nada, deixando meu corpo cair sobre o sofá.
Agora que a solidão havia realmente me engolido, não consegui evitar que antigas recordações me fizessem companhia; um homem nunca estaria realmente só enquanto ainda guardasse suas lembranças, ainda que no lugar mais longínquo possível de sua mente.
Flashback – vinte anos atrás
Fechei os olhos, deixando que as correntes do balanço onde estava sentado me acalentassem em meio ao calor da tarde. Eu estava chateado; meus primos não ficariam para aquelas férias de verão. Tinham acabado de partir para a casa de veraneio dos pais, e devido às minhas recentes notas insatisfatórias, mamãe havia me proibido de ir junto.
Maldita matemática.
Com as pontas dos pés tocando o chão, impulsionei-me, ganhando altitude cada vez mais depressa. Ameacei sorrir, gostando da pequena aventura, até que com um estalo vindo da estrutura de metal, encontrei o chão.
Caí sobre meu braço, tentando em vão proteger o rosto do impacto com a terra. Meu nariz formigou, inundando meus olhos fechados, e mais que depressa me sentei, esperando me recompor o mais depressa possível do vergonhoso ocorrido. Senti meu joelho arder, e notei um corte na pele que aos poucos começava a sangrar.
Nada estava dando certo naquele início de férias. Fechei a cara, preparado para me levantar e marchar até meu quarto para não sair de lá tão cedo, quando algo chamou minha atenção.
– Espera!
Sobressaltei-me ao ouvir a voz desconhecida e inesperada, e olhei em sua direção. Uma garota pulava a cerca que separava nosso jardim da casa vizinha, e correndo até mim, cobriu delicadamente meu machucado com um Band-Aid colorido.
– Pronto – ela sorriu, parecendo satisfeita com seu socorro. Ainda envergonhado e assustado com sua presença, levei algum tempo para responder.
– Obrigado – gaguejei, piscando várias vezes para mascarar as lágrimas que haviam se acumulado ali. Ela riu baixo.
– De nada. Quem é você?
Lancei-lhe um olhar inseguro.
– – respondi simplesmente.
– de quê?
– .
A garota sorriu e estendeu uma mão em minha direção.
– Sou Lucy. Lucy Hayes. Tenho treze anos. E você?
– Onze – falei apenas, ainda intimidado, e percebendo que ela insistia no cumprimento, levei minha mão até a dela num rápido aperto.
Um belo erro.
– Ai! – choraminguei, trazendo meu braço para perto do corpo num reflexo. A dor em meu pulso derrotou qualquer tentativa de combater o choro, que veio em poucos segundos.
Não demorou muito para que minha mãe viesse até mim, confusa, e de olhos fechados, ouvi a tal Lucy contar o que havia acontecido. Mamãe me ajudou a ficar de pé, e em pouco tempo estávamos no hospital, onde um médico engessava meu punho quebrado. Dois meses imobilizado.
Definitivamente, nada estava dando certo.
Voltei para casa em menos de uma hora, cabisbaixo e conformado com o tédio que me acompanharia pelas próximas semanas. Para melhorar meu humor, mamãe dissera algo sobre me ajudar a estudar matemática, já que não haveria mais nada para fazer. Ótimo.
Depois do jantar, sentei-me nos degraus da varanda, cutucando o gesso sobre meu colo, com cuidado para não doer. Não fiquei sozinho por muito tempo.
– Oi.
Eu a havia visto se aproximar dessa vez, poupando-me do susto. Forcei um sorriso.
– Oi.
– Está doendo? – Lucy murmurou, com o olhar fixo em meu braço; neguei com a cabeça – Me desculpe por ter apertado sua mão. Eu não sabia.
– Tudo bem, não foi sua culpa – falei, dando de ombros e indicando meu joelho – Obrigado pelo Band-Aid. O médico teve que colocar outro no lugar depois de limpar o corte.
– Tudo bem, eu tenho outros – ela repetiu, mexendo numa pequena bolsa de lã pendurada em seu ombro transversalmente – De que cor você gosta?
– Azul – respondi, esperando até que ela encontrasse o curativo certo, e franzi a testa ao ver que ela havia pegado dois iguais.
– Pronto – Lucy disse, colocando um deles sobre meu gesso e estendendo o outro a mim – Pode ficar com esse.
– Obrigado – sorri, dessa vez genuinamente, guardando o presente em meu bolso – Eu nunca tinha visto Band-Aids coloridos que nem os seus.
– É porque só eu tenho – ela riu baixo, lisonjeada – Eles só são coloridos porque eu uso canetinha neles.
Ergui as sobrancelhas, surpreso.
– Mesmo?
– Mesmo.
Observei a pequena tira azul sobre o branco do gesso. A pergunta que eu estava acanhado demais para fazer saiu de sua boca.
– Quer colorir Band-Aids comigo?
Voltei a encará-la, minha resposta nítida em meu sorriso.
A partir desse dia, Lucy fora oficialmente incluída em minhas restritas brincadeiras. Eu não podia correr, mas descobri que havia muito a ser feito para me divertir sem que meu braço fosse comprometido. Perdi a conta de quantos quebra-cabeças montamos naquelas férias, de quantas horas passamos lendo gibis e fingindo sermos super-heróis, de quantas competições de quem ficava mais tempo sem piscar ou respirar fizemos, de quantas histórias de terror ela havia me contado para me deixar com medo de dormir sozinho à noite... De certa forma, Lucy havia me acolhido como um irmão caçula. Sempre que eu conseguia melhorar nas lições de matemática que mamãe me dava, ela colocava mais um Band-Aid colorido em meu gesso, agora cheio de desenhos que havíamos feito juntos. Sempre que eu me irritava por perder em uma brincadeira, ela me fazia cócegas e em cinco minutos eu já me esquecia da derrota.
– Sabe... Meu irmão bem que podia ser como você.
Desviei os olhos da centopéia que cambaleava sobre o parapeito da varanda de sua casa.
– Irmão? – Franzi a testa, tentando me lembrar de alguma menção anterior. – Pensei que você era filha única como eu.
– E eu sou – ela sorriu, erguendo os olhos até mim – Mas se um dia eu tiver um irmão, quero que seja assim que nem você.
Sorri de volta, empolgado.
– E se um dia eu tiver uma irmã, quero que seja como você.
Lucy cerrou os olhos, como sempre fazia ao ter uma idéia.
– Quer ser meu irmão?
Pisquei duas vezes.
– Isso é possível?
– Claro que é. Basta a gente querer.
– Então eu quero.
– Tá, agora me pergunta de volta.
– Você quer ser minha irmã?
– Quero!
Sorrimos um para o outro. Eu tinha uma irmã agora! E ainda por cima mais velha, o que era sempre mais legal. Ela cuidaria de mim e me ajudaria com a lição de casa quando as aulas voltassem, o que aconteceria dali a uma semana.
Eu e meus primos voltamos à escola; Lucy, não.
Durante todo o caminho de volta, tentei pensar em possíveis motivos para justificar sua ausência. Todos eles simplesmente sumiram ao avistar minha casa.
E o monte de cinzas bem ao seu lado.
– Lucy! – gritei, largando minha mochila no meio do caminho e correndo na direção do que restava da casa dos Hayes, sendo barrado por um bombeiro antes mesmo de pisar no jardim. Minha mãe surgiu na mesma hora, puxando-me para perto de casa com choque no rosto, e eu não consegui parar de chamar por ela, me debatendo para me livrar dos braços firmes que me prendiam no lugar. Lágrimas inundavam meus olhos desesperados, e eu mal percebia o que acontecia ao meu redor a não ser o trabalho dos bombeiros. Eu precisava saber onde ela estava, eu precisava vê-la...
– Querido, você precisa se acalmar – minha mãe implorou, apertando-me contra seu corpo e me carregando para dentro de casa. Tentei me libertar, em vão.
– Eu preciso ir até lá! Ela precisa de ajuda! – eu gritei o mais alto que pude, soluçando sob o olhar torturado de minha mãe – Você não entende? Ela precisa de mim!
Vi lágrimas se formarem em seus olhos, e seu silêncio aos poucos se tornou ensurdecedor, a verdade muda infiltrando-se em meus ouvidos.
– Não... Não, mãe, não – murmurei, as palavras deixando minha garganta com dificuldade – Diz alguma coisa, por favor, diz...
Perdi completamente a força, enterrando o rosto em seu abraço ao permitir que o choro me engolisse. Gritei. Gritei muito. Chorei, mal conseguindo respirar. Fechei os olhos com força, lembrando-me dela, meu coração doendo mais do que nunca.
Lucy tinha morrido. Minha irmã... Eu era filho único outra vez.
Meus olhos ardiam, inchados após horas de choro. Não estendi o braço para pegar o copo de água com açúcar que papai me dera. Não tive vontade. Apenas encarei o nada, lágrimas agora silenciosas escorrendo por meu rosto e que mamãe insistentemente enxugava, escondendo as suas ao máximo.
Ela havia me ajudado tantas vezes... Desde a primeira vez em que nos falamos, quando fez um curativo em meu machucado, até a noite anterior, quando nos despedimos com sorrisos ansiosos pelo primeiro dia de aula que viria depois que ela me ajudara a consertar uma boneca de Emily que eu havia quebrado.
Eu não estava lá quando ela precisou de ajuda. Quando, segundo o que ouvi os bombeiros dizerem a meus pais algum tempo depois, um curto-circuito no andar de baixo iniciou um incêndio que rapidamente se alastrou por toda a casa, que já era bastante antiga, deixando-a presa no quarto assim como seus pais.
Eu não pude fazer nada para ajudá-la. Ela simplesmente morreu... Sozinha.
Não fui ao enterro. Afinal, não havia nada para ser enterrado. Apenas uma lápide fora colocada, com uma foto do que um dia fora minha melhor amiga, e agora não passava de uma lembrança que muito em breve todos esqueceriam.
Menos eu.
Fim do flashback
Nos mudamos daquela vizinhança em poucos meses, numa tentativa frustrada de meus pais de me tirar do escuro. Os olhos vazios e a incansável apatia me acompanharam, já parte de mim onde quer que eu fosse.
Levei um ano para, aos poucos, despertar do entorpecente luto que caiu sobre mim e finalmente voltar a ser eu mesmo.
Mas lá no fundo, eu sabia que muito havia mudado em meio à troca de pele pela qual passei... Como um enxerto que agora se confundia em meio a traços de minha personalidade, eternamente camuflado.
Conforme os anos passaram, descobri que havia me tornado incapaz de algo muito humano: me entregar a alguém. Durante a adolescência, nunca me apaixonei. Nunca tive namoradas fixas, que durassem muito mais que um fim de semana ou dois. Na faculdade, apesar de despertar muitas paixões, nunca as retribuí inteiramente. Me sentia oco, impossibilitado de desenvolver pelos outros o que eles desenvolviam por mim. Nunca sofri por amor; terminava relacionamentos da mesma maneira que perguntava as horas a algum transeunte. A única dor passional que sentia era a dos tapas das garotas que dispensava, nada que algumas cervejas não anestesiassem.
Me formei, e vi muitos amigos casarem. Nunca me via em seus lugares, com as mãos frias e suadas ao esperar pela mulher de minha vida no altar. Não acreditava no amor, apenas na conveniência de ter alguém em quem se apoiar.
Engraçado como a vida pode mudar em um minuto.
Flashback – três anos atrás
– Bom dia. Meu nome é e eu serei seu professor de biologia laboratório esse ano.
Sorri cordialmente ao receber um uníssono bom dia como resposta, respirando fundo ao analisar os cerca de trinta pares de olhos curiosos que me encaravam.
Mais um ano começara. A revigorante sensação de ensinar para alunos que nunca haviam tido uma aula sequer comigo, sempre bem-vinda, se espalhava por meu corpo conforme eu circundava minha mesa, sentando-me sobre a madeira de maneira informal.
– Como hoje é nossa primeira aula, não faremos muito mais que a introdução às regras do laboratório e apresentação dos aparelhos que nos ajudarão em nossos relatórios – continuei, cruzando os braços sobre o peito – Porém, não se deixem enganar; o que veremos nos próximos minutos será de extrema importância para a praticidade e segurança do resto de nossas aulas. Portanto, muita atenção.
Alguns alunos sacaram cadernetas e canetas, prontos para anotar todas as minhas palavras. Típico.
– Vamos começar pelas regras. Como faremos vários experimentos envolvendo produtos químicos que podem ser perigosos caso entrem em contato com a pele ou manchar as roupas, o uso do avental é imprescindível.
Indiquei o jaleco branco que usava, e aguardei até que os alunos que anotavam minhas instruções descansassem novamente as canetas sobre a mesa. Prossegui com minhas recomendações e em cerca de vinte minutos todas as informações necessárias já haviam sido transmitidas. Anotei alguns detalhes extras no quadro após distribuir uma folha com o desenho de um microscópio e as indicações de todos os nomes das partes que o compunham para uso futuro.
– Por hoje é só... Na próxima aula começaremos a observar células humanas no microscópio, complementando a aula teórica de introdução à citologia. Alguma dúvida?
Como de costume, intimidados pelo primeiro contato, ninguém ergueu a mão. Dei de ombros.
– Tudo bem, sintam-se à vontade para perguntar caso tenham dúvidas posteriores – sorri, sentando-me em minha cadeira – O sinal deve tocar daqui a dez minutos, então prossigam com suas anotações. Ah, e antes que eu me esqueça, um conselho: se eu fosse vocês, escovaria bem os dentes antes de nossa próxima aula. Afinal, nunca se sabe quando se terá que fazer raspagem bucal para observação em microscópio.
Alguns risos tímidos preencheram o laboratório, e eu mesmo ri de minha indireta, fazendo algumas anotações em minha caderneta. Suspirei baixo, largando a caneta e observando o comportamento sempre divertido dos novatos com leve interesse, até meus olhos encontrarem algo que seria cômico, se não fosse trágico.
Uma garota, com os cabelos firmemente presos num coque, lutava para dobrar as mangas de seu jaleco, que insistiam em desobedecê-la e voltar a cobrir suas mãos.
Comprimi meus lábios, sufocando um risinho, e continuei olhando até que ela bufou, com um leve tom avermelhado no rosto, fazendo com que uma mecha solta de sua franja voasse repentinamente e caíssem com leveza sobre seus olhos. Não resisti.
– Espera – murmurei, aproximando-me em poucos segundos e dobrando habilmente suas mangas – Pronto.
As palavras me soaram familiares por algum motivo, mas ignorei o pensamento naquele instante. A garota me olhou por alguns segundos, surpresa com minha ajuda inesperada, e o rubor em suas bochechas intensificou-se. Olhando em volta discretamente, perguntando-se se o resto da turma havia percebido a atenção especial e notando que os alunos pareciam mais interessados em suas próprias conversas, ela sorriu fraco, baixando os olhos para seus pulsos visíveis.
– Obrigada – sua voz baixa disse, e eu libertei meu riso curto ao vê-la me olhar com certa vergonha – Acho que esse avental é um pouco... Grande.
– Percebi – comentei, erguendo as sobrancelhas por um instante – Não precisava usá-lo hoje, só começaremos a mexer com material de laboratório na semana que vem.
Ela piscou algumas vezes, parecendo desapontada, e por algum motivo minha voz agiu independentemente.
– Mas tudo bem. Você seguiu o procedimento desde a primeira aula. Deve ser uma aluna dedicada.
Seus olhos, antes um tanto baixos, voltaram a fitar os meus, e um sorriso que parecia ter luz própria surgiu em seu rosto. Engoli em seco.
Um gancho invisível pareceu me puxar pelo estômago, e por um segundo eu não estava mais no laboratório.
Eu estava na varanda dos Hayes, brincando com Lucy.
Senti a cor deixar meu rosto gradativamente.
– Eu realmente adoro biologia – a garota disse com confiança na voz, despertando-me de minha viagem ao tempo – Talvez porque meu pai é médico e sempre me ensina uma coisa ou outra sobre o assunto.
Assenti, sem conseguir tirar os olhos dela, que agora parecia mais à vontade com minha presença. Meu coração batia forte, e eu tive medo de deixar transparecer algum tipo de emoção indesejada.
– Como é o seu nome? – gaguejei, considerando a hipótese de seu sobrenome ser familiar; não que a fisionomia fosse parecida, mas algo nela trazia de volta algumas lembranças que eu tomei o cuidado de manter distantes há alguns anos.
– – ela respondeu prontamente, as pontas de seus lábios curvadas num sorriso. Imitei sua expressão, um tanto frustrado com a resposta nada esclarecedora.
– Muito bem, ... Veremos se seu rendimento em minhas aulas será mesmo tão promissor quanto parece – falei, lançando-lhe um sorriso encorajador ao me afastar, retornando à minha mesa. De lá, tentando me recompor da repentina visita ao passado, observei-a sorrir para si mesma, anotando furiosamente algo em seu caderno, antes de o sinal tocar, liberando a turma de mais um dia letivo.
... Definitivamente, um nome do qual eu deveria me lembrar.
Fim do flashback
Me peguei sorrindo ao voltar ao presente. Ela sempre fora adorável aos meus olhos.
Não comecei a me empenhar tanto em chamar sua atenção tão repentinamente; o primeiro ano foi apenas de observação, as reviravoltas em minha mente buscando sua origem em cada detalhe, sem encontrar respostas.
Dizer que desisti de entender não seria de todo verdade. Vez ou outra, quando ela adormecia em minha cama, as dúvidas voltavam a formigar em minha mente sonolenta, mas não se demoravam. Tudo que importava era o momento, e a vivacidade com a qual meus sentidos percebiam o corpo dela ao lado do meu.
Virei a dose de whisky em um único gole, espantando as memórias e voltando a me focar no presente. Meus olhos pairaram sobre a mesa de centro, mais especificamente no brilho metálico das chaves do carro, e tirando coragem do álcool ainda queimando em minha garganta, fiquei de pé novamente, pegando-as antes de seguir rumo ao elevador.
Como alguém me ensinara há muitos anos, certas coisas na vida devem ser feitas como retirar Band-Aids: rapidamente para evitar prolongar a dor.
No fundo, eu sabia que não seria exatamente o caso.
Estacionei o carro, o caminho até ali um mero borrão em minha mente. A luta entre o querer e o dever sugava minha energia aos poucos, e eu já me sentia destruído antes mesmo que tudo desmoronasse. Encarei o volante por alguns segundos, sem realmente vê-lo; meus pensamentos já estavam muito além daquela noite. Num movimento automático, forcei meu corpo a se mover e deixar o veículo.
Virei-me na direção da casa, meus olhos demorando a se desgrudarem do chão para alçarem voo até a janela do andar de cima, vazia, apesar da luz ligada. Um bom sinal... Dependendo da perspectiva.
Para evitar que a hesitação me dominasse, caminhei em passos lentos até a porta, sabotando qualquer chance de desistir ao levar meu dedo até a campainha, ainda que eu internamente implorasse para que o universo agisse em meu favor e fizesse com que aquela porta jamais se abrisse.
Meu pedido não foi atendido. Poucos segundos depois, a maçaneta girou, e eu instintivamente ergui o olhar, meu coração saltando dentro do peito.
O choque foi mútuo.
Milhares de possibilidades invadiram minha mente ao me deparar com um homem que aparentava ser cerca de dez anos mais velho que eu do outro lado da porta. Uma luz vermelha começou a piscar atrás de meus olhos, dizendo que eu já o havia visto antes, mas a lembrança não me ocorria. Ambos cerramos os olhos, igualmente confusos, até que uma terceira pessoa surgiu atrás dele e tudo ficou ainda mais estranho.
Nossos olhos imediatamente se encontraram, como se de repente só houvesse nós dois, e eu tive que respirar fundo para controlar a saudade escondida há dias, que agora se revelava muito mais incômoda que o desejável. parecia igualmente atordoada, mas uma certa urgência em seu olhar alarmou meus sentidos. Uma série de possibilidades mirabolantes infestaram meus pensamentos numa fração de segundo. E se ela estivesse correndo perigo? Quem era aquele homem? O que ele estava fazendo ali àquela hora da noite? Onde estava a mãe dela? estava sozinha com ele?
Aproveitando-se do fato de que somente eu podia vê-la, ela apenas balançou negativamente a cabeça, mantendo-se o mais silenciosa possível para que sua presença não fosse notada pelo estranho que me atendia, de costas para ela.
– Boa noite... Posso ajudá-lo? – ele perguntou, desconfiando de minha mudez. Eu ainda tinha o olhar perdido nela, que continuava sinalizando para que eu não dissesse nada sobre o verdadeiro motivo de minha visita. Apesar da grande desconfiança que me dominava, resolvi confiar em suas súplicas. Se havia algo que eu pudesse fazer para ajudá-la, ela com certeza sabia como fazê-lo melhor do que eu.
– Uh... Boa noite, senhor – enfim balbuciei, franzindo a testa em nítida confusão e desviando o olhar para o homem – Eu... Eu acho que...
– Sim? – ele incentivou, começando a desconfiar de minha atitude incomum. observava, imóvel, o desenrolar da situação. Com o coração prestes a saltar pela boca, organizei meu pensamento e encontrei minha voz novamente.
– Desculpe, eu... Acho que estou no endereço errado – disse afinal, forjando uma expressão embaraçada que eu esperava ser suficientemente convincente – Eu sinto muito.
O desconhecido hesitou antes de concordar levemente com a cabeça, e eu prendi um suspiro aliviado. Lancei um último olhar perdido a antes de sorrir amarelo e ir embora, desculpando-me mais uma vez pelo engano. Assim que a porta se fechou atrás de mim, olhei por sobre meu ombro, completamente desnorteado.
Me reaproximei do carro, ainda tentando formular alguma hipótese que fizesse sentido para tudo aquilo, e meus olhos vagaram mais uma vez até a janela de seu quarto, onde num segundo ela surgiu, já sabendo que eu ainda estaria ali. Ergui as sobrancelhas e os ombros, indicando meu desespero, e ela sinalizou para que eu entrasse no carro e dirigisse. Franzi a testa imediatamente, recusando-me a deixá-la sem antes receber uma boa explicação do que estava acontecendo, mas ela indicou que me ligaria logo em seguida. Levei um momento para decidir o que fazer, transtornado demais para tomar uma decisão, mas ela não me deixou outra escolha a não ser obedecê-la ao sumir de vista sem mais explicações.
Entrei no carro depressa e arranquei, sem saber para onde estava indo, e não aguentei esperar. Mandando qualquer precaução para o inferno, disquei o número para o qual eu havia me recusado a ligar até então.
A resposta não demorou a vir.
– Calma, está tudo bem – ela murmurou, já sabendo que eu não estaria no mais tranquilo dos humores.
– O que foi aquilo? – perguntei, assustado – Quem é esse homem? O que ele está fazendo na sua casa?
– Ele é meu pai – respondeu sem delongas, e eu não pude evitar mergulhar num silêncio mortal ao compreender o apuro pelo qual havia passado – Depois eu explico melhor.
Agora tudo fazia sentido. Então eu realmente já o havia visto antes... Ela havia me mostrado algumas fotos dele, e mencionado alguns fatos sobre sua vida, como o fato de ser médico e ter uma família em outra cidade. Mas o que o trouxera até aqui assim, do nada?
Afastei as dúvidas que poderiam esperar por uma resolução para segundo plano, focando-me no essencial.
– E agora, o que vamos fazer? Eu... Eu realmente precisava... Falar com você – suspirei após alguns segundos, adotando um tom sério ao me recordar do verdadeiro motivo pelo qual havia ido ao seu encontro – Eu sei que... Você tem todos os motivos do mundo para não querer me ver nunca mais, mas... É muito importante pra mim... Pra nós... Que resolvamos isso de uma vez por todas.
Dessa vez ela emudeceu, o que só contribuiu para que eu ficasse ainda mais nervoso. Por mais errado que eu estivesse em relação a tudo, eu sabia que tinha razão; não faria bem algum continuar prolongando aquela situação. Engoli em seco, quase iniciando outro discurso desajeitado para que ela concordasse em me ver, mas ela enfim falou, as palavras saindo num fluxo baixo e sem emoção:
– Dê a volta no quarteirão e me espere na rua do lado. Te encontro daqui a pouco.
Antes que eu pudesse dizer qualquer outra coisa, ela encerrou a chamada. Novamente, não havia muito que eu pudesse fazer a não ser seguir suas instruções. Cheguei ao local combinado em poucos minutos, e inquieto demais para esperar dentro do carro, fiquei de pé na calçada, mal conseguindo conter todo o nervosismo que me devorava. Depois do que me pareceu uma eternidade, ela enfim apareceu dobrando a esquina, aproximando-se rapidamente com os braços cruzados sobre o peito.
Mesmo em silêncio, entender o que se passava em sua mente não fora problema, uma vez que a conexão visual estava feita. Sempre me vangloriei por poder ver através daqueles olhos; naquele momento, porém, preferi não possuir tal habilidade e me manter alheio ao nítido distanciamento presente neles.
– Oi.
Não era a melhor maneira de iniciar uma conversa depois de tudo que havia acontecido, mas foi tudo o que consegui dizer, perdido em meio à corrente de emoções que sua presença desencadeara. parecia igualmente instável, já que sua resposta não foi muito diferente.
– Oi.
Engoli em seco, revirando meu vocabulário em busca do discurso perfeito. Não perder o foco era essencial. Eu precisava resistir a todos os impulsos magnéticos que se espalhavam por meu corpo a cada segundo, insistindo em me levar até ela, e me manter firme em meu propósito. Ela reencontrou sua voz antes de mim.
– Vamos sair daqui... É perigoso demais conversarmos tão perto de casa.
Assenti automaticamente, sentindo-me um idiota por ainda estarmos parados ali.
– Eu conheço uma lanchonete aqui perto, podemos conversar melhor lá – sugeri, supondo que ela não se sentiria exatamente confortável em ficar dentro do carro o tempo todo. concordou com a cabeça, e entramos no veículo sem demora.
Percorremos parte do curto percurso em silêncio, e a cada metro andado, me sentia cada vez mais distante dela, ainda que estivéssemos mais próximos fisicamente do que nunca em relação às duas semanas anteriores. Ela olhava pela janela do carro, parecendo absolutamente tensa; meus dedos, fortemente comprimidos contra o volante, comprovavam meu estado semelhante.
Como se todo o resto já não fosse difícil o suficiente de encarar, ter que fazê-lo justamente dentro da Ferrari vermelha apenas complicava ainda mais as coisas. Cada canto daquele carro me lembrava de algum momento nosso... De quando eu ainda não media esforços para fazê-la enxergar que podia fazê-la mais feliz que qualquer outra pessoa, na certeza de que não poderia haver nada mais certo pelo que lutar, e também de quando essa certeza já brilhava em seus olhos, radiantes enquanto os meus se reviravam dentro de suas órbitas conforme nossos corpos faziam o que sabem fazer de melhor: aniquilar qualquer distância que pudesse haver entre eles.
Interrompi meus devaneios ao perceber que minha respiração havia se tornado levemente ofegante. Rezando para que ela não tivesse reparado – e também para que estivesse se sentindo da mesma forma -, iniciei o primeiro assunto que me veio à mente, desesperado para afastar aqueles pensamentos impróprios da cabeça:
– O que o seu pai faz aqui?
De canto de olho, sondei sua reação; apesar de não virar o rosto para mim, percebi que ela se assustou um pouco com minha pergunta, como se também estivesse perdida em seus próprios pensamentos.
– Ele veio passar uns dias conosco, antes de seguir viagem para um congresso de medicina numa cidade próxima na semana que vem – ela respondeu, seu tom um pouco menos vazio de emoção.
Assenti devagar, fingindo que não estava morrendo a cada segundo enclausurado naquele carro ao lado dela sabendo que não poderia sequer pensar em tocá-la. Manter aquela conversa ajudava a manter meu nível de sanidade no limite mínimo necessário para não arruinar tudo, então eu prossegui:
– Ele não sabe de nada sobre...
Não precisei finalizar a pergunta para que ela entendesse o que eu queria dizer e negasse com a cabeça. Estava prestes a soltar um grunhido de frustração diante da apatia dela quando uma resposta mais elaborada veio.
– Ele não pode saber... Pelo menos não ainda. Eu não faço ideia de como ele reagirá, e prefiro continuar assim, até estar pronta para revelar a verdade.
Virei o rosto levemente em sua direção, notando que ela agora encarava os próprios pés, deixando claro que enganar mais alguém querido era uma tarefa difícil. Baixei o olhar, a realidade do que estava acontecendo me atingindo com um tapa na cara mais uma vez, e estacionei ao chegarmos ao nosso destino.
Saímos do carro e seguimos até a lanchonete em silêncio. Encontramos uma mesa o mais reservada possível e nos acomodamos, remexendo-nos nos assentos e permanecendo mudos por algum tempo. Ambos parecíamos dolorosamente desconfortáveis com a presença do outro, e sem conseguir lidar com uma situação tão torturante, novamente me forcei a iniciar algum assunto, percebendo que ela não sabia como fazê-lo:
– Obrigado por ter aceitado conversar.
Sua voz foi educada ao me responder, seu olhar polido.
– Eu não poderia negar... Não depois de ter ido embora daquele jeito.
Meu estômago despencou dentro de minha barriga. O gosto amargo da discussão de duas semanas atrás ainda se mostrava presente em minha garganta; engoli em seco, tentando atenuá-lo.
– Como você está?
Ela piscou algumas vezes em reação à minha súbita pergunta, corando quase que imperceptivelmente diante de meus olhos cansados. Colocando uma mecha de cabelo atrás da orelha, típico gesto de sua timidez, ergueu o olhar até o meu.
– Já estive melhor – confessou enfim, resquícios de tristeza em sua voz – E você?
Suspirei, dando um rápido riso sem humor. Enfim, consegui formular uma resposta abrangente e suficientemente satisfatória.
– Nunca estive pior.
Não mantive contato visual; o que restava de meu orgulho recusou tal possibilidade. Sentia-me tão diminuído, apenas um vestígio do homem que um dia fingi ser, diante dela. Meu rosto ardia, pura vergonha queimando sob seu olhar fixo em mim. Ela quebrou o silêncio após um curto tempo.
– Onde você esteve nos últimos dias?
– Com meu filho – respondi sem rodeios, partes de meu objetivo final aos poucos se revelando em minha escolha de palavras – Me familiarizando com a idéia.
De rabo de olho, vi que ela desviara o olhar por um momento.
– Ele já sabe?
– Sim.
Não me movi, toda a minha força concentrada na disciplina mental à qual eu havia me submetido.
– Como ele reagiu? – ela perguntou, seu olhar agora atento e fixo em meu rosto, como se não quisesse perder um detalhe. Suspirei mais uma vez.
– A princípio, estranhou, o que já era esperado. Perguntou por que nunca o havíamos dito nada, e teve que se contentar com a clássica resposta: um dia, você vai entender. Não quero que ele pense que sou um idiota logo de cara... Mais tarde, quando ele tiver mais maturidade, eu lhe contarei tudo, mesmo que isso o faça me odiar.
Fiz uma breve pausa, seu abraço apertado ressurgindo em minha memória. Se ao menos ele soubesse o quanto eu não merecia aquele carinho...
– Não quero mais mentir pra ninguém, muito menos pra mim mesmo. Passei anos fazendo isso e olhe onde estou agora.
manteve os olhos em mim, um misto de tristeza e distanciamento estampado no rosto.
– E você? – ela murmurou, parecendo genuinamente interessada em minhas respostas – Como tem lidado com tudo isso?
Lentamente, ergui meu olhar até o dela, encontrando um conforto que não desejei ver. Seria aquilo mera obra de minha imaginação ou ela realmente se importava comigo mesmo depois de tudo o que descobriu?
– Ben é uma criança incrível – falei, lutando para me manter são em meio à minha trágica loucura interior – Passamos apenas duas semanas juntos e já posso dizer que me afeiçoei muito a ele. Nunca pensei que alguém seria capaz de se importar tanto comigo sem que eu tenha lhe dado algo em troca como ele faz. Implorou para que eu o trouxesse comigo, mas se contentou com a promessa de que eu voltaria em tempo para sua cirurgia.
– Cirurgia?
– Na verdade, ele apenas vai retirar as amígdalas – expliquei, vendo que ela havia se encolhido ao repetir a palavra – Ben tem a saúde boa, apesar de sofrer com alguns problemas respiratórios por ter nascido prematuro... Por ser filho de primos de primeiro grau, seu estado poderia ser bem pior, ainda que a probabilidade de doenças nesse tipo de situação esteja se comprovando cada vez menor que o imaginado.
assentiu devagar, seus olhos agora baixos e sérios enquanto minhas palavras refrescavam a infeliz lembrança que havia causado todo o conflito entre nós.
– Espero que tudo corra bem – disse apenas, bastante sincera; agradeci com um movimento de cabeça.
Permanecemos em silêncio por um tempo, digerindo as informações compartilhadas nos últimos minutos.
– E você? Como vão as coisas na faculdade?
Ela franziu levemente a testa diante de minha pergunta, que destoava totalmente do tom frio da conversa. A tensão estava ficando pesada demais.
– Bem... A mesma correria de sempre – ela deu de ombros, esboçando um sorriso indiferente – Tenho conseguido cumprir os prazos, mas minha vida social está por um triz. Não que eu tivesse alguma antes, mas enfim...
Não pude conter um riso curto, o breve divertimento parecendo alienígena se comparado ao torpor dos últimos dias. Meu coração se retraiu dentro do peito, as palavras que eu queria e ao mesmo tempo não queria dizer escalando minha garganta. Lutei contra elas pelo que me pareceu uma eternidade, o que ainda havia de amor próprio em mim impedindo que eu acabasse logo com aquilo de uma vez por todas e consumasse o fim de qualquer chance de ser feliz que me restava. Porém, logo a batalha se revelou inútil, pois minha voz iniciava o discurso que eu havia repassado em minha mente sem que eu pudesse evitar.
– ... Eu pensei muito durante esses últimos dias...
– Eu preciso te pedir desculpas.
Franzi a testa, legitimamente confuso com sua interrupção. Eu esperava qualquer coisa, menos aquilo. Ela sustentou meu olhar perdido e respirou fundo antes de explicar.
– Eu não devia ter agido daquela maneira... Ter cobrado uma satisfação por algo que não me dizia respeito. O Ben faz parte exclusivamente da sua vida, e por mais que eu discorde da sua forma de lidar com a situação, eu não tinha o direito de ter invadido o seu passado e exigido uma resposta como eu fiz. Eu sinto muito.
Tudo o que pude fazer por alguns segundos foi encará-la, emudecido pela surpresa de suas palavras. Eu mal podia acreditar que ela, que não havia agido de outra maneira a não ser a que julgara correta, estava se justificando por achar que havia me ofendido. Seu olhar se desconectou do meu, caindo para seu colo enquanto ela continuava a falar.
– Eu só queria... Eu só queria que você tivesse sido honesto comigo. Que tivesse confiado em mim o bastante para dividir esse segredo comigo antes que outra pessoa o revelasse.
Sua voz fraquejara algumas vezes, e eu senti minha garganta se fechar como numa reação alérgica às lágrimas que se formaram em seus olhos. Me senti incapaz de qualquer coisa, imóvel diante da única pessoa que realmente importava para mim e ouvindo-a dizer que me reprovava não apenas por meu erro, mas principalmente por tê-lo omitido. Sua voz continuou a preencher o silêncio esmagador que eu não conseguiria quebrar nem se quisesse, buscando forças para voltar a soar firme e resignada.
– Mas eu entendo que certos segredos são delicados demais para serem compartilhados... Que há fatos em nossas vidas que desejamos esquecer a qualquer custo e que sufocamos com todas as nossas forças dentro de nós, até que a vida os traz de volta à tona, forçando-nos a repensar nossas escolhas.
Engoli em seco, sentindo a veracidade de suas palavras queimar sob minha pele. Como ela conseguia entender aquele tipo de situação sendo tão jovem? Eu sempre soube que ela era mais madura que as outras garotas de sua idade, mas sua capacidade de lidar com tudo o que estava acontecendo de uma forma tão centrada e transparente me espantava. Se ao menos eu tivesse sido capaz de fazer o mesmo, de ser franco com ela e comigo mesmo sobre tudo desde o início... Fui tolo por pensar que conseguiria me esconder de meu passado para sempre. Um dia ele voltaria para acertarmos nossas contas, e assim o fez, no pior momento possível, quando eu tinha tudo a perder. Se eu soubesse desde então que a decepção da revelação seria inevitável, teria escolhido o caminho certo, por mais difícil que ele fosse, ao invés de ter deixado minha covardia no controle como sempre fiz.
Já estava feito. Não me serviria de nada passar o resto da vida confabulando sobre as mil maneiras diferentes de contar tudo a ela para evitar um desastre agora que ele já havia acontecido.
– Eu sinto muito – foi só o que pude dizer, minha voz um mero murmúrio conturbado em meio a todo o esforço que eu fazia para que as lágrimas que se acumulavam em meus olhos não fossem notadas – Por tudo.
– Eu também sinto – ela suspirou, com o olhar perdido sobre a mesa. Um silêncio insuportável caiu sobre nós mais uma vez; uma dor que eu não sabia que podia sentir se alastrou por todo o meu corpo, como se cada centímetro de mim estivesse sendo rasgado, dilacerado pela rejeição que ela demonstrava em relação a mim. Cansado daquela guerra mental tão excruciante, implorei por misericórdia da única maneira que me parecia possível no momento:
– Acabe logo com isso... Por favor.
Seus olhos voltaram aos meus imediatamente, como se eu tivesse disparado uma espécie de ofensa. O silêncio denso deu lugar a uma tensão quebradiça num piscar de olhos.
– Acabar com isso? – ela repetiu, sua voz refletindo a confusão em sua mente – O que você quer dizer?
Respirei profundamente antes de responder, avançando cada vez mais num caminho sem volta com o pouco de determinação que ainda me restava.
– O que eu quero dizer... É que você se esqueceu de dizer uma coisa quando foi embora há duas semanas.
Seu olhar exigia uma resposta, ao mesmo tempo em que parecia temê-la. Por mais que parte de mim implorasse para que eu simplesmente esquecesse tudo e deixasse que meus sentimentos por ela falassem mais alto, não pude lutar contra tudo o que estava entre nós, cada vez mais me sufocando.
– Você se esqueceu de dizer que estava terminando comigo.
Ela cerrou os olhos, completamente confusa. Não pestanejei; precisava terminar o que havia começado.
– O quê? – ela gaguejou, o choque de minhas palavras enfraquecendo sua voz. Fingi que não escutei para não dificultar piorar ainda mais a situação.
– E que não queria mais nada comigo, e que não podia continuar atrasando sua vida com alguém como eu ao seu lado, porque você ainda é muito nova e tem uma vida inteira pela frente enquanto eu já tenho um passado que vai me acompanhar pra sempre.
– Por que você está dizendo essas coisas? – ela interrompeu, completamente transtornada – Eu não quero ouvir nada disso!
– Por favor, não faça tudo ficar mais difícil do que já está – pedi entre dentes, meus nervos em frangalhos diante de seus protestos – Eu só estou tentando te fazer enxergar a verdade de uma vez por todas.
– A verdade? Que verdade? – ela rebateu, enervada, e meu argumento por pouco desmoronou ao confrontar a postura desafiadora dela – A única verdade que eu vejo aqui, , é que tudo o que você disse até agora é a mentira mais ridícula que eu já ouvi.
Recuperei o fôlego que meu ânimo exaltado havia perdido, tentando decifrar suas intenções. Por que ela estava se recusando a entender o que eu tentava lhe dizer? Por que ela simplesmente não aceitava a deixa que eu estava esfregando em seu nariz e não terminava tudo de uma vez? Não precisei me esforçar muito; ela estava disposta a compartilhar seus pensamentos.
– Sabe... Eu andei muito confusa nessas últimas semanas – confessou, com os olhos desiludidos fixos em mim durante todo o tempo – Não sabia o que pensar sobre você, sobre nós... Sobre tudo. No começo, não queria nem pensar em te ver pelo resto da vida. Depois, eu estava disposta a ter uma conversa, mas na verdade seria tudo um pretexto pra partir sua cara ao meio assim que te visse. E então... De repente, a saudade começou a apertar, apertar tanto, que tudo que eu queria era falar com você, ver você, acertar as coisas entre nós. Eu até estava começando a me acostumar com a ideia de que você tem um filhinho, e talvez eu tivesse que aprender a te dividir com outra pessoa...
Seu olhar ficou distante, lágrimas discretas se acumulando sem que ela permitisse. Travei o maxilar, ao mesmo tempo estapeando-me e remendando-me diante de suas palavras. Ela prosseguiu:
– Eu realmente queria resolver esse impasse, que na verdade foi culpa de nós dois... Nós mesmos criamos tudo isso, e só nós dois podemos resolver essa confusão. Eu... Estava disposta a discutir isso, a te dar outra chance de me fazer confiar em você outra vez... Mas agora, depois de tudo que você disse... Depois de ter despejado todas essas desculpas esfarrapadas que você sabe que eu odeio sobre a minha cabeça... Eu não sei mais o que você quer de mim.
Fechei os olhos, reunindo forças para continuar aquela conversa. Eu precisava ir até o fim, agora que já havia começado um estrago irreparável.
– E você acha que eu sei? Você acha que eu sei o que eu quero de mim mesmo?
Respirei fundo, deixando que minha revolta a atingisse e me motivasse a esclarecer o real motivo pelo qual eu precisava agir daquela forma.
– Quando você deixou aquela casa há duas semanas... Você não apenas me deixou. Você levou a minha integridade, ou pelo menos o que eu achava que tinha dela. Você me fez questionar princípios que eu já tinha como certos há muito tempo... Me fez revisitar assuntos que eu havia trancafiado no canto mais profundo de minha memória, e pretendia manter intocados pra sempre. Você virou a minha vida de cabeça pra baixo, . Eu estou completamente revirado, e não sei nem por onde começar a endireitar as coisas. Que tipo de relacionamento você acha que um homem como eu pode te dar? Como eu posso saber lidar com você, se eu nem mesmo consigo lidar comigo?
Ela sustentou meu olhar inquisitivo, sem demonstrar qualquer intenção de me responder. Pisquei repetidas vezes, afastando as lágrimas estúpidas que pretendiam se acumular em meus olhos. Estava confuso demais, furioso com aquela situação repugnante na qual a havia envolvido. Talvez eu devesse ter esperado mais alguns dias para contatá-la, e então poderia articular melhor meus motivos e fazê-la entender porque havia adotado tal maneira de pensar.
Refletindo por um segundo, concluí que não havia melhor momento para ter aquela conversa do que agora... Justamente para que ela presenciasse o nevoeiro desnorteante no qual eu estava perdido, e percebesse que eu não estava em condições de assumir o papel que ela gostaria de atribuir a mim.
– Eu preciso resolver isso... Preciso me resolver – recomecei, meu tom de voz mais sério e comedido – Eu sempre negligenciei, afugentei toda e qualquer lembrança relacionada ao meu filho... Não posso mais continuar fingindo que essa parte da minha vida não existe, que minhas atitudes não têm consequências. Nem que eu decida seguir com a minha vida sem necessariamente ser um pai presente, o mero fato de reconhecer a existência de Ben já é um posicionamento melhor do que o que eu tinha até agora. Mas para que eu consiga me sentir confortável sob a minha própria pele novamente, depois de perceber o quão errado eu estive durante todo esse tempo, eu preciso reavaliar todas as minhas escolhas, e eu não quero que você se sinta obrigada de maneira alguma a enfrentar essa tormenta comigo.
– Você não está me obrigando a nada, eu estou aqui por livre e espontânea vontade, como eu sempre estive! – ela reforçou, inclinando-se levemente sobre a mesa conforme seu ânimo se exaltava gradualmente – Eu não acredito que você está me dizendo essas coisas, sinceramente. Você sabe muito bem que eu nem teria aceitado arriscar tudo o que arrisquei até agora se não acreditasse que vale a pena mentir, esconder tudo de pessoas que eu nunca tinha enganado antes.
– Eu sei, eu sei de tudo isso, e eu odeio essa situação – afirmei com veemência, sua postura ofensiva me contagiando – Eu sou a pessoa que mais odeia que você tenha segredos com a sua família, tanto quanto ou até mesmo mais que você. Não pense por um segundo que eu me esqueço disso, porque é impossível. E é também por não suportar esse absurdo que eu estou agindo dessa maneira, que... Que eu estou te liberando.
cerrou os olhos, irritada por ter seu próprio argumento usado contra si.
– Você fala como se eu estivesse fazendo um sacrifício sem receber nada em troca – ela murmurou, sua raiva aos poucos se diluindo em meio à realidade assustadora do momento – Como se cada mentira não estivesse valendo totalmente a pena... Como se o que nós construímos não significasse nada. Você sabe que se eu pudesse voltar atrás, eu faria tudo igual... Eu correria cada risco, inventaria cada mentira outra vez, só pra poder viver o que nós vivemos.
Levei um tempo para absorver o turbilhão de emoções que suas palavras provocaram em mim, e após muito fitar a mesa, reencontrei minha voz:
– Eu sei... Eu também faria tudo igual em relação a você. Mas agora tudo mudou entre nós, e você sabe disso. Foi você quem abriu meus olhos para a minha irresponsabilidade, e se eu não parar agora e olhar para trás, eu posso perder tudo... Eu posso perder você. E isso é uma coisa com a qual eu não conseguiria lidar jamais.
– Você não vai me perder se me deixar ficar do seu lado! – ela sussurrou, pegando minha mão num impulso, e apesar de meu coração saltar, me refreei e rompi o contato – Mas se você me afastar assim, sem nem me dar uma chance pra mostrar que eu posso me adaptar a essa nova fase da sua vida... Você acha que eu consigo lidar com isso?
– Me desculpe... – neguei pausadamente, sem conseguir encarar a expectativa em seus olhos – Mas eu não posso ser o homem que você quer que eu seja... O homem que você merece que eu seja. Pelo menos não agora. E eu não sei quando poderei ser. Talvez quando eu consiga olhar pra você e me sentir digno disso. Mas por enquanto... Eu preciso ficar sozinho.
Enfim ergui meus olhos até seu rosto, indeciso entre resignação e desapontamento. Uma lágrima silenciosa rolou por sua bochecha, e eu contive o impulso de enxugá-la, sabendo que este não era o momento de demonstrar qualquer ternura. Ela precisava entender que eu estava fazendo aquilo para o bem dela, para que ela não desperdiçasse sua juventude com alguém que não poderia dar a ela, pelo menos por enquanto, tudo o que ela merecia ter.
Pensei em dizer mais alguma coisa, mas ao perceber que somente palavras de conforto que não eram adequadas ao que eu pretendia expressar se amontoavam em minha mente, finalmente deixei que a tristeza me engolisse e formasse um nó apertado em minha garganta, impedindo-me de falar, porém não de me levantar subitamente e unir meus lábios à sua testa, num beijo de despedida que eu tentei tornar breve, sem sucesso. Hesitei ao me afastar levemente, embriagado pela proximidade ausente há certo tempo, e tão rapidamente quanto me foi possível, deixei a lanchonete, sem olhar para trás.
Meu corpo inteiro ainda tremia feito gelatina e eu estava prestes a desativar o alarme do carro quando fui interrompido.
– Tudo bem... Se você quer ir, eu não vou te impedir.
Levei alguns segundos para dar meia volta e encará-la, metade de mim surpresa por sua reação, enquanto a outra metade, a que já esperava que a última palavra ainda estivesse por vir, tentava manter minha expressão firme. , que parecia ter corrido até me alcançar, agora caminhava lentamente até mim, dessa vez sem medo ou tristeza nos olhos; havia apenas determinação.
– Eu sei que não posso te impedir, e nem quero que você deixe de seguir seu próprio caminho, se é o que você acredita que precisa fazer – ela disse num tom grave – Mas tem uma coisa que eu sei.
Ao completar a frase, ela já estava parada a poucos centímetros de mim, e eu não tinha mais nenhuma reação a não ser observá-la, prestar atenção no que dizia.
– Uma vez, não faz muito tempo, eu conheci um cara. Ele era maravilhoso. Bonito, engraçado, talvez um pouco tarado demais... – ela riu, contrariando as lágrimas que rapidamente inundavam seus olhos (e os meus) – Mas ainda sim, um homem incrível. Claro, ele tinha seus defeitos, mas eu não me apaixonei só pelo que ele era. O principal mesmo, o que me dava aquele frio na espinha a cada vez que eu pensava em perdê-lo, era o jeito como ele me fazia sentir. Sim, aos meus olhos, ele era um grande homem. Mas eu... Quando ele me olhava, ele me fazia uma grande mulher. Eu sentia que podia fazer qualquer coisa quando estava com ele, que podia ir a qualquer lugar, a qualquer hora... Bastava saber que ele estaria comigo, que estaria me olhando daquele jeito que só ele sabia olhar.
Ela suspirou profundamente, seu rosto agora molhado pelas lágrimas que caíam de seus olhos, ainda fixos nos meus, que passaram a maior parte de seu discurso fechados, na tentativa de me proteger do impacto que suas palavras causavam. Ela continuou:
– Ele me ensinou uma coisa que eu nunca vou esquecer. Ele me mostrou que eu não posso desistir de lutar pelo que eu acredito... Pelo que eu quero. Você acredita que ele mesmo passou anos da vida dele lutando por mim? Tentando me fazer enxergar que, apesar de eu odiá-lo na época, ele era o caminho certo pra mim?
Prendi a respiração ao sentir uma dor enorme tomar conta de mim, esperando que aos poucos ela se dissipasse e permitisse que eu voltasse a respirar. Eu sabia, porém, que aquilo era só o começo; dores (muito) piores ainda estavam por vir.
– Pois é... Por mais que eu odeie admitir, ele estava certo. E agora, que ele está diante de mim, me dizendo adeus enquanto finge que está dizendo até logo... Como eu poderia deixá-lo ir tão facilmente, se eu sei que não existe nada mais certo para ele do que ficar?
Ao olhar em seus olhos, ainda que só por um instante, mergulhei na determinação incrustada neles. Minha mente vagou para o lugar irresistível que eu havia evitado até então, o lugar que me permitiria ignorar todas as razões que me levaram até ali, todas as decisões que havia tomado até então, e me render à imensidão inabalável de sentimentos que ela despertava em mim desde o primeiro momento em que a vi. Podíamos recomeçar, repetir todo o trajeto que seguimos desde o instante em que ela me permitiu entrar em seu coração, reconstruir os deliciosos passos de nossa história na tentativa de curar as feridas e recuperar nosso relacionamento, ainda que nunca pudéssemos voltar a ser exatamente os mesmos de antes.
– Eu sei que, nesse momento, você precisa ir. E mesmo sabendo que você desistiu de mim, não vou admitir que você não volte.
Sustentei seu olhar, machucado antes de qualquer coisa, enquanto imaginava como seria seguir esse caminho. Uma sensação boa brotou em meu peito, e por um momento eu me senti inclinado a me esquecer de todo o resto e deixar que essa sensação se espalhasse. Meu rosto estava retesado, contorcido em remorso e dor, quando os olhos dela, lacrimosos e feridos, encontraram os meus. Com a voz embargada, ela prosseguiu, aproximando-se ainda mais, de modo que sua respiração me atingisse a cada palavra:
– Você passou muito tempo lutando por mim... Agora é minha vez de lutar por você. E eu vou ter você de volta... Não importa o que eu tenha que fazer.
Não... Esse não era o momento. Eu tinha certeza de que não conseguiria me doar por completo, do jeito que ela merecia, não depois de remexer tanto em memórias que há muito eu acreditei estarem mortas. Eu precisava me tornar um homem melhor, verdadeiramente melhor, se quisesse ser digno de uma mulher como ela.
Semanas, meses, anos, mas ela entenderia. E então, quem sabe, pudéssemos tentar de novo.
Baixei os olhos, rompendo o contato visual entre nós, e involuntariamente fixei-os em seus lábios, tão próximos e tão convidativos. Eu podia não ter certeza de muita coisa, mas a atração que tomava conta de mim a cada vez que me pegava fitando aqueles lábios era uma delas. Qual não foi a minha surpresa ao senti-los pressionados contra os meus um milésimo de segundo depois, quentes e macios como minha memória ainda preservara desde a última vez em que nos beijamos... Quando tudo ainda parecia tão certo.
Após um breve momento que me pareceu eterno, ela voltou a se afastar, e como eu havia feito há poucos minutos, me deixou sozinho outra vez, seguindo na direção pela qual havíamos vindo sem dizer mais nada. Encarei o chão, de onde seus pés haviam partido segundos atrás, por um longo tempo, sobrecarregado demais para me mexer, até que, com o último fio de sanidade que me restava, reuni forças para entrar no carro e retornar ao lugar de onde eu havia vindo, e que muito em breve pretendia deixar.
(’s POV)
Olhei ao redor assim que entrei no restaurante, apertando a alça da bolsa sobre meu ombro com um pouco mais de força que o necessário. Não demorei a encontrar quem eu procurava, e em passos largos, caminhei até a mesa, de onde ela acenava discretamente para mim.
– Desculpe o atraso – suspirei, ocupando a cadeira vaga à sua frente – Não consegui sair mais cedo da aula como eu planejava.
– Não se preocupe, eu acabei de chegar – Jules*, amiga de , respondeu, observando enquanto eu me acomodava e recebia o menu que o garçom prontamente me ofereceu. Sem a menor fome para almoçar, coloquei-o sobre a mesa, ansiosa demais para sequer fingir interesse nele.
* Pra quem não lembra quem é Jules (acredito que ninguém lembre, hehe), favor checar o comecinho do capítulo 2!
– Obrigada por aceitar se encontrar comigo – ela disse, sorrindo gentilmente. Neguei com a cabeça.
– Imagine... Se você me ligou, deve ter algo importante para dizer.
– É, eu tenho... Quer dizer, espero que ainda seja importante para você.
Engoli em seco, prevendo o rumo que a conversa tomaria. De imediato, tirei aquela dúvida de sua mente.
– Eu ainda me importo com ele... Muito. Se dependesse de mim, não estaríamos separados.
Jules me analisou por um momento antes de assentir.
– É bom ouvir isso. Porque se você não se sentisse dessa forma, vir aqui hoje teria sido um completo desperdício do seu tempo.
– Eu não teria vindo se não me importasse – falei, tentando não parecer tão desesperada para saber o que ela tinha para me dizer – Sei que nosso único vínculo é ... Não haveria outro motivo para nos encontrarmos a não ser ele.
Novamente, ela assentiu, tomando um gole de sua água antes de prosseguir. Dessa vez, ela não hesitou antes de ir direto ao ponto, o que eu apreciei imensamente.
– tem agido de uma forma muito estranha ultimamente, e me pediram para contatar você.
Franzi a testa, tão confusa quanto preocupada. Várias dúvidas se acumulavam em minha mente, e eu logo tratei de expressar a mais urgente delas:
– Agindo de uma forma estranha... Como assim?
– Fazendo coisas que ele antes não faria.
Jules fez uma breve pausa e respirou fundo antes de continuar.
– O mero fato de ter se mudado para a casa dos pais já é espantoso o suficiente... Mas como ele tem uma forte razão para voltar...
– Ben – murmurei, fingindo que as lembranças que aquele nome trazia não me afetavam profundamente. Jules concordou com um meneio de cabeça.
– Mas não é só isso – ela prosseguiu – Já faz algum tempo que eu não o visito, mas Audrey me disse que ele tem passado muito tempo com o pai no escritório... Ela acha que ele pretende assumir os negócios da família.
Meus olhos se arregalaram ao ouvir tal notícia. Levei alguns segundos para encontrar minha voz.
– Mas... Ele sempre jurou que não faria isso... Que não servia para administrar todo o patrimônio da família, que nunca se submeteria a ficar trancado numa sala assinando papéis e administrando as finanças.
– Eu sei, e por isso me preocupo tanto – ela disse, séria – Parece que ele está tentando, não sei... “Consertar” sua vida em todos os aspectos... Começar do zero, fazendo o que os outros esperam dele, e não agindo de acordo com o que ele julga certo.
Esfreguei o rosto com as mãos, mais assustada a cada segundo. O que ele estava fazendo? Minha garganta se fechou à medida que uma sensação de culpa crescia dentro de mim. Eu o havia feito rever seus conceitos, repensar suas decisões, mas nunca imaginara que ele levaria tal reflexão até as últimas consequências. Mudar tanto... Tudo aquilo era realmente necessário?
– Meu Deus – foi tudo o que pude dizer, fitando a superfície da mesa como se pudesse encontrar nela uma resposta, uma direção.
– Eu tentei conversar com ele... Brad também – Jules suspirou, com o olhar baixo – Mas ele não se abre... Apenas diz que mudou sua forma de pensar sobre muitas coisas.
Mantive-me calada, sem saber como reagir diante de tal situação. Quando enfim consegui falar, a frase que saiu de minha boca era mais do que óbvia:
– Precisamos fazer alguma coisa.
– Eu sei – ela concordou, erguendo o olhar até o meu – Audrey me disse o mesmo ao telefone ontem de manhã. E é por isso que estamos aqui agora.
Pisquei algumas vezes, levando alguns segundos para processar a informação.
– Audrey pediu para você me ligar?
Jules assentiu. Meu coração acelerou ainda mais, como se previsse o que viria.
– Ela quer que você compareça ao jantar de aniversário dela neste sábado... Para conversar com ele e, quem sabe, pelo menos entender o motivo de tudo isso.
Por um momento, apenas a encarei, sem reação. A mãe de queria que eu fosse ao seu jantar de aniversário para conversar com ele? Eu jamais imaginei que aquilo fosse acontecer, nem mesmo em meus devaneios mais fantasiosos, que haviam se tornado bem mais frequentes nos últimos três meses, desde que ele havia terminado comigo e mudado de cidade.
– Você tem certeza? – balbuciei, chocada demais para esboçar uma reação mais decente. Ela confirmou com a cabeça.
– Ela disse que teria te ligado se soubesse seu número, mas como Brad é o único amigo de com o qual a família tem algum tipo de contato, pediu para que eu transmitisse o recado.
Continuei paralisada por alguns instantes, absorvendo o que ela me dissera, e enfim entendi o que precisava fazer. Se a própria Audrey havia se dado ao trabalho de contatar Jules para chegar a mim, e considerando tudo o que ela havia me dito há alguns minutos, o caso deveria ser realmente grave. Além do mais, ela estava me dando uma oportunidade perfeita para falar com ele, e eu não estava em condições de negar uma oferta daquelas. Três meses de distância, de total silêncio da parte dele... Por mais que eu tentasse telefonar, ele nunca atendia, nem mesmo quando eu usava outro número que não fosse o do meu celular.
Eu não podia continuar no escuro. Muito menos agora que uma luz surgia no fim do túnel.
Respirei fundo, reunindo coragem para dar minha resposta e me agarrando à ideia de que, mesmo estando apavorada, eu estava fazendo a coisa certa. Mesmo que tudo terminasse de forma desastrosa, eu teria a chance de vê-lo, e talvez esse mero fator já contribuísse para causar alguma mudança nele... Essa era a minha última esperança.
– Pode dizer a ela que eu estarei lá.
– E então, o que ela queria? – perguntou assim que cheguei ao apartamento que ela dividia com Ewan, após meu encontro com Jules.
– Você nem imagina – falei, atirando-me no sofá, e vendo a curiosidade em seus olhares, resumi rapidamente a situação, o que só tornou tudo muito mais real.
– Nossa, o cara surtou totalmente – Ewan disse, me observando como se eu tivesse acabado de contar uma história de terror – Eu, hein.
– Se não quiser ajudar, não precisa atrapalhar, amor – sorriu entre dentes, lançando-lhe um olhar de censura por sua infeliz escolha de palavras antes de se voltar para mim – , eu nem sei o que te dizer... Que loucura.
– Eu sei – bufei, fechando os olhos e cobrindo meu rosto com as mãos – E eu não consigo deixar de pensar que a culpa é minha.
– Pelo amor de Deus, mas é claro que não! – ela exclamou, puxando meus pulsos para baixo e me forçando a olhá-la – Se você fez alguma coisa, foi tentar colocar algum juízo na cabeça dele.
– Ele bem que estava precisando – Ewan adicionou inocentemente, e ao receber outro olhar assassino da namorada, protestou – Ué, eu só tô falando a verdade!
– Tudo bem, eu não sei se posso ficar muito pior do que já estou – intervim, antes que pudesse retrucar – Pelo menos, eu vou ter uma chance de consertar as coisas no sábado.
– Espero que você consiga – ela sorriu fraco, e por mais que seu esforço para me animar fosse nítido, algo parecia estranho em sua expressão.
– O que foi? – perguntei, inclinando a cabeça para o lado e olhando-a com desconfiança. Automaticamente, ela soltou um grunhido frustrado, revirando os olhos.
– Olha, eu juro que estou tentando ser a amiga mais compreensiva e otimista do mundo – ela começou, falando depressa, como se estivesse guardando aquele discurso por um bom tempo – Mas... Já se passaram três meses desde que ele foi embora, .
Respirei fundo, imitando seu gesto e também revirando meus olhos ao prever o que viria. Pois é, parecia que eu poderia ficar pior do que já estava.
– Três meses é um bom tempo – continuou, desacelerando seu ritmo e tentando soar menos taxativa e mais persuasiva – E se ele não tiver mais intenção de voltar? O que, convenhamos, depois de tudo que a Jules disse, é bem provável. O cara se mudou pra outra cidade, e se isso não for empecilho suficiente, deixou bem claro que não te quer na vida dele por pelo menos um bom tempo. Qual parte do “siga em frente” você não entendeu?
– Qual parte do “eu não vou desistir dele” você não entendeu? – retruquei, começando a ficar irritada com sua insensibilidade – Ele esperou por mim por três anos, ! Três anos! Além do mais, quando o Ewan foi embora, você ficou arrasada e se recusou a sair com outros caras por meses, então não venha querer me dar lição de moral.
balançou negativamente a cabeça, desaprovando minha atitude, e lançou um olhar desesperado a Ewan.
– Me dá uma força aqui, por favor.
Ele fez uma careta ao ser intimado a opinar, e apesar de levar alguns segundos para tomar coragem, indeciso entre olhar para mim ou para ela, se manifestou:
– Falando como um cara... E caras conhecem outros caras...
– Fala logo – rosnei, sem paciência para rodeios.
Decidindo-se por encarar o chão, ele enfim respondeu.
– Eu concordo com ela. Você é nova demais pra lidar com todo esse drama, e ele sabe disso, por isso terminou tudo entre vocês... Por mais que ele goste de você, não dá pra ignorar esse tipo de coisa.
– Ele só está fazendo isso porque acha que não me merece! – rebati, levantando-me do sofá, irritada demais para continuar sentada entre os dois – Pelo menos não enquanto sua... Honra estiver manchada por um erro do passado. Ou qualquer outra coisa menos dramática.
– Primeiro, que eu saiba, ele não é nenhum samurai pra ter que “limpar sua honra” – disse, erguendo um dedo a cada item listado – Segundo, erro do passado uma ova, porque filho é pra sempre. Agora me diz, onde tem espaço pra você nessa nova fase sou-o-novo-Dalai-Lama da vida dele?
O choque de sua pergunta fez com que o medo de não me encaixar mais em seu mundo, que eu constantemente reprimia e isolava sob uma grossa camada de determinação, se espalhasse em frias ondas por meu corpo. Levei alguns segundos para responder, já sem energia para discutir.
– Se eu não correr atrás, nunca vou descobrir.
respirou fundo, sua expressão mudando da agressividade para a compaixão ao perceber que havia tocado num ponto delicado.
– Você sabe que eu só quero o seu bem, não sabe? – ela perguntou com um toque de arrependimento na voz, ficando de pé – Eu só digo todas essas coisas porque detesto te ver assim, sofrendo por um relacionamento que pode não ter mais futuro.
– Eu só preciso saber... – insisti pela última vez, com o último fio de persistência que me restava – Não posso conviver com essa dúvida.
Ewan, que nos assistia em silêncio, me lançou um olhar compreensivo e ao mesmo tempo encorajador, compreendendo meus motivos. fez o mesmo, incapacitada diante de meu argumento. Cansada de toda a tensão que o dia já havia trazido antes mesmo das duas da tarde, forcei um sorriso sem graça e, dirigindo-me a Ewan, perguntei:
– Se importa se eu roubar sua namorada por algumas horas? Eu tenho um compromisso meio... Importante no sábado, e preciso encontrar um vestido decente até lá.
Uma vez quebrado o clima pesado, ele fingiu pensar no meu caso antes de assentir, o que fez com que todos caíssemos num riso breve, mas aliviado.
Meus olhos acompanhavam distraidamente as manchas coloridas que passavam pela janela do carro a cada metro percorrido do longo caminho. A viagem parecia completamente diferente à noite, ou talvez fosse apenas a constante sensação de desconforto em meu estômago que estivesse confundindo meus sentidos. Meus músculos começavam a reclamar devido ao já extenso tempo durante o qual eu os mantinha retesados, temendo relaxar no banco traseiro do carro que Audrey havia mandado para me buscar uma hora mais cedo naquele sábado, que parecera demorar anos para chegar. E que agora que estava ali, parecia estar indo rápido demais. Já estava escuro? Fazia tanto tempo assim desde que eu saíra de casa?
Durante todo o trajeto, minha mente não conseguia se desvencilhar de um único pensamento. Eu iria vê-lo naquela noite. Depois de três longos meses sem qualquer contato, eu estaria diante dele novamente. Poderia olhar para ele, refrescar minha memória, relembrar suas feições, sem precisar recorrer às fotos tiradas quando ainda nos víamos quase todo dia, feito dois idiotas apaixonados.
Qual seria sua reação? Ele ficaria feliz com a minha presença? No fundo, eu esperava que sim. Era possível, certo? Em nenhum momento, ele disse que não me amava mais... Talvez ele também sentisse minha falta. Nada o impedia de sorrir ao me ver, e então correr em minha direção para me abraçar, e...
Errado. Revirei os olhos diante de minha própria estupidez. No momento, tudo o que ele acreditava ser o certo a fazer desde a última vez em que o vi o impedia de agir daquela forma e me excluía de sua vida por tempo indefinido. Na melhor das hipóteses, ele se manteria a vinte passos de mim, fingiria ouvir o que eu tinha a dizer (que, a propósito, apesar da noite anterior passada em claro tentando formular um bom discurso, ainda estava indefinido), e me diria para ir embora e não voltar mais.
A noite realmente prometia.
Engoli em seco ao reconhecer a propriedade dos logo à frente, e por uma fração de segundo, senti minhas forças se esvaírem, como se eu estivesse prestes a desmaiar. Me recusei a ser tão fraca, e enquanto os portões se abriam para que o carro entrasse, mantive o olhar fixo em meu colo e apenas me concentrei em respirar fundo.
O motorista estacionou em frente à casa, e como Jules havia instruído no dia anterior por telefone, esperei dentro do carro até que Audrey viesse me buscar. Ela não demorou a aparecer, abrindo a porta do automóvel para que eu saísse e logo em seguida me abraçando, como havia feito da primeira vez em que me viu.
– Olá, querida – ela murmurou, sorrindo abertamente ao me observar – Muito obrigada por vir. Nem sei como agradecer.
– Eu que agradeço pelo convite – respondi, me esforçando ao máximo para não demonstrar meu nervosismo.
– Imagine... Você nos faz um grande favor vindo aqui esta noite – ela disse, adotando uma expressão levemente triste – Nós estamos tão preocupados com ele... E mesmo que ele não tenha convivido muito conosco pelos últimos anos, todos pudemos ver o quanto você significa em sua vida. Se você não puder ajudá-lo, ninguém poderá.
Engoli em seco, sentindo o peso de minha responsabilidade pesar sobre meus ombros pela milésima vez desde que minha ida ao jantar de aniversário fora planejada. Em nenhum momento eu havia duvidado de minha capacidade de ao menos fazê-lo refletir sobre como estava lidando com toda a situação com tamanha intensidade quanto naquele instante, em que os olhos esperançosos de Audrey repousavam nos meus, e me fizeram visitar uma possibilidade que eu tentava desesperadamente evitar: e se ele já não se sentisse mais como antes em relação a mim? E se o impacto que Audrey alegava que eu tinha na vida de já tivesse sido atenuado pela distância dos últimos meses?
– Farei o que for possível – foi o que consegui dizer para confortá-la e para acalmar o turbilhão de inseguranças que infestou minha mente em poucos segundos – Eu prometo.
– Boa sorte – Audrey murmurou, segurando minhas mãos entre as suas ao chegarmos à entrada da residência – Espere na sacada. Farei com que ele te encontre lá e cuidarei para que ninguém interrompa.
– Obrigada – sorri fraco, e antes que ela se afastasse, me lembrei de algo essencial – Ah! E feliz aniversário.
Ela retribuiu meu sorriso com um lisonjeado, e acariciou meu rosto de um modo tão maternal que, no estado emocional em que eu me encontrava, quase me fez desabar em lágrimas e pedir colo.
– Obrigada – ela respondeu, transbordando gentileza, seguindo para dentro logo depois.
Respirei fundo antes de imitá-la, e me esgueirei pelos convidados de cabeça baixa e em passos discretos até o local combinado, tentando não ser vista por algum possível parente que já me conhecia, nem observar demais os arredores para que as lembranças que aquelas paredes provavelmente despertariam não me desestabilizassem ainda mais. Completei o curto caminho até a beira da sacada e deixei meus olhos vagarem pelo extenso jardim, repousando minhas mãos trêmulas no parapeito como se desejasse roubar a firmeza da pedra que o constituía. Não funcionou. Minha audição parecia mais aguçada que de costume, para que nenhum passo, por mais silencioso que fosse, atrás de mim passasse despercebido, e nem o discreto som das cortinas que separavam a sacada da área interna sendo abertas se perdesse na brisa noturna.
Não precisei ouvi-lo, e muito menos vê-lo, para saber que ele havia me encontrado.
Um arrepio percorreu meu corpo ao sentir a mudança que sua presença havia causado na atmosfera ao meu redor. Meu coração deu um salto dentro do peito, e antes que meus joelhos ameaçassem ceder ao peso que sustentavam, me virei em sua direção.
– ?
Sua voz soou como um mero sussurro, refletindo o espanto nítido em seus olhos ao encontrarem os meus. Ao me ver ali, diante dele, como havia imaginado tantas vezes nos últimos dias, todos os discursos que havia ensaiado desapareceram de minha memória, deixando-me completamente sem reação. De alguma forma, no entanto, meu cérebro entrou no piloto automático, e, guiada por minha determinação, consegui reagir.
– Oi, .
Ele apenas continuou me encarando, como se eu fosse um fantasma, um produto de sua mente, que a qualquer momento desapareceria se ele se recusasse a admitir minha presença. Infelizmente para ele, eu era bastante real. E após longos segundos de hesitação, ele pareceu se dar conta disso, pois abriu e fechou a boca várias vezes, mas não foi capaz de emanar som algum. Não me manifestei; deixei que ele desse o próximo passo, que recuperasse totalmente o controle sobre si, para que não se sentisse ameaçado e se fechasse por completo. Para atingir pelo menos parte de meu objetivo, eu precisava que ele sentisse uma certa liberdade, um certo conforto diante de mim, o que já era um pré-requisito bem complicado, dadas as circunstâncias. As adversidades não me impediriam de tentar.
– O que você está fazendo aqui? – enfim perguntou, com a voz grave, e assim que o fez, percebi que ele agora já adotava uma postura mais ofensiva, pronto para rebater meus argumentos que ainda nem haviam sido expostos. Respirei fundo, tentando manter a calma, e dei um passo em sua direção, mostrando que não me sentia intimidada. Ainda que não fosse verdade, eu não o deixaria perceber. Não havia sido sempre assim entre nós?
– Vim falar com você – respondi com serenidade, vendo-o empertigar-se discretamente em reação à minha aproximação – Já que você não atende as minhas ligações.
Nossos olhos não se desgrudaram desde o instante em que haviam se encontrado, e a conexão parecia se fortalecer a cada palavra trocada. À menção de minhas inúmeras chamadas ignoradas, o desafio em suas pupilas pareceu fraquejar por um breve momento, denunciando que parte dele, e essa parte, por menor que fosse, era uma minoria barulhenta, ainda sentia algo por mim. Meu coração se encheu de esperança, mas logo em seguida encolheu ao imaginá-lo fitando o visor do celular, lendo meu nome inúmeras vezes na tela e, mesmo com tudo o que o impelia a atender a ligação, desviando o olhar, deixando o aparelho de lado, e junto com ele, todas as coisas que eu tinha para dizer.
– Você sabe por que eu não atendi – ele murmurou, mascarando a fragilidade de suas palavras com a aspereza de sua voz. Não funcionou. Já era tarde, ele já havia revelado demais.
Naquele lampejo de saudade que ele havia mostrado, inúmeros sentimentos tomaram conta de mim ao mesmo tempo. Todas as vezes em que me encontrei diante de uma lembrança nossa e simplesmente não pude respirar, porque a simples hipótese de que aquelas lembranças eram tudo o que restava de nós era insuportável, voltaram à minha mente num turbilhão. Cada parte de minha vida tinha uma parte dele. Me perguntei se ele se sentia da mesma forma, e compreender parte do motivo que o levava a agir como uma pessoa completamente diferente a cada dia que passava de repente fez um certo sentido. Em meus lampejos de saudade, tudo o que eu queria era fugir de tudo aquilo, para não precisar mais lidar com aquela dor. Ainda assim, eu não podia deixá-lo ir contra quem ele era. A realidade parecia hostil, mas ignorá-la só traria mais dor.
– Eu sei – assenti devagar, dando outro passo em sua direção – Assim como eu sei por que você tem insistido tanto em se comportar como um completo estranho ultimamente.
franziu a testa, demonstrando confusão, mas novamente, sua encenação não me convenceu.
– Eu não sei do que você está falando.
Ele sabia exatamente do que eu estava falando, apenas não queria me ouvir. Infelizmente para ele, pela segunda vez (e sem dúvidas, não pela última) naquela noite, eu não havia vindo para agradá-lo, mas sim, para incomodá-lo, desestabilizá-lo. Só então ele mostraria o que realmente importava.
– Ah, não? – indaguei, imitando sua expressão, porém adicionando um certo cinismo à minha – Estranho... Porque eu podia jurar que todo esse tempo que você tem passado com o seu pai trancado no escritório é parte essencial desse seu plano de ser alguém que nós dois sabemos que você não é.
Mesmo estando a uma distância razoável dele, pude vê-lo engolir em seco, e quando seus olhos se arregalaram levemente, percebi que estava vencendo a primeira batalha. Continuei atacando, disposta a derrubar cada uma das barreiras que eu sabia que ele colocaria entre nós, porém abandonando o sarcasmo. Eu não estava ali para piorar nossa situação, que já estava por um triz. Eu só queria ouvir a verdade, e que ele a ouvisse de si mesmo. Com tudo isso em mente, minhas próximas palavras saíram de minha boca num tom dolorido, quase suplicante.
– Assumir os negócios da família? Você sempre disse que nunca faria isso... Por que está fazendo agora?
Ainda com os olhos fixos em mim, ele piscou algumas vezes, digerindo minha pergunta, e com um certo pânico na voz, respondeu.
– Como você sabe disso?
Soltei o ar que havia prendido involuntariamente durante todo o tempo em que aguardei por uma resposta, e ainda que já soubesse que ela não seria de meu agrado, foi difícil ouvi-lo confirmar as suspeitas de todos.
– Então é verdade? – soprei, buscando algum vestígio de mentira em seus olhos, desejando que ele não tivesse acabado de destruir minhas esperanças – , como você tem coragem?
– Coragem de quê? De cuidar do que é da minha família? – ele rebateu, rapidamente recuperando-se do impacto que a extensão de meu conhecimento lhe causara – Desde quando isso é errado?
– Desde quando isso significa abrir mão da sua vida pra viver outra, uma que você nunca quis! – exclamei, avançando mais um passo em sua direção. Ele fechou os olhos, nitidamente nervoso.
– Antes eu era um moleque – ele rosnou, quebrando contato visual ao virar o rosto – Não sabia o que era certo, e mesmo que soubesse, preferia tomar o caminho oposto. Mas agora...
Sua frase permaneceu incompleta no ar por alguns segundos, até que eu insisti em sua continuação.
– Mas agora o quê? Agora você cresceu, e decidiu que não quer mais brincar?
Não pude conter a indignação que fluía por todo o meu corpo numa velocidade alucinante, mantendo meus músculos tensos e meus olhos vidrados em seu rosto, que, como se esbofeteado pela intensidade com a qual minhas palavras foram ditas, se voltou para mim. Sua expressão estava esvaziada de qualquer ofensa agora que ele entendia o que sua resposta significara para mim, e ostentava apenas remorso.
– Não foi o que eu quis dizer – ele falou, baixo, conforme um leve pânico se instaurava em seu olhar.
Não me importei com suas desculpas disfarçadas. Eu não havia ido até lá para machucá-lo, mas na primeira resposta próxima à sinceridade que havia conseguido arrancar dele, havia me machucado mais do que poderia imaginar.
Ele não podia ter dito aquilo... Cuspido aquelas palavras como se fossem veneno, como se nada do que tivesse acontecido antes daqueles malditos três meses tivesse valido a pena. Eu não podia permitir que ele dissesse aquilo sobre mim, sobre nós, sobre tudo. Segurando as lágrimas de raiva que começavam a arder em meus olhos, venci a distância ainda existente entre nós e disse tudo o que ele precisava e merecia ouvir.
– Você acha que está agindo como um homem de verdade, não é? Que só porque agora está fazendo o que os outros julgam certo, está se redimindo pelo que fez de errado antes... Pois você quer saber o que eu acho? Isto é, se a minha opinião ainda vale alguma coisa pra esse novo homem que está na minha frente agora, já que eu não passo de uma pirralha idiota, não é?
travou o maxilar ao me ouvir usar o apelido que ele tanto insistia em empregar ao se referir a mim, em tom carinhoso, de uma forma pejorativa, mas não ousou me interromper, o que apenas alimentou minha revolta.
– Eu acho que você não passa de um garotinho assustado, que não sabe lidar com responsabilidades e se esconde no primeiro canto que encontra. Porque é exatamente isso o que você está fazendo, é exatamente isso o que você sempre faz: erra, se afasta de tudo que possa te lembrar desse erro, e erra de novo. Qual foi o erro dessa vez? O fato de eu não te amar o suficiente para ignorar os seus erros, assim como você faz?
– Eu estou fazendo isso por você! – ele explodiu, segurando meus braços firmemente – Eu quero ser uma pessoa melhor por você! É a única coisa que importa pra mim... Será que você não vê?
Não me movi, incapaz de esboçar qualquer reação a não ser uma surpresa entorpecente, paralisante. Por mim? Minha mente repetia aquelas duas palavras como se estivesse rodando um disco riscado, no qual a mesma parte havia sido tocada tantas vezes que já não fazia mais sentido. Observei seu rosto se contorcer a poucos centímetros do meu, o calor da discussão nos distraindo de nossa luta contra o campo magnético que sempre nos levava de volta ao outro, fosse fisicamente, fosse emocionalmente, e esperei. Não havia mais nada que eu pudesse fazer a não ser esperar por uma explicação, e a ele, não restava outra opção a não ser abrir o jogo. Claramente contra sua vontade, ele respirou fundo, acalmando os ânimos, e começou a falar.
– Quando você foi embora dessa casa, sem sequer conseguir olhar pra mim... Foi como se eu estivesse morrendo por dentro. Nos primeiros dias, tudo que eu sentia era dor, uma dor tão horrível... Mas depois, a dor passou, e levou tudo com ela. Nada mais importava. Eu estava vazio, indiferente a tudo. E por mais que eu soubesse que era errado, eu me deixei dominar por essa sensação de dormência... Era mais fácil do que lidar com a agonia monstruosa que me sufocava toda vez que eu estava trancado em algum lugar da casa à noite, pensando em você feito um doido, querendo mais do que tudo poder ouvir a sua voz... E o celular tocava, como se você adivinhasse que eu precisava de você e não pudesse ir para a cama sem realizar meu desejo.
Senti uma lágrima rolar por meu rosto, inconsciente de que meus olhos estavam sequer lacrimejando. A cada palavra que ele dizia, eu me transportava ainda mais do momento presente para o passado, relembrando como tudo aquilo havia doído... Ouvi-lo dizer que a mesma aflição o havia atingido só reforçava minha percepção de minha própria dor, fazendo-me senti-la novamente, em dobro.
– E a cada dia que passa, tem sido mais difícil me manter nesse universo alternativo onde tudo é mais fácil... Meus momentos de paz são cada vez mais raros. Mas eu não posso mais voltar atrás. Eu não posso ignorar o que está aqui, bem diante dos meus olhos. Eu não sou mais o mesmo de três meses atrás, não sou mais o mesmo de três minutos atrás, nem nunca vou ser. Tudo o que eu sou agora é um punhado de perguntas sem resposta, de espaços em branco que precisam ser preenchidos. Quem sou eu de verdade? Se eu não pude nem admitir que criei uma vida, muito menos lidar com a responsabilidade de cuidar dela, por todos esses anos... Que tipo de pessoa eu sou? Que tipo de pessoa eu posso ser pra você?
Seus olhos, que durante todo o tempo se mantiveram baixos, fechados ou inquietos em qualquer outro lugar que não fosse meu rosto, enfim repousaram sobre os meus, sua pergunta ardendo sob o olhar dilacerado que eu sustentava enquanto ainda absorvia tudo o que havia ouvido. Por mim... Ele queria ser uma pessoa melhor por mim. Por mais que eu me sentisse aliviada ao saber que ele ainda me amava tanto quanto antes, eu não me sentia feliz por isso. Se me amar trazia tanto sofrimento, eu preferia que ele me esquecesse.
O problema, no entanto, era que, me amando ou não, a situação continuava difícil... Ben ainda precisava de um pai, ou pelo menos da ideia de um. E precisava de um motivo para ocupar essa posição... Um motivo que não fosse eu. Se ele estava decidido a mudar, que mudasse por si mesmo, não por mim, nem por Ben, nem por qualquer outra pessoa. Não seria justo com ele, nem comigo, nem com ninguém.
Mas como? Como eu poderia fazer com que ele buscasse a motivação necessária dentro de si, se nem eu mesma conseguia reunir coragem para dar a ele a liberdade que a situação exigia? Eu não queria liberá-lo. Eu não podia liberá-lo... Não achava que era forte o bastante para me desfazer da única coisa pela qual eu havia lutado até aquele momento.
Ainda assim, as palavras fluíram por meus lábios, ainda que o resto de meu corpo permanecesse inerte.
– Eu sinto muito... Eu nunca quis machucar você.
retribuiu meu olhar conflituoso com um misto de confusão e medo. No fundo, percebi que ele sabia o que estava por vir, mas preferiu tentar manter-se o mais alheio possível enquanto eu não desse voz à realidade e a permitisse encurralá-lo. No entanto, já não havia mais como fugir. Nós dois estávamos contra a parede, e teríamos que lidar com a situação da única maneira que nos permitiria escapar com a menor quantidade de efeitos colaterais possível: a certa. Sem mais caminhos fáceis, sem mais fantasias.
– Eu nunca quis que você sofresse por mim. E eu sinto muito por não perceber que, ao tentar manter você comigo, tudo o que eu fiz foi te causar mais sofrimento... Eu sinto muito por não perceber que eu preciso te deixar em paz.
Respirei fundo, sentindo minha angústia crescer a cada segundo dentro do peito e, sem mais espaço para se expandir, transbordar livremente por meus olhos. Então era essa a dor que ele havia enfrentado ao terminar tudo comigo naquela noite? Como ele havia conseguido se manter de pé? Minhas pernas pareciam sustentar o peso do mundo, prestes a ceder a qualquer minuto. As palavras, no entanto, continuavam saindo, irrefreáveis. E, por mais que doesse admitir, certas. Aquele era meu único conforto, mesmo que eu não pudesse senti-lo ainda.
– Eu pensei que pudesse lutar essa guerra com você... Que estando ao seu lado, você seria mais forte. Mas tudo o que eu fiz até agora foi te atrapalhar... Desviar seu foco do que realmente importa. Isso tudo... Não tem nada a ver comigo. Essa história começou muito antes de eu sequer sonhar em entrar na sua vida. Eu não tenho direito algum de interferir. E se eu tenho sido a sua razão para olhar para trás e enfrentar tudo, de que adianta todo o esforço por uma causa, se o motivo é completamente outro? De que adianta você assumir um filho por mim? Não vai ser a minha vida a principal afetada por isso. Não sou eu quem vai acordar todos os dias e encontrar uma criança esperando por afeto e cuidado... Eu vou continuar a mesma. Quem vai ter a vida totalmente revirada é você. E se você não decidir fazer isso por você mesmo, então eu prefiro que você não faça isso por ninguém.
Parei de falar por um momento para conter um soluço, que escapou apesar de meus esforços, e ergui uma mão trêmula, ao perceber que os olhos dele estavam cheios de lágrimas que ele lutava parar segurar, para enxugar uma que era pesada demais para obedecer. Apesar da tristeza, me sentir livre para tocá-lo de forma tão espontânea depois de tanto tempo trouxe um breve sorriso ao meu rosto.
– Se você acha que não consegue, então volte atrás e viva o resto de sua vida sem pensar duas vezes. Mas se existe um fio de coragem aí dentro pra respirar fundo e seguir em frente, agarre-se a ele. Agarre-se ao que você, e somente você, acredita ser certo... Me deixe ir embora.
Mordi a parte interna de meu lábio inferior ao pronunciar aquela última frase, disposta a enfrentar calada o desespero que elas me causaram. baixou os olhos por um instante, fazendo com que outra lágrima rolasse por seu rosto, e esboçou um sorriso amargurado. Suas palavras me pegaram completamente desprevenida.
– Eu te amo.
Seu olhar se ergueu até o meu, mais sincero e transparente do que nunca. Um arrepio percorreu minha espinha ao sentir a verdade de sua confissão em cada centímetro de minha pele. Todo o ar deixou meus pulmões, e minhas lágrimas triplicaram. Estava doendo muito.
– Não diz isso – pedi, fazendo o possível para não desmoronar em seus braços e deixar tudo aquilo para trás.
– Você mesma disse que eu devo me agarrar ao que acredito ser certo... – ele retrucou, intensificando seu aperto em meus braços quando eu fechei os olhos para evitar os dele – Você foi a coisa mais certa que já me aconteceu. Nada vai mudar isso.
Hesitei por mais algum tempo antes de voltar a encará-lo, sentindo meu rosto lavado pelas lágrimas e meu coração destruído. Analisei suas feições, tão próximas, tão familiares, disposta a gravar cada detalhe em minha memória para não permitir que qualquer minúcia se perdesse durante o tempo em que ficássemos separados. Forçando um sorriso torturado, enfim respondi com as únicas palavras que aguardavam para serem ditas em minha garganta.
– Eu também te amo.
retribuiu meu sorriso, ambos tentando ser fortes pelos dois, e ainda que tudo que eu desejasse fosse que aquele momento durasse para sempre, para que eu nunca tivesse que me afastar dele outra vez, não pude poder mais suportar aquela situação. Apoiando minhas mãos em seu tronco, levei meus lábios até seu rosto e beijei o canto de sua boca, levando muito mais tempo que o necessário para enfim recuar e deixar a sacada, sem me permitir olhar para trás.
Respirei fundo, colocando as mãos na cintura, e cerrei os olhos de forma ameaçadora, focada no objeto de minha fúria. Dei uma rápida olhada para , erguendo uma sobrancelha, e perguntei:
– Pronta?
Recebendo um aceno positivo, imitei seu gesto e voltei a fitar a mala gigantesca no chão do quarto. Numa péssima tentativa de imitar um lutador de kung fu, soltei um grito nasalado e me joguei sobre a bagagem que se recusava a fechar, esmagando-a para que pudesse fechar o zíper. Deslizei o antebraço sobre a testa quando nossa missão foi cumprida, fingindo enxugar um suor que não existia, e ambas rimos de minha infantilidade.
– Valeu – ela agradeceu, enquanto eu levantava para ajudá-la a colocar a mala em pé.
– Sem problemas... Mas pra que levar tanta coisa? Vocês só vão ficar lá por três dias!
Ela virou a cabeça lentamente em minha direção, me lançando um olhar cético.
– Sim, com os pais dele analisando cada movimento meu – ela respondeu, revirando os olhos – Ficar na casa dos sogros requer muitos cuidados, ainda mais quando eles não vão muito com a sua cara, e eu pretendo tomar todas as precauções possíveis.
– Fala sério, não pode ser tão ruim assim.
– Ah, pode – ela retrucou com um risinho tenso, lutando com o puxador da mala que parecia emperrado e se recusava a subir – Você não sabe a sorte que tem de ter uma sogra que te adora.
O clima instantaneamente ficou pesado quando ela se deu conta do que havia dito. Devolvi seu olhar surpreso com um igualmente perplexo, chocada com seu comentário inesperado.
– , me desculpa... Eu nem me toquei do que tava falando...
– Tudo bem – interrompi, engolindo em seco e tentando não parecer tão abalada – Não tem problema.
cobriu a boca com as mãos por um instante, envergonhada de sua momentânea falta de tato, e logo estendeu seus braços em minha direção, me prendendo num abraço apertado.
– Tem certeza de que vai ficar bem sem a gente? – ela murmurou, com a voz preocupada – Tô me sentindo péssima por viajar no mesmo fim de semana dessa convenção de trabalho da sua mãe... Se você quiser, eu fico. O Ewan vai entender, juro.
Neguei com a cabeça, agradecendo mentalmente o fato de que ela não podia ver o esforço que eu estava fazendo para não me deixar entristecer, agora nítido em meu rosto.
– Eu vou ficar bem – respondi baixo, só então conseguindo devolver o abraço – Talvez esse tempo sozinha até me ajude a me acostumar com tudo isso... Sabe, não ter que repetir 20 vezes pra minha mãe que estou bem, e que não estou com fome, e que ela não precisa comprar sorvete pra mim quase todo dia...
riu um pouquinho, me libertando de seu aperto e analisando minha expressão, agora já mais contida.
– Ela só faz isso porque se preocupa – ela disse, apertando minha bochecha como se eu fosse um bebê – Faz só duas semanas que vocês... Conversaram, e você não é muito de dividir o que tá sentindo... Pelo contrário, você se fecha, e a gente fica sem saber direito como agir. Então resolvemos te paparicar.
Retribuí o sorriso, balançando negativamente a cabeça e deixando a tristeza de lado. Eu teria tempo suficiente para chorar minhas mágoas enquanto todos estivessem viajando, não precisava fazer isso na frente de e estragar seu feriado com meu drama.
– Fique tranquila, vai ficar tudo bem por aqui – falei com toda a convicção que pude, rapidamente levando a conversa para um tópico menos delicado – Você, em compensação, vai precisar de toda a ajuda que puder, e tenho certeza de que aquelas pantufas das Meninas Super Poderosas que você esqueceu de colocar na mala serão uma bela arma contra os pais do Ewan. Vai que o pai dele é o Macaco Louco...
– Ha, ha, tô morrendo de rir – ela rosnou com um sorrisinho falso, indo até o lado da cama e pegando as pantufas estampadas com a cara briguenta da Docinho – Agora seja útil e me ajude a enfiá-las aqui dentro, vai.
Fiz uma careta em resposta, e assim que fiz menção de abrir o zíper, a campainha tocou.
– Eu atendo! – exclamei de imediato, correndo para a porta e me esquivando da tarefa árdua de lidar com a bagagem superlotada.
– Você me paga, garota! – ouvi reclamar, rindo de minha idiotice. Abri a porta sem nem checar o olho mágico, determinada a não desperdiçar um segundo sequer agora que a pizza que havíamos pedido havia chegado. Meu estômago comemorou a presença do entregador com alguns roncos medonhos, mas despencou de seu lugar habitual assim que meus olhos se deram conta de quem realmente aguardava sobre o tapete de boas-vindas de .
– ?
Segurei a maçaneta com mais força, sentindo um certo desequilíbrio devido à adrenalina subitamente lançada em meu sangue. Encarei os olhos inocentes de , sabendo que por trás do disfarce, algo terrível aguardava o momento certo para se revelar. Um sorrisinho satisfeito fez o canto de sua boca subir quase que imperceptivelmente, o que apenas contribuiu para que minhas entranhas se revirassem. Inclinando a cabeça um pouco para o lado, parecendo divertir-se com a repentina palidez que sua aparição causara, ele enfim falou.
– Olá, .
Minha respiração se tornou irregular à medida que meu cérebro percebia que aquela situação estava realmente acontecendo. O choque se esvaiu rapidamente, levando consigo boa parte de minha firmeza, e após algumas tentativas frustradas, consegui responder.
– O que você está fazendo aqui?
ergueu levemente as sobrancelhas diante de meu esforço para balbuciar aquelas palavras, esforçando-se para não gargalhar. Quando voltou a falar, seu tom não me agradou nem um pouco, cheio de segundas intenções.
– Vim falar com você, oras. O que mais eu estaria fazendo?
Respirei fundo, tentando recuperar minha autoridade, e de certa forma, consegui. Retribuí o sorrisinho medíocre com um cínico, ainda que com apenas metade da intensidade que gostaria de demonstrar.
– Eu não tenho nada pra te falar.
Sem hesitar, empurrei a porta, com toda a intenção de fechá-la sem a menor cerimônia, mas sua mão me impediu, forçando-a na direção contrária e vencendo sem muito sacrifício.
– Mas eu tenho – ele retrucou, agora me olhando de forma levemente ameaçadora – E acredite, você vai gostar de me ouvir.
– Nada do que você diga me interessa – rosnei, o pânico voltando a se instalar dentro de mim – Vá embora.
– O que é isso? – ouvi perguntar, emergindo do corredor, e após um instante de silêncio, ela se aproximou – O que ele está fazendo aqui?
soltou um risinho de escárnio, sem desviar os olhos dos meus em momento algum. Um calafrio percorreu minha espinha ao imaginar o que ele tinha em mente.
– Boa pergunta – respondi apenas, forçando minha voz a soar confiante, embora eu estivesse assustada e mal pudesse esconder isso.
– Eu não sei como você nos encontrou, mas seja lá o caminho que o trouxe até aqui, por favor, pegue-o novamente e vá embora – disse, colocando-se entre nós e encarando-o firmemente por alguns segundos antes de recuar e fechar a porta sem mais delongas. Sua postura não o impediu de dizer uma última frase, ainda que contra a madeira que nos separava.
– Você vai se arrepender de não ter me escutado.
– Mas é claro que você não tem que escutar nada do que esse crápula tem pra te dizer!
Suspirei pesadamente ao ouvir o sermão enérgico de , afundando meu rosto nas palmas de minhas mãos. O choque de reencontrar após tudo o que havia acontecido entre nós havia me abalado consideravelmente; assim que nos vimos livres de sua presença, me arrastei até o sofá e não ousei me levantar, com os joelhos mais trêmulos que o recomendável para ficar de pé. , em compensação, andava de um lado para o outro, gesticulando enquanto esbravejava ofensas ao visitante indesejado e especulava como ele havia descoberto seu endereço.
– Ele me seguiu até aqui – falei, dando de ombros e silenciando-a imediatamente com meu tom conclusivo – É a única possibilidade.
ponderou minha teoria por um breve instante e assentiu, sentando-se ao meu lado.
– Mais um motivo para você não dar ouvidos a ele – ela murmurou, colocando uma mão em meu ombro – Fala sério, o cara te seguiu da sua casa até aqui. Sabe-se lá há quanto tempo ele vem te observando! Sabe-se lá o que ele pretende!
– Você está ajudando bastante, obrigada – resmunguei, massageando minhas têmporas. Dessa vez, foi quem suspirou.
– Me desculpe, eu só... Não confio nem um pouco nele.
– E você acha que eu confio?
– Não, mas eu te conheço, e sei que você está doida pra saber o que ele tanto insiste em te contar!
Arrisquei um olhar inocente, quase ultrajado, e ao perceber que não colou, encolhi os ombros, derrotada.
– Tá, eu admito que fiquei curiosa, mas...
– , você é inacreditável! – me interrompeu, levantando-se e voltando a perambular pela sala com a expressão lívida – Quantos tapas ele vai ter que te dar até você entender que nada a respeito de presta?
Devolvi seu olhar irritado com um verdadeiramente ofendido, e ela entendeu que havia ido longe demais de imediato.
– Me desculpe, de novo. Eu só não consigo te entender. Por que o perigo te atrai tanto? Por que você sempre faz questão de estar no olho do furacão?
Franzi a testa, incrédula. Meus ouvidos não podiam acreditar no que ouviam.
– Sabe o que eu não consigo entender? – retruquei, tentando me manter calma – Como você pode pensar uma coisa dessas a meu respeito, sendo que você é uma das pessoas que mais sabe o quanto eu só quero que me deixem em paz.
Deixei que minhas palavras fizessem efeito, observando sua expressão mudar gradativamente até chegar a um aspecto de remorso, e então continuei:
– Você acompanhou tudo de perto... E justamente por isso, sabe que tenho motivos de sobra para querer saber o que planeja. Eu preciso pelo menos tentar impedi-lo.
Alguns segundos de silêncio se passaram, até que ela respirou fundo e fechou os olhos.
– Desculpa. Você está absolutamente certa.
voltou a se sentar ao meu lado no sofá, e segurou uma de minhas mãos com firmeza.
– Só me prometa uma coisa.
– Não sou muito boa com promessas.
– Prometa que não vai procurá-lo, pelo menos não neste fim de semana – ela prosseguiu, como se nem tivesse me ouvido – Seria muita idiotice da sua parte marcar um encontro com esse cara enquanto estiver sozinha na cidade.
Refleti brevemente sobre sua sugestão, e por mais que minha consciência concordasse em gênero, número e grau com sua lógica, meu instinto me dizia que aquela promessa era algo que eu não seria capaz de cumprir.
– ... – advertiu, novamente percebendo que havia algo de errado em meu silêncio.
– Eu prometo que não vou procurá-lo, pelo menos não neste fim de semana – repeti, lançando-lhe um olhar sério – Satisfeita?
cerrou os olhos, inspecionando minha expressão, até revirá-los e se levantar de novo.
– Só quando eu voltar de viagem e descobrir que você cumpriu sua promessa – ela respondeu, e subitamente ficou imóvel – Quer saber? Eu não vou. Tenho certeza de que Ewan vai concordar em cancelar.
– , pelo amor de Deus, não seja ridícula – pedi, ficando de pé e me aproximando dela com determinação – Eu não vou fazer nada de errado, está bem? Confie em mim, pelo menos um pouquinho.
A campainha tocou logo depois que terminei de falar, e, assentindo resignadamente, ela se afastou para abrir a porta. Ewan a esperava do outro lado, pronto para carregar sua bagagem até o porta-malas de seu carro e dirigir até a casa dos pais. Nos despedimos rapidamente ( despejou outras centenas de recomendações sobre minha cabeça, às quais eu respondi com um abraço silencioso), e observei o carro de Ewan se afastar antes de entrar. Ao me encontrar finalmente sozinha, soltei um longo suspiro, aliviada.
Apesar de minha solidão, algo me dizia que aquele fim de semana estava longe de ser tranquilo.
Dois minutos mais tarde, a campainha voltou a tocar. Meus olhos se arregalaram ao imaginar quem eu encontraria ao abrir a porta, e minha mente já previu horrores.
– Boa tarde – o entregador de pizza sorriu, completamente alheio à minha ansiedade, e somente ao pegar a caixa que ele me estendia, me lembrei de que estava faminta. Sorri de volta, paguei o pedido e tranquei a porta, rindo de minha própria estupidez. não chegaria ao ponto de ficar vigiando a casa de até que ela saísse para me abordar sozinha.
Mal havia me acomodado no sofá, e meu celular tocou. Bastou uma rápida olhada no visor do aparelho para que minhas conclusões a respeito da sanidade mental de descessem pelo ralo.
– Uau – falei ao atender a ligação, tentando manter meu tom de voz calmo embora o nervosismo tivesse voltado com força total, a ponto de fazer meu apetite desaparecer – Essa foi rápida.
– Obrigado – ele respondeu, nem um pouco modesto.
– Então é assim que você conquista suas amantes agora? – prossegui, irritada com sua prepotência, e, ao mesmo tempo, aterrorizada por ela – Você fica de tocaia perto das casas delas, espera até que elas saiam para visitar uma amiga e puf! Aparece magicamente para estragar a diversão. Devo confessar, você já teve dias melhores.
soltou um risinho divertido.
– E você perde cada vez mais a noção do perigo, pelo que estou percebendo. Não tem medo de que suas respostas atravessadas façam minha paciência se esgotar?
– Se isso acontecer, o que você vai fazer? – rebati, sem permitir que ele me derrotasse, ou pelo menos disfarçando meu medo ao máximo. Talvez, se eu mantivesse minhas defesas firmes, ele se intimidasse e deixasse alguma pista sobre o que estava tramando escapar.
– Espero que não tenhamos que chegar a esse ponto, sinceramente – ele disse, parecendo despreocupado com minhas ofensivas – Não acho justo que tenhamos que incomodar logo agora que ele enfim encontrou o pai que existe dentro dele, e creio que você concorda comigo.
Minha garganta se fechou à menção de . Como ele sabia de tudo aquilo? Será que ele já o havia perturbado antes de recorrer a mim? Tentei manter a calma.
– O que você quer? – rosnei, sem paciência para seus joguinhos.
– Não precisa ficar nervosa, ... Só estamos conversando – riu, fazendo meu estômago se revirar de raiva – E conversar é exatamente o que eu quero fazer.
– Já estamos conversando – falei, logo em seguida – Diga logo o que tiver que dizer e suma da minha vida de uma vez.
– Receio que as coisas não aconteçam tão rapidamente quanto nós dois desejamos – ele suspirou, adotando um tom sério – Essa será apenas a primeira de algumas conversas que precisaremos ter.
– Então comece a falar logo!
– Não por telefone. Prefiro que seja pessoalmente.
– E eu prefiro nunca mais ter que olhar na sua cara, mas infelizmente, nem tudo acontece como nós queremos – neguei, irritada com todo aquele mistério – Sem chance, eu não vou me encontrar com você.
– Pode escolher a hora e o lugar – insistiu – Eu não pretendo machucar você. Na verdade, o que eu quero não tem nada a ver com você.
– Ótimo! Então adeus!
Ele levou alguns segundos para responder, claramente desaprovando minha resistência.
– Por favor, apenas ouça o que eu tenho a dizer. Prometo nem sequer tocar em você.
Fechei os olhos, determinada a cumprir a promessa que havia feito a ainda há pouco, mas a urgência inesperada nas palavras de , incompatível com sua postura hostil, apenas alimentou minha curiosidade. Se ele precisava tanto de minha atenção, só podia se tratar de um assunto grave, que talvez não pudesse esperar um fim de semana.
Amaldiçoando-me mentalmente e desde então pedindo desculpas à , tomei minha decisão.
– Está bem.
Observei distraidamente o cardápio sobre a mesa, tentando conter minha ansiedade. Eu havia chegado ao café no qual marquei nosso encontro há alguns minutos, e a consciência de que, a qualquer momento, surgiria em meio aos demais clientes e se sentaria à minha frente fez meu estômago revirar. Ao mesmo tempo em que eu queria terminar logo com tudo aquilo e me ver livre dele para sempre, eu rezava para que ele não chegasse nunca e se esquecesse de mim de uma vez por todas.
Infelizmente, a segunda opção se tornou impossível, pois assim que ergui meus olhos do menu para inspecionar meus arredores, me deparei com uma figura familiar se aproximando. Respirei fundo ao observá-lo se sentar diante de mim, e por mais que quisesse fugir o mais depressa possível, não evitei seu olhar.
– Obrigado por concordar em me ver.
Hesitei por um instante antes de responder. Ficar perto dele era mais difícil do que havia imaginado; tudo o que antes era carinho parecia ter se transformado em medo, implorando-me para me afastar dele sem pensar duas vezes.
– Eu não concordei. Não tive outra opção.
– Sim, você teve – rebateu, sem pestanejar – Você poderia ter chamado a polícia. Você poderia ter implorado para que ficasse. Você poderia ter ignorado minha ligação. Mas ao invés disso, você está aqui. Então não se finja de desinteressada e ouça o que eu tenho a dizer.
Engoli em seco. Meu coração batia aceleradamente, bombeando adrenalina para todos os cantos de meu corpo e me fazendo questionar se marcar aquele encontro havia sido uma boa ideia.
Definitivamente, não. Mas já estava feito.
– Estou ouvindo, não estou? – falei, erguendo as sobrancelhas por um momento. Eu já estava encrencada mesmo, por que agir como uma criancinha amedrontada? Se ele estava pensando que conseguiria me derrotar, estava muito enganado.
– O que eu tenho pra dizer é um tanto... Chocante – ele avisou, após uma breve pausa – Vai ser um pouco difícil de acreditar a princípio, mas você é uma garota esperta, tenho certeza de que não vai demorar a entender.
– Apenas diga logo – pedi, começando a ficar impaciente com todo aquele mistério. assentiu, suspirando profundamente e debruçando-se sobre a mesa.
– Há alguns meses, fui alertado por meu médico a respeito de algumas alterações preocupantes em meus exames.
Meus olhos deixaram de evitar os dele, alarmados com o teor e tom de suas palavras. Minha hostilidade se dissipou quase que completamente, e minha mente imaginou as piores situações num milésimo de segundo. Notando meu assombro, explicou melhor a que se referia.
– Acalme-se, eu não vou morrer. Não por enquanto. Sinto muito.
Cerrei os olhos levemente, desaprovando sua piada de mau gosto. Ainda que eu não sentisse a menor simpatia por ele, não o desejava nada de mal, apenas o queria bem longe de mim. Ele soltou um risinho sem humor algum e continuou.
– A questão é: por razões que ainda não foram esclarecidas, eu... Não posso mais ter filhos.
Seus olhos se desviaram dos meus, observando a rua pela vitrine ao lado de nossa mesa, e a mudança em seu comportamento foi tão brutal quanto repentina. travou o maxilar, como se estivesse lutando para se manter calmo. Fui incapaz de sequer respirar por alguns segundos, absolutamente desnorteada diante de sua revelação. Ele parecia ter sido sempre um homem saudável... Aquilo não fazia sentido. Ou talvez eu apenas não quisesse que um destino tão triste tivesse despencado sobre sua cabeça. Levei algum tempo para processar a informação, e quando enfim pude dizer algo, minha voz saiu baixa.
– Eu sinto muito.
assentiu, respirando fundo antes de prosseguir, ainda sem me encarar.
– Jenny me deixou quando soube... Ser mãe sempre fora seu grande sonho, e agora que eu não posso mais... Fazer isso por ela, acabamos nos afastando, até que ela enfim terminou tudo entre nós.
Baixei meus olhos para meu colo, incapaz de continuar observando suas feições cada vez mais tristes. Meu cérebro ainda lutava para absorver as infelizes notícias que ele compartilhava, completamente confuso diante de sua mudança radical de postura, enquanto meu coração transformava boa parte do medo que eu sentia por ele em compaixão. Por mais que tivéssemos nos machucado muito, ele foi parte significativa de minha vida, e eu não podia deixar de me sentir horrível diante de seu sofrimento. A tristeza era nítida em seu rosto, agora que a fachada arrogante e ameaçadora havia cedido, e eu mal conseguia imaginar o pesadelo em que sua vida se transformara durante os últimos meses.
– ... Você tem certeza disso? – murmurei, voltando a fitá-lo – Já procurou outro médico?
– Três, para ser mais exato – ele respondeu, sustentando meu olhar com resignação – Sim, eu tenho certeza.
– Não existe nenhum tratamento?
– Para quê? Ninguém sabe me dizer o que eu tenho. E enquanto não descobrirem, não há como combater isso... O que quer que isso seja.
Um breve silêncio caiu sobre nós. Observei a rua por um momento, tentando organizar meus pensamentos, e em meio ao choque, consegui recuperar parte de meu foco.
– Eu não estou entendendo... Como eu posso te ajudar nisso tudo?
fixou os olhos em mim, e uma determinação aos poucos preencheu suas íris, como se nem tudo estivesse perdido. Metade de mim ficou aliviada por ainda haver uma luz no fim do túnel para ele, enquanto a outra metade entrou em modo de alerta, nem um pouco confortável com toda aquela instabilidade.
– Só você pode me ajudar, – ele disse, sério – Mas para que você entenda isso, eu vou ter que contar algo que aconteceu alguns anos atrás... E eu preciso que você escute até o fim.
Meu olhar compadecido voltou a mostrar desconfiança, e ele rapidamente reforçou seu pedido:
– Eu já menti para você uma vez, e foi essa mentira que nos separou. Não pretendo repetir a experiência. Por favor, me dê uma chance.
Ponderei seu pedido, com milhões de pensamentos colidindo em minha mente, e enfim assenti, disposta a pelo menos ouvi-lo. respirou fundo outra vez, e começou a falar.
– e eu nos conhecemos desde a faculdade, como você já sabe. Costumávamos ser melhores amigos naquela época... Difícil de acreditar, eu sei. Mas é verdade. Inclusive, quando conseguimos nossos primeiros empregos, ainda em lugares diferentes, bem antes de irmos para o colégio no qual você estudava, ele me chamou para passar alguns dias na casa de seus pais, enquanto seu apartamento em Londres ainda estava sendo providenciado, para comemorarmos.
Escutei com atenção, ainda sem entender como tudo aquilo me envolvia de alguma maneira, mas não o interrompi. Ouvi-lo falar sobre fazia meu coração doer de formas que eu ainda desconhecia, o que eu achava ser impossível; parte disso se devia ao fato de que eu me sentia a principal culpada pelo fim da amizade dos dois.
– Eu já havia ido até lá algumas vezes, conhecia sua família, então aceitei sem cerimônias. Esperamos até todos irem dormir e assaltamos o estoque de cerveja que o pai de havia comprado para o churrasco do dia seguinte. Resumindo: acabamos com tudo. Enchemos a cara. Foi um porre histórico.
riu baixo ao recordar os fatos que relatava, porém seu rosto voltou a ficar sério em seguida.
– Até que Emily apareceu.
Franzi a testa. O que Emily teria a ver com...
Minha garganta fechou ao juntar as peças do quebra-cabeça. Não podia ser... Ou podia?
Me esforcei para continuar acompanhando o relato de .
– havia caído no sono há alguns minutos. Quer dizer, ele havia parado de responder ao que eu dizia, então presumi que tivesse adormecido. Estávamos um pouco distantes da casa, sentados na grama, para evitar que alguém nos encontrasse por acidente, mas ela nos achou. Ela se aproximou de nós em silêncio, e parou diante de mim. Apesar de estar bastante alterado, ainda era capaz de entender que sua presença ali não fazia o menor sentido, mas ela ignorou minhas perguntas... Não sei por que me surpreendi quando ela simplesmente se atirou em mim. Eu já devia saber.
Ele fez uma breve pausa, balançando negativamente a cabeça, como se aquilo soasse tão absurdo para ele quanto para mim.
– Desde a primeira vez em que estive na casa dos , eu percebi que ela me olhava de um jeito diferente... Mas nunca pensei que chegaria a tanto. Ela era mais nova que eu, e prima do , ou seja, território proibido. Além do mais, ela não havia despertado meu interesse, ainda que não houvesse impedimentos entre nós. Mas isso não a impediu de tentar. Assim como o irmão dela sempre foi obcecado por , ela sempre foi obcecada por mim, a partir do momento em que pus os pés naquela casa.
A cada palavra, tudo parecia fazer mais sentido em minha cabeça. Ainda assim, era muito difícil de acreditar que aquilo estava realmente acontecendo. As engrenagens em minha mente giravam a todo vapor, e eu mal conseguia disfarçar minha curiosidade para saber mais. continuou, parecendo envolvido demais em suas memórias para sequer notar minha reação.
– Enfim... Emily me atacou, sem dizer uma palavra sequer. De início, eu tentei impedi-la, tentei empurrá-la para longe, mas ela continuava insistindo, e a quantidade exorbitante de álcool em minhas veias não estava ajudando nem um pouco. Após algum tempo, eu não pude mais lutar... Como dizem por aí, e infelizmente, com razão, comecei a pensar com a outra cabeça, e... Bem, a próxima lembrança que tenho é a de acordar pouco depois do amanhecer em seu quarto, sem roupas, com Emily dormindo tranquilamente em meus braços, igualmente nua.
Meus olhos se arregalaram ao ouvir a confirmação de minhas suspeitas. Então ele havia dormido com Emily... Isso só podia significar que...
– Nem preciso dizer que pirei quando percebi o que havia feito – prosseguiu, lançando-me um olhar cauteloso – Saí correndo de lá e me enfiei no quarto de hóspede onde deveria ter dormido, não sem antes fazê-la prometer que não contaria a ninguém. Mal consegui pregar os olhos pelo resto da manhã, imaginando como reagiria quando descobrisse, se descobrisse. Para minha sorte, quando o encontrei no café da manhã, ele simplesmente comentou que nem se lembrava de como havia ido parar em sua cama na noite anterior. O resto da família parecia sequer desconfiar do que havia acontecido, o que me deixou muito mais tranquilo. Mas, como você já deve imaginar, meu sossego não durou muito.
– Ela te procurou alguns meses depois – completei, mal conseguindo conter a agitação dentro de mim.
assentiu, olhando fundo em meus olhos, e por mais que uma voz ainda me alertasse sobre a possibilidade de tudo aquilo ser pura invenção, por mais mirabolante que sua história parecesse ser, a cada segundo eu me sentia mais próxima da verdade.
– Ela estava grávida... E o filho só podia ser meu.
Ele me encarou por um instante, analisando minha reação, e quando consegui me recuperar do choque de ouvir sua confissão, gaguejei:
– E então, o que aconteceu?
– Marcamos um encontro, ela me implorou por ajuda... O que mais uma garota de 19 anos faria numa situação como essa?
Engoli em seco, sem conseguir evitar me colocar no lugar de Emily devido à idade que tinha na época. A simples ideia de engravidar de um homem que mal conhecia provocou calafrios.
– Eu entrei em pânico – continuou, desviando o olhar, como se estivesse envergonhado – Disse que não poderia fazer nada por ela, que não tinha a menor intenção de me casar, nem nada do tipo... Cheguei até a pedir para que ela desistisse da gravidez.
Pisquei algumas vezes, tentando evitar que lágrimas que eu não sabia explicar se acumulassem em meus olhos.
– Você pediu para que ela abortasse? – perguntei, imaginando o desespero de Emily ao ouvir tal coisa da pessoa que deveria tê-la ajudado num momento tão crítico. Ele nem sequer se importou com o que ela queria, com o que ela sentia... Apenas consigo mesmo, com seus próprios interesses.
Não pude deixar de pensar sobre o que teria feito se eu estivesse na situação em que Emily estava. A mera hipótese fez minha mente girar.
– Eu não me orgulho nem um pouco disso... Mesmo naquela época, eu já tinha consciência de quão errada era minha atitude – ele respondeu, cabisbaixo – Mas era a única saída que eu enxergava. Nenhum de nós dois estava preparado para tamanha responsabilidade, nós dois seríamos infelizes se aquela criança nascesse. Mas Emily se recusou a interromper a gravidez... Ela insistiu em criar o bebê sozinha, e ameaçou revelar a todos que eu era o pai, o que traria consequências indesejadas para mim. Sua família exigiria que eu ajudasse de alguma forma, ainda que apenas através de um nome no registro de nascimento... Eu tinha uma vida inteira pela frente, não podia deixá-la arruinar todos os meus planos.
respirou fundo, sem conseguir me encarar, e eu apenas esperei que ele continuasse, completamente paralisada.
– Então eu a ameacei. Disse que se ela me envolvesse de alguma forma naquilo tudo, eu... Eu a processaria pelo que aconteceu naquela noite, e daria um jeito de tirar a criança dela. Pediria custódia na justiça, qualquer coisa, tudo o que me fosse possível para puni-la. Eu a ameacei de várias formas, de todas as que pude pensar. De alguma forma, funcionou, porque ela simplesmente foi embora sem dizer uma palavra e nunca mais me procurou. Talvez ela tenha sentido tanta raiva e tanto nojo de mim que preferiu me ver longe daquela criança. Somente ouvi a seu respeito novamente alguns meses depois, quando todos descobriram sobre a gravidez... E ela teve a brilhante ideia de incriminar o próprio primo.
Fechei os olhos, concentrando-me em respirar normalmente. Era demais para mim... Eu me recusava a acreditar que havia tanto descaso, tanto egoísmo por trás da existência de um simples garotinho, que não tinha a menor culpa de nada daquilo, e que todo aquele peso havia sido jogado sobre os ombros de um homem igualmente inocente...
– ... – sussurrei, sem conseguir evitar que seu nome escapasse por entre meus lábios. Ele não fazia ideia... Ele era apenas uma vítima, assim como Ben.
– Eu juro que não fazia ideia de que ela o culparia – disse, mantendo seu tom grave – Mas infelizmente, ele era a saída perfeita. Quando ele me procurou, mais nervoso do que eu já o havia visto, perguntando o que havia acontecido naquela noite, eu fiquei tão chocado quanto ele ao descobrir que Emily havia transferido minha culpa para ele. No entanto, eu não tinha outra opção a não ser acatar ao seu plano. Era a minha vida, ou a dele.
Meus olhos horrorizados encontraram os dele, pesarosos, e dessa vez eu não consegui lutar contra as lágrimas que embaçavam minha visão. Minha respiração se tornou irregular, minhas mãos tremiam, meu coração batia num ritmo frenético. Eu precisava sair dali. não se intimidou pela indignação em meu rosto.
– Então, quando me chamaram para esclarecer o que realmente havia acontecido, eu não hesitei em dizer que sim, havia dormido com Emily... E ninguém hesitou em acreditar em meu testemunho, ou no dela. Ninguém sequer desconfiou de que pudéssemos estar mentindo.
Balancei a cabeça, me recusando a acreditar que aquela história era verdade. Uma sensação de revolta, de repulsa, de ódio começava a crescer dentro de mim. Senti vontade de gritar, de pular em cima dele, de estapeá-lo, socá-lo, chutá-lo, matá-lo. Como ele havia sido capaz?
– Mas agora eu estou disposto a corrigir meu erro... Quero assumir a paternidade de Ben. E você é a única pessoa que pode me ajudar. jamais me escutaria, mas ele escuta você. Apesar de não estarem mais juntos, eu sei que ele ainda acreditaria em você. Ele te ama... De verdade.
– Chega – falei, sem conseguir assimilar mais uma palavra – Eu preciso ir embora daqui.
Trêmula, me levantei e caminhei em passos rápidos até a saída, quase esbarrando num homem que passava na calçada. Eu estava tão chocada, tão ofendida por toda aquela sujeira que mal conseguia enxergar o que acontecia ao meu redor, o que apenas intensificou meu susto ao sentir os dedos de envolverem meu pulso e me puxarem em sua direção.
– Por favor, diga que vai me ajudar – ele murmurou, numa última tentativa de me convencer.
– Me larga – exclamei, desvencilhando-me dele o mais rápido que pude e dando-lhe as costas. Porém, ele foi mais rápido e repetiu seu gesto.
– Se você não me ajudar por bem... – ele rosnou, voltando a usar seu tom hostil – Vai me ajudar por mal. E acredite, você não quer que eu te force a cooperar comigo.
Encarei seus olhos ameaçadores por um instante, até que ele me soltou e, com um risinho, se afastou, não sem antes dar um último aviso:
– A gente se vê.
O resto da tarde passou como um borrão. Me recordo apenas de chegar em casa com mil pensamentos colidindo em minha mente, subir as escadas depressa e me atirar na cama, para somente me levantar de novo dali a algumas horas. Em meio a todo o choque e a todas as perguntas ainda não respondidas, das quais somente uma possuía resposta possível, fui capaz de reunir forças para ficar de pé e rastejar até o banheiro. Um longo banho ajudaria a clarear minha mente, a relaxar, e principalmente, a me fazer sentir limpa após toda a sujeira que havia despejado sobre mim ao revelar suas mentiras do passado.
Tudo ainda era demais para assimilar.
Se ele realmente estava dizendo a verdade, se ele realmente é pai de Ben, então... Eu havia sido culpada pelo que estava enfrentando ao decidir lidar com a suposta paternidade e teria que enfrentar ao descobrir que tudo aquilo era uma farsa, tramada pela própria prima e atestada como verdade pelo melhor amigo.
Por mais que eu soubesse que também havia sido enganada, assim como todo o resto da família, e não tinha como sequer imaginar que tamanho absurdo poderia ter acontecido, por mais que soubesse que em momento algum agi de má fé, que apenas segui o que acreditava ser certo... A culpa ainda pesava sobre meus ombros.
E se estivesse falando sério? E se fosse mesmo verdade? Como contar a ?
Ele perderia o controle, eu sabia que sim. Se eu ainda o conhecia tão bem quanto imaginava, seria difícil conseguir contê-lo, impossível impedi-lo de atacar os responsáveis por tamanha traição e pelos anos de culpa reprimida. Ele ficaria arrasado.
Talvez me odiasse por tê-lo feito repensar suas decisões...
Outro fator preocupante era que, sem dúvida, ele havia se apegado a Ben, pelo menos um pouco, e o menino, a ele, também. Ainda que meu coração doesse por , minha maior preocupação era o estado em que aquela criança ficaria diante de tamanha confusão. E a culpa era toda de Emily e .
E, em parte, minha.
Já havia anoitecido quando enfim saí do chuveiro, ainda pior do que quando havia entrado. Ao menos, uma certeza agora eu tinha: eu precisava saber a verdade, e tomar a decisão certa dessa vez, qualquer que fosse o preço a pagar por isso.
Estava enrolada na toalha, procurando por um pijama em meu guarda-roupa, sem energia nem para acender as luzes, apesar da relativa escuridão, quando a campainha tocou. Meu coração quase parou ao imaginar quem poderia ser àquela hora, e imediatamente pensei em . O medo que agora acompanhava sua presença se instaurou em meu peito com força total, ainda que eu tivesse plena noção de que precisava dele para comprovar a veracidade de sua história; me esgueirei até a janela, tentando ver quem estava parado à porta sem ser vista, e meus joelhos quase cederam ao identificar o visitante inesperado.
Sem qualquer outro sentimento a não ser o alívio e a surpresa imensos que corriam em minhas veias, desci correndo os degraus, e com a mesma pressa, abri a porta, deparando-me com o principal assunto de minhas preocupações parado sobre meu tapete de boas-vindas.
Nossos olhares se encontraram de imediato, e permaneceram conectados até o instante em que ambos nos demos conta de que um de nós estava parcialmente nu. Engoli em seco, morrendo de vergonha por ter me esquecido completamente daquele detalhe assim que o reconheci da janela do quarto. , por sua vez, apenas deixou seus olhos viajarem por minhas pernas expostas, e rapidamente pigarreou, voltando seu foco para meu rosto, agora furiosamente vermelho.
– Oi – ele murmurou, claramente distraído com a recepção indecente.
– Oi – ofeguei de volta quando consegui encontrar minha voz. Alguns segundos de silêncio caíram sobre nós, durante os quais nos encaramos intensamente, com incontáveis emoções ardendo em nossos olhos, até que consegui retomar o controle e agir.
– Entra.
hesitou um pouco antes de obedecer, com o maxilar travado, feito um morto de fome diante de um banquete do qual não lhe era permitido desfrutar.
– Eu vou... – comecei, apontando para o andar de cima, e antes que eu pudesse me envergonhar ainda mais, ele assentiu com veemência, indicando que havia entendido perfeitamente, e que concordava em gênero, número e grau com minha decisão de me vestir.
Corri de volta para meu guarda-roupa, colocando as primeiras peças comportadas que encontrei e penteando meus cabelos ainda úmidos depressa. Eu estava longe de estar apresentável, mas não havia tempo a perder; ele me esperava na sala, provavelmente tentando não se lembrar das partes de meu corpo que não esperava ver, e eu não pretendia desperdiçar um segundo de sua presença.
Voltei ao andar de baixo, ainda me xingando mentalmente, e o encontrei sentado no sofá, olhando fixamente para a parede oposta e parecendo um tanto transtornado. Não pude deixar de sentir pena, e ao mesmo tempo, uma vontade incrível de rir.
– Sinto muito... Por... Você sabe – falei, anunciando meu retorno, e ele me lançou um breve olhar contido antes de negar com a cabeça.
– Tudo bem.
Não, não estava tudo bem. Estaria tudo ótimo se eu ainda estivesse seminua, e você também. Estaria tudo maravilhoso se eu não tivesse estragado tudo ao impeli-lo a se redimir por sua negligência e assumir a paternidade de uma criança que poderia não ser sua.
Resumindo: definitivamente, não estava tudo bem.
– O que você está fazendo aqui? – indaguei, tentando esquecer de uma vez por todas o infeliz incidente de alguns minutos atrás – Aconteceu alguma coisa?
adotou a mesma postura, e a seriedade em seu rosto me preocupou.
– Aconteceu – ele respondeu, implacável – me ligou.
Arregalei levemente os olhos, incrédula por ela ter sido capaz disso, e ao mesmo tempo frustrada por não ter previsto que ela seria capaz disso.
– Eu já devia saber – resmunguei, cobrindo parte do rosto com uma mão – Ela te contou sobre , não foi?
– Sim, porque sabia que você não o faria.
Franzi a testa, estranhando sua atitude ressentida.
– E por que eu deveria te ligar? Para colocar ainda mais problemas em sua cabeça, problemas que, pra começar, nem são realmente problemas, e que não lhe dizem respeito?
– , como você pode pensar dessa forma? – ele respirou fundo, inconformado com minha teimosia – Mas é claro que você deveria ter me ligado, assim que aquele idiota foi embora! Eu também tenho uma parcela de culpa por seu retorno, e uma parcela generosa, por sinal. Além do mais, não percebe o risco que ele pode representar, ainda mais estando sozinha pelo resto do fim de semana?
Bufei, irritada com sua preocupação excessiva. Por que teve de contar tudo a ele? O retorno de deveria ter ficado em segredo até que eu descobrisse a verdade. No momento certo, eu contaria tudo a ele, mas não antes de certificar a veracidade dos fatos.
– Pelo amor de Deus, ele só quis me assustar! – rebati, frustrada por ter que esconder tanto dele – Você não precisava ter vindo até aqui para isso, eu vou ficar bem.
– Você não entende, não é? – ele insistiu, dando um passo em minha direção – Ele perdeu completamente a noção de tudo. Ele te seguiu! Se isso não grita perigo para você, quase estoura meus tímpanos! O que eu conhecia jamais faria uma coisa dessas... Sabe-se lá do que mais ele é capaz!
Sua irritação crescente e despropositada estava começando a me afetar. Se ao menos eu pudesse explicar o que realmente estava acontecendo... Mas ainda não era o momento. Não podia ofendê-lo daquela forma, contando uma história tão mirabolante e possivelmente falsa. Além do mais, se ele já estava surtando com o que sabia, se sequer sonhasse que me encontrei com a sós, acabaria tendo um colapso nervoso no meio da sala.
– O que você acha que ele vai fazer? Invadir minha casa e me sequestrar? Faça-me o favor!
– Eu já entrei aqui sem ser convidado, o que o impede de fazer o mesmo?
– , seja sensato, pelo amor de Deus! – pedi, avançando dois passos em sua direção – Ele não vai me machucar.
– Como pode ter tanta certeza? – ele indagou, recusando-se a ceder – Eu fui amigo dele por anos e não sei o que esperar dele. E você, sabe?
– Não, eu não sei! – exclamei, cada vez mais tomada pelo calor da discussão – Mas tem uma coisa que eu sei, e é o número de telefone da polícia. Se ele sonhar em tentar qualquer coisa absurda, vai parar na delegacia na mesma hora!
sustentou meu olhar com determinação, ainda disposto a rebater meu argumento, mas após alguns segundos, apenas suspirou profundamente e abaixou a cabeça, balançando-a negativamente em seguida.
– Me desculpe – ele murmurou, depois de um breve silêncio – Eu não queria... Eu não queria brigar com você.
Minha raiva momentânea se esvaiu por completo ao ser pega de surpresa por sua mudança de atitude. Ele só estava preocupado comigo... Tão preocupado que dirigiu até minha casa só para ter certeza de que eu estava bem. Uma pontada de remorso surgiu em meu peito.
– Nem eu – confessei, ainda que meu tom guardasse resquícios de irritação em meio à compreensão.
ergueu a cabeça novamente, examinando minha expressão.
– Como você está?
Dei de ombros, sem saber o que dizer. Havia sido um longo e péssimo dia, e eu adoraria acordar daquele terrível pesadelo muito em breve e descobrir que tudo continuava como antes de reaparecer, pelo menos.
– Vou ficar bem – disse apenas. Obviamente, não foi o bastante.
– Claro que vai – ele concordou, esboçando um sorriso encorajador – Mas enquanto não fica, pode falar comigo.
Suspirei profundamente, tentando com todas as minhas forças não me deixar atingir pelo cuidado que ele demonstrava ter comigo. Já era difícil o bastante estar perto dele sem poder tocá-lo, será que ele não percebia que era ainda pior ser paparicada por ele na situação em que estávamos?
Será que ele poderia parar de me fazer querer tanto um mísero abraço dele, por mais breve que fosse, só para ajustar o eixo de minha vida e colocá-lo de volta no lugar certo?
– O que você quer que eu diga? – perguntei, sentindo meus olhos arderem e minha visão ficar gradativamente embaçada – Que foi horrível? Que eu preferia nunca tê-lo conhecido? Que eu realmente estava começando a achar que ele havia desistido de infernizar a minha vida, mas infelizmente, nem tudo acontece de acordo com a nossa vontade?
Ele apenas observou, com o olhar penalizado, enquanto eu desmoronava aos poucos diante dele. Os meses de distância estavam começando a me afetar, e o stress inesperado que causara havia triplicado o peso da carga sobre meus ombros.
– Eu só queria que ele sumisse, que me esquecesse de uma vez por todas... Só de me lembrar do quanto eu o amei, do quão importante ele foi para mim... E saber que foi tudo em vão... Dói muito. Já se passaram meses, mas eu nunca realmente lidei com a ideia de que ele provavelmente nunca me amou, que eu provavelmente nunca signifiquei nada para ele... Como eu posso ter me enganado tanto? Como ele pode ser esse... Monstro?
Escondi meu rosto, agora coberto por algumas lágrimas nervosas que não consegui conter, em minhas mãos, para me recompor, e senti que ele se aproximou, ainda em silêncio. Respirei fundo algumas vezes, de olhos fechados, até que seus braços me envolveram e ele me puxou para perto de si. Mal pude acreditar que aquilo realmente estava acontecendo; somente quando seu perfume me atingiu, constatei que, de fato, era real. estava mesmo ali, e estava me abraçando.
– Eu sinto muito – ele murmurou, acariciando o topo de minha cabeça com uma das mãos – Por tudo.
Permaneci imóvel em seu abraço apertado, incapaz de reagir. Ele sabia exatamente o quanto havia me ferido, sabia que eu precisava de apoio, ainda que insistisse em recusar sua ajuda. A saudade era esmagadora demais, cruel demais para que eu ousasse me mover e correr o risco de voltar à realidade hostil, agora que eu estava blindada por seus braços ao meu redor. Desejei que aquele momento durasse para sempre.
Por um período, que me pareceu imensurável, de tempo, permanecemos abraçados, nos comunicando muito melhor através do silêncio e do toque do que por meio das palavras e da distância, como sempre havia sido. Quando nos afastamos, meus olhos já estavam secos, e eu havia recuperado o controle sobre minhas emoções, embora ainda tivesse certa dificuldade para raciocinar devido às mãos dele, que descansavam sobre meus braços, como se ele temesse que eu pudesse quebrar se me soltasse.
– Você não está sozinha – ele disse, em tom carinhoso, com um sorriso (por mais maravilhoso e doloroso que fosse admitir isso) completamente apaixonado – Eu vou estar sempre do seu lado, aconteça o que acontecer.
Resistindo bravamente a todos os impulsos que me imploravam para beijá-lo e esquecer todo o resto, assenti, sorrindo fraco, porém sinceramente.
– Obrigada – falei, com a voz rouca.
Nossos olhares permaneceram intensamente ligados por um instante, antes de o dele cair para meus lábios, e ali se demorar brevemente antes de retornar para o meu.
– Deixe-me ajudá-la – ele pediu, sério – Você não tem que lidar com isso sozinha.
Desviei os olhos, temendo que ele encontrasse algo que não deveria neles.
– Como você pretende me ajudar?
– Eu posso procurá-lo... Tentar convencê-lo a desistir dessa ideia maluca de te perseguir. Por favor, qualquer coisa. Só não me deixe assistir a esse pesadelo sem poder fazer nada para acordar.
Ponderei sua súplica, sem saber o que dizer. Não havia nada que ele pudesse fazer por mim no momento; tudo o que eu precisava era provar que estava sendo sincero, e então ele poderia saber.
E então, estaríamos livres.
– Confie em mim. Vai ficar tudo bem.
Ergui meu olhar até seu rosto novamente, e tudo que vi foi uma relutância pesarosa.
– Quando me disse isso pela última vez, você acabou desacordada no meu carro – ele observou, determinado a me fazer reconsiderar – Não pretendo cometer o mesmo erro.
Engoli em seco, lembrando-me de minha conversa a sós com em seu apartamento. A mera lembrança do pavor que senti naquele dia me causou arrepios.
– Por favor – pedi, encarando-o com firmeza – Eu agradeço a sua preocupação, mas... Deixe-me lidar com ele. Eu sei o que estou fazendo.
– Por favor, digo eu – ele insistiu, praticamente de joelhos – Não me peça o impossível.
– ... – suspirei, repousando uma de minhas mãos sobre seu peito para reforçar meu desejo de ter minha vontade respeitada – Você não pode lutar minhas batalhas por mim. O que ele mais quer agora é me assustar, e se eu permitir que você aja em meu lugar, só estarei encorajando-o a continuar. Não vou dar esse gostinho a ele.
Enquanto eu falava, ele fechou os olhos, concentrando todos os seus esforços em controlar sua angústia.
– Eu não confio nele... Não vou conseguir te deixar sozinha sabendo que ele pode estar lá fora nesse exato momento tramando algo contra você.
Ainda que sua voz estivesse mais contida, o desespero latente em suas palavras era nítido. Sem saber mais como lidar com sua fixação, sugeri a única solução que satisfaria ambos os lados.
– Então não me deixe sozinha.
franziu a testa, me olhando como se eu tivesse criado uma segunda cabeça.
– O quê?
– Fique... Pelo menos por hoje. Não posso deixar que saia daqui nesse estado.
Deixei que minhas palavras fossem assimiladas antes de completar meu pedido, fazendo o que sabia fazer de melhor: usando suas palavras contra ele.
– Quando te deixei dirigir com a cabeça tão cheia pela última vez, você acabou num hospital com um curativo na testa. Não pretendo cometer o mesmo erro.
Por mais tenso que estivesse, ele não pôde deixar de soltar um risinho fraco ao se lembrar da ocasião a que me referia – assim que finalmente conseguiu esboçar alguma reação, claro. Meu pedido havia sido inesperado demais, até para mim, mas agora que a possibilidade existia, eu faria de tudo para que ele aceitasse meu convite. Tê-lo por perto, nem que por algumas horas, era uma chance que eu não podia desperdiçar. Ele considerou minha oferta pelo que pareceu uma eternidade, até enfim se manifestar.
– Se isso for só um plano seu porque, no fundo, está com medo de que invada sua casa da mesma forma que eu fiz, e pretende me torturar para revelar como entrei... Fique sabendo que levarei este segredo para o túmulo – ele respondeu, com um sorriso divertido.
Revirei os olhos, empurrando-o de leve e rindo também.
– Vou entender isso como um sim – falei, lutando para conter a alegria gigantesca que só crescia dentro de mim ao vê-lo dar um sorriso sincero pela primeira vez em três meses e meio, um sorriso só para mim.
– Entenda isso como “espero que seu sofá seja confortável o bastante para dormir”, seguido de “espero que você tenha cereais matinais no armário da cozinha”, ou então, nada feito – rebateu, nitidamente tão feliz quanto eu pela oportunidade de passarmos algum tempo juntos.
– Vai sonhando que eu vou dividir meu Froot Loops com você, !
– Claro que não, vou comer tudo sozinho enquanto você dorme.
Mostrei a língua, mais infantil impossível, e ambos rimos de nossa idiotice, extasiados demais com a trégua que parecia haver suspendido a tensão exaustiva entre nós, e aliviados por podermos apenas agir normalmente, ou pelo menos quase.
– Vou buscar seu travesseiro e cobertor – avisei, seguindo em direção às escadas. Quando estava na metade do caminho para o andar de cima, a voz de me deteve.
– Obrigado.
Desci alguns degraus para poder olhá-lo, e o sorriso que ele me deu quase me fez rolar os degraus restantes e cair estatelada no chão.
– Pelo quê? – gaguejei, segurando firme no corrimão. A resposta demorou a vir, como se tivesse requerido muita reflexão, ainda que fosse um tanto óbvia demais.
– Por me deixar ficar aqui essa noite.
Franzi a testa de leve, intrigada. Ele parecia tão grato por um motivo tão simples... Aquele não era seu verdadeiro motivo para agradecer, ou pelo menos não o único.
– Não precisa agradecer – foi só o que pude dizer, com um sorriso igualmente sincero, reprimindo minha curiosidade diante de seu súbito comportamento enigmático e subindo as escadas.
Eu não precisava perguntar, pois já sabia a resposta. Como poderia não saber, se me sentia da mesma forma em relação a ele?
Obrigada por existir, pensei, retribuindo mentalmente seu sentimento.
(’s POV)
– Boa noite.
Minhas palavras vieram acompanhadas de um sorriso, em parte grato, em parte pesaroso. Meus olhos seguiram o caminho que ela fez, do sofá até as escadas, e dali até sumir de vista, e no instante em que não pude mais vê-la, meu peito ardeu de saudade. Não sei por quanto tempo fiquei observando os degraus, talvez rezando para que ela reaparecesse, talvez rezando para que ela nunca o fizesse.
Algumas horas haviam se passado desde minha chegada, preenchidas por algumas conversas tímidas, porém revigorantes. A tensão havia se dissipado consideravelmente, permitindo que nos comportássemos como velhos amigos, o que não era de todo inédito entre nós, mas foi uma boa surpresa, considerando o contexto em que nos encontrávamos.
sempre conseguia me surpreender da melhor forma possível. Isso eu aprendi a jamais subestimar.
Quando enfim pude desgrudar os olhos das escadas, eles caíram sobre o canto do sofá no qual ela havia se encolhido por boa parte da noite, e de onde ela conversou comigo, riu comigo, existiu comigo. O nível de saudade que eu sentia era insuportável, beirando o patológico. E não era apenas no aspecto amoroso.
Sim, eu a amava. Ao posicionar meu travesseiro sobre o local antes ocupado por ela e então repousar minha cabeça sobre ele, nenhum outro pensamento restava em minha mente a não ser esse: eu a amava. Demais, até demais. E era exatamente por amá-la tanto que eu não me importei com o fato de não poder tocá-la, como sempre adorei fazer. Era estranho demais poder conversar com ela de uma forma tão tranquila e não poder puxá-la para mim, acomodá-la em meu colo (onde ela já admitiu, mais de uma vez, que prefere ficar, ao invés de simplesmente ao meu lado), ou então deitar minha cabeça sobre o dela e deixar que seus dedos bagunçassem meus cabelos... Tudo era muito estranho quando havia uma barreira invisível entre nós.
E eu era o único responsável pela existência dela.
Respirei fundo, tentando lutar contra os sentimentos ruins que já começavam a se aglomerar em meu peito. Ela mal havia me deixado sozinho e eu já estava estragando tudo.
Forcei meus olhos a se fecharem, e com algum esforço, consegui relaxar um pouco. Dormir seria impossível, estando tão próximo dela num lugar onde não havia absolutamente ninguém a não ser nós dois.
Assim que meu cérebro chegou a essa conclusão, meus olhos se abriram repentinamente, e meu coração deu um salto, quase me escapando pela boca.
A situação era familiar demais.
Flashback – cerca de um ano atrás
– ?
Franzi a testa, sem tirar os olhos do trânsito quase inexistente. Estávamos nos afastando cada vez mais da casa de Kelly, e ela ainda não havia me dado seu endereço. Eu podia ter sido um canalha de marca maior e o descoberto por meios nem um pouco éticos há muito tempo, mas eu sabia que quando soubesse onde ela morava, acabaria cometendo uma loucura (por exemplo, encheria a cara uma noite qualquer e acabaria soltando o verbo para a primeira pessoa que aparecesse à porta depois que eu tocasse a campainha).
Já estava começando a me arrepender de ter contido minha curiosidade; decidi tentar novamente.
– ?
Parei em um semáforo fechado, e aproveitei a oportunidade para me utilizar de métodos mais incisivos para fazê-la responder. Virei seu rosto em minha direção, com todo o cuidado do mundo (ela bem que seria capaz de arrancar minha mão com os dentes se percebesse que eu a estava tocando), e confirmei minhas suspeitas.
estava dormindo.
– Pirralha maldita – resmunguei, já prevendo a dor de cabeça que toda aquela bagunça me traria. E era tudo culpa da Smithers. O que aquela idiota tinha na cabeça ao convidar a para uma das suas festinhas demoníacas?
Eu não sabia quem estrangular primeiro: Kelly, por ser tão irritante, ou , por estar tão... Inconsciente.
A palavra não soava muito convidativa. Inúmeras vezes me peguei imaginando como seria tê-la em meu carro, sentada no banco do carona, cantarolando alguma música que eu não conhecia junto com o rádio ou então apenas olhando pela janela, com os cabelos bagunçados pelo vento, falando uma coisa ou outra com os pés apoiados no painel.
Nenhuma das imagens que criei em minha mente fértil chegavam ao nível doentia que a realidade diante de mim apresentava.
– – chamei mais uma vez, dando leves tapinhas em seu rosto, mas foi em vão. A única reação que recebi foi um gemido baixo quando meu dedão esbarrou no canto de sua boca, e foi então que percebi a pequena mancha de sangue na extremidade de seu lábio inferior. A imagem da cena que encontrei no banheiro da casa de Kelly, onde imaginei que seu pequeno machucado tivesse sido criado, assombrou minha mente; se eu visse aquele pivete de novo, ele nunca mais veria qualquer outra coisa a não ser meu punho colidindo com sua cara.
Respirei fundo para dispersar o álcool ainda correndo em minhas veias, e fixei meu olhar na rua deserta adiante. Minha consciência, ou pelo menos a parte sóbria dela, alertava que eu estava prestes a tomar a decisão mais errada de toda a minha vida, mas meu cérebro levemente entorpecido não me permitia enxergar nenhuma outra solução.
Então, quando o sinal abriu, eu acelerei o carro e a levei para minha casa.
É, eu sei. Que puta cagada. Mas o que mais eu poderia fazer àquela hora da noite?
Ligar para não era uma opção. Era culpa de sua idiotice que estava naquele estado, nada mais justo que deixá-lo de fora da jogada. Além do mais, ele era um idiota, e acabaria estragando tudo; um professor envolvido naquele rolo já era suficiente, ela não precisava de dois para tornar todo o acontecimento ainda mais difícil de explicar.
Pegar seu celular e ligar para sua mãe ou para sua melhor amiga? A mera hipótese de falar com uma delas me deu calafrios. Eu acabaria sendo crucificado, e com a sorte que eu tinha, acabaria se esquecendo de tudo que aconteceu, e colocaria a culpa em mim por ter se embriagado tanto, ou algo igualmente inconcebível.
De qualquer forma, ela me odiaria ainda mais. Então por que não escolher a opção que mais me favorecia?
Não me entenda mal, eu não pretendia tirar proveito de sua vulnerabilidade. Eu jamais faria algo do tipo, nem mesmo com ela. Só de pensar no assunto meu estômago se revirava de horror. Não... Um dia, eu não só a levaria para minha casa muitíssimo acordada, como também por sua própria vontade.
Hoje, eu só queria cuidar dela. Amanhã, quando recuperássemos os sentidos definitivamente, ela poderia pensar em como se explicar para os outros, e eu pensaria em como me explicar para ela.
Cheguei sem demora ao meu prédio, e assim que estacionei, deixei o veículo e o circundei para abrir a porta do passageiro. continuava apagada, dormindo como se não houvesse amanhã. Por um instante, me perguntei se seria necessário levá-la a um hospital, mas bastou checar brevemente seus sinais vitais para perceber que ela apenas estava num estágio profundo de sono; a experiência de passar por isso inúmeras vezes nos anos de faculdade também ajudou a me tranquilizar.
– ? – tentei pela trigésima segunda vez, chacoalhando-a pelos ombros, e novamente, não funcionou. Esfreguei o rosto com as mãos, tentando entender como aquela noite havia virado de cabeça para baixo tão rapidamente, e, com o foco retomado, passei meus braços por baixo de seu corpo, um por sob seus joelhos, outro por sua cintura.
Como se tivesse esperado por isso desde que adormecera, ela envolveu meu pescoço com seus braços preguiçosamente, e soltou um suspiro contra meu pescoço. Precisei de um momento para me recuperar do choque (e, claro, da explosão de pensamentos impuros) que sua reação inconsciente causou, e só então pude me mover. Virei na direção do elevador, empurrei a porta do carro com o calcanhar e ativei o alarme, fazendo malabarismos para não derrubá-la no processo. Sorte dela que eu era bom em manusear mulheres, ainda que eu preferisse as minimamente lúcidas.
Não sei como sobrevivi à respiração serena dela em meu pescoço, mas de alguma forma, consegui me manter são durante o trajeto vertical do elevador. Assim que as portas se abriram, caminhei até o sofá, e a deitei sobre ele. Na penumbra do apartamento, pude ver que ela agora tinha a testa levemente franzida; afastei uma mecha de cabelo de seu rosto, o mais suavemente possível, e ela abriu os olhos. Meu coração quase saltou pela boca ao vê-la acordada. Ela não esboçou reação, apenas me encarou, confusa, por alguns segundos.
Quando enfim me reconheceu, um certo pânico preencheu seus olhos, e eu logo tratei de tranquilizá-la.
– Shh, está tudo bem – sussurrei, afastando minhas mãos dela em sinal de paz – Você está segura agora.
piscou lentamente, processando minhas palavras, e, ao contrário do que eu previa, não ofereceu resistência à minha explicação. Pelo contrário, um alívio sincero pareceu percorrer seus traços, e se eu já não estivesse sóbrio o suficiente para distinguir a realidade do imaginário, teria certeza de que o sorriso agradecido que ela me deu foi pura alucinação.
– C-como se sente? – gaguejei, pego totalmente de surpresa por aquela demonstração (ainda que alcoolizada) de confiança. Ela podia nem sequer sonhar em admitir tal fato, mas agora eu tinha certeza de que ela não me via mais como o monstro que um dia eu fui em sua mente. Somente esta descoberta já foi suficiente para que eu não me arrependesse de tê-la trazido para casa comigo. Acontecesse o que acontecesse, ela havia me revelado algo muito importante, e nada do que me dissesse no dia seguinte mudaria isso.
não respondeu, apenas gemeu baixo e levou uma das mãos à parte superior da barriga. Não precisei de mais explicações para entender o que se passava.
– Respira fundo – pedi, voltando a carregá-la e correndo até o banheiro. Ajudei-a a se sentar ao lado do vaso sanitário, e assim que levantei a tampa, ela despejou todo o conteúdo de seu estômago nele, entre breves acessos de tosse e alguns resmungos de mal-estar. Segurei seu cabelo enquanto ela se ocupava em se livrar do álcool em seu sistema, e a única coisa que se passava em minha mente era: aposto que nenhum de seus namorados já havia feito o que eu estava fazendo naquele momento.
Ela definitivamente não sabia o quão prestativo eu podia ser.
tossiu um pouco, erguendo a cabeça, e eu já a aguardava com uma toalha de rosto úmida, que cuidadosamente passei sobre sua boca (como já era de se esperar, ela reclamou quando limpei a pequena mancha de sangue do canto de seus lábios). Seus olhos se abriram gradativamente enquanto eu o fazia, e assim que olharam nos meus, percebi que ela estava lacrimejando.
Puta merda. Golpe baixíssimo detectado.
– Eu sinto muito – ela murmurou, com a voz enrolada, e segurou meu pulso com uma das mãos, deslizando o polegar sobre minha pele.
Minha garganta se fechou, minha mente decretando situação de emergência diante de tamanha demonstração de consideração dirigida à minha pessoa. Não por muito tempo; bastou que ela repetisse mais uma vez suas desculpas para que ficasse nítido que algo estava errado.
– , eu sinto muito.
Encarei suas lágrimas com distanciamento, agora que sabia a quem sua causa realmente deveria ser atribuída. Com um suspiro tenso, desviei o olhar, retraindo minha mão com facilidade de seu carinho iludido.
Incapaz de dizer qualquer coisa, apenas fiquei de pé e a ajudei a fazer o mesmo. Envolvi seus braços com minhas mãos ainda trêmulas, puxando-a para cima logo em seguida, e ela não hesitou em se apoiar em meus ombros quando enfim se levantou do chão. Com o orgulho ferido por ter meus esforços negligenciados por sua embriaguez, dei descarga e fechei a tampa do vaso, buscando mil e uma formas de não encará-la.
Suas mãos me impediram assim que terminei essas tarefas, virando meu rosto em sua direção com urgência.
– Não fique bravo, por favor – ela choramingou, me forçando a ver o desespero em suas pupilas – Eu não queria ter ido...
Seu lábio inferior tremeu ao fim da frase, anunciando mais lágrimas, e sem aviso prévio, me abraçou com força, afundando o rosto em meu pescoço e chorando feito uma criancinha. Meu corpo inteiro entrou em estado de alerta ao sentir o dela implorando para se moldar a ele; minhas pálpebras subitamente pesavam o triplo do normal, e respirar era praticamente impossível. A parte sombria de minha mente ainda levemente ébria ocupava-se em imaginar todo tipo de imagem pervertida, fazendo com que meu sangue se apressasse em correr para uma determinada região de minha anatomia.
No entanto, a parte sensata de minha consciência, sóbria desde que pus meus olhos em naquela maldita festa, agiu rapidamente e tomou a única decisão possível.
Afastei meu pescoço de seu rosto, ao mesmo tempo em que minhas mãos empurravam sua cintura para longe de mim, com o máximo de cuidado para não transmitir a mensagem errada – tanto para o cérebro dela, quanto para o meu.
– Vamos – falei, quando enfim recuperei minha voz – Você precisa descansar.
– Não... – ela resmungou, resistindo ao meu distanciamento, e pronunciou suas próximas palavras ao pé de meu ouvido – Eu preciso de você.
Todo o ar de meus pulmões escapou por meus lábios entreabertos num milésimo de segundo. Fechei os olhos com força, lutando contra o turbilhão de pensamentos impuros que surgiam a cada segundo diante deles, pensamentos há muito recorrentes em minha imaginação. Meus dedos se fecharam ao redor de sua cintura, involuntariamente, e ela completou sua teimosia com chave de ouro.
– E eu sei que você também precisa de mim.
Assim que sua voz atingiu meus tímpanos, uma de suas mãos percorreu toda a extensão de meu tronco e somente parou ao atingir o volume vergonhoso em minha calça. Meus olhos se arregalaram de imediato ao sentir seus dedos contornarem minha ereção, acompanhados de um beijo demorado em minha mandíbula. Por pouco meus joelhos cederam à excitação absurda que me golpeou sem aviso prévio. Era surreal demais para ser verdade.
Quantas vezes me imaginei naquela exata situação, com seu corpo enroscado no meu, sussurrando indecências em sua voz inocente, me descobrindo com cada toque de seus dedos curiosos, causando as reações mais intensas e irresistíveis... Não podia ser real. Por mais que eu desejasse que fosse, com todas as minhas forças, eu sabia que não era possível. Não agora, não tão de repente.
E não era.
, eu sinto muito.
.
Não era eu o objeto de suas afeições. Não era ela, aquela , o objeto das minhas.
Aquela ainda era a dele. E, se isso tudo não bastasse, ela não tinha a menor consciência do que estava fazendo.
Não era real, e com certeza não era certo.
– Não – falei com seriedade, desvencilhando-me dela e segurando-a pelos pulsos – Chega.
– Por favor... – ela pediu, tentando se aproximar novamente, mas eu a impedi – Me deixe compensar tudo isso. Prometo que vou me esforçar.
Franzi a testa, enojado com o que ela dizia. Ela estava se sentindo culpada por ter ido à casa de Kelly (provavelmente sem contar a , o que era bem a sua cara) e agora que supostamente, em sua cabeça, ele havia descoberto tudo, ela queria se desculpar com sexo?
Aquela definitivamente não era a que eu conhecia.
– Pelo amor de Deus, pare com isso – pedi, horrorizado com sua total ausência de senso. Ainda bem que eu estava naquela maldita festa, ou então sabe-se lá o que teria sido dela naquela noite. As possibilidades que surgiram em minha mente causaram calafrios.
apenas riu, desistindo de me tocar, e eu mal tive tempo de soltar um suspiro aliviado antes que ela levasse suas mãos até os botões de seu vestido e começasse a abri-los, um por um, bem na minha frente.
Minha determinação falhou por um instante, atordoada pela hipnose que cada novo botão aberto exercia sobre mim. deixou o vestido cair a seus pés, espiando minha reação (ou falta de) com um sorrisinho vitorioso.
Se ela soubesse quantas vezes eu já havia imaginado o que ela escondia debaixo de suas roupas... Quantas vezes eu havia desenhado cada contorno que agora se revelava diante de mim, exceto os que suas roupas íntimas ainda cobriam. Minhas mãos ardiam para explorá-los, minha boca salivava para beijá-los, minha mente enlouquecia só de pensar que eu realmente a estava vendo seminua.
Se ela soubesse o quanto doeu ter que desgrudar meus olhos de seu corpo e deixar a razão governar minhas ações, me fazendo conduzi-la até o interior do box logo atrás de si e ligar o chuveiro, para que a água fria com a qual eu estava tão acostumado nas horas difíceis a atingisse em cheio e, quem sabe, a fizesse retomar parte do controle...
protestou, pega totalmente de surpresa, mas logo se conformou em bater o queixo sob o jato gelado, recusando-se a me olhar. Ela já me odiava mesmo, e me odiaria ainda mais na manhã seguinte... Não custava nada dar a ela mais um motivo pra detestar minha existência.
O fato de me forçar a suportar a visão dela tremendo de frio em meu banheiro, encharcada, só de calcinha e sutiã, sem sequer conseguir pensar em curtir a situação, não a tornava exatamente minha pessoa favorita naquele momento.
Quando seus lábios já adquiriam um leve tom arroxeado, desliguei o chuveiro e hesitei, testando sua reação. Ela apenas ergueu os olhos até os meus, e como uma criança arrependida da travessura que havia feito, esperou, com os ombros curvados e os braços firmemente agarrados ao próprio corpo, até que eu pegasse uma toalha e a estendesse em sua frente. rapidamente veio até mim e se encolheu quando o tecido felpudo entrou em contato com sua pele gélida; sem conseguir ignorar a cara de cãozinho perdido dela, esfreguei seus braços com as palmas de minhas mãos, numa tentativa desajeitada de aquecê-la.
Sem dizer mais uma palavra sequer, ela permitiu que eu a levasse até o quarto de hóspedes, e se sentou sobre a cama com a expressão sonolenta.
– Está com sono? – perguntei, sem saber ao certo de que outra forma agir. assentiu, cabisbaixa. O banho forçado pareceu ter surtido efeito. Pelo menos ela não estava mais tirando a roupa; o pouco de juízo que ainda me restava agradecia profundamente.
– Pode deitar.
Ela levou alguns segundos para processar minhas palavras, mas obedeceu. Levantei as cobertas para que ela se acomodasse sob elas, e assim que a cobri, seus olhos se fecharam e ela adormeceu.
Ou pelo menos foi o que pensei, ao soltar um suspiro aliviado e caminhar até a porta do quarto, sem sequer ousar olhar por sobre meu ombro e arriscar uma atitude impulsiva.
– Estou com sede – ela gemeu, no instante em que pisei fora do cômodo. Ainda no piloto automático, voei até a cozinha e em poucos segundos retornei com um copo d’água. O
cupei a beirada do colchão ao seu lado, e ela se sentou, pegando o copo de minhas mãos e bebendo todo o conteúdo em grandes goles. Ofegante, ela me devolveu o copo vazio, e, de olhos fechados, se inclinou em minha direção, encostando os lábios úmidos em meu ombro e virando a cabeça de um lado para o outro lentamente, até secá-los na manga de minha camiseta. Então, ela voltou a se deitar, e apagou de vez.
Levei alguns minutos para conseguir me recuperar do contato inesperado e levantar, para então cambalear até a cozinha e colocar o copo sobre a pia. Se eu sobrevivesse àquela noite, sobreviveria a qualquer coisa.
No caminho para meu quarto, espiei pela fresta do cômodo ocupado, vendo-a ainda imóvel, do mesmo jeito que a havia deixado. Engoli em seco, revirado demais internamente para entender o que de fato havia acontecido nas últimas horas, e especialmente, nos últimos minutos. Exausto, segui até o banheiro e recolhi o vestido de , ainda abandonado no chão. Encarei a peça de roupa, sentindo minha cabeça (e outra parte de meu corpo) latejar. Por que tudo não podia simplesmente se acertar? Por que tinha que ser tão difícil? Por que eu não conseguia pensar na imagem dela se despindo diante de mim sem me lembrar de que ela ainda pertencia a outro, e que nem mesmo no estado calamitoso em que se encontrava, completamente fora de si, ela cogitava a hipótese de querer estar comigo?
Eu realmente tinha feito tudo errado.
Sem um pingo de dignidade restante, levei seu vestido comigo até minha cama, e durante a noite, que passei praticamente toda em claro, sonhei acordado com o dia em que ela enfim ocuparia o espaço vazio em meu colchão.
Fim do flashback
Revisitar aquela noite não foi tarefa fácil. Me peguei com o coração acelerado ao recordar a dor da rejeição inconsciente de , ainda mais reforçada por sua reação no dia seguinte, ao acordar. Não foi à toa que bati o carro naquela manhã; depois de ter passado por toda aquela turbulência, era o efeito colateral mínimo que eu deveria esperar.
E lá estávamos nós novamente. Ela não estava bêbada dessa vez (amém), e não havia um terceiro elemento entre nós, mas a situação de certa forma se repetia: cada um dormindo em um canto (ou pelo menos tentando), sozinhos e mal resolvidos.
Por que continuava sendo tão difícil?
Incapaz de permanecer deitado, fiquei de pé e subi silenciosamente os degraus, disposto a nem sequer olhar para a porta do quarto de em meu trajeto até o banheiro. Quem sabe jogar um pouco de água gelada em meu rosto ajudasse a acalmar os ânimos.
Encarei meu reflexo um tanto corado no espelho, e me concentrei em normalizar minha respiração um tanto errática antes de abrir a torneira e lavar o rosto. Minhas mãos tremiam levemente, por um motivo que eu conhecia muito bem: abstinência.
Travei o maxilar, disposto a resistir bravamente, e deixei o banheiro. Eu podia fazer isso. Já havia conseguido uma vez, era perfeitamente capaz de fazer de novo.
Mas dessa vez, não havia nenhum impedimento. Ela estava lúcida. Ela estava em casa. E principalmente...
Ela queria estar comigo.
Minha confiança esmoreceu significativamente ao me imaginar entrando em seu quarto depois de todos aqueles meses e me juntando a ela na cama... Eu a acordaria com um beijo no pescoço e um braço ao redor de sua cintura; ela sorriria, surpresa ao me encontrar ali, como num sonho bom.
Como eu queria...
Meus pés me levaram até a porta entreaberta de seu quarto, e em meio à escuridão de seu interior, o que vi me alarmou de imediato, por ser totalmente inesperado.
A cama estava vazia. não estava lá.
– Aí está você.
Pulei de susto ao ouvir uma voz atrás de mim, e me virei em sua direção, deparando-me justamente com quem procurava. Ela sorria calmamente para mim, com um copo d’água nas mãos, e ao examinar meu rosto, ainda que encoberto pela penumbra, franziu a testa.
– O que houve?
– N-nada – balbuciei, respirando fundo para me recuperar do susto e da vergonha por ter sido pego no flagra espiando seu quarto – Eu só... Vim ver se estava tudo bem.
reprimiu um risinho esperto, perfeitamente ciente de minha desculpa esfarrapada, e assentiu.
– Está tudo bem, sim... Só fiquei com sede.
Assenti de volta, sem conseguir manter contato visual. Eu era um idiota.
– Entendi.
Um silêncio tenso caiu sobre nós, que eu não fazia ideia de como quebrar, até que ela suspirou e disse:
– Então... Boa noite.
– Boa noite – respondi prontamente, ansioso por uma oportunidade de correr para longe daquela situação absurdamente embaraçosa, mas ao mesmo tempo, incapaz de me mover, ainda tomado por um desejo monstruoso de puxá-la para mim e fazer todas as coisas que tanto desejei na noite que havia assombrado minha memória há alguns instantes. Meu coração parecia prestes a explodir, batendo freneticamente em meu peito, e o ar parecia me faltar ao tê-la tão perto, vestindo apenas um de seus pijamas ridiculamente adoráveis. Notando minha hesitação, ela também permaneceu imóvel, como se compactuando com minha vontade de jogar tudo para o alto e apenas seguir o que cada centímetro de nossos corpos gritava.
No entanto, tudo que fiz foi caminhar na direção oposta a seu quarto, retomando o trajeto que fiz ao subir as escadas e rapidamente chegando ao sofá, onde passei o resto da noite me amaldiçoando por tê-la deixado sem sequer um beijo de boa noite.
não veio me procurar. Ela tinha todos os motivos do mundo para não fazê-lo. Eu tinha todos os motivos do mundo para me odiar por isso.
Por que tudo não podia simplesmente se acertar?
– Bom dia.
Abri um olho ao ouvir o cumprimento inesperado assim que me levantei do sofá, e respirei fundo na tentativa de parecer menos exausto após a noite passada em claro.
– Bom dia – murmurei de volta, educadamente me escorando na entrada da cozinha, e enfim sua imagem entrou em foco. estava em pé ao lado da mesa, despejando cereal numa tigela. Ao perceber meu cansaço, franziu a testa de leve.
– Te acordei? – ela indagou inocentemente – Desculpe.
Balancei a cabeça em negação, sem forças para gaguejar uma resposta, ainda mais depois de perceber suaves círculos escuros sob seus olhos. Pelo visto, não só a minha noite tinha sido péssima.
Procurei afastar tal pensamento de minha mente assim que ele surgiu. Estava cedo demais para me afundar em culpa e arrependimento.
– Não, eu... Já estava acordado – disse, mesmo que já tivesse respondido sua pergunta. A necessidade de manter meu raciocínio ocupado com qualquer tarefa era minha única esperança de não acabar balbuciando algo que não deveria ou me perder em devaneios impróprios.
assentiu lentamente, sentando-se numa das cadeiras e hesitando por um momento, com o olhar baixo, antes de pegar a caixa de leite sobre a mesa e adicioná-lo ao conteúdo da tigela. Um breve silêncio se instaurou, até que ela voltou a erguer os olhos e sorriu fraco.
– Quer? – ela perguntou, um tanto tímida, indicando seu café da manhã – Eu disse que não ia dividir, mas era mentira.
Seu tom redimido me fez soltar um risinho baixo, porém verdadeiro. Ela realmente achou que eu levaria sua brincadeira a sério? Sempre tínhamos brigas fajutas como aquela quando...
Engoli em seco; o sorriso desapareceu rapidamente.
– Obrigado – falei apenas, e se não fosse pelo monstro rosnando em meu estômago, teria recusado sua oferta. Ocupei a cadeira à sua frente, passando no caminho por um dos armários e pegando uma tigela, e me servi sem dizer mais nada.
Apesar da postura amigável que ambos mantínhamos, algo havia mudado. A tensão entre nós havia retornado, e parecia furiosa por ter sido suspensa na noite anterior. Já não era mais tão fácil ignorar tudo o que pesava sobre nossos ombros, e o reflexo disso estava em nossas pálpebras pesadas, privadas de descanso por longas horas. O passado, nosso passado, batia incessantemente à porta de nossas consciências a cada olhar lançado, a cada palavra trocada, e nosso encontro inesperado (e frustrado) no corredor foi o divisor de águas nessa mudança brusca, eu tinha certeza disso.
Longos minutos se passaram, e nós apenas comemos, sem ousarmos desviar nossas atenções dos flocos coloridos em nossas tigelas. Terminamos nossa refeição praticamente ao mesmo tempo, e como se já não tivéssemos preocupações suficientes, resolvemos ter a mesma ideia ao mesmo tempo: suas mãos envolveram a tigela à sua frente, e meu braço se estendeu para alcançá-la, com a mesma intenção de levá-la até a pia.
Nossas mãos frias se encontraram sobre a cerâmica, e de imediato, o rosto de ardeu, enchendo-se de cor. Meu coração bateu feito doido no peito; eu estava perfeitamente acordado.
– D-desculpe – gaguejei, meu olhar acertando o dela em cheio, ambos igualmente surpresos e embaraçados. Minha mão continuou sobre a dela, e por mais que a razão ordenasse que eu a retraísse instantaneamente, como se a tivesse exposto ao fogo, nada me parecia mais agradável do que mantê-la entre as chamas.
Ela abriu e fechou a boca algumas vezes, imóvel, antes de balançar negativamente a cabeça e baixar seus olhos para o fundo da tigela. Observei seu peito subir e descer num ritmo mais acelerado que o comum. estava claramente lutando com todas as forças que ainda lhe restavam... E que com certeza eram mais eficientes do que as minhas, pois enquanto eu ainda mantinha meu braço esticado para tocar sua mão, ela se levantou de súbito, levando sua tigela consigo, e seguiu até a pia.
Assim que o encanto se quebrou e eu pude raciocinar novamente, uma culpa horrível me engoliu. Fechei os olhos, incapaz de acreditar que havia sido tão fraco. Eu havia imposto aquela distância, e ela fora a única de nós dois a se lembrar disso. Era inaceitável de minha parte ser tão fraco em sua presença... Mas, por maiores que fossem meus esforços, me parecia ainda mais inaceitável resistir. Cada célula em meu corpo vibrava na direção dela, me impelindo a estar sempre o mais próximo possível, e lutar contra esse magnetismo era desgastante, exaustivo demais. Eu me recordava de momentos de cansaço não apenas psicológico, mas que beirava também o físico, durante o tempo em que era seu professor. Me lembro de encerrar as aulas me sentindo drenado, esgotado por passar tanto tempo medindo cada gesto e tomando as devidas precauções para não me aproximar demais.
E agora isso... Mais do que nunca, eu precisava me manter afastado, precisava seguir minhas próprias decisões, e havia falhado. Eu realmente tinha perdido o jeito. Agora, que eu sabia o que era poder tocá-la sem restrições, não poder orbitar livremente ao seu redor era inconcebível.
Quando enfim retomei o controle, suspirei profundamente e abri os olhos, dirigindo-os a ela sem me acovardar.
– ...
Assim que ouviu seu nome, ela se sobressaltou, e seus ombros se encolheram instintivamente, como se ela estivesse no limite de seu autocontrole e qualquer ação minha pudesse ser a gota d’água. Tal movimento brusco fez com que a tigela, já envolta em espuma, escorregasse de sua mão e caísse dentro da pia. O impacto quebrou a louça com estrondo. Me levantei num pulo e corri até ela, totalmente comandado pela preocupação.
– Está tudo bem – ela avisou, numa voz trêmula, sobrecarregada de retenção, ao perceber minha aproximação – Não foi nada, está tudo bem.
Seus olhos permaneceram baixos, e seu rosto ainda queimava de vergonha por sua reação intensa. Segurei seus pulsos e inspecionei cada centímetro de pele, buscando algum machucado em meio à espuma que cobria parte de suas mãos. Levei-as até o jato de água que saía da torneira, com o intuito de enxaguar o detergente, e assim que o fiz, se encolheu novamente, e seu rosto se contorceu de dor. Quando a água lavou toda a espuma, pude ver o corte razoável que um dos cacos havia aberto numa de suas mãos.
Respirei fundo ao perceber que ela havia se ferido, e senti minha culpa aumentar infinitamente. Porém, o filete de sangue que escorria de seu machucado, sendo imediatamente estancado pela água corrente, fez com que meu cérebro ativasse o piloto automático, e eu não me permiti pensar em outra coisa a não ser cuidar dela.
– Onde fica o kit de primeiros socorros? – murmurei, tentando soar calmo para que ela não se assustasse. Eu sabia que ela era durona quando se tratava do sangue dos outros, mas bastava um corte de papel na ponta do dedo para que seus olhos se enchessem de lágrimas.
– No banheiro, lá em cima – ela respondeu, baixo.
– Deixe a mão sob a água, está bem? – adverti, penalizado pelo tom nervoso de sua voz – Eu já volto.
Mal esperei que ela assentisse para voar escada acima; revirei o banheiro até achar o que procurava e voltei para ela, que permaneceu na mesma posição durante o meio minuto em que a deixei.
– Pronto – falei, um tanto ofegante, me aproximando e fechando a torneira – Vem.
Posicionei uma toalha de rosto sob seu braço para que ela me acompanhasse até a mesa, e dessa forma ela o repousou sobre a superfície de madeira, sentando-se no lugar que antes ocupava. Puxei a cadeira mais próxima e também me sentei para cuidar do ferimento.
– Está doendo muito? – questionei enquanto pegava o antisséptico do kit e uma bolinha de algodão, mal tirando os olhos de , que negou com a cabeça – Fique tranquila, vai ser rápido.
Ela engoliu em seco, ciente de que o que estava por vir não seria exatamente agradável, e eu rezei para que não fosse um corte profundo. Observei o machucado enquanto embebia o algodão no remédio, e o sangue parecia ter sido contido pela água, o que era um ótimo sinal. Se ela realmente precisasse de atendimento médico, o corte provavelmente teria sangrado desde que fechei a torneira. Tal constatação ajudou a me acalmar, pelo menos minimamente.
– Respire fundo – pedi, sem conseguir evitar comentários reconfortantes diante de seus olhos já levemente chorosos. Suavemente, passei minha mão livre sob a dela, da mesma forma que havia feito por acidente alguns minutos atrás, e meu polegar automaticamente acariciou a pele úmida, tentando transmitir apoio. Ela se arrepiou, como sempre acontecia quando nossos corpos estabeleciam qualquer forma de contato físico, e nossos olhos foram compelidos a se encontrarem.
Diferentemente da primeira vez em que segurei sua mão, não nos sentíamos culpados, apenas conectados. Ela soltou o ar que involuntariamente havia prendido, relaxando visivelmente devido ao meu toque, e por um instante, eu me esqueci de tudo.
Pisquei repetidas vezes para retomar o foco, e me concentrei em limpar o ferimento, que já voltava a apresentar um leve sangramento. Seguindo meu próprio conselho, respirei fundo e pressionei o algodão com delicadeza sobre o corte. Ambos reagimos por reflexo: ela tentou retrair a mão, e eu a segurei no lugar. mordeu o lábio, reprimindo uma reclamação, e eu continuei minha tarefa, sem pressa, porém sem estender demais a tortura. Estava quase terminando quando percebi que ela havia relaxado novamente, acostumada à ardência, e pude sentir seu olhar sobre mim.
– Você se lembra... – ela murmurou, interrompendo a frase para segurar um gemido de dor devido ao efeito do antisséptico sobre o corte – De quando me deixou dirigir sua moto... E eu fui um completo desastre?
Ergui meu olhar de sua mão para seus olhos, que instantaneamente se fixaram nos meus com uma clareza distante, nostálgica. Logo voltei a me concentrar no machucado, porém parte de mim havia sido irremediavelmente tocada pela lembrança que ela havia trazido à tona. Um sorriso fraco tomou conta de meus lábios sem prévio aviso, e eu estava tão exausto (em todos os sentidos) que me dei ao luxo de permitir que ele permanecesse ali. A sensação de reviver pequenos momentos com ela se revelara tão revigorante e necessária que em pouco tempo eu havia me tornado escravo do curto passado que tivemos.
– Por um momento eu tive certeza absoluta de que você tinha quebrado no mínimo uns dois ossos – ri baixo e distraidamente, finalizando a limpeza do pequeno ferimento com todo o cuidado que minha consciência parcialmente ativa permitia – Ainda mais quando te vi chorando feito uma criancinha.
soltou uma risada curta, seus olhos fixos em mim, porém sem realmente me ver, como quem se transporta para outro lugar – no caso, para outro tempo. Onde tudo parecia natural, transparente... E inacreditavelmente simples.
– Doeu pra caramba, tá? – ela reivindicou, fazendo meu sorriso se alargar. Franzi a testa em contestação.
– Me poupe, você escapou razoavelmente intacta, apenas com os joelhos ralados – brinquei, deixando de lado o algodão levemente manchado de sangue, e reunindo um pedaço de gaze e esparadrapo para fazer o curativo – A moto sofreu muito mais, acredite.
– Você ficou o resto do dia trabalhando nela – admitiu, em tom de culpa, e eu assenti, cobrindo o corte com o curativo e me certificando de que o esparadrapo havia se fixado em sua pele – E perguntando se eu estava bem ao mesmo tempo... Só pra ter certeza de que eu não havia me arrebentado.
– Como você é uma garota de sorte, ficou tudo bem – falei, atrevendo-me a encará-la e imediatamente me arrependendo. Não por encontrar seus olhos serenos e verdadeiramente felizes com as lembranças que se desenrolavam por trás deles, mas sim, por saber que em algum momento eu deveria desviar o olhar e quebrar aquela ligação entre nós, tão íntima e preciosa mesmo depois de tudo o que havia acontecido.
– Mas você me levou ao hospital mesmo assim... Por medo de alguma hemorragia interna ou algo igualmente dramático – ela continuou, esboçando um sorriso tranquilo – Não sossegou enquanto o médico não confirmou que eu estava realmente bem.
– E você cochilou na volta pra casa, depois de tanta aventura – completei, meu coração acelerando cada vez mais ao seguirmos recriando aquele dia em nossas mentes e caminhando um passo a mais na direção do precipício que nos separava, o medo de cair já se dissipando sem que algo pudesse ser feito para reativá-lo enquanto a vontade de cair nos dominava numa velocidade assustadora – Eu te carreguei até a cama, tirei seus sapatos e te coloquei pra dormir.
– Colocou mesmo – ela disse, sorrindo abertamente, seus olhos jamais abandonando os meus – Você cuidou direitinho de mim.
Senti sua mão se virar para baixo sobre a minha, fazendo com que nossas palmas se encontrassem, e as pontas de seus dedos repousaram sobre meu pulso. Uma voz distante no fundo de minha mente avisava que eu havia baixado demais a guarda e que não seria capaz de reconstruí-la a tempo, mas eu mal podia ouvi-la, não agora que outra voz reverberava em todo o meu ser. A voz que só ela conseguia fazer se manifestar dentro de mim.
– E sempre vou cuidar – sussurrei, sem saber ao certo como encontrei as palavras e o pouco de fôlego com o qual as proferi – Não importa o que aconteça.
Seu sorriso se dissipou lentamente, à medida que ela absorvia minha confissão. O vazio distante em seu olhar foi gradativamente substituído pela seriedade do agora, a noção do que nós estarmos juntos ali, em nosso próprio universo intacto de carinho, significava e podia trazer como consequência.
– Você não sabe como é bom ouvir isso – ela enfim disse, e o tom trêmulo em sua voz denunciava o que eu sempre soube, mas escolhi não considerar para conseguir continuar firme em minha decisão: eu estava sofrendo, mas ela também estava, e provavelmente até mais do que eu.
Pela primeira vez, tentei me colocar em seu lugar, de verdade, sem restrições. Tentei imaginar como seria descobrir que quem amo na verdade não é quem aparenta ser, e me ver categoricamente posto de lado, removido de sua vida, ainda que eu não tivesse certeza de como queria participar dela após toda a decepção. Me vi subitamente sozinho, sem certezas, sem motivos para ter esperança, sem sequer uma notícia, ainda que fosse para saber que tudo estava indo bem sem mim. Me vi no escuro, sem qualquer incentivo para buscar alguma luz, deixado para trás...
Me vi refletido em seus olhos, percebendo o enorme erro que havia cometido.
Meses se passaram, sem uma palavra, com tanta mágoa e tanta tristeza entre nós, e agora tudo parecia igual, se não mais intenso e real... Nós não podíamos estar errados, podíamos? Ainda que eu não fosse o melhor homem que pudesse ser, o melhor homem que ela merecia que eu fosse, aquilo que nos unia, que nos puxava de volta para o mesmo lugar de onde tão determinadamente nos afastávamos, seguindo direções opostas, não poderia ser tão condenável e ao mesmo tempo tão certo se não fosse exatamente isso. Se não fosse certo.
Nossos lábios se encontraram antes que nossas mentes pudessem articular algum outro plano para nos manter afastados.
segurou forte em minha mão, como que buscando algo em que se apoiar enquanto caíamos do abismo, juntos. Acariciei seu rosto com a mão livre, sentindo meu corpo inteiramente eletrificado pela sensação de beijá-la outra vez depois de todo aquele tempo de distância. Ela repousou sua mão na curva de meu pescoço, deslizando-a para minha nuca e aprisionando meu cabelo entre seus dedos saudosos. Aprofundamos o beijo sem demora, famintos um do outro, e em poucos segundos, envolvi sua cintura com meu braço, puxando-a para meu colo; ela obedeceu de bom grado, acomodando-se de lado sobre minhas pernas.
Desabriguei minha mão de seu aperto e desenhei o contorno de seu braço às cegas, seguindo até seu cotovelo, para então conduzi-lo até meu ombro e fazê-lo envolver meu pescoço. sorriu contra meus lábios, prontamente atendendo ao meu pedido e me abraçando apertado. Seu perfume invadiu minha mente, impedindo o surgimento de qualquer pensamento a não ser o que ela vocalizou, com a testa unida à minha e os olhos fechados.
– Que saudade...
Abracei sua cintura com mais força, trazendo-a para ainda mais perto de mim, e respondi com outro beijo, que pareceu durar um mísero segundo, embora estivéssemos nitidamente descabelados, com os lábios avermelhados, e sem fôlego quando o partimos. Todo o tempo perdido levaria ainda mais tempo para ser recompensado, foi o que rapidamente percebi. Não desperdicei mais um instante, e mesmo precisando desesperadamente de ar, voltei a beijá-la com toda a intensidade que meu corpo implorava para externar, depois de meses de contenção.
Como foi que sobrevivi mais de um minuto sem ela?
– – ela murmurou, afastando um pouco o rosto do meu e fitando meus olhos com certo receio.
– – chamei de volta, forjando uma seriedade que ela logo desmascarou, rindo junto comigo. Era impossível esconder minha felicidade, e sentir a dela me contagiando apenas me fazia voar mais alto. Levamos alguns segundos para nos recuperarmos de nossa idiotice, e então ela voltou a demonstrar sua insegurança. Ao falar, ela manteve os olhos baixos, brincando com a gola de minha camiseta.
– Falando sério agora... Você tem certeza de que...
Cobri seus lábios com meu indicador antes que ela completasse sua pergunta.
– Falando sério agora – respondi sem hesitar, e toquei a ponta de seu nariz – É claro que eu tenho certeza.
Um sorriso lindo surgiu em seu rosto, mas ainda não era inteiramente seguro, magnífico, como eu sabia que podia ser e queria que fosse. Sua preocupação era compreensível, e eu faria de tudo para que ela entendesse que eu sabia o que estava fazendo. Chega de sofrer pelo que não podíamos mudar; na tentativa de ser verdadeiramente digno de seu afeto, eu apenas criei novos motivos para que ela se ressentisse. Estava farto de me punir, de nos punir, por algo que nunca havia sido um problema. Ela me amava como eu era, e eu só tinha a agradecer por isso, começando desde agora, já que minha dívida era tão extensa que eu a perdia de vista.
– Eu não quero te perder de novo – ela murmurou, em tom de confissão, ainda com os olhos baixos – Então me diga de uma vez, antes que eu me iluda e seja tarde demais para voltar atrás...
engoliu em seco antes de retribuir meu olhar e enfim dar voz ao que a preocupava.
– O que isso significa?
Afastei uma mecha de seu cabelo, abrigando-a atrás de sua orelha. As palavras que saíram de minha boca vieram diretamente da alegria pulsante em meu peito, sem filtro, sem comedimento, sem medo.
– Significa tudo. Significa que eu amo você, e que eu sinto muito por tudo que eu te fiz passar.
Ela apenas me encarou por um instante, processando o que ouviu, até que um brilho encheu seus olhos e contaminou todas as suas feições, permitindo que o sorriso que eu tanto aguardei aflorasse em seu rosto. Sorrimos um para o outro feito duas crianças em manhã de Natal; ainda que ela estivesse rindo, desconfiei quando escondeu o rosto em meu pescoço.
– Ei... – sussurrei, convencendo-a a voltar a me olhar com um carinho no queixo, e minhas suspeitas se confirmaram quando observei a excessiva umidade em seus olhos – Não faz assim.
– É por causa do machucado – ela fungou, lançando um olhar envergonhado em minha direção. Cerrei os olhos, nem um pouco convencido, e mordi sua bochecha sem aviso prévio, fazendo-a soltar um gritinho. Ela estapeou meu ombro até que meus dentes a libertassem, e voltamos a agir feito dois patetas apaixonados.
Em pensar que há alguns anos, a mera ideia de me comportar dessa forma me traria náuseas... Agora, no entanto, eu era o pateta mais orgulhoso de ser pateta que o mundo já viu. Claro que só na frente dela, e em ocasiões especiais. Patetice constante não era muito o meu estilo. passava mais tempo me socando e mostrando a língua pra mim por meus arrotos apaixonados do que se derretendo de amores por minhas declarações poéticas.
Se bem que eu sabia fazê-la derreter rapidinho...
– Fala de novo – ela murmurou, mal podendo disfarçar sua euforia. Com um riso curto, levei minha boca até sua orelha e obedeci.
– Eu amo você.
Um suspiro quente escapou de seus pulmões. Ela apertou a gola de minha camiseta e se encolheu ainda mais em meu abraço.
– Só mais uma vez.
– Eu amo você – repeti, sentindo minhas pálpebras cada vez mais pesadas e o oxigênio cada vez mais escasso – Eu amo você, eu amo você, eu amo você...
Nossas bocas se encontraram com urgência, e minha mão se encheu com a maciez de sua coxa, praticamente toda exposta pelo shorts de seu pijama. Meu sangue borbulhou nas veias ao ouvi-la ensaiar um gemido enquanto aprisionava meu lábio inferior entre seus dentes, e minha sanidade evaporou quando ela se remexeu em meu colo, provocando um leve atrito que tirou meu fôlego. Subi meu toque e brinquei com o tecido de sua roupa, ansiando o calor que eu sabia que encontraria se apenas avançasse mais um pouco entre suas pernas.
se empenhou em traçar um caminho torturante de beijos por minha mandíbula, seguindo para meu pescoço. Suas unhas arranharam de leve o outro lado de meu rosto em provocação, e eu beijei sua palma, sobre o curativo que havia acabado de fazer. Sorrateiramente, continuei escalando sua perna por sobre o shorts até atingir o cós, acariciando a região logo abaixo de seu umbigo com meu polegar antes de embrenhar meus dedos sob o elástico de sua calcinha. Ela soltou o ar pesadamente, descolando sua boca da parte de trás de minha orelha, e eu prossegui, descendo sem pressa e explorando cada centímetro de pele no caminho. Abaixei a cabeça ao atingir meu destino, repousando minha testa sobre seu ombro com os olhos fechados, concentrado em sentir cada reação que seu corpo oferecia aos meus estímulos. Ela respirou fundo quando as pontas de meus dedos encontraram a umidade entre suas coxas; sem exercer muita pressão, acariciei a região sensível e senti minha boca salivar ao perceber o quão intenso era seu desejo.
– Quero te beijar – sussurrei para a curva de seu pescoço, completamente refém. trouxe sua boca até a minha, respirando com dificuldade devido aos lentos movimentos de meus dedos, e eu retribuí o beijo que ela me deu. No entanto, não era àquele tipo de beijo que eu me referia. Eu ainda estava sedento.
– Eu quero... – ofeguei, removendo minha mão de dentro de seu shorts e passando meu braço por baixo de seus joelhos; envolvi sua cintura com o outro, e levantei da cadeira, carregando-a comigo, para deitá-la sobre a mesa ao nosso lado, empurrando todo o resto.
Seus quadris estavam alinhados com a beirada do móvel, suas pernas pendiam uma de cada lado de meu corpo, e ela se esparramou sobre a madeira escura, com o olhar fixo no meu. Minhas mãos deslizaram por sua cintura, levando junto consigo em sua subida a camiseta do pijama, e meus lábios encontraram sua barriga. Ela arqueou as costas em resposta à minha carícia, removendo a primeira peça de roupa e expondo seus seios. Levei meus beijos até eles, com toda a paciência e dedicação do mundo. mantinha os lábios entreabertos, e por entre eles uma sinfonia de gemidos baixos escapava a cada toque de minha língua em sua pele. Uma vez livre da parte de cima de seus trajes, minhas mãos passaram a trabalhar na parte de baixo, empurrando os dois itens restantes de vestuário enquanto a distraía com beijos e leves mordidas.
Assim que a despi por completo, espalmei minhas mãos ao lado de sua cabeça e olhei fundo em seus olhos. Meu rosto pairou a centímetros do dela quando enfim finalizei minha frase:
– Te beijar.
Mantive contato visual conforme erguia meu tronco e me sentava numa das cadeiras atrás de mim, bem diante dela. Percorri o interior de suas coxas com minhas mãos e as afastei, umedecendo meus lábios discretamente para então saciar meu desejo e beijá-la exatamente onde queria.
Seus dedos se embrenharam em meu cabelo de imediato, acompanhados de um longo gemido. Continuei acariciando suas pernas conforme minha língua se movia, por vezes em círculos, por vezes, verticalmente, ora rápido, ora devagar. Quanto mais eu provava dela, mais eu queria; não havia melhor sabor no mundo. Meu corpo inteiro queimava de vontade, e eu somente não dirigi minhas mãos ao volume incômodo em minhas calças porque estava concentrado demais em fazê-la se contorcer sobre a mesa sem nem sequer ter removido uma peça de roupa.
Sua respiração tornou-se ainda mais irregular após algum tempo, e só para provocá-la, interrompi minhas atividades e ergui um pouco o rosto para observá-la: seu corpo estava recoberto por uma fina camada de suor, o que apenas o tornava ainda mais convidativo, e suas feições denunciavam o alto nível de excitação no qual ela se encontrava, à beira do abismo. Imediatamente percebendo minha pausa, ela me olhou; deslizei uma mão por sua barriga, e entrelaçou seus dedos nos meus. Retomei meu trabalho, e em poucos minutos ela atingiu o ápice, apertando minha mão com força.
Relutante, permaneci onde estava, permitindo que ela recuperasse o fôlego e recolhendo o resultado de meus esforços. Somente parti o beijo quando ela ergueu o tronco da mesa. Levantei meu rosto até o dela, recostando-me na cadeira, e enxuguei meus lábios com as costas da mão, com os olhos vidrados. Sua boca e bochechas estavam vermelhas, e seu cabelo desgrenhado denunciava claramente o evento nem um pouco ortodoxo que havia se passado. Ela estava nua, sentada diante de mim, com as pernas abertas e a respiração irregular; talvez fosse a saudade, talvez fosse o efeito sempre inebriante de levá-la ao orgasmo, talvez fosse verdade – não importava.
Eu nunca a tinha visto mais linda. E mais minha.
Com um sorriso sujo, ela esfregou um dos pés no lado externo de meu joelho, e aos poucos o apoiou por inteiro sobre minha coxa. Continuamos nos encarando, numa espécie de transe, e ela continuou seu trajeto, parando ao atingir minha virilha com a ponta do pé. Levei minha mão até sua panturrilha, acariciando a pele quente, prestes a me render. Por mais que eu amasse dominá-la, em nossas disputas silenciosas por poder, eu geralmente jogava a seu favor, minha única estratégia tendo como objetivo vencer a mim mesmo e deixar que ela conquistasse o controle. Eu não me importava com a derrota, pois sabia que a sanção seria tão incrível quanto a vitória, se não ainda mais.
havia vencido assim que coloquei os olhos nela; eu já estava mais do que acostumado a perder.
– Sabe o que é curioso? – ela indagou, ficando de pé – Como é que, vez ou outra, eu me encontro completamente nua, enquanto você ainda está completamente vestido?
Ergui uma sobrancelha, observando-a cercar minhas coxas com as suas e sentar em meu colo, com as mãos sobre meus ombros.
– Isso é uma cena recorrente entre nós? – rebati, fingindo não me recordar das inúmeras outras vezes em que tal situação havia ocorrido, mas com especial carinho, da primeira vez, na noite do baile de primavera; ela assentiu, mordendo o lábio – Hm... E isso te não te agrada?
Ela suspirou pensativamente, descendo as mãos por meu peito e abdômen e parando ao atingir a barra de minha camiseta, enquanto as minhas ocupavam seu lugar de costume em sua cintura.
– Pra ser bem sincera, eu não tenho do que reclamar – ela respondeu, livrando-me da peça de roupa sem cerimônias – Mas eu prefiro muito mais quando o jogo está equilibrado.
– Ah, é? – provoquei, antes de segurá-la pela cintura e puxá-la para mim – Fico grato pela consideração.
Suas unhas se fincaram em meus bíceps em resposta ao contato direto de nossos corpos. Seus mamilos se enrijeceram contra minha pele, me fazendo ver estrelas; o mero fato de estar abraçado a ela sem barreiras entre nós já bastava para me tirar do sério.
Já ficou óbvio que eu era pirado por aquela garota ou preciso elaborar mais um pouco?
– Se eu fosse você, não comemorava antes do tempo – ela retrucou, beijando preguiçosamente o canto de minha boca – Eu nunca disse que igualaria o placar... Pelo menos não tão cedo.
percorreu meus lábios com a ponta de sua língua, levando suas mãos até o botão de minha calça, e eu senti calafrios descerem por minha espinha ao me dar conta de que aquilo realmente estava acontecendo. Todas as noites, desde que ela deixou a casa de meus pais pela primeira vez, eu imaginei aquele momento em minha mente, quando enfim sentiria seu toque de novo. Fechei os olhos, implorando por misericórdia, e respirei fundo ao sentir o botão abrir, aliviando parte da pressão que começava a me sufocar. O zíper seguiu o mesmo caminho, permitindo que as pontas de seus dedos passeassem por parte de meu membro por sobre a cueca. Ela depositou mais um beijo no outro canto de meus lábios e manteve o rosto colado ao meu, de forma que seus cílios fizessem cócegas em minhas pálpebras. Tudo em mim parecia tão quente que eu temia uma queda de pressão a qualquer instante – não por meu bem-estar, mas pela interrupção indesejada que isso causaria.
Contrariando minhas expectativas, ela levou suas mãos de volta para meus ombros, abandonando meus jeans exatamente onde estavam, e iniciou um movimento de vai e vem com seus quadris, para frente e para trás. Tal processo originou uma fricção que, juntamente com toda a encenação bastante fiel do ato em si, bastou para me fazer jogar a cabeça para trás em poucos segundos.
– Porra, ... – suspirei, perdendo o controle e me agarrando à sua cintura ondulante na tentativa de não estragar o momento antes da hora. Seu corpo reproduzia todos os detalhes ao se afastar e voltar a se aproximar do meu: suas coxas se retesavam e relaxavam sobre as minhas, seus seios roçavam em meu peito, seu rosto subia e descia a cada investida imaginária... Era real demais, e eu só tinha tirado a blusa.
Aquela pirralha estava acabando comigo.
Como se todo o resto não bastasse para me enlouquecer, ela começou a gemer perto de meu ouvido, deixando-se levar pelo efeito de seus movimentos em seu próprio corpo. Mordi meu lábio com força, respirando fundo e de olhos fechados, imaginando o que seria de mim quando eu realmente estivesse dentro dela. Se já me encontrava naquele estado com uma mera simulação...
– Eu preciso... – murmurei, levando uma de minhas mãos até seu cabelo e prendendo algumas mechas em meu punho. Não consegui terminar a frase, pois já estava atingindo o limite de meu autocontrole, mas não precisei. Ela também precisava.
Numa sequência de movimentos desajeitados e apressados, removemos o resto de minhas roupas; porém havia mais um problema.
– A camisinha – ela disse, assim que nos vimos livres de qualquer vestimenta – Eu já volto.
Rosnei todos os xingamentos que conhecia ao vê-la correr para fora da cozinha e subir as escadas, levando uma das mãos à cabeça e puxando os cabelos para trás. Lancei um olhar constrangido à situação entre minhas pernas, nem um pouco satisfeita com a interrupção, e fechei os olhos, tentando recuperar um pouco do fôlego e frear os pensamentos impuros que bombardeavam minha mente. Se ela demorasse a voltar, eu acabaria terminando o trabalho sozinho, num ato totalmente involuntário.
Poucos segundos se passaram até que ouvi passos apressados se aproximando, e se a imagem de correndo até mim, sem roupas, rasgando a pontinha da embalagem da camisinha com os dentes não fosse trágica, teria sido cômica. E muito excitante em algum momento posterior, sem dúvida alguma.
Ela retomou sua posição em meu colo, habilmente lidando com o preservativo, e ambos soltamos suspiros aliviados que mais pareceram risinhos torturados quando tudo estava certo. Acariciei suas coxas, inclinando a cabeça em sua direção e roubando um rápido, porém intenso beijo para refrescar nossas memórias. Num movimento simples e fácil, tão natural quanto respirar, eu estava dentro dela.
Unimos nossas testas, ambos com os lábios entreabertos em êxtase, e permitimos que nossos corpos absorvessem todas as sensações que explodiam dentro de nós. Uma vez recuperada do furor inicial, ela voltou a se mover sobre mim, da mesma forma que fazia por sobre minhas roupas. Seus braços envolveram meu pescoço, apoiados em meus ombros para ajudá-la a tomar impulso, e minhas mãos recaíram sobre sua cintura, guiando seus movimentos; sem mais floreios, transamos no meio da cozinha.
O calor que me preenchia se tornou ainda mais insuportável adicionado ao calor que vinha de dentro dela. Seu corpo me abraçava, por dentro e por fora, transformando-se numa nova atmosfera sem a qual eu sufocaria e que ao mesmo tempo me levava cada vez mais para perto de uma espécie de morte. Eu não me julgava capaz de suportar toda a intensidade que ela compartilhava comigo a cada som rouco que escapava de sua garganta, a cada sopro de ar quente que acarinhava meu rosto, a cada espasmo interno de seu corpo, que eu também sentia. Naquele momento, que pareceu se desenrolar em velocidade reduzida, eu tive certeza de que se eu estava doente, ela era a cura, e de que se ela era o meu fim, ela também era o meu começo.
Ela era tudo, e se eu tivesse que viver sem ela mais uma vez, nada me restaria. Nem eu mesmo; tudo ficaria com ela.
Apesar do ritmo acelerado de nossos corpos, levei meus lábios até os dela, e coloquei neles tudo o que tinha. Apertei sua cintura com força, colocando na ponta de meus dedos tudo o que tinha. Abri meus olhos por um instante, bem a tempo de observá-la atingir o clímax novamente, e coloquei neles tudo, tudo o que eu tinha.
Era tudo dela, de qualquer forma. E eu não queria que fosse diferente.
Meu ápice veio logo em seguida, acompanhado de um beijo demorado no pescoço. descansou a cabeça em meu ombro, mantendo o rosto escondido onde seus lábios ainda repousavam vez ou outra, e eu acariciei suas costas, aos poucos retornando do estado de graça ao qual ela havia me elevado.
– Lembre-se de colocar algumas camisinhas no kit de primeiros socorros a partir de hoje – ofeguei quando fui capaz de raciocinar claramente outra vez, após beijar seu ombro.
– As desvantagens de transar em lugares não convencionais – ela riu, com a voz serena – Nada com o que já não estejamos acostumados.
Sorri ao ouvir seu comentário, aliviado por poder finalmente revisitar nossas memórias sem ser instantaneamente esmagado por toda a culpa e sensação de desmerecimento. Tudo parecia tão ridículo de minha parte... Tentar mudar quem eu era, tentar adotar uma nova postura, tão radicalmente diferente da minha, por um erro do passado que havia retornado para acertar as contas e que era completamente desvinculado do resto. Ela esteve certa o tempo todo. Eu precisava viver por mim, não pelos outros, nem mesmo por ela – por mais que tal noção me parecesse um tanto difícil de aceitar, já que meu amor por ela vinha sendo grande parte de mim há alguns anos, e ainda que um dia ele deixasse de existir, eu simplesmente não conseguia me ver desligado de sua vida. Ainda que no futuro eu deixasse de amá-la, por qualquer motivo que fosse, eu sentia em meus ossos que continuaria fazendo o que me fosse possível por ela.
– A propósito, obrigada... – ela murmurou, e sua voz tão próxima me trouxe de volta à agradável realidade – Pelo curativo.
Peguei sua mão e a ergui até meu rosto, beijando a ponta de cada dedo com calma e, por fim, o esparadrapo em sua palma.
– Sempre que precisar, é só chamar – brinquei, fitando nossos dedos entrelaçados.
afastou o rosto de meu pescoço para me olhar, com uma sobrancelha erguida em tom provocativo.
– Pode deixar – ela disse, abrindo um sorriso malicioso – Eu vou chamar.
('s POV)
– Oi, mãe.
– Olá, querida. Como estão as coisas por aí?
Segurei o telefone com força, analisando a imagem refletida no espelho parcialmente embaçado do banheiro diante de mim. Engolindo em seco, concluí que minha mãe não iria querer saber como estavam as “coisas” por aqui... Pelo menos não por enquanto.
– Está tudo bem – respondi, quase não conseguindo pronunciar a última palavra devido à mordidinha que levei no lóbulo da orelha – E por aí?
– Ah, você sabe como eu me sinto nessas viagens a trabalho – mamãe suspirou, enquanto eu fazia o mesmo, só que por motivos bem diferentes - É sempre uma chatice. Mas eu vou sobreviver.
– Claro que vai – afirmei, com todos os meus esforços concentrados em manter minha voz firme e casual apesar das sensações que as mãos de , viajando por baixo da camiseta que lhe pertencia e que desde nosso banho interminável cobria meu corpo, despertavam em mim, juntamente com seus lábios vagando sem rumo por meu pescoço. Lancei um olhar repreensivo a seu reflexo, que apenas sorriu de forma nada arrependida e continuou suas provocações.
– Bem, eu tenho que ir, só liguei para saber se você estava bem – ela disse, e o tom maternal pesado em sua voz teria me feito sorrir, se não fosse por todo o resto acontecendo ao mesmo tempo - Você estava tão tristinha quando nos despedimos...
, ouvindo o comentário de minha mãe devido à sua proximidade ao telefone, cessou suas carícias de imediato e respirou fundo, nitidamente afetado pelo que escutou. Seus olhos não encontraram os meus, e eu reforcei a convicção em minha voz ao respondê-la:
– Eu estou bem agora, juro. Não se preocupe.
– Que bom, filha – mamãe sorriu, aliviada – Te amo. Logo estarei de volta.
– Também te amo – falei, com o olhar fixo no espelho, antes de desligar e me virar para o ser cabisbaixo atrás de mim – Ouviu o que eu disse? Estou bem agora.
– Eu sei... Mas continuo me sentindo culpado – ele suspirou, ainda evitando meu olhar – Sua mãe deve me odiar agora.
Revirei os olhos, soltando um risinho desdenhoso ao me desvencilhar de seu abraço e deixar o banheiro.
– Claro que não, seu besta! Talvez ela tenha se preocupado no começo de toda a confusão, mas quando percebeu que você estava tentando consertar as coisas, entendeu que não havia motivo pra cavar seu túmulo. Ela só quer me ver feliz, e sabe que isso é o mesmo que me querer com você... Como ela poderia te odiar?
Com uma expressão nem um pouco convencida, me seguiu até meu quarto; notando sua dificuldade em deixar o assunto de lado, venci a curta distância entre nós e envolvi seu tronco com meus braços, apoiando meu queixo em seu peito para que ele não pudesse fugir de meu olhar. As pontas de nossos narizes se tocaram quando ele aproximou o rosto do meu, e meu abraço foi enfim retribuído.
– Chega de culpa entre nós – murmurei, em tom definitivo, ainda que carinhoso – Estamos juntos agora, é só o que importa. Combinado?
Após alguma hesitação, ele abriu um sorriso derrotado e assentiu, unindo nossos lábios num beijo tranquilo. Nem bem o partimos, meu celular voltou a tocar em minha mão. Franzi a testa, me perguntando quem poderia ser, e a atmosfera de felicidade que havia acabado de construir ao redor de nós dois evaporou assim que li o nome no visor.
– Quem é? – indagou, com certo alarme, ao perceber a mudança em meu rosto. Me forcei a reagir, ignorando a ligação e balançando a cabeça.
– Não sei, era um número desconhecido – menti, sabendo na hora em que as palavras saíram de minha boca que ele não acreditaria. Dei-lhe as costas e me afastei alguns passos, tentando retomar a calma que me dominava há poucos segundos. Como previ, ele não se contentou com minha desculpa mais do que esfarrapada.
– Você pareceu conhecer o número, e muito bem... Era ele, não era?
Fechei os olhos pesarosamente, atirando o celular na cama à minha frente, e não respondi. De que adiantaria mentir de novo? E eu não queria dizer a verdade, assumir que ainda havia um problema a ser resolvido, quando tudo o que eu mais desejava era fingir que nada mais existia além de nós dois.
– Eu vou resolver isso agora mesmo – rosnou, se aproximando em passos determinados e pegando o aparelho sobre o colchão – Chega desse inferno.
– Não! – exclamei, roubando-o de volta com rapidez – Ignore, uma hora ele vai desistir.
– E enquanto ele não desiste, você é obrigada a ficar aguentando esse terror psicológico? – ele rebateu, inconformado – Não posso deixar que isso aconteça. Ele já te fez mal demais, chega.
Quando ele fez menção de pegar o celular de mim, eu o impedi com uma mão em seu peito.
– , por favor – pedi, deixando claro que já estava cansada antes mesmo de a discussão começar – Deixe pra lá. Se ele ligar de novo, prometo que te deixo atender e falar o que quiser. Mas por ora, esqueça isso.
Meus argumentos pareceram não funcionar totalmente, pois ele ainda manteve sua postura ofensiva. Insisti.
– Por favor. Eu só quero aproveitar o resto desse fim de semana com você, sem ninguém atrapalhando. É só o que eu peço.
Após respirar fundo algumas vezes, fixou o olhar no meu, e o que disse fez com que um arrepio desagradável percorresse minha espinha.
– Você precisa parar de protegê-lo... Antes que sua passividade acabe se voltando contra você.
Ao mesmo tempo em que seu tom de quem sabia mais do que deveria tenha me assustado um pouco, o que mais me atingiu foi a insistência em resolver o problema imediatamente. Ele até podia suspeitar de que algo além do que minha versão da história cobria estava acontecendo, mas não fazia ideia do que se tratava, e enquanto eu não confirmasse a veracidade dos fatos que compartilhou na tarde anterior, ele continuaria no escuro. Respirei fundo, retomando o controle sobre a situação, e devolvi na mesma moeda.
– Eu não estou protegendo ninguém a não ser nós dois. É tão errado querer passar um fim de semana, um mísero fim de semana sem ter que me preocupar com nada que esteja acontecendo lá fora? Depois de três meses longe de você, eu não posso simplesmente querer esquecer todo o resto e apenas me deslumbrar com o fato de que você está aqui, e que eu posso te abraçar, te beijar, olhar pra você quando quiser? Se ser egoísta por um fim de semana e só querer você é protegê-lo, então me declaro absolutamente culpada.
sustentou meu olhar exaltado enquanto eu falava, e quando terminei, sua expressão havia mudado de frustrada para levemente arrependida. Eu entendia seu impulso de afastar de uma vez por todas de nossas vidas, mas sabia que seria inútil deixá-lo tomar as rédeas da situação; por mais que o assunto a ser resolvido tivesse muito mais a ver com do que comigo, eu tinha plena certeza de que se alguém deveria intermediar aquele atrito, esse alguém era eu. Tudo o que eu queria era adiá-lo ao máximo, para ter certeza de que ele era realmente necessário. Não havia motivo para levar aquilo adiante se estivesse mentindo sobre a paternidade de Ben.
– Está bem – ele assentiu, sem coragem de insistir no assunto depois de meu discurso – Só por esse fim de semana.
Agradeci com os olhos, e ele rapidamente adicionou, erguendo o indicador em minha direção:
– Mas se ele ligar de novo, eu vou atender.
Revirei os olhos, e ergui o celular diante de mim.
– Ele não vai ligar de novo – afirmei, enquanto desligava o aparelho e voltava a atirá-lo sobre a cama – Pode acreditar.
Minha atitude rebelde fez com que ele desse um sorriso de canto, ainda um tanto relutante quanto a deixar o assunto de lado, mas eventualmente eu o convenci a deixá-lo de lado, pelo menos por ora.
O celular não tocou mais durante o resto do fim de semana.
– Você tem mesmo que ir?
riu contra meus lábios pelo que pareceu a milésima e ao mesmo tempo primeira vez nos últimos cinco minutos, enquanto ensaiávamos uma despedida no hall de entrada de minha casa. Estava anoitecendo e minha mãe chegaria a qualquer instante, o que significava que ele tinha que ir embora. Eu contaria a ela que havíamos nos acertado, mas não queria que ela descobrisse ao vê-lo em casa. Além do mais, ele havia insistido em voltar para a casa dos pais naquele domingo, para resolver como seria sua vida dali em diante. A hipótese de passar duas semanas em Londres e duas na casa dos pais parecia relativamente viável, embora meu coração resmungasse só de imaginar aquela mesma despedida se repetindo quinzenalmente.
– Eu volto logo, prometo – ele sussurrou entre um selinho e outro, acariciando minha cintura daquele jeito que subentendia um até breve.
– Acho bom mesmo... Se não, vou atrás de você.
– Hm, você indo atrás de mim soa bastante tentador...
Ri de sua idiotice, dando um tapa de brincadeira em seu ombro.
– Ai de você se não aparecer, !
Ele fez cócegas dos lados de minha barriga, e eu me contorci em seu abraço, sem conseguir me recordar da última vez em que havia me sentido tão feliz, ainda que estivéssemos nos despedindo. Mal havia me recuperado da crise de riso que ele provocara quando sua boca se aproximou de meu ouvido, e mais uma vez minhas pernas ameaçaram ceder ao peso de meu corpo.
– Estarei de volta antes que as marquinhas que deixei sumam por completo.
Subitamente sem fôlego, respirei fundo, apertando o tecido de sua camiseta em minhas mãos. soltou um risinho rouco e mordeu meu lóbulo antes de se afastar, com um olhar sujo que definitivamente ficaria gravado em minha memória até o seu retorno.
– Boa viagem – suspirei, ao retomar parte da consciência – Dirija com cuidado.
– Te ligo quando chegar.
Assenti, abraçando-o pelo pescoço ao nos beijarmos uma última vez, e quando abri a porta para que ele passasse, já estava morrendo de saudade. Ao observá-lo entrar no carro e acelerar, acenando com um sorriso pesaroso, me peguei pensando: se já estava doendo agora, que estávamos bem e ele ficaria longe por apenas alguns dias, como sobrevivi todo aquele tempo sem qualquer certeza de que nos veríamos de novo?
Uma semana se passou, durante a qual nos falávamos a todo momento por telefone ou Skype. Até minha mãe conversou com ele, ao entrar em meu quarto e me pegar tagarelando diante do computador. Pelo visto, ele teria que passar outra semana por lá, já que Ben parecia ter pegado uma forte gripe e precisava de um carinho extra. Ele apareceu numa de nossas conversas virtuais, com o nariz vermelho e as pálpebras pesadas, típicos sintomas do vírus, e me deu um aceno simpático, seguido de um espirro; correu para apanhar a caixa de lenços mais próxima e auxiliar o pequeno.
– Ugh, não aguento mais espirrar – ele balbuciou, um tanto grogue, e não hesitou em se aninhar no colo do pai, cochilando após alguns minutos. Enquanto se ausentou para colocá-lo na cama, eu tratei de espantar a história que me contara de minha mente, temendo deixar algo indesejado transparecer quando ele retornasse.
Por falar em , não recebi mais ligações ou visitas desde que o ignorei no sábado. O que era bom, pois tudo o que eu queria dele era distância, mas ao mesmo tempo, me preocupava. Estaria ele armando alguma coisa? Ou teria apenas desistido? Para quem parecia tão determinado a levar seu plano adiante, aquele sumiço repentino parecia suspeito demais. De qualquer maneira, me encolhi em minha bolha de negação e preferi me iludir com a segunda hipótese, ainda que a primeira ainda me perturbasse quando eu me permitia considerá-la.
Parte de mim queria, precisava descobrir se o que ele havia me dito era mesmo verdade... E eu até já havia pensado em como comprovar sua versão dos fatos. O problema era a outra parte de mim, que temia que tudo desandasse se eu ousasse admitir, ainda que por um segundo, que ele estava sendo sincero, e, portanto, continuava inerte, apenas adiando o momento em que eu teria que tomar uma atitude a respeito daquela bomba-relógio.
Resumindo: foi uma semana quase feliz, a não ser pelos breves momentos de terror que minha própria mente paranoica criava.
Mais uma semana se passou, e enfim retornaria. Contudo, ele apenas estaria de volta no sábado, e eu tinha um aniversário para ir na sexta-feira. Dianna, uma colega de faculdade, havia me convidado para uma pequena comemoração numa casa noturna, e permitiu que eu levasse acompanhantes. , que estava um tanto chateada com Ewan desde seu retorno da casa dos pais dele, aceitou na hora, mesmo sem conhecer a aniversariante, alegando que precisava de uma boa desculpa para encher a cara e curtir um pouco a vida. me incentivou a ir, alegando que eu precisava de um escape antes da semana de provas, e me advertiu quanto à parte de encher a cara, com mais veemência do que eu esperaria – e então me lembrei de quando apaguei em seu carro, para só acordar na manhã seguinte, de calcinha e sutiã, em sua casa... De repente, sua preocupação fez bastante sentido. Prometi me comportar, e ele me fez prometer outra vez.
– É sério, eu não vou ficar bêbada! – repeti pela décima segunda vez, rindo ao telefone enquanto me arrumava para a festa na casa de .
– Ninguém vai ficar bêbado essa noite, – ela reforçou, com um falso tom de seriedade, e sua risada nem um pouco convencida emanou do alto-falante do celular.
– Pra ser bem sincero, acho que você já está bêbada – ele retrucou, e ambas rimos também.
Se eu soubesse o que estava por vir, teria desistido de sair naquele exato momento e passado o resto da noite em meu quarto, rindo com pelo telefone até o sono chegar e levar consigo tudo o que poderia ter dado errado naquela noite.
– Você veio! Não acredito!
Disfarcei um sorriso envergonhado com um simpático assim que a voz razoavelmente estridente de Dianna atingiu meus tímpanos, e vi rir discretamente ao meu lado. Apesar da música alta e do falatório que preenchiam a casa noturna, boa parte do grupo de pessoas que a cercavam tiveram suas atenções roubadas pela exclamação surpresa da aniversariante, e as transferiram para mim, fazendo com que meu rosto corasse o suficiente para que minha vergonha fosse visível até mesmo sob a quase nula iluminação interna.
– Pois é... Eu vim – respondi, quando Dianna se aproximou para receber meu abraço – Parabéns!
– Obrigada! – ela agradeceu, após me soltar, e repetiu o procedimento com , ainda que mal a conhecesse, em seguida voltando a se dirigir a mim – E o seu namorado? Aquele deus grego... Não acredito que ele não veio!
Revirei os olhos, mais do que acostumada com o comportamento nem um pouco discreto de Dianna em relação a .
– Ele não pôde vir, mas mandou lembranças.
– Tipo um beijo? Na boca? – ela riu, e bastou um olhar mortífero meu para que ela gargalhasse e desistisse de me irritar – Brincadeirinha! Eu já arranjei meu namorado gato mais velho, não se preocupe.
Ergui as sobrancelhas, lançando um olhar surpreso para , que o retribuiu com um idêntico.
– Como assim? – perguntei, verdadeiramente curiosa. Dianna deu de ombros.
– Não é bem um namorado, é mais um rolo... De qualquer forma, nós nos conhecemos há pouco tempo, e ele pode até parecer um tanto desinteressado, mas eu não vou desistir! Talvez ele apareça hoje, então fiquem espertas. Ele é absurdamente gato, sério. Acho que dá até pra competir com o seu precioso... Como é o nome dele mesmo?
Engoli em seco antes de responder, sem poder evitar uma sensação estranha ao ouvir sua explicação.
– .
– Isso, isso – ela assentiu vagamente, antes de me puxar pelo pulso – Enfim, venham! Vou apresentá-las ao resto da turma.
Sem tempo para aprofundar meus pensamentos e certa de que ela já tinha um considerável nível de álcool correndo nas veias, apenas deixei que ela me guiasse, com em nosso encalço.
Quando enfim havíamos cumprimentado cada amigo de Dianna e nossa presença foi ofuscada pela chegada de novos conhecidos do grupo, respirei fundo e olhei para , que imediatamente notou os vestígios de preocupação em meu rosto. Sem dizer uma palavra, ela me deu as costas e seguiu numa determinada direção, ação que eu obviamente reproduzi, já sabendo nosso destino.
– O que houve? – ela indagou assim que a música alta foi notavelmente abafada pela porta do banheiro feminino.
Respirei fundo antes de falar, sabendo que ela me julgaria loucamente.
– Você não acha que...
– O rolo da sua amiga possa ser o ?
Não respondi, apenas desviei meus olhos dos dela, em parte surpresa por sua percepção, e em parte envergonhada por ser tão paranoica.
caminhou até o espelho e fitou seu reflexo, pensativa, antes de voltar a falar.
– Não vou negar que a hipótese também tenha me ocorrido.
– Eu sei que existem inúmeros homens mais velhos do que Dianna nessa cidade – falei, incapaz de conter o fluxo de palavras assim que recebi o incentivo dela para liberá-lo – Mas depois de tudo o que ele fez, principalmente nas últimas semanas, é tão estranho me sentir perseguida?
– Não, claro que não – suspirou, virando-se para mim de imediato – Estranho seria você não se sentir perseguida. Além de ser uma total burrice, já que claramente ainda não conseguiu o que disse querer.
Mordi o lábio inferior, sem saber como agir. Por mais que eu tentasse descobrir quem era o homem mais velho com quem Dianna estava se relacionando, e ainda que ele fosse mesmo , as chances de convencê-la de que ele provavelmente só estava com ela para me atingir eram quase nulas. Primeiramente, porque ela estava bêbada demais para falar de qualquer assunto com seriedade, e em segundo lugar, porque ela com certeza pensaria que era tudo uma questão de inveja, de orgulho por ela também ter um namorado mais velho. Como se eu desse a mínima para o que o resto das pessoas fazia com suas vidas.
– Não tenho como descobrir se é ele, e mesmo que consiga, não vou conseguir alertá-la – concluí, após uma breve pausa para raciocinar – E agora?
hesitou por um momento antes de voltar a se aproximar de mim e colocar as mãos sobre meus ombros.
– E agora nós deixamos isso de lado.
Franzi a testa, pronta para retrucar, mas ela foi mais rápida e me impediu de protestar.
– Ele está claramente tentando te perturbar, e você está claramente caindo na armadilha. Droga, todos nós estamos. Sim, talvez ele seja o cara de quem Dianna falou. E daí? Ele não vai encostar um dedo em você. Eu estou aqui, ele não tem como fazer nada contra nós duas, desde que estejamos juntas. Além do mais, e se não for ele? E se só estivermos sendo paranoicas? Chega! Seja o que for, hoje nós vamos nos divertir. Então trate de tirar isso da sua cabeça, porque essa noite você está de férias da sua vida. Há quanto tempo você não simplesmente relaxa, sem ter que se preocupar com coisas que vão além das típicas preocupações de uma adolescente?
Por mais que uma voz estridente continuasse a me preocupar no fundo de minha mente, era inegável que tinha razão. Se eu fosse cuidadosa, ele não teria oportunidades para me atingir. Além do mais, se a todo segundo eu encontrasse razões para me apavorar por causa de sua possível presença, não sairia mais de casa. Eu não tinha medo dele, ou pelo menos era o que ele precisava achar; eu não me intimidaria.
– Você está certa – admiti, enfim, revirando os olhos – Como sou idiota.
– Tudo bem, , sério – ela rebateu com um sorriso compreensivo – Até eu estou tensa desde que tudo isso começou. Sentir uma certa apreensão é natural, desde que não deixemos que ela nos paralise. Certo?
– Certo – assenti, mil vezes mais leve depois de nossa rápida conversa – Pronta para aproveitar a noite?
– Claro! Quer dizer, só preciso fazer xixi antes!
Voltamos a nos unir ao grupo de amigos de Dianna sem demora, decididas a aproveitarmos ao máximo o que a noite tivesse para oferecer. Colocamos nossas habilidades sociais (que não eram muitas, mas bastante eficazes quando o momento era favorável) em prática, e não demorou muito para que nos sentíssemos confortáveis com o resto da turma. Dianna tinha amigos muito mais legais do que ela – que tal opinião nunca chegasse a seu conhecimento.
– Aquele ali até que é bonitinho – sussurrou algum tempo depois, cobrindo a boca com a mão que não estava ocupada segurando uma garrafa de cerveja – E ele tá super olhando pra mim.
– ! – exclamei, relativamente baixo, mas ainda assim recebendo tapinhas no braço para que me contivesse – E o Ewan? Pensei que vocês só tivessem brigado, não terminado!
– Mas nós não terminamos... E eu só estou comentando, credo.
– Eu sei que você jamais o trairia – retruquei, depois de um gole da única cerveja que eu pretendia tomar naquela noite – Só estou me certificando de que o álcool não te fará esquecer isso.
– Ele foi um idiota comigo, me desculpe se estou tentando puni-lo, mesmo que ele não esteja aqui para se sentir castigado – ela deu de ombros, terminando sua bebida e lançando um rápido olhar para o rapaz que havia elogiado há poucos segundos.
– Fique à vontade... Só não faça nenhuma besteira – suspirei, observando Dianna se sentar no colo do tal amigo e beber de sua garrafa – Vai por mim, eu tenho uma vasta experiência no ramo.
bufou ao perceber que a atenção dele estava agora na aniversariante, e me deu uma cotovelada sutil.
– Tsc, não fala assim. Está tudo dando certo na sua vida agora, não seja pessimista.
– Você tem razão – concluí, com um sorriso bobo brotando em meu rosto ao me lembrar de que dali a algumas horas, eu estaria com – Acho que talvez agora as coisas comecem a funcionar pra mim.
Virando o rosto em minha direção, retribuiu meu sorriso e atirou seus braços ao redor de meus ombros num abraço rápido, porém sincero.
– Claro que sim. Você vai ver.
As horas passaram relativamente depressa. Estávamos nos divertindo, dançando vez ou outra, quando alguma música imperdível começava a tocar, e rindo bastante com alguns dos amigos de Dianna. Tínhamos acabado de voltar da pista de dança quando o celular de tocou, e sua expressão descontraída deu lugar a uma tensa assim que leu o nome no visor.
– É ele? – perguntei, já sabendo a resposta. Ela assentiu, e eu a imitei, em forma de apoio, para então observá-la se dirigir ao banheiro. Meus olhos continuaram perdidos na direção que ela seguiu por mais algum tempo, até que outra pessoa atraiu minha atenção ao se aproximar discretamente.
– Com licença – um homem desconhecido, usando roupas pretas e um avental da mesma cor, o que imediatamente me ajudou a identificá-lo como um barman, disse, com cuidado para não me assustar – Tenho um presente para a senhorita.
– Um presente? – gaguejei, após o choque inicial, e na mesma hora, fitei o pequeno copo preenchido por uma bebida transparente, acompanhado por um recipiente igualmente pequeno com um gomo de limão e um sachê de sal, sobre a bandeja que o homem trazia consigo.
– Sim. Esta bebida foi oferecida por um senhor que me pediu para entregá-la à senhorita.
Meu coração acelerou instantaneamente, bombeando desconfiança para cada centímetro de meu corpo. Externei minhas dúvidas sem pestanejar.
– Que senhor?
A resposta do barman quase teria me feito cair, se eu já não estivesse sentada.
– .
Mantive meus olhos no homem, que esperava uma reação decente, porém não pude esboçar uma. estava aqui? Como? Impossível! Ele estava na tela de meu computador minutos antes de sair de casa... Subitamente, a sensação de estar sendo observada me dominou. Senti meu corpo inteiro esquentar, especificamente meu rosto.
Olhar ao redor foi inevitável. Não encontrei quem eu procurava, o que meu cérebro julgou ser o esperado. A viagem que teria que fazer para estar ali era de mais ou menos uma hora e meia, e que, devido ao horário e à velocidade que seu carro era capaz de atingir, poderia facilmente ser reduzida. Era perfeitamente plausível que ele tivesse saído de casa assim que me despedi dele, e que tivesse chegado agora para me surpreender. A cada segundo, eu me convencia mais e mais de que aquilo era possível, de que ele realmente estava no meio de todas aquelas pessoas, esperando que eu o encontrasse e coroasse nosso reencontro com minha expressão de absoluta euforia.
– E então? – o barman questionou, ao perceber que estava distraída, e eu voltei a fitá-lo – A senhorita aceita o presente?
Meus olhos pousaram no shot de tequila esperando sobre a bandeja de prata enquanto eu tirava minhas últimas conclusões. Se o próprio barman estava me entregando a bebida, não havia motivo para desconfiar da procedência dela... Não era como se ele fosse concordar em servir algo possivelmente alterado a algum cliente, certo? Se fosse o caso, a vida noturna do mundo inteiro estaria em grande risco.
Lancei um rápido olhar na direção do banheiro, sem detectar qualquer sinal de , e ao perceber que o homem começava a ficar confuso diante de minha reticência, voltei a encará-lo e sorri.
– Sim... Claro que sim.
O barman retribuiu meu sorriso e transferiu os objetos da bandeja para a mesa em que eu estava sentada; depois, agradeceu com um aceno de cabeça.
– Tenha uma boa noite, senhorita – ele disse gentilmente, antes de se afastar e retornar ao seu posto.
– Obrigada – suspirei, examinando a bebida diante de mim com pensamentos conflitantes. Ao mesmo tempo em que eu queria apenas virar aquela dose e sair à procura de , flashbacks da festa na casa de Kelly Smithers me vinham à mente, dizendo que eu não deveria ingerir tal veneno. Enfim, cheguei a uma decisão razoável: aquela noite e a festa de Kelly não tinham qualquer relação entre si. Antes, eu estava sozinha; hoje, eu estava acompanhada não só de , mas também, muito possivelmente, de . Antes, eu havia tomado vários shots; hoje, seria apenas um.
Agindo por impulso, antes que meus temores infundados me impedissem mais uma vez, e mantendo as palavras de em mente, realizei o breve ritual da tequila, me utilizando dos três componentes servidos pelo barman.
Resisti à vontade de me levantar e procurar por alguns minutos, na esperança de que voltaria e me ajudaria em minha empreitada. Diante de sua ausência, no entanto, decidi que a encontraria depois, quando ela enfim retornasse para a mesa onde os amigos de Dianna pareciam ter estabelecido seu território. Pedi para que alguns deles – os mais sóbrios – a alertassem para me telefonar quando voltasse, e iniciei minha busca pelo espaço escuro, lotado e abafado da casa noturna, ainda sentindo o álcool queimar em minha garganta. Senti minhas pálpebras cada vez mais pesadas, e amaldiçoei a pequena, porém poderosa dose que havia ingerido. Será que ele riria de mim quando me visse naquele estado, zonza após uma cerveja e um shot de tequila? Do jeito que era ridículo, tiraria sarro de mim por dias.
Me apoiei numa parede para respirar fundo e tentar afastar a sonolência que se apoderava de mim numa velocidade absurda – eu realmente devia ficar longe dessa merda de bebida – quando enfim avistei uma silhueta familiar, com os cotovelos apoiados no bar atrás de si, me encarando com um sorrisinho de canto. Tive que reabastecer meus pulmões novamente, pois todo o ar que havia acabado de inalar desapareceu assim que nossos olhos se encontraram. Tentei ao máximo não parecer uma idiota ao sorrir de orelha a orelha e me aproximar, mas falhei por completo.
Assim que seu corpo estava ao alcance do meu, abracei-o com força, afundando meu rosto em seu pescoço, e ele soltou um risinho surpreso.
– Sentiu minha falta? – ele murmurou, e apesar de sua boca estar próxima de meu ouvido, o barulho ao nosso redor era tão alto que fazia sua voz soar diferente.
– Muita! – exclamei, apertando-o ainda mais em meus braços – Não acredito que você está aqui!
– Pois é... – assentiu, logo depois que o soltei para poder examinar seu rosto, um tanto embaçado pela combinação do escuro e das luzes frenéticas e pelo efeito irritantemente potente da bebida – Fico feliz que tenha gostado da surpresa.
– Ah, sim, eu adorei – respondi, acariciando seus ombros, e ao senti-lo fazer o mesmo em minha cintura, não pude conter minha sugestão indecorosa, levando minha boca até seu ouvido para murmurá-la – Mas vou adorar ainda mais quando dermos o fora daqui.
me observou momentaneamente, como que intrigado por minhas palavras, mas logo teve sua expressão contornada pela mesma malícia que eu mostrava no meu.
– Seu desejo é uma ordem – ele concordou, e só o que sei depois disso é que quando deixamos o estabelecimento e entramos em seu carro, a primeira coisa que fiz foi colar meus lábios nos dele.
Porque depois disso, tudo se resume a uma indiscernível escuridão, que durou muito além das horas em que permaneci adormecida.
O quarto estava ligeiramente iluminado quando abri meus olhos, sendo imediatamente atingida por uma sutil, embora bastante incômoda, dor de cabeça. Tudo estava fora de foco, e somente depois de me sentar na cama e piscar várias vezes, reconheci meus arredores.
Ou melhor, não os reconheci.
Minha primeira reação foi franzir a testa, seguida de batimentos cardíacos acelerados. Em segundos, eu estava alerta, inspecionando cada centímetro do ambiente à procura de algum elemento familiar, ao mesmo tempo em que tentava me recordar dos eventos que precederam minha presença naquele local. Nada fazia sentido. Nada.
Até o momento em que um item jogado sobre uma poltrona no canto do quarto fez meu estômago despencar e ameaçar expelir tudo o que eu já tinha ingerido na vida.
Lágrimas arderam em meus olhos, embaçando a imagem do suéter verde musgo atirado sobre a mobília.
Respirar era impossível, por mais que meu corpo tivesse iniciado um processo de hiperventilação. Pânico era pouco para descrever o sentimento que corria em minhas veias a uma velocidade absurda. Da cabeça aos pés, eu tremia, me encolhia, me abraçava, tentava me proteger do que já havia acontecido, ainda que eu não me recordasse de nada que atribuísse sentido àquela realidade.
Estaria eu sonhando? Alucinando? No inferno? Tudo ao mesmo tempo?
Um clique vindo da porta derrubou quatro opções num piscar de olhos. Assim como um animal assustado, ergui meus olhos na direção do som, e me deparei com a prova de que sim, aquilo tudo era 100% real.
– Bom dia, flor do dia!
Se eu já não estivesse tão apavorada, teria gritado a plenos pulmões depois de ouvir as palavras carinhosas e carregadas de falsidade de .
Continuei paralisada, completamente impotente diante de tudo o que se desenrolava diante de meus olhos. Meu cérebro entorpecido ainda tentava juntar os fragmentos inexistentes que certamente explicariam minha atual situação, sem qualquer sucesso. Quando se aproximou da cama, sentando-se na ponta mais próxima aos meus pé, estremeci ainda mais ao vê-lo diminuir a distância entre nós, porém não fui capaz de reagir de forma mais defensiva. Minha total vulnerabilidade fez com que traços de divertimento surgissem em seu rosto, o que só intensificou minha náusea.
– Como foi a sua noite? – ele indagou, num tom de voz supostamente amistoso que combinava com seu olhar irônico – Ah, é verdade. Você provavelmente não se lembra de muita coisa.
Mantive meu olhar apavorado fixo no dele, sem saber mais como me defender. prosseguiu após um breve silêncio, parecendo cada vez mais entretido.
– Sinto muito. Foi um mal necessário.
A naturalidade com a qual ele atropelava minha confusão ajudou a acelerar o rompimento do estado de choque, ainda que minha voz tenha levado alguns segundos para ressurgir.
– O que você fez? – murmurei, com o máximo de raiva que pude exprimir. Ele suspirou profundamente, segurando o riso, e respondeu com toda a displicência do mundo.
– Pra começar, acalme-se, eu mal toquei em você, tanto é que você ainda está completamente vestida. Com isso resolvido, digamos que, inicialmente, você estava numa casa noturna ontem, e eu também. Depois disso, eu, percebendo que seu fiel escudeiro não estava presente, resolvi lhe enviar um pequeno agrado no nome dele, com um ingrediente secreto nele. E finalmente, por mais idiota que esse plano soe, você ainda caiu como um patinho.
Absorvi sua explicação sucinta com dificuldade, ainda atordoada por absolutamente tudo. Algumas peças ainda faltavam, e eu não hesitei em apontar tais lacunas, buscando me manter racional e totalmente alerta diante dele.
– Como você sabia?
– Que você estaria lá? – ele completou, erguendo as sobrancelhas, e antes de responder, não pôde conter um risinho orgulhoso – Oras, sua querida amiga Dianna me convidou! Como eu poderia não aparecer, depois de ela ter demonstrado tanto interesse em mim? Sinceramente, tenho tido tanta sorte ultimamente que até eu me surpreendo.
Fechei os olhos por um instante, a cada descoberta mais aterrorizada. Então ele realmente era o homem misterioso... Meu enjoo se intensificou.
– Foi tudo uma armação, não foi? – perguntei, com a voz ainda rouca pelo desuso, embora já cheia de ódio – Você só se aproximou dela porque nos viu juntas?
concordou com a cabeça, nem um pouco envergonhado de seu ato vil.
– Vou confessar que não esperava que você aparecesse – ele comentou, sem poder disfarçar a satisfação que extraía daquela conversa – Já estava quase ameaçando desistir quando você chegou, e depois, pouco antes da sua amiga finalmente largar do seu pé e te deixar sozinha, exatamente como eu precisava que você estivesse para executar meu plano.
– Como você adulterou a minha bebida? – disparei, alimentada pela aversão a todo o esquema barato que ele havia arquitetado para me atingir.
– Aquele barman é meu amigo... Bastou caprichar na gorjeta pra que ele me fizesse um pequeno favor – piscou, radiante ao destrinchar sua artimanha – E o nome falso foi espetacular. Estou particularmente boquiaberto com minha genialidade.
Desviei meu olhar para baixo, fitando minhas mãos trêmulas sobre meus joelhos, sem acreditar que tudo aquilo era verdade. Como pude ser tão idiota?
– Então... não estava lá... – sussurrei para mim mesma, e recebi uma curta gargalhada em resposta.
– Claro que não, e devo dizer que essa foi uma das melhores partes. Eu estava cogitando a possibilidade de encontrar certa resistência de sua parte na hora de te trazer pra cá, mas foi exatamente o contrário. Mal conseguia se desgrudar de mim, pensando que eu era o seu querido . Preciso agradecer pela incrível colaboração.
– O que você quer? – falei, incapaz de suportar aquela conversa, mas ainda disposta a arrancar o máximo de informações possível dele – Por que fez tudo isso?
ergueu as sobrancelhas, e a cruel leveza em sua expressão deu lugar a uma seriedade ameaçadora e implacável.
– Tudo isso serviu pra provar que eu estou disposto a fazer o que for preciso para ter o que quero. Inclusive ameaçar as pessoas de quem precisarei para chegar lá.
Sustentei seu olhar determinado, perplexa.
Ben. O que ele queria era Ben.
Meu corpo ainda tremia, meu coração ainda batia freneticamente, o ar ainda me faltava, e lágrimas ocasionalmente ainda rolavam por meu rosto... Eu ainda estava em pânico, e não conseguia enxergar uma solução a não ser ceder. Se ele tinha sido capaz de ir tão longe apenas para me intimidar, o que faria se eu não concordasse em ajudá-lo? Estremeci ainda mais só de imaginar.
Após um suspiro frágil e derrotado, assinei minha própria sentença.
– O que eu preciso fazer?
Um sorriso vitorioso surgiu em seu rosto.
– Conseguir uma amostra de DNA de Ben. E manter segredo sobre nosso acordo com seu príncipe encantado. Não quero que ele se meta no meu caminho, já tenho obstáculos suficientes. Só quero que ele saiba quando tiver a prova em minhas mãos.
– Como vou conseguir uma amostra de DNA? – perguntei, incrédula – Ainda mais sem a ajuda de ?
deu de ombros, mantendo o sorriso e adicionando o triplo de desprezo.
– Seja criativa! Você tem uma semana.
Observei-o se levantar, mais do que satisfeito, e caminhar até a porta do quarto. Ao tocar na maçaneta, contudo, ele voltou a falar.
– Ah, a propósito, seu celular tocou a noite inteira. Acho que algumas pessoas devem estar preocupadas com o seu paradeiro... Talvez seja uma boa ideia ir logo para casa. Quem sabe você ainda consiga chegar atrasada para o almoço. Ou cedo para o jantar.
Assim que ele concluiu a frase e saiu do quarto, busquei um relógio instintivamente na mesa de cabeceira, e senti meu rosto empalidecer ao constatar que eram quase duas da tarde. Encarei os números no visor por um tempo que me pareceu infinito, forçando minha mente a funcionar e a processar tudo o que havia sido despejado sobre minha cabeça. Enxuguei meu rosto com as mãos, ainda trêmulas, embora novas lágrimas tenham substituído as antigas em meros segundos, e me obriguei a levantar da cama, notando que ainda usava meus sapatos da noite anterior. Ao encontrar minha bolsa, compartilhando a mesma poltrona do suéter, nem pensei em checar meu celular. Eu não queria ver nem falar com ninguém; eu só queria ir para casa e dormir, para sempre.
Deixei o cômodo e percorri o pequeno corredor até a sala, onde assistia TV do sofá. Não ousei olhá-lo, sabendo que seria impossível conter minha ânsia de vômito se o fizesse, e me dirigi à porta do apartamento. No entanto, quando estava prestes a fechá-la atrás de mim, não pude evitar olhar por sobre meu ombro e fazer uma última pergunta.
– Como posso ter certeza de que você não... Fez nada comigo?
A voz de foi totalmente indiferente ao responder.
– No momento, você não pode. Mas quando eu tiver meu filho, talvez possamos voltar a conversar sobre isso.
Fechei os olhos com força, me sentindo completamente suja, e ciente de que tal situação não mudaria até que ele me provasse que nada tinha acontecido. Sua resposta enigmática não foi suficiente para me tranquilizar, mas eu sabia que nada que eu dissesse me ajudaria a arrancar algo mais concreto dele. Eu me sentia tão cansada, tão podre, tão enganada, que nem sequer tinha forças para bater nele. Tudo o que eu queria era ir embora, pra bem longe, fugir daquela sensação horrível de ter sido usada, menosprezada, diminuída.
E o pior de tudo: eu não tinha uma prova sequer de que havia sido vítima de uma armadilha.
Talvez o pior de tudo tenha sido correr até a armadilha, abraçá-la, e deixar que ela me levasse para sua casa.
jamais me perdoaria. Eu jamais me perdoaria.
Com todos esses pensamentos em primeiro plano, e muitos outros, bati a porta do apartamento e desci as escadas, tentando desesperadamente conter meus soluços, por mais que soubesse que essa seria uma guerra perdida.
A janela do táxi estava completamente aberta, mas o ar continuava a me faltar. A cidade passava depressa diante de meus olhos enquanto eu me aproximava de casa, quando na realidade tudo o que eu queria era não ter que lidar com o que me esperava lá.
Agora que o susto inicial havia passado (se é que isto era realmente possível considerando-se a situação), meu corpo começava a indicar sinais de que algo além de álcool ainda corria em minhas veias. Mesmo tendo sido dopada, nada parecia fora do comum... Em outras palavras, nada parecia ter acontecido. Mas eu não tinha motivo algum para confiar em . De qualquer forma, o nojo que se apoderou de mim ao imaginar que os efeitos da noite anterior continuavam se manifestando em meu organismo através da leve tontura e náusea que sentia só causou, com sua intensidade, a piora desses mesmos sintomas. Meus olhos ardiam com lágrimas que eu me recusava a derrubar, negando cada uma delas com todas as minhas forças. Eu sabia que em algum momento elas me derrotariam, mas não ali, não tão facilmente; além do mais, o pior ainda estava longe de terminar. Eu teria que chegar em casa e certamente encarar perguntas, perguntas que eu não sabia como responder... Ao pensar nas possibilidades, meu coração só doía mais. Ter que relatar o ocorrido (isto é, o que eu sabia do ocorrido) para minha mãe... ...
...
Engoli um soluço, com a visão embaçada por lágrimas. O taxista se remexeu em seu assento, claramente desconfortável com meu estado deplorável.
Não me importei. Eu só queria sumir.
A curta caminhada do carro até a porta de casa foi terrível. A cada passo, minha vontade de correr na direção oposta só crescia; se ao menos eu tivesse para onde ir...
Não. O erro fora meu, e eu tinha que arcar com as consequências, não fugir delas.
Minhas mãos tremiam ao encaixar a chave na fechadura. Bastou destrancá-la para que passos fossem ouvidos do outro lado da porta, se aproximando rapidamente. Girei a maçaneta, ao mesmo tempo em que a primeira lágrima de muitas rolou por meu rosto.
– Filha... Graças a Deus!
Meus calcanhares ainda estavam sobre o tapete de boas-vindas quando vi minha mãe parada diante de mim, mais aflita do que nunca. Um sorriso aliviado surgiu em seu rosto, e suas mãos seguraram o meu, buscando uma resposta para meu sumiço em meus olhos. Os pensamentos e sentimentos desconjuntados que encontrou somente a preocuparam ainda mais, ao invés de confortarem-na.
– O que houve? O que aconteceu? Você está bem?
Respirei fundo, mesmo sabendo que a falta de ar persistiria, e tudo o que pude fazer em seguida foi desmoronar no abraço de minha mãe.
Ela murmurava perguntas desesperadas, mas eu não conseguia responder. Eu só chorava, e chorava, e me odiava, e queria poder voltar no tempo e evitar que aquilo estivesse acontecendo. Ela não merecia aquela preocupação.
Senti outro par de mãos sobre meus ombros e outra voz chamar meu nome, e mesmo sendo familiar, levei alguns segundos para reconhecê-los como sendo de . Quando consegui recuperar um pouco do controle sobre minhas emoções, vi que ela me encarava com os olhos arregalados, pálida, tão apavorada quanto minha mãe.
– ... O que aconteceu? – ela sussurrou, incapaz de elevar a voz diante de tanto medo. Fechei os olhos, evitando a preocupação gritante em seu rosto, e apenas balancei negativamente a cabeça. insistiu, repetindo sua pergunta com um pouco mais de veemência. Engolindo o choro que ameaçava me dominar novamente, balbuciei algumas palavras.
– Ele... Ele me enganou.
– Quem? Quem te enganou, filha? – minha mãe indagou imediatamente, enxugando minhas lágrimas com as mãos trêmulas.
Meus olhos voltaram a fitá-la, e a resposta saiu de minha boca após uma breve hesitação.
– .
Ambas adotaram feições ainda mais aterrorizadas ao terem seus receios confirmados. Minha atenção foi roubada não muito tempo depois, no entanto, por uma terceira figura, parada alguns passos atrás de minha mãe, que eu até então não tinha visto.
Meus pulmões foram esvaziados instantaneamente ao identificar diante de mim.
O choque me paralisou por alguns segundos. Sustentei seu olhar, vazio e ao mesmo tempo cheio de significados, até inspirar profundamente, como se tivesse acabado de emergir de um mar agitado, e correr para as escadas, puramente movida pelo pavor de sua reação ao descobrir o que tinha acontecido. Ouvi passos me seguirem, porém fui mais rápida e consegui me trancar em meu quarto, ignorando os chamados do outro lado da porta. Minha respiração estava superficial e entrecortada, não só pelo súbito esforço físico, mas também pelo nervosismo que se apoderava cada vez mais de mim.
Andei em círculos por um instante, tentando raciocinar, mas nada parecia aliviar meu pânico. Esfreguei o rosto com as mãos, enxugando as lágrimas que caíam de meus olhos, e senti cheiro de álcool e vestígios de cigarro em minhas roupas devido à noite anterior. A náusea que me incomodava desde que acordei voltou com força total, e eu corri para o banheiro, despejando todo o conteúdo de meu estômago no vaso. A fraqueza que se seguiu só me tornou mais refém do choro, que agora fazia com que soluços escapassem por minha garganta. Reuni minhas forças e tirei aquelas roupas, entrando no chuveiro para que o jato de água escaldante ajudasse a remover aquela sensação horrível de sujeira de meu corpo. Peguei a esponja e o sabonete e esfreguei cada centímetro de pele com todo o meu empenho, até me certificar de que mais nenhum traço de qualquer contato com , físico ou verbal, restava.
As lembranças persistiam. E eu não podia abrir minha cabeça, tirar meu cérebro dali de dentro e esfregá-lo também. Eu jamais me esqueceria.
Saí do banho e me enxuguei devagar, ainda tremendo da cabeça aos pés. Não ousei encarar meu reflexo no espelho ao escovar os dentes – três vezes. Não penteei meus cabelos; deixei-os pingando sobre minhas costas avermelhadas pela repetida fricção com a esponja. Vesti qualquer pijama que encontrei e parei diante da porta, onde minha mãe e ainda esperavam. Apesar de seus chamados terem cessado, eu sabia que elas estavam ali.
Eu sabia que ele também estava. Mas eu não o queria lá.
Eu não queria ter que abrir a porta, olhar para aquelas pessoas e dizer a verdade.
Mas eu o fiz mesmo assim.
Ninguém disse uma palavra ao me ver. Não ergui meu olhar para ninguém. Apenas foquei minhas energias em minha voz, me certificando de que ela seria audível.
– Me desculpem... Eu... Precisava de... Um tempo.
O silêncio se manteve por um breve momento antes de alguém se manifestar.
– Tudo bem – minha mãe assentiu, agoniada – Agora nos diga o que houve, querida... Por favor.
Continuei evitando os olhares de todos, e assenti de volta, caminhando até minha cama e me sentando sobre ela. Os três me seguiram; minha mãe e imediatamente se sentaram ao meu lado, colocando mechas de meu cabelo atrás de minha orelha e acariciando meus ombros em forma de apoio. ficou de pé diante da cama, como que incapaz de reagir apropriadamente. Mantive meus olhos baixos, ainda que eu ansiasse por descobrir qual era a expressão em seu rosto, e pude ver suas mãos trêmulas, fechadas em punhos, denunciando o nível de seu autocontrole para não sair correndo dali e procurar .
Virei a cabeça na direção de , e comecei a relatar o que havia acontecido.
– Ontem, quando você foi falar ao telefone com Ewan... Um barman me ofereceu uma bebida, dizendo que... Dizendo que a havia mandado para mim.
– ? Mas ele nem estava lá... – disse, absolutamente confusa.
– Exatamente – continuei, ignorando o medo absurdo das reações que o resto da história causaria – Foi tudo um plano de .
– Ele estava lá? – minha mãe perguntou, e eu assenti – Como ele sabia...
– Dianna, a aniversariante... Ele se aproximou dela há alguns dias, de propósito – respondi, voltando a me sentir enjoada – E também conhecia o barman... Ele planejou tudo.
Alguns segundos de silêncio se seguiram, até que eu decidi verbalizar o que todos já tinham deduzido.
– Ele me drogou... E me levou para sua casa.
A memória de ver “” em meio às pessoas, parado de costas para o bar, me veio à mente. Eu queria tanto que ele estivesse lá que deixei minha saudade me trair. Apesar da tristeza, prossegui.
– Quando eu o vi, depois de aceitar a bebida... Eu pensei que ele fosse...
Não pude completar minha frase. No entanto, alguém o fez.
– Você pensou que ele era eu.
Pela primeira vez, ergui meus olhos até os de , e vi refletida neles uma dor grande demais para não sucumbir às lágrimas. Confirmei com a cabeça, expressando todo o meu arrependimento em meu rosto, e ele fechou os olhos com força. Minha garganta se fechou momentaneamente ao vê-lo dar as costas para mim e cobrir o rosto com as mãos.
– Eu não sabia... Pensei que você... Que você estava lá... Para me fazer uma surpresa – falei, em tom de súplica, porém minha mãe me interrompeu.
– E então? – ela questionou, tentando evitar mais nervosismo de minha parte – O que ele fez?
Me recuperei do pavor que a reação de causou, e respondi.
– Ele disse que não fez nada comigo... Mas não me deu certeza. Eu não me lembro de nada depois de deixar a festa... Eu não sei o que ele pode ter feito...
apertou minha mão, apoiando a testa em meu ombro para esconder seu rosto e o medo nítido nele.
– Mãe... – murmurei entre soluços, ousando olhar para ela e fraquejando ainda mais ao encontrar seus olhos temerosos – Eu estou com tanto medo...
– Oh, meu bem – ela disse, com todo o amor do mundo, me abraçando mais uma vez e acariciando meu cabelo – Você está a salvo agora... Nós estamos aqui, e não vamos deixar que nada aconteça.
Ela sussurrou palavras de conforto por algum tempo, apoiada por , até que eu conseguisse conter minhas lágrimas novamente. Quando percebeu que eu estava mais calma, ela segurou meu rosto para que eu prestasse atenção no que diria.
– Nós vamos cuidar de você... E encontrar esse monstro e fazê-lo pagar por isso. Eu juro.
Assenti, desejando mais do que tudo que suas palavras magicamente se tornassem realidade.
– Nós vamos descobrir o que aconteceu... Está bem? – adicionou, massageando meu ombro – Vamos denunciá-lo. Se... Se algo aconteceu, um exame de corpo de delito é suficiente para que ele nunca mais possa tocar em você.
Engoli em seco, insatisfeita com aquela solução.
– Não tenho tanta certeza disso – falei, por mais que quisesse apenas acreditar que tudo realmente daria certo como ela disse – Pessoas me viram deixar a festa com ele... Voluntariamente. A não ser que o que ele usou para me dopar ainda esteja em meu sistema, ele pode alegar que eu saí de lá com ele por livre espontânea vontade.
– Vai dar certo, filha – minha mãe interveio, assentindo com convicção – Nós vamos provar tudo o que ele fez e colocá-lo na cadeia.
– Ele não tocou em você.
A voz de , tão grave e cheia de seriedade depois de tanto silêncio da parte dele, fez com que nós nos assustássemos. Ele ainda encarava a parede oposta, e seus ombros tremiam – de ódio, certamente.
– Como assim? – perguntou pelas três.
manteve seu tom contido, como se temesse perder o controle caso se exaltasse minimamente.
– Ele sabe de tudo isso... Sabe que existiriam provas que poderiam condená-lo. Tendo sido capaz de arquitetar todo esse plano, ele não seria burro a ponto de cometer um deslize desses.
Lentamente, ele se virou em minha direção, e com os olhos cheios de determinação, completou sua resposta.
– Além do mais, ele sabe que se tivesse encostado um dedo em você, eu seria capaz de matá-lo.
Um arrepio percorreu minha espinha ao ouvi-lo dizer tamanho absurdo com tamanha sinceridade; me levantei na mesma hora, e fui até ele, com lágrimas nos olhos.
– Nunca mais diga isso – implorei, erguendo minhas mãos até seu rosto – Por favor... Nunca mais.
travou o maxilar, devolvendo meu olhar apavorado com um rígido, ameaçador. Percebendo que ele se mantinha inflexível, longe demais, perdido em seu ódio, fiz a única coisa que estava ao meu alcance para trazê-lo de volta, mesmo que ainda me sentisse suja para sequer tocá-lo.
Meus lábios, úmidos com minhas lágrimas, encontraram os dele, e permaneceram ali até que ele soltasse parte do ar que prendia em seus pulmões, anunciando que a raiva que o cegava havia se dissipado. me abraçou pela cintura, mais apertado do que nunca, e enterrou o rosto em meu pescoço, como se buscasse se fundir a mim e absorver a minha dor para que eu não tivesse que senti-la sozinha. As lágrimas mais dolorosas caíram de meus olhos enquanto estava em seus braços.
Ouvi minha mãe e deixarem o quarto, percebendo que precisávamos de um momento a sós, e assim que a porta se fechou atrás delas, se desenroscou de mim e examinou meu rosto, acariciando cada traço com seus polegares, buscando por qualquer detalhe que fosse incompatível com sua lembrança dele. Seus olhos estavam avermelhados, e lágrimas ameaçavam cair a qualquer momento; ele me beijou mais uma vez antes que isso acontecesse.
– Eu sinto muito... – murmurei contra seus lábios – Eu não queria...
– Eu sinto muito... – ele interrompeu, incapaz de me libertar do aperto de seus braços – Eu sinto muito que ele tenha estragado a sua noite. Você estava tão feliz quando se despediu de mim... E eu nem pude fazer nada... Me desculpe...
– Não, não peça desculpas, – respondi prontamente, enxugando uma lágrima que rolava por seu rosto – Não foi culpa sua... Ninguém poderia prever que ele estaria lá.
– Como você está se sentindo? Está com alguma dor? – ele disparou, acariciando toda a extensão de meus braços.
Neguei com a cabeça sem nem pensar se algo realmente doía. A sensação de tê-lo perto de mim, me apoiando apesar de tudo, me fazia um bem maior do que eu podia mensurar.
– Nós vamos fazê-lo pagar... Caro. Está bem? Eu prometo.
– Eu sei que vamos – assenti, olhando-o com uma súbita determinação que não me pertencia – Vai dar tudo certo.
– Vai dar tudo certo – ele repetiu, com toda a convicção do mundo – Vamos, eu te levo até a delegacia. Nós vamos provar que esse cara não tem condições de permanecer em liberdade.
Me arrumei em alguns minutos, com certa ajuda de , e encontramos minha mãe e na sala. Fomos até o distrito policial mais próximo e prestamos queixa. Fiz todos os exames necessários, e por mais que me doesse ter que sair de lá sem os resultados, que levariam alguns dias para ficarem prontos, não tive outra opção. Aqueles seriam os dias mais longos de minha vida, sem dúvida.
Na volta para casa, passamos num restaurante e almoçamos (ou jantamos?) os maiores hambúrgueres de minha vida. Apesar de tudo, consegui relaxar um pouco. Estava rodeada das pessoas que mais amava, e que me amavam e me apoiavam incondicionalmente. Se eu teria que aguardar pelos resultados, era melhor tentar não pensar no pior, e todos à minha volta pareciam dispostos a me distrair a qualquer custo.
e passaram o resto do dia em casa. Ewan apareceu assim que chegamos, e já sabendo de tudo por meio de , apenas me deu um longo e apertado abraço, dizendo o quanto sentia muito por tudo e como eu podia contar com ele para qualquer coisa. Passamos o resto do dia vendo TV e buscando compensar o dia horripilante com uma noite tranquila.
Posso dizer que funcionou. Em alguns momentos, me vinha à mente, porém logo alguém me trazia de volta ao momento, e eu me forçava a abandonar os pensamentos negativos. Tudo daria certo, ou pelo menos era isso o que eu via nos olhos de cada um dos presentes.
e Ewan foram embora pouco depois da meia-noite, com muitos beijos e abraços. Levá-los até a porta foi a única coisa que fiz sem a companhia de desde que chegamos em casa; ele se recusava a me deixar, sempre com um braço ao redor de meus ombros, ou uma mão firmemente unida à minha.
Minha mãe nem titubeou, e o convidou para passar a noite. Ele já havia dito que o faria, quer ela permitisse, quer não, e eu também já havia concordado com seu plano. Eu precisava dele; a mera ideia de termos que nos despedir fazia meu coração doer, e eu ainda me sentia fraca demais para aguentar mais tristeza.
Nos despedimos de minha mãe, que parecia absolutamente exausta ao seguir para seu quarto, e fomos para o meu. me abraçou pela cintura assim que fechei a porta, e novamente seu rosto encontrou a curva de meu pescoço. Depois de uma eternidade apenas abraçados, em silêncio, encaramos um ao outro por um longo tempo, tendo nossas preocupações amenizadas por estarmos juntos. Naquele instante, protegida por seus braços, por todo o amor que ele demonstrava sem sequer dizer uma palavra, eu tive a certeza de que jamais conseguiria nos separar, por mais que tentasse.
E enquanto eu tivesse ao meu lado, eu era mais forte do que nunca. Eu era invencível.
– Feche os olhos – ele murmurou em meu ouvido, beijando meu maxilar rapidamente em seguida. Obedeci sem pestanejar, apesar da curiosidade. se afastou brevemente, e ao se reaproximar, passou o que parecia uma corrente de um colar por minha cabeça. Franzi a testa de leve, até que ele voltasse a falar.
– Pode abrir.
Ergui minhas pálpebras, e automaticamente olhei para baixo, encontrando o pingente de tartaruga que eu o havia dado de presente pender de meu próprio pescoço. Fitei o pequeno objeto por um momento antes de voltar a encará-lo, tentando entender o que ele pretendia.
– ... O que é isso? – perguntei, enfim, diante de seu silêncio satisfeito. Ele pegou o pingente e o fitou vagamente enquanto respondia.
– Isso... Isso é o colar que você me deu de aniversário. Você me deu esse colar, e no dia seguinte, você me deixou. Lembra?
Confirmei com a cabeça, engolindo em seco ao recordar aqueles momentos.
– Durante aqueles três meses de distância, a única lembrança que eu tinha de você, o único objeto que eu podia tocar que me fazia acreditar, ainda que por um instante, que eu te veria de novo... Era esse colar.
levou seus lábios até a tartaruga prateada, e a beijou antes de prosseguir, sem tirar os olhos dos meus.
– Quando eu segurava esse pingente, eu pensava em você... Em como você me faz uma pessoa melhor. E isso me motivava a querer ser alguém melhor... Para que eu pudesse voltar para você. E aqui estou eu.
Eu mal era capaz de piscar, completamente hipnotizada pela atmosfera que ele havia criado com suas palavras, sua voz, seu olhar, seu toque... Meu coração batia acelerado, feliz, radiante... As feridas profundas que havia aberto, estava, lentamente, cuidadosamente, carinhosamente, fechando. Levaria algum tempo, mas ele estava fazendo um ótimo trabalho apenas por estar ali comigo.
– Esse colar... É meu talismã. E eu quero que você fique com ele, pelo menos por um tempo, para que ele te dê a força de que eu precisei, e de que você precisa para encarar isso agora.
Respirei fundo, sentindo lágrimas tímidas se acumularem em meus olhos.
– E caso você se esqueça do quanto eu te amo e eu não esteja por perto para refrescar a sua memória... Lembre-se de segurar esse pingente.
Ele levou uma de minhas mãos até o colar, e fechou meus dedos ao redor da pequena tartaruga.
– E eu estarei pensando em você.
Sua mão cobriu a minha, e ele apenas olhou em meus olhos, deixando que eu assimilasse sua declaração. Quando enfim fui capaz de reagir, um sorriso apaixonado surgiu em meu rosto, o qual ele reproduziu com perfeição.
– Eu não fazia ideia de que meu presente significava tanto... – suspirei, lançando um rápido olhar para o pingente em minha mão e voltando a encará-lo – Obrigada.
– Como poderia não significar, se você significa tudo pra mim? – perguntou, verdadeiramente confuso com minha surpresa. Meu sorriso fraquejou diante do arrebatamento que suas palavras causaram; tudo que fui capaz de fazer foi observá-lo, absolutamente perplexa, e tentar entender o que eu havia feito para merecê-lo em minha vida.
Nenhuma resposta parecia satisfatória.
Mas, pensando bem, não era sempre assim entre nós dois? Não precisávamos entender... Apenas sentíamos.
Voltei a sorrir, com total serenidade, e envolvi seu pescoço com meus braços.
– Um dia... Um dia eu vou me casar com você – sussurrei ao pé de seu ouvido, e embora meu tom fosse sério, minha voz soava romântica, sonhadora – E nós teremos filhos. E vamos criá-los com todo o amor e carinho... E passaremos o resto da vida juntos, até eu ficar rabugenta demais e você ficar surdo de propósito. Ou nós podemos viajar pelo mundo, morar numa cidade diferente a cada mês, sem nunca nos apegarmos a lugar algum ou pessoa alguma a não ser um ao outro... E mesmo assim, mesmo quando essa vida acabar, seja ela como for, eu vou amar você.
Beijei seu maxilar, da mesma forma que ele havia feito comigo, e examinei sua reação, bem de perto. fechou os olhos, sorrindo da mesma forma que eu havia feito, como se nada nunca mais pudesse tirar aquela alegria de seu peito, e uniu sua testa à minha antes de falar, cheio de admiração.
– Para uma pirralha, até que você sabe exatamente o que dizer.
Rimos baixo de sua resposta, e iniciamos o primeiro beijo dos incontáveis que se seguiriam, em qualquer que fosse o destino que escolhêssemos a partir dali.
De alguma forma eu soube que, independentemente do que estivesse por vir, tudo daria certo.
A primeira coisa que senti ao despertar, antes mesmo de abrir os olhos, foi um braço ao redor de minha cintura, e uma mão sob a blusa de meu pijama. Um certo pânico se apoderou de mim durante os primeiros segundos de lucidez, nos quais ainda não havia me dado conta de meus arredores, e principalmente, de quem dormia ao meu lado, respirando suavemente contra minha nuca.
A segunda coisa que senti, ao erguer as pálpebras, foi um perfume familiar, acompanhado de uma voz familiar, que instantaneamente desanuviou minha mente e enviou uma onda de alívio por todo o meu corpo.
– Bom dia.
Me virei na cama o mais rápido que minha sonolência permitiu, deparando-me com um desgrenhado e com apenas um olho aberto. Ao ver meu rosto, ele abriu um sorriso fraco, que, apesar de lindo, tinha como principal característica preocupação.
– Bom dia – murmurei enfim, com a voz enrouquecida pelo desuso. examinou meu rosto contorcido pela claridade por alguns segundos antes de voltar a falar.
– Como está se sentindo? – ele perguntou, acariciando meu quadril com o polegar – Conseguiu descansar um pouco mais?
Assenti, me lembrando da interrupção em meu sono no meio da noite: um pesadelo horrível, em que eu me encontrava naquela mesma situação, acordando de manhã...
Mas não era quem me abraçava.
Estremeci só de lembrar. Ele pareceu perceber, pois me puxou para ainda mais perto de si, como se nossa proximidade fosse uma forma de me afastar de todos os pensamentos ruins. E de certo modo era.
– Você parece mais cansado do que eu – comentei, franzindo levemente a testa ao finalmente conseguir focalizar sua expressão – O que houve?
balançou negativamente a cabeça.
– Está tudo bem, não se preocupe.
Cerrei os olhos, sabendo que havia uma parte da resposta que ele estava omitindo, e que não demorou a vir quando ele percebeu que eu não desistiria tão facilmente.
– Não consegui dormir direito... Você sabe que eu sou assim, perco o sono às vezes. Só isso.
Respirei fundo diante de sua resposta, e decidi não questionar mais.
– Tudo bem... Foi um dia difícil, eu entendo – falei, acariciando seu rosto com todo o carinho do mundo – Sinto muito por te causar tanta preocupação. Eu nunca quis...
Ele segurou meu pulso com delicadeza assim que percebeu o rumo que a conversa tomava, e eu entendi o recado, abandonando minha frase incompleta.
– Não faz isso – ele murmurou, agora me encarando intensamente, sem vestígios de sonolência – Não faz... Você não me deve nenhuma explicação.
Engoli o resto de minhas palavras e apenas assenti novamente. Sorri ao vê-lo virar o rosto na direção de minha mão e fingir que a morderia, sabendo que arrancaria pelo menos um risinho de mim com sua criancice.
– Assim está melhor – ele sorriu de volta, orgulhoso de seu feito, e antes que meu rosto ficasse ridiculamente vermelho como sempre ficava quando ele me elogiava, uni meus lábios aos dele num beijo rápido, porém sincero.
– Senti sua falta – murmurei, com o rosto ainda bem perto do dele – Muito.
– Pensei que nunca fosse dizer – ele brincou, e antes que eu pudesse protestar, roubou outro beijo, que dessa vez durou tempo suficiente para que eu conseguisse me colocar sobre ele na cama. Ao perceber o rumo que estávamos tomando, no entanto, ele respirou fundo e partiu o beijo.
– O que foi? – sussurrei, franzindo a testa. hesitou por um instante antes de se sentar na cama; percebendo que o assunto era grave, fiz menção de voltar a ocupar meu lado do colchão, o que ele impediu ao segurar minha cintura.
– Pode ficar – ele disse, levando uma de suas mãos até a alça de meu pijama e colocando-a de volta à sua devida posição após escorregar de meu ombro – Eu só... Quero conversar com você.
Permaneci em seu colo, com o coração mais acelerado a cada segundo. ergueu o olhar até o meu e respirou fundo, como se o que estava prestes a dizer lhe causasse grande dor.
– Odeio ter que trazer isso à tona, mas prefiro que tenhamos essa conversa agora a lidarmos com algo muito pior depois.
Já prevendo o rumo da conversa, engoli em seco e assenti. Ele prosseguiu, com extrema cautela na voz.
– Você passou por um evento traumático... E ainda não sabemos exatamente o quão traumático ele foi. De qualquer forma, nós precisamos entender de que forma isso te afetou. O seu pesadelo é um exemplo de que não está tudo bem, e você não precisa me dizer o contrário se não for a mais pura verdade. Qualquer desconforto que sentir, se em determinado momento quiser ficar sozinha, ter seu tempo pra digerir tudo o que aconteceu, por favor, me diga, está bem? Eu jamais pretendo... Forçar algum tipo de intimidade que você não esteja disposta a ter.
Encarei suas íris preocupadas por um instante, deixando o efeito de suas palavras rapidamente se alastrar por meu peito numa onda de alívio e ternura. Fiquei paralisada durante aquele breve momento, sem saber como reagir de forma a demonstrar o quanto eu apreciava sua iniciativa de me deixar o mais confortável possível naquela situação horrível. Senti lágrimas se formarem em meus olhos, e não questionei sua existência, apenas deixei que elas se acumulassem conforme eu finalmente articulava uma resposta.
– Obrigada... Por tomar esse cuidado. Por sempre cuidar de mim. Não vou mentir pra você... Eu estou apavorada. Só de pensar no que pode ter acontecido, eu... Eu sinto que meu coração pode parar de bater a qualquer momento, de tanto, tanto medo.
acariciou meu braço, com o maxilar travado numa tentativa de manter suas emoções sob controle. Com um suspiro e um sorriso sincero, continuei a falar tudo o que ele precisava ouvir, e que eu também precisava dizer.
– Mas eu não tenho medo de você.
As marcas de expressão em seu rosto, tão sérias, tão cansadas pela noite mal dormida, pareceram se atenuar ao som de minha declaração.
– Eu sei que você nunca faria nada pra me machucar. Pelo contrário, você sempre está tentando me proteger. Tem sido assim desde o início, e não me refiro apenas ao início do nosso relacionamento. Desde que você colocou os olhos em mim, tudo o que quis fazer foi me proteger. Você provavelmente acha que eu não entendo, mas tudo passou a fazer sentido com o tempo... Como se esforçou tanto pra que eu te odiasse, e depois, se esforçou ainda mais pra que eu te amasse.
Uma lágrima rolou por meu rosto, e meu sorriso se alargou ao senti-lo enxugá-la com o polegar, cada vez mais emocionado com o que ouvia.
– Não estou justificando o seu comportamento... Você era um idiota completo – prossegui, e ambos rimos – Mas agora eu vejo que foi uma tentativa, a melhor em que conseguiu pensar, de me preservar, de me manter a uma distância segura de tudo o que sentia. Você sabia que eu não estava pronta, e você esperou, pacientemente, até que eu tivesse maturidade suficiente para encarar essa realidade... A nossa realidade, que é mais forte do que tudo.
Suspirei profundamente, aliviada por dividir aquele momento com ele. Desde que reatamos o namoro, não tínhamos conversado tão abertamente sobre como nos sentíamos, e só então percebi que existiam muitas coisas dentro de mim esperando para serem ditas; e agora que o caminho estava aberto, a única opção era continuar deixando que elas fluíssem.
– Eu não sei o motivo disso tudo, de toda essa consideração por mim, mas eu agradeço... De todas as formas possíveis. Sem você, acho que eu teria caído num poço de vergonha e arrependimento depois de tudo o que aconteceu com . Talvez jamais voltasse a confiar em alguém novamente. Mas você está aqui, comigo, provando que ele é apenas mais um obstáculo a ser ultrapassado e esquecido... Que pessoas como ele não valem um futuro de rancor e solidão. Que há motivos pra seguir em frente.
Coloquei minha mão sobre seu peito, sentindo seus batimentos fortes e acelerados, assim como da primeira vez em que o fiz em nossa noite na Ferrari. A lembrança me encheu de felicidade, e fez com que outra lágrima caísse.
– Então, se o seu medo é me forçar a fazer algo que não quero, só me prometa uma coisa... Que nunca vai me pedir pra te deixar ir embora.
piscou algumas vezes, afastando o excesso de umidade que começava a se acumular em seus olhos, e apenas sorriu, sem palavras. Segurei seu rosto com as duas mãos e uni nossas testas com todo o carinho do mundo.
– Eu sou mais forte com você... Porque sei que posso confiar em você.
Após alguns segundos de perplexidade, ele envolveu minha cintura com seus braços e me puxou para mais perto, com o sorriso mais radiante que já havia visto até então. Não foi difícil reproduzi-lo ao sentir seus lábios próximos dos meus, murmurando minhas palavras favoritas:
– Eu te amo.
Abracei seu pescoço, sentindo o poder daquela frase se espalhar por cada cantinho de meu corpo e fazer com que eu me sentisse mais viva do que nunca. Nossas bocas se encontraram novamente, dessa vez sem hesitação, dúvida ou medo. Éramos só nós, e todos os sentimentos maravilhosos que compartilhávamos.
Tudo podia não estar bem, mas eu tinha certeza de que ficaria enquanto tivéssemos um ao outro.
Com as pontas dos dedos roçando de leve em minha pele, ele subiu suas mãos por minhas costas por debaixo da blusa, até atingir minhas clavículas e massagear meus ombros sem pressa. Um suspiro de aprovação escapou de meus lábios para os dele, que sorriu ao perceber que eu amolecia sob seu toque. Senti meu rosto esquentar, assim como todo o resto de meu corpo, o que ele também pareceu perceber, pois depositou um beijo em cada bochecha provavelmente corada antes de fazer o mesmo na ponta de meu nariz e sussurrar em meu ouvido:
– Eu te amo muito, pirralha.
Inclinei a cabeça para o lado, abrindo caminho para que ele beijasse toda a extensão de meu pescoço enquanto seu polegar flertava com a curva de meu seio. A alça do pijama voltou a escorregar de meu ombro, e dessa vez, ele não a colocou de volta; pelo contrário, interpretou o ocorrido como um incentivo para continuar explorando minha pele com sua boca, o que apenas prejudicou ainda mais minha respiração já suficientemente comprometida. E como se todo o seu empenho em fazer meus olhos revirarem já não estivesse causando resultados admiráveis, seu corpo também reagia de forma mais do que satisfatória aos breves tremores que causava no meu. Sentada em seu colo, com uma perna de cada lado de seu quadril, era fácil perceber o volume em suas boxers – extremamente fácil, já que estava em contato direto com minha região mais sensível, que em breve denunciaria o quão sensível estava naquele momento através da umidade prestes a ultrapassar o tecido da calcinha.
Meus músculos se contraíam a cada movimento dele, intenso, porém cuidadoso, como se nunca tivesse me tocado antes e não quisesse causar nada além de puro prazer com cada carícia. Mordi o lábio inferior para suprimir um gemido ao sentir suas mãos descerem até meus quadris, dolorosamente devagar, e arqueei as costas quando uma delas não se contentou em parar tão cedo e continuou seu caminho até se aconchegar entre minhas pernas. respirou fundo ao perceber o calor que se acumulara ali, inteiramente para ele; sugando o lóbulo de minha orelha, ele acariciou a região por mais alguns instantes, vez ou outra fazendo a parte interna de minhas coxas arder sob o efêmero toque de seus dedos.
Estava prestes a implorar para que ele me tirasse daquela agonia quando sua mão voltou ao cós do shorts e escorregou por baixo dele, fazendo o mesmo com a calcinha, até atingir seu destino e fazer arrepios correrem por minha espinha. Enquanto isso, sua mão livre explorava minha perna e bumbum, e sua voz adentrava meu ouvido a cada elogio sussurrado, carregado de desejo. Escondi o rosto na curva de seu pescoço quando seus dedos se movimentaram ao redor de meu clitóris, flertando com a ideia de enfim estimulá-lo diretamente. soltou um risinho rouco ao perceber que suas provocações estavam surtindo efeito, e continuou a leve fricção sem resguardos, brincando com minha entrada e beijando meu ombro a cada vez que eu me encolhia em seus braços, evitando me torturar demasiadamente.
– ... – suspirei, quando toda a tensão acumulada já começava a doer em meus músculos e minha calcinha já estava vergonhosamente molhada, assim como seus dedos – Por favor...
Levei minhas mãos até o elástico de sua cueca, um tanto desajeitada, e ele me impediu de continuar tentando tirá-la com a outra mão. Afastei meu rosto, buscando seus olhos com os meus em total confusão. Apesar dos nítidos sinais de excitação em sua expressão, suas palavras saíram de forma serena.
– Não... Agora é só você.
Franzi a testa, e estava pronta para protestar quando ele segurou meu pulso e fez com que minha mão seguisse o mesmo caminho por sob meu shorts, encobrindo as costas da sua com minha palma.
– Juntos? – ele perguntou, com um sorriso sugestivo, e sem esperar resposta, voltou a me masturbar, dessa vez mais depressa e aplicando mais pressão, do jeito que sabia que eu precisava. Fechei os olhos e apertei sua mão assim que ele acelerou seus movimentos, ciente de que ele se deliciava com cada reação minha, o que apenas contribuía para me levar ao êxtase. A vontade de vocalizar meu prazer só aumentava, e sempre que eu respirava tão pesado e acabava soltando um gemido baixo no processo, ele grudava os lábios nos meus e me pedia para fazer silêncio, ou então seríamos pegos no flagra por minha mãe. Do jeito que estava, completamente rendida, seria incapaz de perceber qualquer interrupção, e ignoraria qualquer interferência externa até chegar ao orgasmo, o que aconteceria a qualquer momento.
Minha pélvis se mexia involuntariamente, buscando o máximo de fricção possível, o que parecia agradá-lo imensamente, pois à medida que me movia mais depressa, ele começava a perder o controle sobre suas próprias reações. Tentávamos nos beijar, mas a falta de oxigênio falava mais alto, fazendo com que nos conformássemos com manter nossos rostos muito próximos, sempre tentando manter contato visual para apreciar as expressões contorcidas do outro. Minha mão por vezes acariciava seu pulso e antebraço, incentivando-o a acelerar o ritmo. A dele, por sua vez, apertava meu seio com vontade, brincando com meu mamilo e dificultando ainda mais minha situação.
Uma súbita onda quente de prazer fez com que eu envergasse as costas e mordesse o lábio inferior com força, anunciando que eu tinha meros segundos antes de atingir o clímax. entendeu o recado e intensificou ainda mais seu trabalho, observando com olhos satisfeitos o instante em que joguei a cabeça para trás e soltei pesadamente o ar pela boca, simulando um grito que não podia acontecer. Meu corpo inteiro formigava, cansado, porém preenchido por uma sensação maravilhosa, como se estivesse prestes a flutuar. Quando enfim pude me mexer, voltei a encará-lo, com as pálpebras pesadas e um sorriso bêbado no rosto. Busquei seu pescoço com meus braços, aproximando nossos troncos, e apenas ri, ainda exausta demais para esboçar outra reação.
– Respira – ele advertiu, caindo no riso comigo, e beijou o canto de minha boca. Apoiei a testa em seu ombro por um minuto, recuperando-me do exercício matinal, e ao sentir uma gota de suor escorrer por meu pescoço, percebi que estava com roupas demais para suportar a temperatura de meu corpo. Sem cerimônias, tirei a blusa do pijama e afastei meu cabelo do rosto, com plena consciência de que precisaria de um banho assim que pudesse ficar de pé.
ergueu as sobrancelhas ao se deparar com meu torso nu, e apenas observou meus seios subirem e descerem a cada vez que respirava, enquanto tirava sua mão de dentro de meu shorts e levava cada um de seus dedos úmidos à boca. Voltei a abraçá-lo quando ele saiu do breve transe, fazendo questão de pressionar ao máximo a parte superior de meu corpo contra a dele e me divertindo ao sentir seus músculos enrijecerem.
– E agora, ... O que faremos com você? – indaguei inocentemente, baixando o olhar para a deliciosa ereção que se fazia notar sob mim. Ele deu um sorriso torto, fechando os olhos por um momento, e negou com a cabeça, distraindo-se com a gota salgada escorrendo por minha pele e capturando-a com a língua gentilmente.
– Mais tarde – ele respondeu, apenas – Senão vamos nos atrasar para o café da manhã.
– Mas... – comecei, disposta a não ceder e deixá-lo tomar as decisões de novo, porém mal abri a boca e ele a atacou com a sua, sem a menor delicadeza dessa vez, roubando todo o ar de meus pulmões em meros segundos. se aproveitou de meu momento de distração e nos virou na cama, deitando-se sobre mim e prendendo minhas mãos com uma das suas sobre a cabeça. Com uma perna entre as minhas, ele pressionou o conteúdo apertado de sua única peça de roupa contra minha virilha, ainda me beijando fervorosamente; apesar de ter acabado de atingir o orgasmo, pude sentir meus músculos se contorcerem, preparando-se para mais uma rodada, ainda mais intensa que a primeira. No entanto, tão repentinamente quanto começou, ele logo parou de me beijar, e sem me dar chance de segurá-lo, se levantou da cama e seguiu até o banheiro, de onde reforçou sua ordem.
– Eu disse mais tarde, .
Encarei o teto, boquiaberta, mole, incrédula, e quando me recuperei do amasso relâmpago, revirei os olhos e bufei, virando de costas e enfiando a cara no travesseiro.
Já estava quase anoitecendo; estava sentada no sofá, assistindo a uma série aleatória sobre um lobisomem adolescente com o maxilar torto. havia saído um pouco antes do almoço, dizendo que precisava resolver alguns detalhes do apartamento e comprar um brinquedo que Ben queria, e prometendo ligar assim que terminasse tudo. Eu deveria convencer minha mãe a deixá-lo passar outra noite em casa no meio tempo, tarefa que já tinha conseguido cumprir.
tinha visitado há algumas horas, e saiu convencida de que eu estava relativamente bem, dadas as circunstâncias. Enquanto os lobisomens brigavam na TV, eu ainda estava meio chorosa depois de uma longa conversa com minha mãe, na qual ela basicamente me abraçou, me fez cafuné e me disse que tudo ficaria bem, fosse qual fosse o resultado de tudo aquilo. Eu estava cercada de pessoas que me apoiavam e não me deixariam cair, pelo menos não de cara no chão, sem esperanças de me reerguer... Como poderia não estar relativamente bem? Se não por mim, era minha obrigação estar bem por todas elas.
Uma questão ainda apertava meu peito... , e a maldita amostra de DNA que eu sabia que ele cobraria dali a seis dias.
Aproveitando a ausência de minha mãe, que estava no banho, enfim peguei meu celular e fiz o que passei o dia todo tomando coragem para fazer: busquei um nome na lista de contatos, cujo número havia roubado do celular de enquanto ele se arrumava para sair, e após respirar fundo, apertei o botão de iniciar chamada.
A pessoa atendeu sem demora.
– Alô?
– Elliot? – murmurei, me esforçando para não desligar na mesma hora.
– Pois não? – ele confirmou, sem reconhecer minha voz – Quem está falando?
Engoli o medo e respondi, mais alto dessa vez.
– É a ... Eu preciso da sua ajuda.
A mesa do jantar estava posta quando chegou, escondendo algo atrás de si. Ao abrir a porta, contudo, não foi nisso que reparei de imediato.
– O que aconteceu com o seu ros...
– Pra você – ele interrompeu, revelando o objeto que segurava e colocando-o bem perto de meu nariz.
– Uma rosa... – gaguejei, atordoada, e ele assentiu, sorridente. Ergui meus olhos da flor até os dele, e com a testa levemente franzida, aceitei o presente – Obrigada. Mas o que...
– Hm, que cheiro bom! – exclamou, respirando fundo – Não me diga que sua mãe fez torta de morango.
Pisquei algumas vezes, confusa com o excesso de empolgação dele, e assenti discretamente.
– Que maravilha! – ele sorriu, entrando e cumprimentando minha mãe – E aí, como foi a tarde de vocês? Tranquila, espero!
Fechei a porta da rua e segui até a cozinha, onde os dois conversavam normalmente, ainda com a testa franzida. Percebendo que ele estava fazendo de tudo para me evitar, o que era ridículo, porque em algum momento suas desculpas se esgotariam, decidi acabar de vez com o teatro.
– – chamei, com a voz firme. Mamãe me lançou um olhar assustado, sem entender o motivo de minha seriedade, e ele apenas suspirou, ainda sem me olhar.
– Nos dê um momento, por favor – pediu, dirigindo-se à minha mãe, que apenas assentiu enquanto ele andava até mim e me conduzia até a sala. Quando estávamos a sós, ele apenas me encarou, esperando a pergunta que não tardou a vir.
– Pode me explicar o que aconteceu com o seu rosto?
sustentou meu olhar por mais alguns segundos antes de evitá-lo, relutante. Uma sensação ruim tomava conta de meu estômago, e o cheiro delicioso da janta parecia menos convidativo a cada segundo de suspense.
– Será que você pode me responder, ou eu vou ter que perguntar de novo?
– Eu bati o rosto numa porta de vidro, só isso – ele disse, numa mentira deslavada que me fez soltar um risinho de deboche.
– Quer mais uma chance pra tentar soar mais convincente, ou prefere dizer a verdade dessa vez? – rebati, nem um pouco convencida, e cada vez mais nervosa. respirou fundo, e de olhos fechados, disse o que eu temia ouvir.
– Você sabe muito bem o que aconteceu, .
Seus olhos voltaram a fitar os meus, cheios de raiva, e meu coração pareceu congelar de medo. Em sopros trêmulos de ar, completei sua resposta.
– Você foi atrás dele.
assentiu.
– Fui... E eu o encontrei.
O medo que se espalhava por meu peito era tão forte que eu não conseguia respirar direito. Só de lembrar o quão transtornado ele havia ficado na manhã anterior, quando soube o que tinha acontecido... Só de imaginar o que poderia ter acontecido naquela tarde...
– O que você fez? – murmurei, balançando negativamente a cabeça, com os olhos arregalados.
– Eu dei a ele o que merecia.
– E o que exatamente é isso? – retruquei, cada vez mais brava e apavorada.
– Digamos que vai levar algum tempo até ele esquecer a sensação do meu punho colidindo com a cara dele – foi a resposta que recebi, entre dentes; cobri as mãos com o rosto, transtornada demais para continuar encarando-o – Não se preocupe, ele não vai mais te perturbar.
– Você não entende! , você não podia ter feito isso!
Me desvencilhei de suas mãos quando ele tocou meus braços, tentando me acalmar, e percebendo que havia dito demais, respirei fundo e pensei em como consertar meu erro.
– Você sabe como ele é... Quanto mais nervosos souber que estamos, mais ele irá nos atormentar!
– Ele não vai mais nos atormentar, eu acabei de dizer isso!
– Como pode ter tanta certeza? Nós achávamos que ele tinha ido embora da última vez! – lembrei, erguendo meu olhar até o dele novamente e vendo-o permanecer em silêncio – Além do mais, eu ainda estou muito frágil pra lidar com isso... E se ele decidir fazer pior da próxima vez? Sabe-se lá o que ele já não fez...
segurou meus braços novamente, e dessa vez não resisti, mentalmente cansada.
– Ele não fez nada com você. Eu não posso acreditar nisso.
– Por que você insiste em dizer isso? – questionei, irritada com sua negação constante – Como pode ter tanta certeza?
– Porque...
Ele desviou o olhar do meu, parecendo se recordar de algo muito doloroso. Seu rosto se contorceu levemente, como se a lembrança fosse intensa demais, e eu deixei a discussão de lado, buscando trazê-lo de volta ao presente.
– O que foi? – indaguei, preocupada, colocando minhas mãos sobre seus ombros. O leve inchaço sob um de seus olhos, causado por sua briga com , plenamente visível agora que eu havia me aproximado, apenas tornou tudo muito pior.
As palavras que saíram de sua boca, no entanto, com certeza agravaram muito mais a situação.
– Porque eu sei o que é... Eu sei o que é ter você, indefesa, sem resistência, num ambiente seguro...
Meu cérebro não pôde formular um sentido para aquela resposta, e eu esperei até que ele se explicasse. Com extremo pesar, ele me guiou até o sofá, e esperou que ambos nos sentássemos para continuar a falar.
– Você se lembra da noite da festa na casa da Kelly? Quando eu te tirei de lá, e você dormiu no meu carro, e eu tive que te levar pro meu apartamento? – ele perguntou, e eu confirmei com a cabeça, com um súbito mau pressentimento – Eu nunca te contei, porque realmente não significou nada, e de fato nada aconteceu... Mas...
– Fala logo – implorei, à beira de um ataque de nervos.
– Você estava bêbada, e... Bem, você me confundiu com o ... E se eu não estivesse lúcido ou não fosse íntegro o suficiente pra te colocar debaixo do chuveiro, você provavelmente teria feito algo de que nós dois nos arrependeríamos.
Fui incapaz de me mover. Apenas encarei por alguns segundos, completamente paralisada. Diante de meu choque, ele tentou amenizar as coisas.
– Eu sei que devia ter te contado antes, e sinto muito por isso... Mas eu não queria te causar um transtorno ainda maior do que toda aquela confusão na festa da Smithers já tinha causado. E como eu disse, não significou nada, eu sabia que você estava me confundindo com ele...
Eu definitivamente não jantaria depois daquela revelação. Meu estômago se revirava dentro de mim, hostil à mera hipótese de ingerir qualquer coisa. Por que o mundo parecia estar me bombardeando com acontecimentos tão impactantes, todos ao mesmo tempo?
me observou com certo desespero, esperando até que eu me acalmasse o bastante para reagir de alguma forma. Me forcei a mover pelo menos alguns músculos e fechei os olhos, verdadeiramente sem fôlego. Minha cabeça girava, e eu já não sabia mais qual sentimento predominava: medo, pânico, vergonha, mais medo...
– Chega – soprei, forçando minha mente a raciocinar e não deixar as emoções me sufocarem – Eu não sei mais o que pensar.
– , me desculpe... Por favor – ele murmurou, e eu apenas segurei sua mão, sem conseguir me expressar de outra forma.
– Não... Tudo bem – gaguejei enfim, um pouco mais centrada após respirar fundo algumas vezes – Eu confio em você. Sei que nada aconteceu naquela noite. É só que... Eu ainda estou muito sensível em relação a tudo o que aconteceu, e... Acho que foi uma má hora para me contar isso.
– Eu sei, eu sei – ele concordou, cobrindo minha mão com a sua – Mas foi impossível não me lembrar daquele momento. Desde que você contou o que fez, eu... Eu não consigo parar de pensar no quão irônico isso é, da forma mais cruel possível.
Assenti vagamente, ainda perdida em meus próprios pensamentos. O fato de que o mesmo já havia acontecido com , em circunstâncias bem parecidas, e eu podia afirmar com toda a certeza do mundo que ele não havia tocado um dedo em mim, apesar de ter acordado apenas de sutiã e calcinha em sua casa, enquanto que com eu estava totalmente vestida, me fez perceber o quanto eu realmente confiava nele, mesmo antes de termos algo sério. Era uma convicção que eu não sabia de onde vinha, e até onde se estendia. Eu apenas sabia.
– Vamos esquecer isso por hoje... Pode ser? – suspirei, e ele concordou na mesma hora, visivelmente preocupado – Amanhã podemos conversar melhor. Hoje... Hoje eu só quero te pedir uma coisa.
– O que quiser.
Olhei fundo em seus olhos para que ele entendesse que eu estava falando sério.
– Por favor... Não faça mais nada pelas minhas costas. E se tiver que dizer alguma coisa, qualquer coisa, por favor, diga. Eu posso aguentar qualquer notícia, mas não suporto que minta pra mim.
engoliu em seco e assentiu. O machucado em seu rosto parecia ser o que menos doía naquele momento; me dei conta de que mal tínhamos reatado e já estávamos sofrendo de novo. Tal constatação provocou uma fisgada em meu coração, e sem mais delongas, lancei meus braços ao redor de seu pescoço, num abraço apertado. Ele relaxou assim que o retribuiu, como se estivesse esperando por aquilo há anos. Permanecemos fortemente abraçados por um tempo, durante o qual eu não pude deixar de perguntar:
– Ele te machucou muito?
– Só o que você viu.
Soltei um suspiro aliviado. Mas ainda tinha mais uma pergunta a fazer.
– E ele? Você o machucou muito?
– O bastante para procurar um médico... Mas não o bastante para que ele sinta a dor que você está sentindo.
Fechei os olhos com força, determinada a não chorar, e apenas apertei mais meu abraço, ao que ele reagiu da mesma forma.
– Vamos jantar – falei após um breve silêncio, desfazendo o abraço e forçando um sorriso que não atingiu meus olhos – Quem sabe um pedaço de torta de morango é exatamente o que preciso pra me sentir melhor agora.
tentou sorrir de volta, mas apenas o fez quando acariciei seu rosto, tomando cuidado para não tocar a região machucada, deixando claro que estávamos bem, apenas precisando desesperadamente de férias, só para nós dois.
– Seria bom – ele murmurou, inclinando de leve a cabeça na direção de minha mão. Concordei com um aceno de cabeça.
– Seria perfeito.
Meus olhos estavam grudados há cerca de sete minutos no relógio quando enfim a campainha de minha casa tocou. Levantei num pulo e corri até a porta, abrindo-a e deparando-me justamente com quem esperava ver.
– Você veio – suspirei, aliviada – Obrigada.
Elliot arregalou os olhos, ligeiramente assustado com meu desespero evidente.
– Do jeito que você falou, parece que eu tenho um ótimo motivo para estar aqui – ele deu de ombros, entrando em minha casa sem precisar de permissão – Se não for ótimo, ao menos deve ser importante.
Tranquei a porta e me virei em sua direção, a tempo de vê-lo observar minha sala de estar com uma expressão um tanto desgostosa. Após a breve inspeção, ele girou em seus calcanhares e voltou a me encarar, com um sorrisinho ameaçador.
– E se não for nem ótimo, nem importante, que seja ao menos útil.
Engoli em seco, prevendo o quão difícil seria convencê-lo a acreditar no que estava por vir. Se até mesmo eu tive problemas para aceitar que o relato de podia ser verdadeiro, Elliot, cético do jeito que era, e estando bem mais envolvido no caso desde o início… Mas eu precisava tentar. Era minha única chance. Mamãe estava trabalhando, e eu havia pedido a um tempo para mim mesma naquela tarde, que ele prontamente concedeu. Eu não queria ter que mentir para ele, mas também não queria que tamanha revelação acontecesse antes que eu tivesse alguma confirmação em mãos. Não tive escolha. Eu não teria outra oportunidade de conseguir um aliado essencial naquele emaranhado em que me metera. Eu faria de tudo para que Elliot acreditasse em mim, pelo menos o suficiente para me ajudar a me livrar daquela situação.
– Eu espero que seja pelo menos uma dessas coisas – respondi num tom inseguro, e ele reforçou seu sorriso homicida – Por favor, sente-se. Quer um copo d’água?
– Não, obrigado, eu quero que você vá direto ao ponto – ele rebateu, sem papas na língua, acomodando-se numa poltrona – Desembucha, criatura. Todo esse seu nervosismo está me deixando nervoso.
Ele olhou para o teto e bufou, situação que seria cômica devido a seus trejeitos extremamente dramáticos, porém, como ele mesmo havia notado, eu estava ansiosa demais para rir. Respirei fundo e me sentei no sofá. Abri a boca para iniciar o discurso que havia ensaiado cuidadosamente, mas ele me interrompeu.
– Quero deixar bem claro que se isso tiver a ver com o Ben, não precisa nem começar. Sem chance.
Arregalei os olhos, sentindo meu coração acelerar, e notando o choque em meu rosto, Elliot se explicou:
– Não vou te ajudar a fazer o mudar de ideia. Ele finalmente assumiu o filho, e embora seja grato por você ter contribuído para isso de certa forma, não vou deixar que o faça voltar aos antigos hábitos só porque suas vidinhas de pombinhos apaixonados ficarão mais fáceis sem uma criança pendurada em sua perna.
Pisquei algumas vezes, esforçando-me para assimilar o que ele dizia. Levei um tempo para reagir.
– Você acha que eu te chamei aqui porque quero que o abra mão do filho?
Elliot ergueu as sobrancelhas diante de minha perplexidade, e a seriedade em seu rosto quase me fez cair no riso.
– Você pareceu ser uma boa pessoa quando nos conhecemos, mas isso não significa que realmente o seja – ele disse, sem pestanejar – Sei bem o tipo de pessoa que costuma atrair, e pode ter certeza de que tenho meus meios de tirar o coração dele de suas mãos num piscar de olhos.
A vontade de rir passou imediatamente ao ouvir suas palavras e a firmeza com as quais foram ditas. Balancei negativamente a cabeça, e tratei de me explicar:
– Não… Eu jamais faria isso. Concordo que deva pelo menos tentar ser um pai para seu filho. Não foi por isso que te chamei aqui.
– Hm – ele me examinou por mais um instante antes de voltar a esvaziar sua expressão, sinal de que minha sinceridade o havia convencido – Então, por favor, me diga, … Por que você me chamou aqui?
Engoli em seco novamente, e comecei a falar.
– Eu preciso da sua ajuda.
Elliot revirou os olhos.
– Essa parte eu já entendi, você não parava de repetir isso ao telefone.
– Desculpe – suspirei, sentindo a vergonha começar a arder em meu rosto – É que… Eu não sei bem por onde começar.
– Minha opinião? Comece pelo começo – disse ele, e eu não pude evitar revirar meus olhos também – É sério! Pode parecer um tanto conservador da minha parte, mas tudo bem, qualquer coisa pra te tirar dessa agonia, mulher!
Após algumas risadas nervosas, enfim consegui começar – pelo começo, como ele havia aconselhado. Expliquei tudo o que estava acontecendo, desde o primeiro momento em que me procurou até o mais recente acontecimento, na manhã seguinte à festa de Dianna. A cada palavra, o choque estampado em seu rosto apenas aumentava. O ápice da conversa, que mais parecia um monólogo, salvo algumas interrupções incrédulas, foi, como esperado, a suposição de que era o verdadeiro pai de Ben.
– Mas isso é impossível! – Elliot exclamou, já de pé a essa altura, incapaz de permanecer sentado – Um exame de DNA foi feito assim que Ben nasceu!
Meu queixo foi parar no chão ao ouvir aquilo.
– Vocês fizeram um exame de DNA? – gaguejei, e ele confirmou com a cabeça – Acho que não sabe disso. Ele me disse que e o resto da família simplesmente acreditaram no que ele contou porque Emily corroborou sua história.
– Sim, nós acreditamos neles, mas tínhamos que ter certeza mesmo assim. Mamãe fez questão do teste!
Cobri o rosto com as mãos, tentando entender o que levara a agir daquela forma, sendo que não havia mais discussão: ele não podia ser pai de Ben.
– Posso tentar trazer o resultado do exame ainda essa semana para que ele o veja e desista de uma vez dessa loucura – Elliot adicionou, e eu assenti.
– Por favor. Mas traga também uma amostra de DNA de Ben, só para o caso de ele querer me enrolar de novo e dizer que… Sei lá, o resultado foi falsificado ou algo do tipo. Eu não vou aguentar ser arrastada para esse joguinho sem sentido de novo.
– Tudo bem… Mas por que ele está fazendo isso? Ele perdeu a cabeça de vez? Junto com sua fertilidade? Se é que essa parte é verdade… Se é que alguma parte desse discurso maluco é verdade.
– É, sim… Pelo menos essa parte é. Por mais que ele pareça um lunático ou um psicopata, esse tipo de coisa não se finge. A tristeza, a frustração no rosto dele era real.
– Então qual é o sentido disso? Por que ele quer roubar o filho do próprio amigo, ou melhor, ex-amigo, se sabe que não tem a menor chance de conseguir?
– Eu também não sei, Elliot – falei, observando-o andar de um lado a outro – Mas depois do que aconteceu neste fim de semana, não tenho outra escolha senão descobrir.
– Você acha que ele iria tão longe somente para arruinar sua vida? E mesmo que fosse, afirmar que é pai do garoto não tem qualquer impacto negativo no seu relacionamento com . Nada disso faz sentido…
Após um suspiro profundo, Elliot parou ao lado da poltrona que há pouco ocupava e devolveu meu olhar paciente com um extremamente confuso.
– Sei disso – disse, dando de ombros – O que me leva a concluir que eu não sou o alvo de … é.
Ele considerou minha hipótese por um momento antes de falar.
– Pode ser. Afinal de contas, eles se conheceram muito antes de você aparecer… Talvez o que mais o feriu não foi sua traição, mas a do melhor amigo.
– Ou talvez ele realmente esteja dizendo a verdade, ou o que acha que é verdade – adicionei, disposta a expor todas as possibilidades que já tinha analisado antes de saber sobre o exame, e que a cada vez que as repassava mentalmente, mais indicavam o caminho que parecia plausível – Como eu disse, se ele realmente quisesse machucá-lo, existem maneiras bem mais fáceis e eficazes de fazê-lo. Não estou falando que receber a notícia de que não é pai de Ben seria fácil para depois de tudo isso, mas pelo que conheço da fúria de , ele iria bem mais longe para atingi-lo.
Mais um instante de ponderação, e Elliot assentiu.
– Tem razão… O que nos deixa com uma opção…
Completei sua frase ao perceber que ele hesitava em dizer as palavras.
– tem motivos concretos para achar que é o pai de Ben.
Ele fechou os olhos ao me ouvir, e voltou a se sentar na poltrona. Deixei que as consequências implícitas naquela constatação se revelassem em sua mente, e aos poucos ele voltou à realidade.
– Se existe alguma chance de que ele esteja certo, então minha irmã… Minha própria irmã teria mentido para mim… Teria mentido para todos nós.
Concordei com a cabeça, sem saber o que dizer para atenuar sua decepção. Porém, ao perceber que ele não pretendia por um fim em seu silêncio, voltei a argumentar.
– Entende por que te chamei aqui agora? Entende o que isso pode significar? Eu não posso fazer isso sozinha.
– Não, você não pode – ele reagiu, enfim se recuperando do impacto que o emudecera – precisa saber.
– Eu concordo, mas me proibiu de contar a ele, pelo menos por enquanto – rebati de imediato – E não estou em condições de desafiá-lo, não depois do susto que ele me deu só para me convencer de que estava falando sério. Seja lá o que o faz ter tanta certeza de que é o pai, não vai ser fácil convencê-lo do contrário.
– Tudo bem… Talvez seja até melhor procurarmos resolver isso sem causar tanto alarde.
– Exato. Tanta coisa pode dar errado se descobrir… Primeiro, ele não acreditaria no que disséssemos, e mesmo que acreditasse, se soubesse que me encontrei com e que tudo isso aconteceu em segredo… Fora a tristeza de, na pior das hipóteses, descobrir que tanto o melhor amigo quanto sua própria prima mentiram para ele e para todos no passado, e continuaram mentindo até agora…
– Temos que agir com cuidado – Elliot concordou, com o olhar compenetrado fixo no chão – Mas quando finalmente admitir que está mentindo, você tem que abrir o jogo com . Ele não pode mais te manipular desse jeito. Você não pode viver com medo dele.
– Eu sei – respondi, querendo mais do que tudo me libertar daquela chantagem absurda – É o que pretendo fazer.
Ficamos em silêncio por um breve instante, até que ele se levantou e respirou fundo antes de se pronunciar.
– Bem… Nos falamos novamente em breve, e marcamos outro encontro para que eu te entregue o exame e a amostra.
Também fiquei de pé, e um sorriso aliviado, ainda que tenso, surgiu em meu rosto. Dividir aquele fardo com mais alguém já fazia uma enorme diferença, e eu me sentia muito mais segura, mesmo que não tivéssemos tomado muitas decisões.
– Muito obrigada, Elliot. Sabia que poderia contar com você para resolver isso.
Ele deu de ombros, voltando a exibir sua atitude blasé.
– Só estou fazendo isso porque amo meu sobrinho – foi sua resposta, com a qual concordei ao assentir – E também por que… Se existe a menor chance de que eu tenha sido responsável por envolver ainda mais nessa possível, embora improvável, mentira, o mínimo que posso fazer para me redimir é desfazê-la.
– Eu também fui responsável por isso – murmurei, prevendo o arrependimento que sentiria caso tudo o que disse se confirmasse de alguma forma – Seja qual for o resultado do exame que imagino que insistirá em fazer, nós faremos a coisa certa, assim como fizemos da primeira vez. Tanto Ben quanto merecem a verdade.
Elliot concordou com um aceno de cabeça e se dirigiu à porta, seguido por mim. Despedimo-nos brevemente, e assim que voltei a me acomodar no sofá, meu celular tocou. Por um momento, temi que fosse , prestes a me atormentar, mas logo que li o nome no visor, relaxei novamente.
– Como adivinhou que estava pensando em você? – sorri assim que atendi.
– E por acaso você pensa em outra coisa? – ouvi indagar do outro lado da linha, e seu tom extremamente convencido me fez revirar os olhos.
– Posso começar a pensar a partir de agora – rebati, fingindo seriedade, e ele apenas riu.
– Como você é má… Que tal guardar um pouquinho dessa rebeldia para mais tarde?
Ergui as sobrancelhas de imediato, e mordi o lábio inferior para disfarçar um sorriso; mesmo sabendo que ele não o veria, sabia que ele o perceberia em meu tom.
– Ah, é? Então você tem planos para mais tarde?
hesitou brevemente antes de responder, e quando o fez, foi impossível não me derreter sobre as almofadas ao ouvir o charme em sua voz.
– O plano até então era fazer um jantar especial pra você, mas se estiver disposta a estender a noite, podemos estender os planos também…
Fechei os olhos por um momento e flashes da noite maravilhosa que muito provavelmente teríamos inundaram minha mente, afogando qualquer outra preocupação que ainda pudesse me atormentar. Ele sempre conseguia me fazer flutuar acima de qualquer problema, sempre tirava meus pés do chão, fosse literalmente, ao me carregar em seus braços como ambos adorávamos que fizesse, ou metaforicamente, como naquele instante, em que apenas ouvi-lo dizer qualquer bobeira pelo telefone já me fazia um bem incrível.
– Um jantar especial para mim… Parece um plano maravilhoso – suspirei, voltando a encarar o teto com um sorriso apaixonado no rosto – Tenho quase certeza de que estarei disposta a estendê-lo.
– Quase certeza? – ele repetiu, fingindo estar ofendido – Como você é má…
Apenas ri de sua queixa, levando a mão livre à gola de minha camiseta e brincando com ela como costumava fazer com a dele sempre que tínhamos nossos momentos de fofura infinita. Estávamos separados há cerca de três horas e eu já sentia uma saudade imensa. Como sobrevivemos três meses longe um do outro era e sempre seria um mistério sem resposta para mim.
– Você é que é mau… Malvadão, pra ser mais exata – murmurei, falando de forma exageradamente sensual para causar a reação que esperava: um breve, porém hilário silêncio, quebrado por minhas gargalhadas e sua promessa nem um pouco falsa.
– Vou te mostrar o malvadão.
– Mal posso esperar – falei, sentindo meu corpo esquentar de leve ao ser pega de surpresa por uma imagem mental especialmente impactante – Que horas você vem me buscar?
– Te pego às sete.
Não pude evitar a resposta monossilábica e extremamente infantil que se seguiu.
– Ui.
– Pirralha, pelo amor de Deus – pediu, e o suspiro que antecedeu suas palavras denunciou que eu não era a única com saudade – Você sabe que eu já tenho a mente poluída naturalmente. Com você fazendo seis comentários maliciosos por minuto, o jantar vai virar chá das cinco.
– Você é que insistiu em interromper o café-da-manhã na melhor parte… – falei, manhosa, me espreguiçando no sofá, o que fez com que minha voz saísse ainda mais sugestiva – E nós dois sabemos que é a refeição mais importante do dia. Não me culpe por ainda estar faminta.
Ele apenas soltou um risinho baixo, que me permitiu visualizar com clareza o que ele provavelmente estava fazendo naquele instante: cobrindo parte do rosto com uma mão e lutando contra o impulso de antecipar nosso reencontro. Parte de mim quis que ele o fizesse, mas parecia empenhado em não apressar as coisas.
– Como você é… Má – ele resmungou entre dentes, arrancando ainda mais risos de mim – Vou te deixar refletir sobre sua malvadeza enquanto me espera, senão vai acabar me convencendo a estender ainda mais os planos pra antes do jantar também.
– Não sou eu que estou reclamando… – comentei, e ele apenas soltou um grunhido ininteligível antes de desligar. Minhas bochechas começavam a doer de tanto esforço, mas eu continuava sorrindo mesmo assim, com o coração acelerado, ansioso para que as horas passassem e pudéssemos nos ver de novo. Somente um tempo depois, percebi que durante a ligação, minha mão foi da gola da camiseta até o pingente de tartaruga pendendo de meu pescoço e o apertou, totalmente sem querer. Tal coincidência apenas intensificou minha felicidade, assim como a vontade de tê-lo ao meu lado.
Não é que essa coisa de talismã realmente funcionava?
Desci as escadas ainda colocando os brincos ao ver o carro de pela janela. Mamãe já havia chegado e sabia que eu não jantaria em casa, e que provavelmente também não dormiria lá.
– Cuide-se! – disse ela ao me ver correr até a porta. Assenti depressa e saí, deparando-me com na calçada, prestes a vencer a curta distância até a campainha.
– Uau, quanta pressa! – ele sorriu, apenas abrindo os braços para que eu me atirasse neles – Boa noite para você também.
Abracei seu pescoço enquanto ele fazia o mesmo com minha cintura, erguendo-me do chão.
– Talvez eu devesse parar com esse costume de sair correndo dos lugares e te atacar antes mesmo ou logo depois de você sair do carro, não acha? – sussurrei em seu ouvido, sabendo exatamente que memória essa pergunta traria à tona, e adorando cada segundo de sua reação.
– O que você tem hoje? Não para de me provocar nem por um segundo… – suspirou, permitindo que meus pés tocassem o solo outra vez.
– Nada, só senti sua falta – respondi, dando de ombros, e ele ergueu as sobrancelhas, assentindo de leve – Isso, e eu estou com fome.
Ele revirou os olhos, já esperando a segunda metade de minha explicação.
– Ah, sim, sabia que tinha algo a mais! Era muito amor pra ser verdade.
– Bobo! – exclamei, dando um tapa em seu braço, e antes de me dirigir ao lado do carona do carro, adicionei – Eu não disse de que estava com fome.
Olhei por sobre o teto do automóvel para , que ainda processava o significado nada oculto de minhas palavras, e dei uma piscadela antes de abrir a porta e entrar, logo sendo seguida por uma versão levemente distraída dele.
O caminho foi rápido e tranquilo. Reservei minhas energias para quando chegássemos a seu apartamento, pela primeira vez desde seu aniversário. Aquela lembrança parecia tão distante agora… Desde então, passamos por mais tormentas do que poderíamos ter imaginado. Queria criar muito mais lembranças felizes naquele lugar que significava tanto para nós, que fazia parte de nossa história, e a noite que estava apenas começando seria exatamente isso: o começo. Um recomeço.
Caminhamos de mãos dadas pela garagem de seu prédio até o elevador, e enquanto subíamos até seu andar, ele me puxou para si, com seus olhos cada vez menos visíveis à medida que seu sorriso aumentava, nitidamente tão feliz quanto eu por podermos voltar àquele apartamento e apenas aproveitarmos a presença um do outro.
– Algo parece diferente – murmurei, após caminhar pela sala e colocar minha bolsa numa das poltronas – Você mudou alguma coisa?
negou com a cabeça, ainda parado diante da porta do elevador, me observando.
– Tudo está do jeito que você deixou.
Meu olhar encontrou o dele, ambos subitamente melancólicos. Sua escolha de palavras pareceu fazer com que toda a dor deixada para trás voltasse às nossas mentes por um instante, mas agora tudo era suportável. Estávamos juntos de novo, nada daquilo doía como antes, e se ainda doía, era só porque lamentávamos todos os motivos que causaram nosso afastamento, não por algum ressentimento restante.
– Pode até ser – respondi baixo, pousando uma mão no encosto do sofá como se cumprimentasse a mobília – Mas algo está diferente, com certeza… Porque não somos mais os mesmos que deixamos.
Ele me encarou por alguns segundos, com as mãos nos bolsos da calça e uma sombra de um sorriso triste no rosto, até que percorreu a breve distância entre nós e me beijou sem cerimônias. Respirei fundo ao sentir seus lábios nos meus, correspondendo na mesma intensidade.
– Estou feliz por poder te trazer aqui de novo – ele sussurrou, com o rosto ainda próximo do meu, de olhos fechados e testa franzida, como se o que dizia fosse de extrema importância (e de fato, era) – Esse lugar não faz sentido sem você.
Levei minhas mãos até seu pescoço, acariciando suas bochechas com meus polegares. Beijei o canto de sua boca antes de falar.
– Também estou feliz. Nada faz sentido sem você.
abriu os olhos, como se precisasse ter certeza de que seus ouvidos não o enganavam. O sorriso tímido que encontrou em meu rosto foi confirmação suficiente para convencê-lo de que era tudo verdade.
– A cada frase que sai da sua boca, mais eu quero esquecer o jantar e partir para a sobremesa – ele soprou contra meus lábios, ao mesmo tempo em que suas mãos subiam por minha cintura e me traziam para perto de si.
– Podemos fazer isso, se você quiser – sugeri, bastante interessada na alternativa. sorriu, quase derrotado, mas inclinou a cabeça para o lado e preferiu se manter fiel ao plano original, depositando um beijo rápido em meu ombro antes de seguir para a cozinha.
– Fique à vontade – ele disse ao se afastar – E eu não quero dizer “nua”, pelo menos não por enquanto.
Suspirei profundamente, amolecida pela intensidade do momento, e me deixei cair no sofá, rindo de seu comentário deveras relevante. Minutos depois, fui presenteada com uma taça de vinho branco e um aviso de que o jantar logo estaria pronto.
– O cheiro está ótimo – elogiei ao unir-me a ele na cozinha, abraçando-o por trás e encostando a cabeça em suas costas – O que está preparando?
Ele agradeceu com um aceno de cabeça.
– Um passarinho muito simpático e bonito me contou que você curte um macarrão com brócolis ao molho branco…
Meu queixo atingiu o chão, e mesmo sem me ver, ele riu, percebendo minha surpresa.
– Eu não acredito! Mas… Mas quem… – gaguejei, tentando descobrir a quem ele se referia, mas logo a ficha caiu, e quando voltei a falar, minha voz estava levemente esganiçada devido à empolgação (e às duas taças de vinho que havia tomado) – Minha mãe! É claro!
assentiu, ainda rindo e trabalhando no jantar.
– Agradeça a ela depois, mas só se eu acertar a receita. É fácil, mas ando meio enferrujado na cozinha.
Balancei a cabeça, incrédula.
– Você e minha mãe trocando receitas… Que másculo, amor – brinquei, massageando seus ombros. Ele revirou os olhos, sem se deixar afetar.
– Sou másculo, mesmo, e não preciso coçar o saco ou dar um tapa na sua bunda a cada cinco minutos para provar isso – retrucou, indo até o fogão e desligando a última boca ainda acesa após provar do molho na panela – Posso trocar receitas com sua mãe e te levar ao orgasmo várias vezes depois de um jantar incrível inteiramente preparado por mim.
Engoli em seco ao receber uma resposta tão complexa para meu comentário babaca, e dessa vez ele piscou para mim.
– Por favor, leve seu lindo rostinho perplexo até a sala, porque o jantar está pronto e a mesa estará posta em breve.
Obedeci mecanicamente, um tanto atordoada por sua eloquência, e somente quando voltei a me sentar no sofá, questionei o óbvio.
– Mesa? Mas você não tem uma mesa de jantar… Sempre comemos na bancada da cozinha.
olhou por sobre seu ombro e fez cara de espanto.
– Bem lembrado! O que será que eu quis dizer com isso?
Franzi a testa, ainda mais confusa, mas não por muito tempo. Logo ele veio até mim, e sem dizer mais uma palavra, me conduziu pelas mãos até o andar de cima e seguiu até a área externa da cobertura, na qual uma mesa para dois estava posta, exceto pelos pratos ainda esperando na cozinha. Havia duas velas no centro da mesa, acompanhadas por talheres, taças, guardanapos, e uma garrafa de vinho devidamente posicionados.
Sua insistência em nos mantermos civilizados antes do jantar fazia todo o sentido do mundo agora.
– … – suspirei, sem conseguir disfarçar minha comoção – Isso é…
– Cafona? – ele completou num risinho envergonhado.
– Lindo – corrigi, após respirar fundo e recuperar a capacidade de pensar com clareza – Isso é lindo. Não acredito que preparou tudo isso para nós dois.
– Pois é… Másculo, não? – ele perguntou, totalmente irônico, parecendo verdadeiramente nervoso com a situação agora que tudo fora revelado.
Lancei-lhe um olhar repreensivo, nem um pouco satisfeita com sua brincadeira.
– Se quer saber, é, sim – rebati, envolvendo seu pescoço com meus braços e afagando os cabelos de sua nuca com meus dedos enquanto o olhava com firmeza e sinceridade – Você pode preparar um jantar à luz de velas para sua namorada e ter uma noite de sexo inesquecível com ela depois de fazê-la se apaixonar ainda mais por você.
Encostei meus lábios nos dele num beijo breve e suave, porém significativo. suspirou aliviado, mais confortável após minha reação positiva.
– Obrigado por não tirar sarro de mim quando eu faço caretices – ele sorriu, acariciando meus braços – Eu só achei que seria legal um pouco de tranquilidade depois de… Depois de tudo isso.
– Acertou na mosca, como sempre – respondi, com todo o carinho do mundo – Obrigada por ser tão atencioso.
Tudo ia muito bem, nós dois sorríamos feito idiotas, até que meu estômago roncou estupidamente alto e caímos no riso.
– Vou buscar os pratos antes que você me confunda com o jantar – riu, se afastando depois de um selinho – Mas primeiro, sente-se, mademoiselle.
Ele indicou a mesa com um gesto, e eu fui a uma das cadeiras, deixando-o empurrá-la para mim como sempre fazia quando comíamos fora. Erguendo o indicador para sinalizar que voltaria logo, ele seguiu para o primeiro andar do apartamento, e eu aguardei seu retorno sem conseguir parar de sorrir.
– Bon appetit! – ele disse ao enfim se sentar diante de mim, servindo-nos o vinho. Erguemos nossas taças e apenas brindamos, sem dizer uma palavra. A felicidade radiante em nossos olhos já era suficiente.
O jantar estava delicioso. Ridiculamente delicioso. Talvez fosse o vinho, talvez fossem as velas, talvez fosse o céu sobre nossas cabeças, ou o vento acariciando meus cabelos, ou uma combinação de todos esses fatores; tudo o que eu sabia com certeza era que aquele noite estava perfeita, em todos os detalhes, e eu não queria que ela acabasse nunca.
– E então, me saí bem como chef? – suspirou, unindo-se a mim no deck após terminarmos de jantar. Seu queixo repousou em meu ombro, e eu sorri ao sentir seus braços me envolverem, com o olhar perdido na cidade iluminada que se estendia diante de nós, parecendo não ter fim.
– Muito bem – respondi baixo, cobrindo suas mãos com as minhas sobre minha barriga – Estava ótimo.
– Agora me diga uma coisa, e por favor, seja sincera.
– Hm?
– Ficou melhor, igual ou pior que o da sua mãe?
Fechei os olhos, rindo fraco de sua pergunta. Esperei um tempo para dar o veredicto, só para aumentar o suspense.
– Melhor que o da minha mãe.
A resposta definitivamente o surpreendeu.
– Melhor que o da sua mãe? – ele repetiu, incrédulo – É sério?
Virei-me de frente para ele, passando meus braços por debaixo dos seus e entrelaçando os dedos sobre suas costas. Sua alegria por ter superado as expectativas era sincera, além de óbvia em seu sorriso pasmo.
– Seríssimo – confirmei, aproximando meu rosto do dele e roubando um beijo rápido – Só não conte a ela que eu disse isso… Sabe como é, pode chateá-la.
assentiu prontamente, fingindo seriedade.
– Minha boca é um túmulo.
Fiz cara de nojo, e ele logo previu o que viria.
– Espero sinceramente que não! – exclamei, fazendo-o revirar os olhos, e sussurrei o resto de minhas palavras ao pé de seu ouvido – Tenho ótimos planos para ela.
– Eu também – ele retrucou, segurando meu rosto com as duas mãos e trazendo minha boca de volta para perto da dele. O beijo que inevitavelmente se seguiu começou calmo, porém logo evoluiu para um longo e intenso, com provocações sutis, risinhos, suspiros e leves puxões de cabelo de ambas as partes. Todo o clima romântico que ele havia construído apenas alimentava o desejo que nos preenchia, de forma torturantemente lenta, fazendo com que cada toque causasse batimentos cardíacos mais acelerados e o oxigênio mais rarefeito em nossos pulmões, apesar de estarmos ao ar livre.
– Na verdade… Eu ainda tenho mais uma coisa pra te dar – murmurou, segurando meu pulso ao sentir minha mão atingir o cós de sua calça.
– Mais uma coisa? – repeti, sem fôlego, esforçando-me ao máximo para frear meus impulsos, e ele assentiu – O que é?
– Espere aqui, eu já volto.
Antes que eu pudesse protestar – ou melhor, antes que pudesse ser convencido a ficar por meus protestos –, ele voou para dentro, e só então consegui respirar normalmente. Toda aquela agitação, somada ao vinho que fazia um efeito considerável em meu sistema, fez com que meu corpo parecesse mais leve do que o normal, e minhas pernas, um tanto bambas. Caminhei calmamente até a espreguiçadeira mais próxima e me estiquei sobre ela, gostando da sensação que fechar os olhos e sentir a brisa noturna trazia.
– Nem pense em tirar um cochilo agora, mocinha – falou, exasperado, ao ressurgir do apartamento alguns segundos depois, e eu mostrei a língua, embora sentisse as pálpebras pesadas demais para erguê-las – Não vai olhar o que eu trouxe?
Sem mais delongas, abri os olhos e me deparei com uma vasilha de vidro repleta de morangos em suas mãos, muito parecida com a que encontrei em meu furto à geladeira da casa de praia. Foi impossível não ser bombardeada pelas lembranças daquela noite, e da noite seguinte, e de tudo o que elas significavam para nós. Ele ocupou a espreguiçadeira ao lado da minha e colocou o recipiente em seu colo, observando minha reação. Mordi o lábio inferior, tentada pela cor e aparência mais do que convidativa de sua última surpresa, por mais que já estivesse satisfeita com o prato principal.
– Eu juro que a expressão “dar água na boca” foi inventada para esse momento – balbuciei, sem tirar os olhos do vermelho intenso. riu baixo e pegou um dos morangos, mordendo-o com gosto. Cerrei os olhos, ofendida pela falta de consideração do anfitrião, embora soubesse que era (mais) uma provocação descarada.
– Desculpe, como sou rude – ele disse, num falso tom alarmado, ainda mastigando – Você quer um?
Um tapa no ombro foi a resposta que recebeu, rindo em seguida. Uni-me a ele na espreguiçadeira e logo roubei um dos morangos suculentos, revirando os olhos ao sentir o sabor delicioso em minha boca.
– Socorro, isso é muito bom – murmurei, apoiando a cabeça em seu ombro após morder o segundo morango. A essa altura, ele já abocanhava o terceiro, e eu já substituíra a vasilha por meu corpo em seu colo, colocando-a agora no meu. concordou com a cabeça.
– Mas pode ficar melhor – ele disse, e pegando-me desprevenida, deslizou a parte ainda não devorada de seu morango sobre meu pescoço, deixando um rastro gelado sobre a pele, que ele não demorou a recolher com a língua. O ato inesperado fez meu coração voltar a bater depressa outra vez, arrepiou-me por inteiro. Sua boca, após percorrer a extensão de meu pescoço de baixo para cima, subiu por meu maxilar e não descansou até encontrar a minha, num beijo breve e quente. Aprisionei seu lábio inferior entre meus dentes ao encerrá-lo, e roubei um pedaço do morango que ele usara para me provocar, ainda em sua mão.
– Tem razão – respondi num sopro, observando-o comer o último pedaço restante – Pode ficar bem melhor.
sorriu de volta para mim, com as pupilas dilatadas. Segurei seu pulso e trouxe sua mão para perto de meu rosto, de modo que pudesse envolver a ponta de seus dedos indicador e médio com meus lábios e livrá-los dos resquícios de morango neles, sem pressa. Seus olhos acompanharam todo o processo com extrema atenção, e se fecharam por uma fração de segundo quando passei a língua sobre a pequena quantidade de líquido que havia também em seu polegar. Ao terminar, dei de ombros, exibindo meu melhor sorriso inocente.
– Não é mesmo?
Ele respirou fundo, prendendo o ar por alguns segundos e depois o soltando na forma de um assovio baixo. Segurei um risinho e levei minha mão até a vasilha para pegar mais um morango, mas ele foi mais rápido.
– Permita-me – pediu, quase inaudivelmente, e eu assenti de leve. Ele levou a ponta do morango até minha boca e deslizou-a sobre meus lábios, hipnotizado pelo simples movimento. Lentamente, assim como tudo o que fazíamos naquele momento de plena instigação, abri a boca e mordi o morango inteiro de uma vez, sem interromper o contato visual. engoliu em seco, sem conseguir tirar os olhos de mim enquanto eu mastigava devagar, saboreando cada pedacinho. Ao terminar, coloquei a vasilha no chão ao lado da espreguiçadeira e me rearranjei sobre seu corpo, colocando uma perna de cada lado de seus quadris.
Suas mãos imediatamente encontraram minhas coxas e as apertaram, deixando claro que a mudança o agradara. Acariciei seus braços e ombros, descendo por seu peito e abdômen; ele aproximou o rosto do meu com a intenção de iniciar um beijo, e eu o surpreendi ao empurrá-lo de volta para o encosto da espreguiçadeira.
– Você já fez muito mais que o necessário hoje – expliquei, erguendo uma sobrancelha em tom de superioridade – Agora relaxe e aproveite.
Devolvi a piscadela que ele havia me dado na cozinha numa versão muito mais sugestiva. ergueu as mãos em rendição. Assenti uma vez, aprovando seu bom comportamento, e não hesitei em unir nossos lábios de novo, determinada a fazer todo o seu esforço para me agradar valer a pena. Enquanto minha boca o distraía, minhas mãos sorrateiramente escorregavam por seu tronco, desabotoando sua camisa pelo caminho, desafivelando seu cinto, depois abrindo o botão e o zíper de sua calça, se embrenhando sob o elástico de sua cueca, e então…
Um gemido rouco escapou de sua garganta, e um risinho satisfeito escapou da minha. Ele estava razoavelmente excitado, o que não me surpreendeu, porque eu também já sentia a antecipação correr em minhas veias. Envolvi sua base com meus dedos, com calma, aproveitando cada segundo de contato, e subi minha mão no mesmo ritmo até estimular sua glande com o polegar. Permiti que ele respirasse livremente e levei meus beijos até seu pescoço, sugando o lóbulo de sua orelha para logo em seguida começar a masturbá-lo, devagar de início, e acelerando à medida que seus protestos contidos se intensificavam.
Segui beijando seu peito, afastando a camisa de seus ombros com a mão livre para revelar mais de seu corpo, e fui descendo, deliciando-me com cada músculo que se contraía sob meu toque. Ao chegar a meu destino final, fixei meus olhos nos dele, semicerrados, por mais que suas pálpebras pesassem, e não ousei sequer piscar enquanto puxava o elástico de suas boxers para baixo e liberava sua ereção do apertado confinamento, apenas para colocá-la em outro, mais macio e agradável: minha boca.
não resistiu à sensação inicial e jogou a cabeça para trás, completamente entregue. Uma mão cobria parte de seu rosto contorcido de prazer e a outra afagava o topo de minha cabeça conforme eu me movia e acariciava a parte inferior de seu abdômen e a parte interna de suas coxas por cima da calça. Por mais que quisesse me esforçar para mostrar como estava agradecida pela noite maravilhosa, não me pressionei a fazer meu melhor; deixei que minha mente rodopiasse, imersa em desejo, e apenas fiz o que tive vontade, por vezes cedendo às súplicas entrecortadas por suspiros dele, por vezes indo contra elas, o que o levava a reforçá-las com o dobro de urgência. Ele tentou me avisar que estava perto de atingir o limite, como costumava fazer caso eu quisesse terminar o serviço com a mão, mas dessa vez eu continuei, com mais empenho do que antes, até que ele se contorcesse sobre a espreguiçadeira e então relaxasse, sem fôlego.
Voltei a emparelhar nossos rostos, sorrindo vitoriosamente diante de sua expressão deslumbrada. Ele ergueu uma mão trêmula e acariciou minha bochecha, provavelmente tão corada quanto as dele, com o polegar, enxugando o canto de minha boca que havia escapado de minha rápida inspeção.
– Agora estamos quites – sussurrei, aconchegando-me em seu abraço sob as tímidas estrelas que brilhavam no céu. balançou a cabeça negativamente, beijando o topo da minha.
– Depois disso, sinto que ainda estou em dívida – ele riu, com o coração acelerado debaixo de minha palma.
– Ainda temos a noite toda para igualar o placar – lembrei, e ele assentiu prontamente.
– Só me dê alguns minutos…
Ambos rimos de sua resposta ofegante, e algumas piadas sobre como “a terceira idade é a melhor idade!” depois, decidimos que era melhor buscar um preservativo antes de recomeçarmos, para que a cena patética em minha cozinha há alguns dias não se repetisse. Como estava em melhores condições de me mover, fui até o banheiro no andar de baixo, e ao sair de lá, ouvi o toque de meu celular na sala, abafado pela distância e por estar dentro da bolsa. Estranhei a ligação num horário tão incomum e decidi verificar quem era.
O jantar e a sobremesa quase voltaram por onde vieram quando li o nome no visor.
– Não – disse para mim mesma, recusando-me a olhar para o nome de ou sequer me lembrar de sua existência por mais um segundo – Agora, não.
Esperei que a chamada fosse ignorada pelo aparelho e o coloquei no modo silencioso, disposta a esquecer que aquele momento tinha acontecido. Eu já havia desperdiçado tempo demais do meu dia (da minha vida) pensando nele, não deixaria que ele arruinasse a minha noite também.
Com um sorriso no rosto, voltei para a espreguiçadeira que ainda ocupava, agora mais recomposto. Foi só sentir seus braços ao meu redor e a pequena irritação que brotara em meu peito se dissipou.
– Está tudo bem? – ele perguntou, franzindo a testa de leve, como se soubesse que algo havia perturbado nossa harmonia. Confirmei com a cabeça, olhando em seus olhos e me permitindo retornar à bolha de felicidade sem qualquer medo ou arrependimento.
– Sim – foi minha resposta, totalmente sincera – Está tudo perfeito.
– Eu não sei se estou pronta para fazer isso...
colocou uma mão sobre a minha, trêmula, fria, assim como o resto de meu corpo. Senti minha mãe passar um braço ao redor de meus ombros e beijar minha têmpora. , sentada aos meus pés perto do sofá, pôs as mãos sobre meus joelhos e os apertou de leve, em mais um sinal de apoio.
Um envelope branco repousava em meu colo, ainda lacrado. Meu coração batia desesperadamente dentro do peito. O ar parecia relutante a adentrar meus pulmões, como se não quisesse fazer parte do potencial desastre irreparável que sucederia a leitura daquela carta.
– O que quer que esteja escrito nesse exame, nós estamos com você – murmurou, partilhando do mesmo nervosismo que os outros presentes na sala de estar de minha casa.
– Você está segura, meu amor – mamãe disse, com a voz nitidamente embargada, e eu quase me rendi às lágrimas ao ver meu medo refletido em seus olhos – Aconteça o que acontecer, ele pagará pelo que fez.
Assenti devagar, baixando o olhar para o objeto de minha – nossa – angústia. Senti os dedos de exercerem leve pressão ao redor dos meus; seu polegar deslizou sobre as costas de minha mão, transmitindo força e carinho em silêncio.
Sem me permitir titubear uma vez sequer, abri o envelope e li o resultado do exame de corpo de delito.
O nó que havia se formado em minha garganta se desfez ao ter minha dúvida sanada, liberando o caminho para que eu soltasse o ar que havia prendido inconscientemente em meus pulmões por sabe-se lá quanto tempo – talvez, desde que acordei numa cama que não era a minha, alguns dias atrás, e me dei conta de que ao invés de despertar de sonhos lindos, mergulhei de cabeça num pesadelo terrível.
Mesmo que fosse capaz de respirar normalmente outra vez, não consegui emitir qualquer som ou sinal que indicasse o que li no papel timbrado. Fechei os olhos, sentindo algumas lágrimas se formarem sob minhas pupilas, e desmoronei contra o ombro de , que me abraçou apertado e mais que depressa tomou o documento de minhas mãos, para revelar o mistério que ainda assombrava todos à minha volta.
Um longo suspiro escapou de seu peito ao enfim descobrir a verdade.
– Não foram encontradas evidências – ele murmurou, aliviado, beijando o topo de minha cabeça – Não aconteceu nada.
Ouvi minha mãe e celebrarem o resultado, lançando seus braços ao meu redor como podiam, num abraço grupal desconcertado do qual emergi rindo, com as mãos sobre o rosto, escondendo o choro tímido e exausto após dias de tensão e pavor.
– Nem acredito que... Que... – gaguejei, encarando o papel já esquecido sobre o sofá, no apertado espaço entre e eu, e sem conseguir completar a frase, apenas balancei a cabeça e voltei a me esconder (dessa vez, no abraço de minha mãe, que chorava comigo, e distribuía beijinhos por onde pudesse).
– Amiga, você não imagina como é bom te ver assim outra vez! – exclamou, pronta para me esmagar com seus braços assim que os de mamãe me libertaram – Sorrindo desse jeito, feliz de verdade. Dá licença que eu vou chorar também!
Às gargalhadas, retribuí seu abraço apertado, sentindo meu coração acelerado dentro do peito, porém agora de alegria e nada mais.
– Obrigada, gente, mesmo – funguei, enxugando o rosto e sentindo minhas bochechas quentes em meio à euforia pulsando em minhas veias – Obrigada por me apoiarem durante essa última semana... Não sei o que seria de mim sem vocês.
– Tá, tá, já entendemos, você nos ama – riu, puxando-me para mais um abraço – Nós também te amamos, caso ainda não tenha ficado claro.
Todos rimos novamente, sem qualquer preocupação no mundo. Continuei sorrindo mesmo após nos levantarmos e seguirmos para a cozinha, e também durante todo o almoço em família (e agregados, embora eu os encaixasse na primeira classificação), sem precisar de outro motivo, incapaz de superar o alívio que aquele exame trouxera. Agora mais do que nunca, tudo o que eu queria era sorrir, ser feliz com as pessoas que amava e que me amavam de volta, e mais nada. Nem mesmo a lembrança de , e de como ele esperava que eu o encontrasse no dia seguinte para enfim realizarmos o exame de DNA, ameaçava desfazer meu sorriso.
Elliot havia me ligado no dia anterior, dizendo que tinha uma amostra de DNA de Ben e Emily (após alguma pesquisa, descobrimos que era mais seguro coletar saliva do que cabelo, e ele o fez com o pequeno, que dormia feito pedra e não se recordaria do evento; descobrimos também que amostras maternas auxiliavam no resultado, mas com a mãe, o mesmo procedimento não foi possível, e nos conformamos com os fios de cabelo de seu pente) e o exame anterior, de anos atrás, em mãos. Ele me pareceu tenso, mas disse apenas que gostaria de me acompanhar no encontro com ; eu, mais do que contente com a ideia de não ficar sozinha com aquele crápula, concordei.
– Sabe de uma coisa? – disse, ao enfim retornarmos ao sofá, dessa vez sozinhos, depois da breve, porém alegre refeição para se encaixar no horário de almoço de mamãe – A tem razão.
– Como assim? – indaguei, deitada com a cabeça em seu colo. Seus olhos estavam perdidos em meio à mobília à nossa frente, e o fantasma de um sorriso moldava seus lábios.
– Quando ela disse que é bom te ver sorrindo de novo – ele explicou, e após alguns segundos, enfim devolveu meu olhar – Ela tem razão.
Involuntariamente, por mais que a situação permitisse que fosse proposital, abri um sorriso tranquilo, tornando-me a representação humana de um gatinho que se espreguiça e ronrona ao receber um afago. Ele sorriu de volta, ou melhor, o esboço de sorriso que já habitava seu rosto se expandiu, e feito dois idiotas, caímos no riso por mais um breve momento.
– Enfim, não quero ficar falando disso e trazendo essa lembrança desagradável à tona – ele suspirou, brincando com meu cabelo sem prestar atenção no que seus dedos faziam – Só quis reforçar o que ela comentou... Porque é realmente importante.
Mordi o lábio inferior, buscando afugentar não só o sorriso incontrolável que fazia minhas bochechas doerem, mas também a emoção que suas palavras sinceras causavam. Fiquei ereta no sofá e passei um braço sobre suas pernas, apoiando-me em minha mão para ficar com o rosto rente ao dele. Sorri, mais uma vez, pela milésima vez, embora fosse como se não tivesse parado por um só instante. Dessa vez de propósito.
– Senti falta de te ver assim... – soprou, levando uma mão à minha cintura e outra ao meu rosto, gesto que eu prontamente retribuí ao inclinar a cabeça na direção de seu toque – Radiante.
Encaramo-nos por alguns segundos, aproveitando a calma que agora se estendia infindavelmente em nossas mentes, até que ele franziu a testa, subitamente desconcertado.
– Quer dizer... Não que você não seja radiante sempre,, mas... Esses últimos dias foram difíceis, você estava preocupada com esse resultado, e com razão, claro... Não foi o que eu quis dizer, imagi–
Sem conseguir segurar o riso diante de seu monólogo atrapalhado e desnecessário, apenas uni nossas bocas carinhosamente, acariciando seu rosto com a mão livre e prendendo seu lábio inferior entre meus dentes brevemente antes de partir o beijo.
– Eu entendi o que você quis dizer, fica tranquilo – murmurei, fazendo cafuné em sua nuca, e ele assentiu, com um sorriso satisfeito.
– Pelo jeito, você continua sendo uma ótima aluna.
– Claro que sim – respondi, erguendo uma sobrancelha – Além do mais, como poderia não ser, quando tenho um ótimo professor?
– E ainda por cima, particular – ele riu, entrando na brincadeira, antes de roubar outro beijo.
– É aqui.
Elliot estacionou o carro na esquina do café onde nos encontraríamos com em alguns minutos. Assim que o barulho do motor cessou, ele respirou fundo, distraído com seus próprios pensamentos, observando a movimentação na rua à nossa frente. Após um breve trajeto tenso e silencioso de minha casa até ali, não pude mais me conter.
– Sei que não somos próximos, e que eu não deveria me intrometer, mas... Você está bem?
Seu olhar caiu para o volante do carro; mais um suspiro antes de responder.
– Não exatamente.
Aguardei a continuação de sua explicação, que exigiu outra respiração profunda antes de sair.
– O que você me disse semana passada ficou entalado na garganta... Por mais absurda que a hipótese soasse, fiquei com aquilo na cabeça. Não conseguia parar de pensar na possibilidade de que minha irmã tenha mentido pra mim sobre algo tão grave por todo esse tempo. Não sei o que causou essa desconfiança toda, talvez um instinto meu, uma sensação constante de que algo não se encaixa nessa versão oficial dos fatos desde... Desde sempre.
Assenti devagar, atenta ao que ele dizia. Elliot nunca agira daquela forma comigo. A mesma seriedade de quando me contou que era pai de Ben estava presente, porém a certeza não existia em seu tom. Sua voz por pouco soava trêmula, como se a mera probabilidade de ter sido enganado pela própria irmã fosse impactante demais para suportar. Contudo, continuar vivendo aquela potencial mentira não era certo, muito menos possível, uma vez que a dúvida já tinha se infiltrado em sua mente.
– Eu sempre achei que conhecia Emily melhor do que ninguém – ele continuou, cabisbaixo, com esforço, nitidamente desconfortável por se abrir daquela forma comigo, porém sem outra escolha – Sempre achei que podia confiar nela tanto quanto ela confiava em mim... E mais, por tudo o que aconteceu quando ela engravidou, sempre fiz questão de estar presente na vida de Ben, de amá-lo como toda criança merece ser amada, e como ... Como o pai não o amava. Tudo isso, principalmente, porque amo minha irmã. Ela me aceita... Como eu sou. Sempre me aceitou. Imaginar que possa existir um segredo tão grande entre nós...
– Elliot, não se torture – interrompi, ao perceber que ele estava prestes a se deixar levar pelo pânico – Não deixe que uma pessoa como te manipule desse jeito. Nós vamos descobrir a verdade, está bem? Eu prometo. E seja ela qual for, faremos de tudo para que todos os envolvidos nessa história saiam dela da melhor forma possível. Não se precipite, e por favor, não se desespere. Isso é exatamente o que ele quer, causar tristezas em nossas vidas, já que não consegue lidar com as dele.
Ele respirou fundo uma última vez, com os olhos fixos nos meus durante todo o discurso. Quando enfim parei de falar, ele processou minhas palavras por um instante e confirmou com a cabeça. Só então percebi que, ao interrompê-lo, levei uma mão ao seu braço, no calor do momento. E ainda o estava segurando.
– Desculpe – falei na mesma hora, encolhendo-me novamente em meu assento.
– Tudo bem – ele disse, parecendo positivamente surpreso com minha atitude – Acho que eu precisava de tudo isso.
– Acho que sim – dei de ombros, ainda envergonhada, embora mais confortável do que em nosso último encontro depois daquele vislumbre de fragilidade – De qualquer forma, depois do que eu passei nos últimos dias por causa de , não quero nem pensar em mais alguém sofrendo por causa dele.
– Obrigado.
– Tudo bem.
Trinta segundos de silêncio constrangedor, ainda que mais tranquilo do que antes, se seguiram, até que ele voltou a falar.
– Tenho que admitir... Realmente, você não parece ser uma má pessoa.
Deixei de observar o exterior do veículo e virei o rosto em sua direção ao ouvi-lo falar. Elliot não olhou de volta para mim, mas um sorrisinho satisfeito, embora contrariado, surgiu em seu rosto. Engoli em seco, pega de surpresa por aquela demonstração absurda de afeto para os padrões dele, e não tive coragem de agradecer, temendo receber uma resposta equivalente a um balde de água fria. Contente com meu pequeno feito, voltei a olhar para fora da janela, lutando contra a vontade de rir ao imaginar o que diria quando soubesse que seu tão temido primo tinha alguma consideração por mim, mesmo que ínfima.
Deixamos o carro alguns minutos depois, quando o relógio no painel marcou três da tarde. Logo avistamos , parado em pé ao lado de uma pilastra do estabelecimento, braços cruzados sobre o peito, sorrisinho prepotente no rosto. Estremeci ao notar que ele usava o suéter verde musgo de que eu tanto gostava antes de... Antes de tudo.
– Trouxe um guarda-costas, ? – ele perguntou, indicando Elliot com a cabeça e observando-o de cima a baixo com desdém – Se a intenção era me intimidar, acredite, o tiro saiu pela culatra.
– Não vim até aqui para ouvir desaforos – retruquei, sem a menor paciência – Você quer a amostra de DNA ou não?
Mesmo tentando disfarçar e manter sua atitude debochada, pude perceber sua confiança fraquejar ao notar que eu não estava ali para brincadeira. lançou um olhar desafiador a Elliot, cuja expressão continuou implacável, e voltou a me encarar.
– Sim. Afinal, foi para isso que viemos aqui, não é mesmo?
– Que bom que concordamos em pelo menos alguma coisa – sorri, mais cínica, impossível – Nós temos a amostra. Agora precisamos decidir uma clínica para realizar o exame.
– Eu conheço uma, não fica muito longe daqui – Elliot disse, como tínhamos combinado, porém ergueu a mão.
– Como posso garantir que o resultado não será manipulado, como sua irmã fez da primeira vez?
Elliot e eu nos entreolhamos discretamente, surpresos ao descobrir que ele sabia sobre o primeiro exame. percebeu, e tirou proveito da situação.
– Acharam que eu não sabia? Quem vocês acham que pediu para Emily ter uma conversinha com o médico e casualmente mencionar as generosas possibilidades que sua conta bancária poderia oferecer?
Engoli em seco, administrando o impacto de suas palavras enquanto observava com atenção a reação de Elliot, pronta para intervir caso fosse necessário. Felizmente, ele se conteve; cerrou os olhos para , e enfim se manifestou.
– Se formos à clínica que você quer, como saberemos que o exame não será adulterado a seu favor outra vez?
soltou um risinho divertido, e seus olhos voltaram a cair sobre mim.
– Ela decidirá aonde iremos.
Ergui as sobrancelhas, sem entender a preferência, porém sem recusá-la, pois sabia exatamente onde ir. Eu só queria me livrar daquele fardo de uma vez por todas, e se ele estava disposto a me deixar conduzir a situação, melhor para mim, e para todos os envolvidos, já que eu com certeza não estava disposta a subornar ninguém para encobrir a verdade.
– Tudo bem – concordei, dando de ombros – Eu conheço um lugar.
Voltamos ao carro de Elliot, e seguimos para a clínica onde meu pai costumava trabalhar quando ainda era casado com mamãe. Sabia que todos ali eram confiáveis, não havia lugar melhor para realizar a tarefa.
Falamos com a atendente e após aguardar e Elliot preencherem um formulário com informações necessárias sobre as duas partes e a forma de pagamento, todos seguimos em direção às poltronas para esperar a coleta do material genético. Senti me encarar durante todo o tempo, ainda que Elliot tenha insistido em ocupar o assento entre nós. Determinada a não desperdiçar um segundo além do extremamente necessário com sua existência, não devolvi seu olhar uma só vez. Enfim, ele foi chamado, e levando consigo as amostras de DNA de Ben e Emily, em poucos minutos, pudemos deixar a clínica
– Você ouviu a data do resultado – falei, ao pararmos diante do carro de Elliot – Quando o dia chegar, esteja aqui nesse mesmo horário. Nem pense em sequer tocar o envelope antes de eu chegar, ouviu?
ergueu uma sobrancelha e deu risada. Não entendi a graça, e deixei claro em minha expressão.
– Você não está mais com medo – ele disse, novamente cruzando os braços. Sustentei seu olhar asqueroso sem me deixar abalar.
– Não, não estou – rebati sem hesitar, motivada por todo o terror psicológico que ele provocara há poucos dias, do qual eu ainda me recuperava – Deveria estar?
Ele não respondeu, apenas continuou me encarando, até que lhe dei as costas, disposta a colocar o máximo de distância entre nós possível até nosso próximo encontro.
– Eu ainda posso cumprir aquela promessa... Você sabe – ele adicionou assim que fiz menção de me afastar, e eu parei onde estava – Não sabe?
Devagar, virei parcialmente em sua direção, olhando-o com desprezo.
– Você é patético.
De rabo de olho, notei um Elliot boquiaberto ao meu lado, enquanto processava a dor do soco verbal que levara. Não parei por aí, caminhando até ele em passos lentos, até me aproximar o máximo que meu nojo permitia.
– Só porque seu plano ridículo de ter duas mulheres ao mesmo tempo deu errado, porque você está na merda e eu encontrei alguém que me ama de verdade, e agora, depois de descobrir que sua última estripulia foi inútil, também porque você já não tem mais poder nenhum sobre mim e nem terá porque eu não vou deixar isso acontecer, você quer se agarrar a uma lembrança... Porque é isso que essa promessa é: uma mera lembrança.
Ele engoliu em seco, mais ultrajado a cada palavra. Aproveitei cada segundo, cada detalhe daquele momento.
– Pare de viver do passado. Faça um favor a si mesmo e ao mundo, e siga em frente. Porque todos nós já seguimos. Se você acha que eu estou fazendo isso por você, porque tenho medo de você, está muito enganado. Dentre todas as pessoas que podem ser afetadas caso sua versão dos fatos seja verdadeira, você é a última com a qual me preocupo. Só quero me livrar de você de uma vez por todas e viver a minha vida, que é o que você deveria fazer também.
Depois de soltar tudo o que estava engasgado na garganta, soltei um suspiro aliviado, e dessa vez dei meia volta sem olhar para trás. Elliot me acompanhou, ainda incrédulo. Quando abri a porta do lado do passageiro, se aproximou, com a intenção de ocupar o banco traseiro assim como o fez na ida até ali.
– O que você pensa que está fazendo? – perguntei, insuportavelmente dissimulada – Só te trouxemos aqui porque foi preciso. Não temos a menor obrigação de te levar a lugar algum agora.
– ... – ele começou, mas eu não o deixei continuar. Elliot e eu entramos no carro e travamos as portas, deixando os vidros fechados.
– Tchauzinho! – sorri, acenando brevemente para a cara vermelha de raiva de antes de Elliot arrancar e deixá-lo para trás.
– Garota, você é maluca! – Elliot riu, olhando por sobre seu ombro para a figura cada vez mais distante parada na calçada.
– Eu? Eu sou um amor de pessoa – neguei, dando de ombros – É só não me deixar com raiva. Seu primo sabe exatamente do que estou falando. Pode perguntar.
Ele ergueu as mãos em rendição quando parou num sinal vermelho.
– Anotado!
Rimos mais um pouco enquanto o carro estava parado, porém tão logo o semáforo mudou para verde e o peso de toda a situação recaiu sobre nossos ombros. Ficamos sérios e silenciosos novamente.
– Ele sabe.
Franzi a testa ao ouvi-lo, sem entender a que se referia. Elliot prosseguiu, sem notar minha breve confusão.
– sabe sobre o primeiro exame.
Assenti devagar.
– Sim.
– pode ter comentado sobre o assunto na época – ele acrescentou, inclinando a cabeça para o lado ao considerar a possibilidade. Confirmei com a cabeça outra vez.
– Sim.
Elliot ficou calado por mais alguns segundos, apertando o volante com força, até a fonte de sua preocupação vir à tona.
– Ou não. Ou ele pode saber, porque realmente está dizendo a verdade.
Cerrei os olhos, mesmo que ele estivesse olhando para o trânsito à frente, mas fiz questão de deixar minha irritação nítida no tom de voz.
– Ei, o que foi que eu disse hoje mais cedo? Não o deixe entrar em sua cabeça tão facilmente.
Não recebi resposta por um tempo. Contudo, quando ela veio, destruiu todas as minhas possíveis respostas.
– Não foi ele quem entrou na minha cabeça e levantou essas dúvidas... Foi minha irmã.
Mais uma breve, porém tensa, pausa.
– Quando tentei arrancar alguma informação dela a respeito disso tudo, ela ficou tão...
– Transtornada? – sugeri, percebendo que era cada vez mais difícil para ele desabafar.
– Calma. Ela ficou calma. Perfeitamente tranquila.
Elliot lançou um olhar preocupado em minha direção, e eu o retribuí da mesma forma, muito embora tentasse disfarçar as suspeitas que se acumulavam em minha mente.
– Só mais alguns dias, e nós saberemos a verdade – suspirei, forçando um sorriso otimista – Não se preocupe, aquele exame será definitivo, e eu sei exatamente como garantir isso.
Dessa vez ele franziu a testa, virando um pouco o rosto para o meu lado, sem tirar os olhos da rua adiante. Tirei meu celular do bolso, e expliquei a que me referia enquanto buscava o número desejado na lista de contatos.
– Meu pai costumava trabalhar nessa clínica, quando ainda morava conosco. Tenho certeza de que ele ainda tem contatos importantes lá... Vamos descobrir o que ele pode fazer a respeito.
Elliot ergueu as sobrancelhas, positivamente surpreendido, e eu respondi com uma piscadela confiante, levando o celular ao ouvido. Alguns toques depois, a chamada foi atendida.
– Oi, querida. Que surpresa!
– Oi, pai! – exclamei, com a voz açucarada, o que fez o motorista ao meu lado segurar o riso – Tudo bem?
– Tudo, sim, e com você? – papai indagou, ainda processando o fato de que eu o havia telefonado sem motivo aparente – Algum problema?
– Não, não... Na verdade, eu quero te pedir um favor. Mas não é nada grave.
– Hm, e que favor seria esse, mocinha?
Mordi o lábio inferior, hesitante, antes de começar a explicar.
– Eu não posso explicar a maior parte das circunstâncias, mas... Preciso que você acompanhe uma análise de DNA que será feita na clínica onde você trabalhava, aqui em Londres...
Meu pai ficou mudo por alguns segundos, e imaginei que fosse pela completa aleatoriedade do pedido. Quando enfim voltou a falar, foi com um tom desnorteado.
– Filha, o que está acontecendo?
– Eu disse que não posso explicar, pai... Pelo menos não agora. Mas confie em mim, por favor. Apenas cuide para que a análise seja feita de forma honesta. Pessoas com dinheiro e interesses bem específicos podem tentar alterar o resultado, e isso obviamente não pode acontecer.
Mais silêncio. Elliot estacionou a uma quadra de minha casa, assim como na ida, para despistar um suposto que pudesse aparecer de surpresa e nos flagrar juntos.
– Se você não me explicar pelo menos quem são essas pessoas, não posso te ajudar – papai disse, contrariado – Que pedido mais descabido, mais repentino!
– O que eu posso fazer é te dar o número do protocolo... Serve? – rebati, voltando a usar minha voz mais doce para tentar persuadi-lo.
Alguns minutos de resistência e insistência depois, consegui um “verei o que posso fazer a respeito”, seguido de muitos agradecimentos fofinhos. Quando desliguei, Elliot me encarava como se eu tivesse três cabeças.
– O que foi? – perguntei, sem entender o porquê daquela cara – Eu consegui! Sempre que ele diz “talvez”, está dizendo um “sim”, acredite.
Pasmo, ele balançou a cabeça devagar.
– Num minuto, você está prestes a arrancar cabeças, e noutro, vomitando arco-íris... Socorro.
Revirei os olhos e fiz minha melhor cara de diva.
– Faz parte de ser mulher, meu caro. Já que vocês homens só sabem ser brutos e racionais uns com os outros, nós utilizamos todos os artifícios de que dispomos para arrancar o que queremos de suas garrinhas egoístas... Sejam eles bons ou ruins.
Um par de olhos arregalados me observava quando desfiz o carão, e se já estava morrendo de vontade de rir antes, o comentário que recebi em resposta só piorou a situação.
– Homens são brutos mesmo. Mas que a gente gosta deles assim... Ah, gosta.
Somente consegui sair do carro e andar até minha casa uns cinco minutos (de gargalhadas e despedidas bem-humoradas) depois.
Quem diria que teríamos nos aproximado tanto em tão pouco tempo... Novamente, a ideia de contar a sobre meu feito surgiu, porém acompanhada da ideia de que mais cedo ou mais tarde, teria que contar a ele sobre tudo o que estava acontecendo sem que ele soubesse.
De repente, já não era mais tão fácil sorrir.
sorriu ao me receber em seu sofá depois do almoço. Ele foi me buscar na faculdade e me levou até seu apartamento, como de costume às sextas.
– Você está tensa hoje – ele comentou, deslizando as mãos sobre meus ombros devagar – Aconteceu alguma coisa?
Aproveitei-me de minha posição, de costas para ele, e fechei os olhos, odiando aquela situação cada vez mais. Neguei com a cabeça antes que ele pudesse notar meu desconforto.
– Não – disse apenas, omitindo a segunda e mais importante parte da resposta.
Mas vai acontecer.
Dali a algumas horas, eu descobriria se estava falando a verdade.
– Como não? Suas costas estão rígidas – ele insistiu, nem um pouco satisfeito com minha resposta monossilábica – Algum problema na faculdade?
Aproveitei a deixa e inventei a primeira desculpa em que pude pensar.
– Não é bem um problema... Tenho um trabalho em grupo para terminar até semana que vem, e você sabe que sou péssima em lidar com pessoas.
– Ah, sim – riu, massageando minhas clavículas, ao que eu não pude deixar de reagir, relaxando pelo menos os músculos sob seu toque – Entendo perfeitamente seu estresse.
Não, você não entende.
– Pois é.
Eu sinto muito.
– No que eu puder ajudar, por favor, peça – ele sussurrou em meu ouvido, beijando meu pescoço – E não se preocupe. Pode abusar.
Por favor, não me odeie pelo que estou fazendo.
Virei-me de frente para ele com um sorriso fraco. Antes que ele abrisse a boca e perguntasse se realmente estava tudo bem fora o suposto trabalho em grupo, beijei sua boca, segurando a gola de sua camiseta como se uma força invisível o puxasse para longe de mim.
– Eu tenho que ir – murmurei contra seus lábios, ao que ele franziu a testa – Daqui a pouco o pessoal do grupo vai lá para casa.
Engoli a angústia que mentir para ele causava, e mantive minha expressão neutra. suspirou, tristonho, porém conformado.
– Tudo bem, eu te levo – ele disse, levantando-se do sofá junto comigo e se dirigindo à bancada, onde a chave da moto repousava – Mas vou logo avisando que cobrarei um beijo bem dado de despedida.
Incapaz de não me deixar contagiar por seu bom humor, dei um sorriso derretido antes de segui-lo até o elevador.
– Justo.
– Lá vamos nós – Elliot suspirou, quando entrei em seu carro, mais tarde naquele dia – Está preparada?
– Eu nunca estou – respondi, passando as mãos pelo rosto na tentativa de me manter focada – Mas alguém precisa resolver esse assunto, e já estamos alguns anos atrasados.
Ele assentiu prontamente, mais do que concordando com minhas palavras, e arrancou rumo ao laboratório de exames. já estava lá quando estacionamos, e parecia levemente desgrenhado, com olheiras suaves sob os olhos, como se não tivesse conseguido fechá-los durante a noite anterior. Antes de deixarmos o veículo, eu e Elliot nos entreolhamos, ponderando o que tamanha ansiedade poderia significar. Em vão, claro; só havia um jeito de descobrir.
– Eu já estava quase te ligando – ele disse ao nos ver, caminhando energicamente em nossa direção mesmo sabendo que teria que dar meia volta e seguir conosco prédio adentro.
– Calma, estamos cinco minutos adiantados – falei, ligeiramente assustada com sua pressa.
Fomos até o balcão e informamos o número do protocolo. No momento em que a atendente começou a procurar o envelope correto dentre os vários armazenados na gaveta do arquivo, meu coração foi invadido por um enorme nervosismo; o peso daquele momento tinha pairado sobre minha cabeça o dia todo, mas ao me deparar com sua inevitável iminência, sobressaltei-me. O comportamento de pareceu bastante justificável então, e ao olhar para Elliot, notei, pela aflição nítida em seu rosto, que ele também se identificava com o homem impaciente entre nós.
– Aqui está – a moça enfim sorriu, depois de longos minutos que pareceram horas, deslizando o envelope com o nome de em nossa direção. Ao encontrar três rostos ansiosos à sua frente, seu sorriso cordial perdeu parte da força, e seus olhos se arregalaram de leve.
murmurou um “obrigado” apressado e pegou o envelope, como se ele pudesse fugir ou desaparecer caso não o fizesse. Deixamos o estabelecimento e seguimos até o carro de Elliot, todos nós tensos demais para dizer qualquer coisa. Depois de quase meio minuto trocando olhares temerosos na calçada, quebrei o silêncio angustiante.
– Eu abro.
Tomei o envelope da mão de , sentindo-a fria ao encostar meus dedos nos dele, e engoli em seco enquanto o abria. Desdobrei o papel timbrado, pela segunda vez em menos de dez dias, ciente de que não sentiria o mesmo alívio dessa vez do que da primeira ao ler o resultado.
– E então? – perguntou, exasperado, quando um suspiro entrecortado escapou de meus pulmões.
Ergui o olhar do papel para os dele, e então para os de Elliot, igualmente nervoso, embora calado. Mesmo temendo que meu coração saísse pela boca caso tentasse falar, pus fim à curiosidade agonizante dos dois.
– Negativo.
Elliot reproduziu minha reação, boquiaberto, levando as mãos à cabeça. Em contrapartida, não moveu um músculo, e qualquer vestígio de vida deixou seu rosto, moldando seus traços perplexos de forma assustadora.
– O quê? – ele balbuciou, procurando algum sinal de que eu estava enganada, ou enganando-o. Entreguei o resultado a ele, cujas mãos tremiam, e o observei confirmar o que eu dissera ao ler as palavras impressas nele.
Eu nunca o havia visto tão desolado, e por mais que quisesse somente distância dele, a cena não foi nem um pouco agradável. Cheguei a temer que ele desmaiasse ou algo do gênero, mas ele apenas leu, e releu, e releu o documento, com os olhos cada vez mais vermelhos e úmidos. Elliot percebeu o comportamento preocupante de depois de se recuperar da notícia; seu olhar se alternava entre nós dois, alerta a qualquer movimentação brusca ou inesperada.
– Eu... Eu não acredito nisso – murmurou, mais para si mesmo do que para nós – Não pode ser...
Ele balançava a cabeça em negação, com a respiração pesada, os dedos amassando o papel, externando o desespero que claramente o devorava por dentro. Após algum tempo, seus olhos se ergueram até os meus, e neles se fixaram, até que eu não pude mais sustentar o contato visual e os desviei para Elliot.
– ... – comecei, buscando coragem para lidar com a situação, com todo o cuidado que ela exigia – Fique calmo.
– Calmo? – ele repetiu, entre dentes, voltando a encarar o resultado – Como eu posso ficar calmo sabendo que mais um exame foi forjado, dessa vez, contra a minha vontade?
Lancei um rápido olhar a Elliot, que apenas assistia a tudo sem saber como agir. Não tive tempo de observar muito; logo voltou a falar, dessa vez com mais firmeza, e seu foco voltou a recair sobre mim.
– Eu só quero o meu filho de volta. Não quero dinheiro, não quero você, não quero nada. Só quero poder ver meu filho crescer, cuidar dele, ouvi-lo me chamar de pai... E vocês tiraram isso de mim. Sei que cometi muitos erros, mas estou disposto a me redimir... Mas vocês nunca permitirão que isso aconteça, não é mesmo?
Engoli em seco, chocada com a franqueza e a dureza de suas palavras, que não passaram de um mero murmúrio cheio de ódio e revolta. Num rompante, segurou meu pulso e colocou o papel de volta em minha mão, com o máximo de violência possível.
– Não encosta nela! – Elliot interveio, sem sucesso; ao senti-lo puxá-lo pelo braço, ele o empurrou contra o próprio carro. Desvencilhei-me de e ajudei Elliot a se reequilibrar.
– ! – exclamei, assustada com sua atitude agressiva – Nós não fizemos nada! O resultado é verdadeiro!
– Vocês acham que eu não sei o que aconteceu naquela noite? – ele vociferou, com os lábios retorcidos num sorriso desdenhoso – Vocês acham que eu estou insistindo numa história que não é real, que poderia ser facilmente desmentida com uma porcaria de exame como esse?
– Nós não temos culpa de nada aqui! Nós também só queremos a verdade! – Elliot retrucou, colocando um braço à minha frente como proteção caso ele tentasse se aproximar de novo.
– Eu sei exatamente qual é a verdade! – disse, de forma ameaçadora e convicta – E eu vou provar que estou certo, custe o que custar.
Elliot e eu o encaramos por alguns segundos, e então ele foi embora, com passos largos e determinados, ao que nós respiramos profundamente, aliviados. Ainda de mãos dadas desde que ele fora empurrado, apoiei minha testa em seu ombro.
– Meu Deus – ele ofegou, retribuindo o gesto e apoiando sua cabeça na minha – O que foi isso?
Assenti de leve, ainda desnorteada demais para responder de forma apropriada. Permanecemos paralisados, o medo ainda mantendo nossos músculos congelados, até que a adrenalina acumulada nos fez temer que retornasse, e deixamos o local o mais rápido que pudemos. Elliot nos levou a um café, e somente após alguns goles de nossas xícaras fumegantes, conseguimos conversar a respeito do que acontecera.
– Eu não sei o que pensar – iniciei, com o olhar espantado perdido sobre a mesa entre nós – Não faz sentido... Não consigo entender...
Um tempo depois, ainda chocado demais para reagir com rapidez, ele concordou lentamente com a cabeça. Seu semblante revelava um vazio dentro de si, uma insatisfação perante a confusão em sua mente. Eu sabia, porque sentia o mesmo.
– Por que ele está tão obcecado com essa ideia? – Elliot indagou, com a testa franzida – Será que está louco? Será que acredita nas próprias mentiras?
– Eu não sei... Mas seja o que for, espero que ele consiga ajuda de alguma forma – respondi, por algum motivo sentindo uma súbita vontade de chorar à medida que os flashes de alguns minutos atrás se repetiam, gravados para sempre em minha memória – Ele não pode continuar assim.
Um breve silêncio se instaurou, quebrado por Elliot.
– Não podemos acreditar nele, .
Ergui meu olhar da mesa para seu rosto, um tanto receosa em relação àquela opinião, porém sem provas concretas para sustentar tal receio. Ele continuou.
– Nós temos o exame. Dois exames, para ser sincero. Um que diz que é o pai, e outro que diz que não é. Nós sabemos que este segundo exame não foi falsificado, seu pai acompanhou a análise de perto, e ninguém mais sabia a respeito disso, só a gente. Nós temos evidências de que ele está mentindo. Por mais que ele insista nessa versão alternativa dos fatos, nós temos a constatação de que o que ele diz é impossível.
Fechei os olhos por um instante, buscando clarear meus pensamentos – em vão. Ainda que os argumentos de Elliot fizessem perfeito sentido, a reação extrema de , comparada à sua postura confiante de antes, não fazia sentido algum...
– Eu não sei mais o que pensar... Juro – murmurei, cruzando os braços sobre a mesa e deitando a cabeça sobre eles. Elliot esticou o braço e colocou a mão sobre meu ombro.
– Talvez nós devêssemos ir para casa e deixar que o tempo nos ajude a encontrar uma solução para esse mistério – ele sugeriu alguns segundos mais tarde, com a voz tão derrotada quanto meu ânimo – Está claro que não temos uma peça crucial desse quebra-cabeça, e que no estado em que estamos agora, não conseguiremos encontrá-la.
Voltei à minha posição anterior, devolvendo seu olhar desconsolado com um semelhante, e concluí que ele estava certo. Eu não conseguia parar de pensar na forma como agira, não só após descobrir o resultado do exame, mas também desde que o vi pela primeira vez naquele dia. Mais uma vez, Elliot tinha razão, pelo menos em parte: ele estava louco.
A questão era: sua loucura se devia a um motivo real ou inventado?
– Sim... Vamos para casa – suspirei enfim, ao pressentir uma dor de cabeça daquelas – vai passar o fim de semana com Ben e nós dois precisamos estar recompostos para lidar com ele.
– Pelo menos você terá uma folga durante os próximos dias... Eu terei que conviver com o ser como se nada tivesse acontecido – ele reclamou, antes de terminar seu cappuccino. Revirei os olhos sobre o meu, intocado, a não ser por um pequeno gole assim que foi servido.
– Acredite, eu trocaria um fim de semana podendo me isolar do mundo em meu quarto a ter que me despedir dele daqui a pouco. Não sei nem com que cara vou olhar para ele...
Elliot bufou, cético.
– Com a mesma cara de sempre, garota. A carinha lindinha e fofinha que ele tanto ama.
Ergui as sobrancelhas, confusa com sua alfinetada, por mais que simpática, e ele simulou um vômito por baixo da mesa que arrancou algumas risadas de mim.
– E eu que achei que estávamos começando a nos dar bem – falei, dando de ombros, ao que ele sorriu contra a própria vontade.
– Pode até ser, mas ninguém pode saber disso, certo? Preciso continuar agindo como se não gostasse de você, ou então suspeitarão de nós.
– Boa ideia – falei, respirando fundo e tomando mais um gole de minha bebida, convidando a cafeína a me dar energias para o que ainda viria – Ainda precisaremos mentir bastante por hoje... É melhor não baixar a guarda.
Pulei no sofá ao ouvir a campainha tocar, completamente absorta em pensamentos. Forcei-me a não deixar transparecer nenhuma preocupação em meu rosto no curto caminho até a porta, e assim que a abri, um sorriso leve curvava meus lábios.
– Oi – disse , com seu melhor tom e olhar galanteadores. Meu sorriso aumentou de imediato.
– Oi – respondi, sentindo sua presença aliviar boa parte do peso que envergava meus ombros depois daquela tarde conturbada. Sem pensar duas vezes, passei os braços sobre seus ombros, escondi meu rosto na curva de seu pescoço e inalei seu perfume. Ele retribuiu meu abraço sem hesitar, erguendo-me do chão por um instante para avançar os poucos passos até o hall de entrada de minha casa e fechar a porta atrás de si. Quando meus pés voltaram ao solo, meus braços mantiveram sua posição, prendendo-o junto a mim.
– Mas quanta saudade – ele brincou, apertando-me contra si com mais força de propósito – Já desacostumou a ficar longe de mim, não foi?
– Eu nunca me acostumei – resmunguei, com o coração apertado devido ao medo de que ele pudesse ler meus pensamentos e descobrir tudo o que vinha acontecendo desde que ressurgira do passado – Esse é o problema.
depositou um beijo demorado em meu ombro, acariciando minhas costas, e só então eu me permiti libertá-lo do abraço. Sua boca encontrou a minha logo em seguida, sem pressa, sem urgência, mas com intensidade o suficiente para me arrepiar dos pés à cabeça.
– Ah, mas isso é realmente impossível – ele sussurrou, ainda tão próximo que seus lábios roçaram nos meus. O calor de suas palavras, junto com seu braço, pressionando-me contra seu corpo pela cintura firmemente, derreteu parte das preocupações que habitavam meu peito, e eu sorri, colocando uma mão sobre sua bochecha.
– Concordo plenamente – suspirei, beijando-o outra vez, declarando, ainda que sem dizer uma palavra, como eu o queria, como precisava dele, como o amava, mais do que jamais imaginei que amaria alguém na vida.
– Prometo que volto logo – disse ao partirmos o beijo, com as pálpebras pesadas, inebriado pela atmosfera deliciosa que nos cercava sempre que estávamos juntos – Você nem vai sentir minha falta.
– Mas eu já estou sentindo sua falta – rebati, dando um beijinho na ponta de seu nariz, fazendo-o soltar um risinho.
– Se é assim... Nós podemos dar um jeito nisso.
Antes que pudesse prever o que faria, ele enganchou as mãos na parte de trás de meus joelhos, colocou uma perna de cada lado de seu quadril, carregou-me até as escadas e lá me acomodou, sentada num dos degraus, desorientada. Voltamos a nos beijar, sem pensar, apenas agindo, tocando, sentindo, guiados pelas vívidas lembranças da anatomia um do outro, memorizadas depois de vários estudos e experimentos minuciosos.
Fui tão pega de surpresa com aquela reviravolta que apenas voltei a entender o que acontecia ao meu redor quando ouvi a chave de mamãe girar na porta, e as mãos de rapidamente deslizarem para fora de meu sutiã e de minha calcinha. Num pulo, ele se sentou ao meu lado, ajeitando o colarinho da blusa e disfarçando minha tentativa atrapalhada de me livrar de seu cinto. Ajustei o cós de meu shorts e enxuguei meus lábios úmidos com as costas da mão, bem a tempo de sorrir para minha mãe.
– Boa noite – ela sorriu, fechando a porta atrás de si, e ambos repetimos seu cumprimento, muito embora nossos sorrisos fossem bem mais tensos e forçados.
Ela parou diante dos degraus e inspecionou nossos rostos em silêncio; desviei o olhar para o chão, sentindo meu pescoço me trair ao esquentar ainda mais. Sem dizer mais nada, ela passou por nós, fazendo questão de pisar no espaço entre nossos corpos, fazendo com que nos afastássemos momentaneamente, e entrou em seu quarto, deixando a porta aberta para que soubéssemos que podia nos ouvir. Escondi o rosto nas mãos assim que sumi de sua vista, e suspirou aliviado.
– Essa foi por pouco – ele sussurrou, segurando o riso, e eu assenti, ainda me recuperando do susto.
– Muito pouco – ressaltei, com os olhos arregalados – Ela é liberal com muita coisa, você sabe, mas acho que isso...
– Seria imperdoável, de fato – ele completou, ao que concordei com a cabeça – Imagine só com que cara eu olharia para ela de hoje em diante depois de ser pego com a cara no meio de suas per...
– Prefiro não imaginar, obrigada! – interrompi com a voz esganiçada, apesar de baixa, e ele riu o mais silenciosamente possível, divertindo-se com minha agonia.
Ficamos calados por um momento, com minha cabeça repousando confortavelmente em seu ombro, conforme a constatação de que ele teria que ir embora e só voltar dali a cerca de 72 horas voltava a ser nosso foco. Pesarosos, nos levantamos e seguimos até a porta, de mãos dadas e com sorrisinhos tristonhos.
– Se cuida, pirralha – ele advertiu, quando novamente o aprisionei num abraço.
– Se cuida você também – pedi, desejando poder acompanha-lo, mas sabendo que precisava da distância temporária para organizar meus pensamentos – Cuidado na estrada. E me avisa quando chegar.
– Pode deixar.
Depois de um último beijo de despedida, que demoramos a encerrar, abriu a porta e caminhou na direção de seu carro, sem olhar para trás, como sempre fazíamos para evitar que o magnetismo implacável entre nós nos forçasse a dar meia volta e correr para os braços do outro novamente. Acompanhei todo o processo até o veículo sumir de vista, e só então fechei a porta, encaminhando-me para meu quarto em busca de sossego. Assim que me joguei na cama, meu celular avisou que havia uma nova mensagem. Por um segundo, entrei em pânico, achando que poderia ser , mas fui surpreendida positivamente ao ler seu conteúdo.
Contando as horas para terminarmos aquele assunto que começamos na escada. E pra poder dizer que te amo pessoalmente, no seu ouvido, só pra você ouvir...
Voltei a cair sobre meu colchão, derretida e morrendo de saudade daquele idiota. Respondi algo relacionado ao uso de celular ao volante, da forma mais ridiculamente apaixonada possível, e ao enviar a mensagem, levei uma mão ao pingente que ainda pendia de meu pescoço, apertando-o entre meus dedos. A pequena superfície fria foi mais um lembrete de que ele não estava comigo, e trouxe à tona os acontecimentos que antecederam nossa despedida.
Seria um longo fim de semana. Mais longo do que eu poderia imaginar.
Olhei ao meu redor, extremamente desconfortável com a situação em que me encontrava. Estava sentada numa mesa do lado de fora do café onde me encontrei com pela primeira vez, já que seu interior estava lotado, esperando sua chegada. Na manhã daquele domingo, recebi uma mensagem dele, pedindo para que me encontrasse com ele naquele local e horário, dizendo que era a última vez que me procuraria. Como ainda estava intrigada com o que tinha acontecido, resolvi dar uma chance a ele de se explicar. A última, em definitivo.
Uma onda de alívio, seguida por outra de temor, percorreu minha espinha ao avistar atravessando a rua, e enfim ocupar a cadeira vazia à minha frente.
– Você está atrasado – falei, deixando bastante claro que não queria estar ali.
– Desculpe – ele respondeu, resignado, para minha surpresa – Não foi minha intenção te deixar esperando.
Assenti uma vez, ainda desconfiada, apesar de seu comportamento e aparência inofensivos até então. Deixei que ele recuperasse o fôlego antes de falar novamente.
– E então... O que você tem para me dizer?
abriu a boca para começar a falar, mas não chegou a emitir um som sequer. Seu olhar se perdeu em algum ponto atrás de mim, e seus lábios permaneceram separados, indicando seu choque com o que quer que tivesse roubado sua atenção de nossa conversa. Subitamente alarmada, olhei na mesma direção, e senti a cor deixar meu rosto ao avistar , Emily e Ben parados a alguns metros da mesa que ocupávamos.
Segurei o encosto da cadeira com todas as forças que ainda me restavam, temendo escorregar para o chão caso não o fizesse. Ele me encarava com a testa franzida, igualmente confuso e lívido, enquanto Emily parecia tão assustada quanto eu. Ben, obviamente, não fazia ideia do que se passava, e sorria para mim, num gesto nítido de reconhecimento.
Somente uma palavra habitava meus pensamentos.
– Não...
murmurou algo ao menino, que segurava sua mão, e deixando-o com a mãe, caminhou até nós, com a expressão indecifrável. Eu não sabia se ele estava prestes a bater com a cabeça de na calçada até que não houvesse mais nada para quebrar, ou se ele pretendia fazer isso comigo. Na verdade, eu sabia que escaparia fisicamente ilesa, mas o pressentimento que acompanhava cada passo seu em nossa direção me fazia sentir que a conversa que estávamos prestes a ter seria emocionalmente dolorosa.
– Não... – repeti, sem conseguir encontrar minha voz em meio ao pavor que me preenchia por inteiro. parou ao lado de nossa mesa, sem tirar os olhos de , que, por sua vez, não tirava os olhos de Ben.
Após um suspiro trêmulo, durante o qual suas mãos se fecharam em punhos trêmulos, ele enfim fez a pergunta que desencadearia o caos.
– Será que alguém pode me explicar que porra está acontecendo aqui?
Apesar do movimento de pessoas e veículos ao nosso redor, tudo parecia imóvel, imediatamente eliminado, a partir do momento em que surgiu. Menos meu coração, batendo desenfreado, e meus pensamentos, colidindo uns com os outros dentro de minha mente nublada pelo pavor. Nem mesmo o ar adentrava meus pulmões de bom grado, agarrando-se ao mundo exterior e deixando-me sem suprir minha necessidade de oxigênio, o que tornou minha respiração ofegante em menos de um minuto.
Os olhares dos dois homens à minha frente, um igualmente aterrorizado, outro uma mescla de raiva e incredulidade, estavam fixos em mim, um esperando e outro exigindo uma explicação. O peso da expectativa, combinado ao turbilhão de inseguranças que me paralisava dos pés à cabeça, atrapalhava ainda mais minha capacidade de reagir.
A lembrança da última vez que nós três nos encontramos, marcada pelo medo em minha memória, só agravava meu total emudecimento.
– E então? Alguém vai dizer alguma coisa, ou posso começar a tirar minhas próprias conclusões?
As palavras de , ainda mais enfurecidas do que antes devido ao silêncio interminável que sucedeu sua pergunta, despertaram-me do choque de sua chegada. Mesmo sem saber direito como o responderia, gaguejei o que fui capaz de formular.
– Calma... Eu explico.
Ele ergueu as sobrancelhas, fingindo surpresa. Respirei fundo, buscando força para seguir em frente diante de toda a sua revolta.
– Venha comigo, por favor – pedi, com a voz fraca, levantando-me cautelosamente devido às pernas trêmulas – Não quero passar mais um segundo perto dele.
Notando a sinceridade em meu tom, a postura agressiva de diminuiu consideravelmente; enquanto nos afastávamos de , ainda surpreso demais para se manifestar, ou distraído demais com Ben para se importar, ele até chegou a colocar uma mão sobre meu ombro, preocupado com meu equilíbrio prejudicado.
– Você precisa me ouvir... Isso tudo... Não é o que parece – arfei, ao enfim pararmos a alguns metros da mesa. Certa de que estava sofrendo um ataque de pânico, tentei estabilizar minha respiração para poder continuar falando, porém sem muito sucesso. desceu sua mão para meu braço, dando um leve apertão na tentativa de me tranquilizar.
– , fique calma – ele murmurou, buscando meus olhos evasivos com os agora aflitos dele – Seja o que for que você tem a dizer, eu tentarei compreender... Confio em você.
Minha garganta continuou apertada, embora sua declaração tenha acendido uma faísca de esperança em meu peito. Sem pensar duas vezes, sem sequer considerar a possibilidade real (e insuportavelmente dolorosa) de ser rejeitada, lancei meus braços ao redor de seu pescoço, deixando que meu coração desgovernado batesse contra o dele, e quem sabe transmitisse através de seus batimentos tudo o que eu precisava, mas não queria dizer. Felizmente, ele retribuiu o abraço, sussurrando palavras de incentivo enquanto eu buscava me recuperar do ataque de nervos para explicar tudo.
– Obrigada – suspirei ao soltá-lo, e levei as mãos ao rosto, preparando-me para o que viria.
– Tudo bem... Agora converse comigo.
Após mais alguns segundos de hesitação, dei início à revelação que deveria ter acontecido há muito tempo, se dependesse só de mim.
– Como você sabe, me procurou há um tempo... O que você não sabe, é que ele tem um motivo por trás de seu retorno.
franziu a testa.
– E você sabe disso como?
Engoli em seco. Nenhuma parte daquela conversa seria fácil.
– Eu me encontrei com ele... Horas antes de você aparecer na minha casa.
Sua expressão mudou de desconfiada para lívida num piscar de olhos. Minha coragem diminuiu consideravelmente, mas já não era possível voltar atrás.
– Eu precisava enfrentá-lo... Tentar eliminar o mal pela raiz, antes que a situação ficasse insustentável – expliquei, esforçando-me para manter minha voz firme – Mas não deu certo. O que ele tinha para dizer era grande demais. Grave demais.
– E o que ele tinha para dizer? – indagou, cruzando os braços em nítida desaprovação. Mordi o lábio inferior, prevendo uma queda de pressão só de imaginar sua reação ao que estava prestes a ouvir.
Mesmo que fosse mentira, e talvez exatamente por essa razão, sabia que seria um enorme transtorno para ele. Seu primeiro instinto seria o de voar no pescoço de , não só por me ameaçar, mas também por envolver Ben e Emily em suas tramoias, e sabe-se lá quantas pessoas seriam necessárias para apartar a briga. De qualquer forma, ele precisava saber. Depois do comportamento violento de após saber o resultado do exame, manter no escuro em relação ao que se passava apenas colocava todos os envolvidos em risco, inclusive ele.
E se eu ainda precisasse de mais motivos para me incentivar a abrir o jogo, era só me lembrar do quanto os poucos segredos que guardamos um do outro prejudicaram nossa relação no passado, e muito provavelmente, prejudicariam mais uma vez...
– Promete que vai ficar calmo – implorei, numa tentativa desesperada de amenizar a situação, que ele prontamente descartou com um risinho hostil.
– Como eu posso prometer alguma coisa se você mesma não cumpriu a promessa que me fez fazer, sobre não termos mais segredos entre nós?
Assenti devagar, envergonhada depois de ter meu erro trazido à tona, porém não desisti de tentar fazê-lo entender o que estava de fato acontecendo.
– Ele me pediu para não contar... E depois me ameaçou, para ter certeza de que minha vida seria um inferno... Com certeza, ele sabia que em algum momento você descobriria e que teríamos essa conversa, e que você não acreditaria em mim...
Parte do pânico que me asfixiava há alguns minutos voltou à vida, e por mais irritado que estivesse, ele não perdeu a paciência; pelo contrário, colocou as duas mãos sobre meus ombros e os massageou de leve, tentando restaurar um pouco da paz.
– Odeio dizer isso, mas ele está certo – disse, e por um instante meu coração acelerou tanto que pensei que fosse parar – Mas não em relação à última parte. Eu acredito em você. É nele que não posso, nem consigo acreditar, não depois de tudo que ele te fez passar.
Respirei fundo, cansada de sentir medo, de me sentir culpada por algo que praticamente nada tinha a ver comigo, a não ser pelo fato de que me envolvera na história à força. Motivada por sua reafirmação de confiança, simplesmente deixei que as palavras saíssem de minha boca, com os olhos fixos nos dele.
– acha que é o pai de Ben.
devolveu meu olhar por cerca de vinte segundos, sem dizer uma palavra ou mover um músculo. Estava começando a ficar preocupada quando enfim ele se pronunciou.
– Ele acha o quê?
Examinei sua expressão psicótica por um instante antes de repetir.
– Que é pai de Ben. Disse que não foi você quem dormiu com Emily naquela noite... Foi ele.
Mais silêncio de sua parte, bem mais curto do que o anterior. Eu não me lembrava de tê-lo visto tão quieto após uma notícia impactante antes. Se bem que eu nunca o tinha visto receber uma notícia tão impactante antes.
– Já que você diz que tem uma explicação para tudo isso, por favor, me dê um motivo para não voltar àquela mesa agora e acabar com aquele pilantra.
– Não faça isso, por favor – pedi, embora a última pessoa que quisesse proteger fosse – Não vale a pena. Nós já sabemos que ele está mentindo.
– Mas é claro que ele está mentindo! Filho da puta maldito! – vociferou, lançando olhares nada amigáveis na direção de , e somente depois de sua ira dar lugar à racionalidade outra vez, ainda que minimamente, ele voltou a me encarar com o semblante confuso – Espera... Nós já sabemos? Quem mais está envolvido nisso?
Fechei os olhos momentaneamente, percebendo que revelara detalhes demais. No entanto, se era para contar a verdade de uma vez, que fosse toda a verdade, sem cortes. Elliot me perdoaria por metê-lo na encrenca... Pelo menos era o que eu esperava.
– Seu primo. Ele também sabe de tudo.
abriu e fechou a boca várias vezes, a cada tentativa mais inconformado. Antes que ele encontrasse sua voz, voltei a falar, temendo não ter outra chance tão cedo, a julgar pelo nível de incredulidade em seu rosto.
– Nós fizemos um exame de DNA recentemente... insistiu, e como eu queria me livrar dele o quanto antes, ainda mais depois do que ele aprontou na festa da Dianna, resolvi ceder. Foi idiota, eu sei, mas eu não sabia o que fazer. Elliot me ajudou a coletar as amostras, e estava conosco quando soubemos o resultado.
– Negativo, óbvio! – exclamou, mal esperando que eu terminasse de falar – Caralho, , como assim o Elliot está metido nisso? Que merda! Quando eu digo que você sempre me surpreende, não estou te desafiando... Mas dessa vez você se superou pra sempre!
– Eu sei, eu sei, foi errado cair na conversa dele, mas... Eu tive medo de ter te forçado a fazer algo que não deveria ter feito – justifiquei, voltando a sentir a ansiedade me dominar – tinha uma história relativamente plausível, além de não fazer sentido nenhum mentir sobre algo que poderia ser facilmente descartado, que foi exatamente o que aconteceu...
Minhas palavras se perderam em minha garganta ao observar o que se passava na mesa a poucos metros de nós. Emily se aproximara com Ben, e interagia com o pequeno, que respondia de sua maneira simpática. O brilho que vi nos olhos dele ao rir com o menino, sem precisar de um motivo, apenas por tê-lo à sua frente, enquanto a mãe tentava impedir o contato dos dois com as feições ligeiramente assustadas, fez com que toda a minha visão da situação mudasse por completo.
Estava muito claro para mim que sim, era pai de Ben. Eu podia não acreditar em mais uma palavra que saísse de sua boca, mas nessas... Nessas eu precisava acreditar.
– Ela descobriu – murmurei, perdendo-me em meus pensamentos alucinados – Ela descobriu de algum jeito...
olhou na direção deles, e então voltou a me observar, boquiaberto, perdido, assustado. Não tive condições de continuar explicando, apenas vasculhei minha memória, buscando alguma pista de quem poderia ter ajudado Emily em sua empreitada de falsificar o exame de DNA novamente, dessa vez, por seu próprio interesse – medo de depois de tudo o que ele a fez passar, talvez? Medo de que ele fosse um mau pai para seu filho? Eu não a culparia por nenhuma das duas possibilidades.
– ? – chamou, em vão; ergui uma mão indicando que precisava de um minuto para organizar minha mente.
Elliot? Será que sua suposta ajuda era apenas um plano para acobertar a verdadeira história? Estaria ele do lado de Emily desde o começo, desde que mentiu sobre o próprio primo para mim?
– Não... – balbuciei, balançando a cabeça – Ele não.
– ...
– Espera... Eu entendi agora. Só preciso que me deixe pensar, e então explicarei tudo...
Quem mais sabia do exame? Eu, Elliot, ... Meu pai.
– !
Assustei-me com sua voz alta me chamando, e devolvi seu olhar furioso. Eufórica com minha descoberta, mesmo que não pudesse prová-la de forma concreta (pelo contrário, dois exames de DNA refutavam minhas certezas), não pude evitar o fluxo de palavras que escapavam de minha boca, apesar de sua expressão desencorajadora.
– , é verdade! Ele está dizendo a verdade! Eu não posso provar, mas você tem que acreditar em mim! Alguma coisa está errada nessa história toda!
Ele franziu ainda mais a testa. Apontei para a mesa, onde Emily ainda tentava evitar que os dois interagissem, sem muito êxito.
– Olha pra ela! Está tão desconfortável com a situação... Desconfortável até demais... Esse comportamento não é normal!
– Esse comportamento não é normal – ele rebateu, segurando meus pulsos enquanto eu gesticulava feito uma histérica – É claro que ela não o quer perto do Ben, ela sabe exatamente que tipo de pessoa ele se tornou! Você, em compensação, parece ter esquecido...
Sua resposta rude me paralisou da cabeça aos pés. Apenas devolvi seu olhar indignado com um vazio, desiludido.
– Você não acredita em mim.
suspirou, entristecido pelo desapontamento em minha voz, mesmo que o sentimento fosse mútuo.
– Eu... – ele começou a falar, mas desistiu, dando de ombros – Eu nem sei o que te dizer.
Pisquei algumas vezes, lutando contra as lágrimas frustradas que começavam a arder em meus olhos. Quebrei o contato visual, incapaz de suportar a reprovação nítida em suas íris, e assenti lentamente, derrotada. Sua atitude cética, por mais previsível que tivesse sido, doía infinitas vezes mais agora que se tornara realidade.
– Eu entendo – falei, tão baixo que ele mal me ouviu – Eu... Eu entendo. Me desculpe.
– Preciso levá-los daqui. Não posso ficar mais um minuto perto desse imbecil, muito menos deixar que eles fiquem.
Assenti novamente, inerte, congelada pelo muro de gelo que ele construíra entre nós em tão pouco tempo, com o gelo que eu forneci ao longo daquelas semanas de mentiras e especulações absurdas.
Mentiras e especulações absurdas que, agora eu sabia, não eram tão absurdas assim. Mas como fazê-lo perceber?
– Quer uma carona para casa? – perguntou baixo, frio, distante, embora não completamente, pelo toque de preocupação óbvio em sua oferta – Posso aparecer lá mais tarde. Podemos conversar melhor quando você estiver mais... Calma.
– Não, obrigada – respondi sem pestanejar, ainda recusando-me a olhá-lo – Eu estou bem.
Ele suspirou profundamente, o que só me deixou ainda mais transtornada. Ele estava sentindo pena de mim, achando que entrara em minha cabeça, e que tudo aquilo era uma loucura. Não podia culpá-lo, afinal, também tive uma reação bastante adversa quando descobri, mas não podia admitir que ele, o enganado, a vítima daquela intriga, estivesse tão certo de que eu estava errada.
– Por favor...
– Você nem tentou acreditar em mim – murmurei, sem querer mais ouvir uma palavra dele naquele tom degradante – Por mais difícil que possa ser... Você nem sequer tentou.
abriu a boca para responder, mas antes que pudesse emitir qualquer som, dei-lhe as costas e fui embora, fazendo questão de passar pela mesa onde ainda só tinha olhos para o filho, enquanto eu só tinha olhos para Emily, e os segredos que sua carinha inocente escondiam.
– Eu não acredito nisso – Elliot suspirou, cobrindo o rosto com as mãos – O que ele foi fazer aí? Ainda mais com a minha irmã e o Ben?
Encarei a tela do computador, por onde conversávamos por chamada de vídeo. Depois de contar o que se passara há apenas algumas horas, mecanicamente, chocada demais para exprimir o medo e a tristeza que só cresciam dentro de mim a cada vez que a reação de se repetia em minha memória, assisti às lamentações de seu primo, somente agora recuperando alguma cor depois de empalidecer devido ao meu relato.
Se ele ficou branco como papel ao me ouvir contar o ocorrido, imaginei de que cor fiquei quando os eventos que descrevi ocorreram.
– Eu não sei – respondi, sem emoção, com o olhar distante – Mas preciso confessar que algo me pareceu estranho na situação toda.
Elliot franziu a testa, e sua curiosidade fez com que se aproximasse da câmera sem perceber.
– Você acha que foi armação de ?
– Não... A cara aterrorizada que fez quando viu foi totalmente espontânea. Assim como o sorriso iluminado que deu quando viu que Ben estava com ele.
– Então... Você acha que ele não está mentindo?
Balancei negativamente a cabeça.
– Eu tenho certeza.
Ele respirou fundo, e assoviou ao soltar o ar, processando o peso de minha afirmação.
– Você sabe o que eu penso – disse ele enfim, sem julgar meu posicionamento assertivo – Acho que tem alguma coisa estranha nessa história, algum detalhe que deixamos passar... Mas por onde podemos sequer começar a procurar, se tudo está contra essa possibilidade? Quer dizer, dois exames de DNA... Não é fácil derrubar um argumento desses.
– Eu não sei... Pra ser bem sincera, eu não sei de mais nada.
Dessa vez eu escondi meu rosto nas mãos, reprimindo a vontade de sucumbir ao choro preso em minha garganta. Eu não queria chorar. Eu estava certa, sabia disso, por que deveria me sentir mal? Aquele era só mais um impasse, um obstáculo a ser superado... Bastaria manter a calma e encontraria uma saída.
– Não fica assim, poxa – Elliot reclamou, fazendo-me pular de susto na cadeira – Foi só eu começar a ir com a sua cara que você fica toda chorosa e quer desistir de tudo? Para com isso, garota! Tô contigo, relaxa que a gente vai dar um jeito.
Um risinho desanimado borbulhou de meus pulmões diante de seu simpático, ainda que disfarçado, incentivo, que ele só percebeu porque meus ombros se mexeram para acompanhá-lo. Voltei a revelar meu rosto, agora um pouco menos desolado, e assenti de leve.
– Obrigada, Elliot... De verdade. Você tem sido de grande ajuda.
Ele ergueu uma sobrancelha, simulando desdém, apesar de estar claro que ele queria sorrir de volta.
– Já disse que estou nessa pelo meu sobrinho, e não por você, sua...
Minhas duas sobrancelhas subiram diante de sua pausa, durante a qual ele buscava algum adjetivo ofensivo para completar sua resposta; não demorou muito e ele desistiu, revirando os olhos.
– Infelizmente, você é bonita e legal, então deixa pra lá.
Ambos rimos de seu comentário, e eu agradeci levando uma mão ao peito em sinal de honra.
– Bem, eu tenho que ir agora... Foi um longo dia, preciso descansar. Minha cabeça não para de rodopiar, e encarar a tela do computador só está piorando a situação.
– Tudo bem, nos falamos depois – ele disse, seu sorriso transformando-se de divertido para compreensivo – Qualquer coisa, me liga. Se bater alguma crise e precisar conversar, estou aqui.
Concordei com a cabeça, o que não foi suficiente.
– Mas é pra ligar, hein, sua bunda?
– Está bem, eu vou ligar! – confirmei, erguendo as mãos em rendição – Mais uma vez, obrigada por tudo.
– Tudo bem – ele respondeu, e subitamente tomou um rumo reflexivo – Você foi a primeira namorada de com quem consegui me dar bem. Estava precisando mudar meus hábitos. Se tem uma coisa que eu detesto é ser previsível.
Engoli em seco, emocionada com sua revelação, e ao mesmo tempo entristecida pelo primeiro pensamento que me veio à mente, que foi logo convertido em palavras.
– Aproveite enquanto pode... Sabe-se lá por quanto tempo ainda serei namorada de .
Elliot abriu a boca para refutar minha atitude pessimista, mas eu não o deixei sequer começar, abaixando a tela do notebook e silenciando sua bronca de imediato. Após um longo suspiro e algum tempo de contemplação inútil, levantei-me da cadeira, apenas para voltar a me atirar de cara na cama. O quarto estava completamente escuro agora que o computador não o iluminava, e eu preferia assim. Minha mente precisava de um pouco de paz.
Fui acordada dez minutos depois pela vibração de meu celular, perdido sobre o colchão. Meu coração quase não suportou o susto, seguido de perto pela apreensão. Estava com medo de saber qual nome leria no visor antes mesmo de tatear pela cama e encontrá-lo. Num ato de bravura vinda do além, olhei para a tela do aparelho, na mesma hora em que a pessoa do outro lado da linha desistia de ser atendida.
1 chamada perdida:
Ao mesmo tempo em que senti um alívio enorme percorrer minha espinha ao saber que ele estava tentando falar comigo ao invés de ignorar minha existência, e também por não ser me importunando, não pude evitar ser dominada por um nervosismo que não tinha energias para sustentar, não depois de um dia daqueles.
– Desculpe – murmurei, decidida a não atendê-lo caso voltasse a ligar, e coloquei o celular na primeira gaveta do criado-mudo, querendo apenas me afastar de qualquer forma de comunicação. Meus dedos tocaram papel no fundo da gaveta ao depositar o aparelho ali, e por algum motivo – curiosidade mórbida, tortura, idiotice – resolvi retirá-lo de lá e lê-lo, mesmo que já soubesse de que se tratava.
Com preguiça de acender o abajur, usei a tela do celular para iluminar as palavras escritas nas duas folhas dobradas juntas, uma mais antiga, outra bastante recente.
Por um instante, odiei-me por ter insistido em olhar novamente para aqueles papéis, provas de minha estupidez. Por um instante, no escuro, encolhida em minha cama, duvidei de mim mesma. Valia mesmo a pena insistir em meu instinto, quando o que estava em jogo era nada mais, nada menos do que meu relacionamento com ?
Por mais que partes de mim ainda relutassem em desistir, a resposta foi mais do que óbvia.
Negativo.
– Devo estar ficando louca... – murmurei, dobrando novamente os papéis, porém o celular iluminou uma parte da página que me chamou a atenção. Parei por um momento, processando a informação que acabara de receber, e voltei a desdobrar os resultados, colocando-os lado a lado sobre meu colo e alternando a luz do aparelho entre os dois.
Pela segunda vez em um só dia, tive sérios problemas respiratórios, ambos motivados por choques emocionais.
Tremendo da cabeça aos pés, encarei os papéis por mais alguns segundos, certificando-me de que não estava fantasiando, antes de procurar um nome na lista de contatos do celular, ação que levou o triplo do tempo necessário devido à adrenalina cada vez mais significativa em meu sangue.
– Que rápi...
– Elliot.
Ele parou de falar assim que ouviu o desespero em minha voz.
– O que aconteceu, mulher? Assim você me assusta, credo!
Recuperei parte do fôlego perdido em minha descoberta acidental, porém crucial.
– Preciso da sua ajuda. Tem alguém que preciso visitar.
Frank Sellers.
Mesmo no escuro, deitada em minha cama, encarando as sombras projetadas no teto pelas fracas luzes vindas da janela, aquelas eram as únicas palavras que eu via. Mesmo ao amanhecer do dia seguinte, tão esvaziado de qualquer outro sentimento a não ser ansiedade quanto as horas que o precederam, aquelas eram as únicas palavras que reverberavam em minha mente. Mesmo durante o trajeto de trem até a estação mais próxima à casa de Elliot, onde nos encontramos para seguir viagem por mais meia hora de carro como eu instruíra ao telefone na noite anterior, aquelas eram as únicas palavras que me orientavam.
Frank Sellers... Poderia eu estar enganada?
Não... Mas com toda a certeza do mundo, eu gostaria de estar.
– Você não vai mesmo me contar o que está acontecendo?
A voz de Elliot, transmitindo um misto de irritação e preocupação, rompeu o silêncio que já durava vinte minutos dentro do veículo. Apertei os papéis em minhas mãos, os mesmos que apertei com incredulidade há cerca de doze horas, e que eram a causa de nosso trajeto misterioso.
– Logo você saberá – foi o que pude dizer, e o que se seguiu foi mais uma reafirmação para mim mesma do que uma continuação de minha resposta – E eu também.
Elliot não teve coragem de insistir. Agradeci mentalmente sua desistência. Meus nervos já estavam em frangalhos com todo aquele suspense; a última coisa de que precisava agora era dar explicações que não tinha. Precisava de alguém que confiasse em mim, pelo menos só até que minha dúvida fosse sanada, e então ele obteria todos os esclarecimentos que quisesse.
– Uma coisa eu posso adiantar – suspirei, antes de voltar a me calar, na tentativa inútil de parar de sentir, de parar de existir – Esta é a minha última esperança.
Ele lançou um olhar ainda mais receoso do que antes em minha direção, porém manteve sua atitude resignada e apenas continuou dirigindo. Mais vinte minutos se passaram, novamente imersos em silêncio, até que Elliot estacionou o carro em frente ao nosso destino. Respirei fundo ao observar a fachada do prédio, e por um momento o desejo de desistir e voltar para casa, fingir que nada acontecera, foi tão forte que eu quase implorei para que ele nos levasse embora dali. Meus lábios chegaram a articular a primeira palavra da frase, embora nenhum som tenha saído, mas outras duas, muito mais pesadas, ancoraram-me diante do edifício.
Frank Sellers.
– Vamos? – Elliot indagou, ao perceber que eu estava presa em meus próprios pensamentos, temerosa demais para dar o primeiro passo, que sua curiosidade o motivou a dar. Após uma breve hesitação, durante a qual reuni todas as evidências, concretas ou abstratas, de que estava tomando a decisão certa, enfim abri a porta do carro.
– Vamos.
Cada passo dado até a entrada do prédio precisou de reafirmação. O caminho mais fácil insistia em agarrar-me as pernas, fazê-las pesarem o triplo do normal, esforçando-se para me afastar do caminho mais difícil, do caminho que eu acreditava ser verdadeiro. Relutante, segui em frente, disposta a ir até o fim para revelar o segredo tão cuidadosamente encoberto há anos. Se não houvesse segredo a descobrir, menos mal; seria um baque difícil de aguentar, saber que minha intuição falhara tão significativamente, mas eu me recuperaria. Talvez tivesse razão... Talvez tivesse conseguido entrar em minha cabeça, manipular minha visão dos fatos... Tudo ficaria bem se eu estivesse errada.
Mas se eu estivesse certa... Se eu tivesse razão, tudo viraria de cabeça para baixo. Eu também sobreviveria, com alguns arranhões e hematomas. O pior de tudo, naquela que já era a pior das hipóteses, seria o estado em que as outras partes envolvidas se encontrariam quando soubessem.
Eu estava prestes a cortar o fio vermelho. Bastaria saber se ele desativaria a bomba, ou faria tudo ir pelos ares de uma vez por todas.
Chegamos à recepção, e com a voz um pouco mais firme do que antes, fruto de minha persistência e também curiosidade, ainda que mórbida, perguntei à atendente onde poderia encontrar a pessoa que procurava. Ela me indicou o andar e a sala, e ao me dirigir ao elevador, percebi no rosto de Elliot uma confusão ainda maior.
– Por que você está procurando... – ele começou, mas desistiu de continuar ao ver minha mão erguida entre nós, logo depois de apertar o botão na parede.
– Logo você saberá – repeti, retraindo a mão ao notá-la levemente trêmula. Pela terceira vez, ele não insistiu, porém seus olhos não abandonaram meu rosto durante todo o tempo de espera pelo elevador, nem durante nosso trajeto ascendente.
Chegando ao andar desejado, caminhei com Elliot em meu encalço pelo corredor branco em busca do número apontado pela recepcionista, ignorando as pessoas espalhadas pelo caminho, sentadas ou de pé, aguardando atendimento. Toda a minha determinação encontrou mais uma vez um obstáculo ao reconhecer os números que procurava estampados numa placa ao lado da porta correspondente. Meus pés se agarraram ao chão, numa última e desesperada súplica para que eu não seguisse adiante e consequentemente não pudesse mais voltar atrás, já que o que estava em jogo mudaria tudo.
Frank Sellers. Frank Sellers. Frank Sellers.
As pontas frias de meus dedos encontraram a manga da jaqueta de Elliot inconscientemente. Para minha surpresa, ele a substituiu por sua própria mão, percebendo minha necessidade de apoio. Nossos olhos se encontraram por um instante, no qual ele assentiu uma vez, encorajando-me a continuar. Assenti de volta, respirando fundo para evocar toda a minha coragem e determinação.
Frank Sellers.
Minha mão se afastou da dele, e dirigiu-se à maçaneta. Assim que a porta rangeu, indicando sua abertura, o homem que organizava a papelada em sua mesa olhou em nossa direção, e suas sobrancelhas se ergueram em surpresa.
– Filha?
Meu coração disparou dentro do peito, desenfreado, despejando adrenalina em minha corrente sanguínea a cada batimento frenético. Não existia outra possibilidade a não ser ir em frente. Elliot colocou uma mão em minhas costas discretamente, lembrando-me de que estava ali, de que eu não estava sozinha, de que eu estava fazendo a coisa certa. Um sorriso nervoso surgiu em meu rosto, e eu enfim pude responder.
– Oi, pai.
Alguns segundos de estranhamento se seguiram, logo superados por ele, que se levantou da cadeira e veio até mim. Elliot praticamente me empurrou sala adentro, fechando a porta atrás de nós para que os pacientes não partilhassem do encontro.
– Entrem, entrem – disse, abraçando-me sem cerimônias, ato que tentei retribuir da melhor forma possível – O que você está fazendo aqui, querida? Ainda mais assim, sem avisar?
Papai demorou a me soltar, e quando o fez, seus olhos logo pularam para meu acompanhante, como se ainda não o tivesse visto. De imediato, suas feições mudaram da água para o vinho; o sorriso que surgiu em seu rosto deu lugar a uma linha reta, e a alegria em seu olhar virou desconfiança.
– E quem é esse?
Elliot devolveu a encarada de meu pai com uma expressão constrangida que teria sido cômica, se a situação não fosse tão trágica. Desfiz o mal entendido o mais rápido possível.
– Esse é Elliot, meu amigo. Ele só veio me acompanhar.
Ao ouvir a palavra mágica (“amigo”), papai voltou a sorrir, cumprimentando-o com um aperto de mão e alguns tapinhas no ombro.
– Como posso ajudá-los? – ele perguntou, caminhando de volta à cadeira e sentando-se – Ou melhor, ajudá-la, já que ele “só veio te acompanhar”?
Com um gesto, ele indicou as duas cadeiras vazias do outro lado da mesa, que logo ocupamos. Os olhares dos dois caíram sobre mim quando o silêncio se instaurou no consultório. Ainda com os resultados dos exames nas mãos, comecei a explicar da melhor maneira que pude.
– Você se lembra de quando te liguei na semana passada?
Papai confirmou com a cabeça.
– Bem... Eu te pedi para acompanhar uma análise de DNA. Para se certificar de que ninguém alteraria o resultado. Certo?
A resposta positiva demorou uma fração de segundo a mais do que o esperado para vir. Elliot se remexeu desconfortavelmente em seu assento, já prevendo a dimensão do estrago que aquela conversa inocente poderia tomar.
– Certo.
Um suspiro tenso escapou de meus pulmões. Agora viria a parte difícil.
– Meu amigo Elliot é tio do menino cuja amostra foi analisada, junto com as da mãe e do suposto pai – falei, indicando-o com um aceno de cabeça – Você pode imaginar como toda a situação é bastante estressante para todos os envolvidos.
– Claro – papai concordou, arriscando um breve olhar para Elliot antes de voltar a focar em mim – Lamento muito que tamanhas medidas devam ser tomadas em alguns casos para o reconhecimento paterno.
Engoli em seco diante de sua postura profissional. Por um segundo, imaginei ter visto um sinal de fraqueza em sua atitude... Talvez eu estivesse tão desesperada para encontrar uma resposta que se adequasse ao meu modo de pensar a ponto de distorcer os fatos. De qualquer maneira, prossegui, encurralada, embora um pensamento ainda persistisse em meio à descrença.
Frank Sellers.
– Realmente... Ainda mais quando um fator bastante curioso entra na equação.
Ambos franziram a testa, aguardando o resto de minha fala, que não tardou a vir.
– Um outro exame de DNA já tinha sido feito há alguns anos, quando o bebê nasceu – expandi, mostrando os papéis em minha mão e desdobrando-os sobre a mesa entre nós – Dessa vez, com outro homem apontado como pai. Os resultados foram diferentes, o que não é necessariamente uma surpresa... No entanto, o nome do médico responsável pela análise é o mesmo.
Observei com atenção à reação de meu pai durante a pequena pausa que se seguiu. Seus olhos despencaram de meu rosto para os papéis à minha frente, e neles se fixaram, enigmáticos, ilegíveis. Dei voz às palavras que assombravam minha mente, fazendo questão de lê-las diretamente da fonte para ter certeza de que não eram produto de minha imaginação.
– Frank Sellers.
Papai não se manifestou. Nem sequer uma palavra, nem ao menos um movimento. A cada segundo a mais de silêncio e inércia, a hipótese que eu construíra durante a noite anterior ganhava força, expandia-se em meu peito, forçando as palavras a saírem, agora quase num fluxo ininterrupto, sem o peso esmagador da insegurança que as atrofiava até então.
– Pode não parecer muito relevante de início, mas se considerarmos que as clínicas onde os exames foram feitos são diferentes, algo já começa a ficar estranho, embora não seja impossível. O que mais me intriga, porém, é algo que não pode ser mera coincidência.
Percebendo o rumo da conversa, ele rapidamente tentou argumentar – em vão. As palavras já estavam na ponta de minha língua, e eu não seria capaz de contê-las mesmo que quisesse.
– , eu não sei do qu...
– Eu conheci Frank Sellers quando era pequena.
Elliot arregalou os olhos, movendo a cabeça de um lado a outro para acompanhar a discussão como se assistisse a uma partida de pingue-pongue.
– Ele era seu amigo – adicionei, repassando as memórias nítidas, ainda que esparsas, do homem como fizera repetidas vezes desde o primeiro momento em que vi seu nome escrito nos dois exames – Trabalhava no mesmo hospital que você quando ainda morava conosco em Londres.
– O que você está dizendo, minha filha?
– Não adianta mentir agora. Eu sei quem ele era. Você sabe que eu sei. Sabe que eu já tinha idade suficiente para me lembrar dele. Você só não contava com a minha capacidade de lembrar o nome dele, muito menos com a chance de que eu tropeçasse por acidente em alguma menção impossível dele.
Ele se recusava a ceder, por mais que sua expressão denunciasse, sob a frágil camada de contenção, um pânico crescente. Eu o conhecia bem o suficiente para saber que estava tocando justamente a ferida, e agora que recebera ao menos um vestígio de confirmação, não desistiria até revelar toda a verdade.
– Chega! Não admito que você venha até meu local de trabalho e me desrespeite dessa forma!
– Pai, não se faça de desentendido – suspirei, deixando a exaltação de lado, porém não a veemência, e adotando um tom franco ao me levantar da cadeira – Nós dois sabemos que Frank Sellers está morto.
Elliot não pôde evitar demonstrar seu choque com a revelação, cobrindo a boca com uma mão. A convicção de meu pai foi consideravelmente abalada por minha constatação. Como eu dissera antes, ele não contava com minha lembrança do ex-companheiro de trabalho. Não demonstrei um mísero sinal de incerteza ao sustentar seu olhar, e voltei a falar quando percebi que ele não se manifestaria tão cedo. Agitada demais depois de tantas horas de tensão para ficar parada, passei a andar de um lado para o outro da sala enquanto detalhava os registros que sobreviveram ao tempo em meu cérebro.
– O dr. Sellers morreu de trombose coronária. Eu me lembro perfeitamente de te ouvir conversar com mamãe a respeito. Lembro que investiguei o que isso significava na Internet logo depois, assim como também procurei o nome dele ontem à noite e encontrei notícias a respeito de seu falecimento. Eu tinha dez anos... Eu me lembro, pai. Eu sei exatamente do que estou falando, e você também.
Mais silêncio. Papai agora não ousava me encarar; fitava os papéis sobre a mesa, como se desejasse incendiá-los com o poder da mente e assim reverter a situação. Seu derrotismo só serviu para inflamar ainda mais meu discurso.
– Agora, o que eu realmente quero saber é: como pode um médico morto há quase nove anos ter realizado não apenas um, mas dois exames de DNA, o primeiro há seis anos, e o segundo há uma semana? Um pouco difícil de compreender, para dizer o mínimo, não?
– Você... Você passou dos limites – ele gaguejou, balançando a cabeça em reprovação. Soltei um risinho debochado, reaproximando-me da mesa e apoiando as duas mãos sobre ela.
– Se alguém aqui passou dos limites, definitivamente não fui eu. Tudo o que quero é uma resposta para um garoto que tem direito de saber quem é seu pai. Tudo o que quero é a verdade, que, segundo os seus ensinamentos, muito bem guardados em minha memória, é o principal objetivo da ciência. Onde está ela agora, pai? Porque nesses exames é que não estão.
Empurrei os papéis em sua direção, cansada de sua postura dissimulada. Toda a ansiedade acumulada desde a noite anterior agora corria livremente por minhas veias, impedindo-me de agir de forma contida. Se ele não queria abrir o jogo, eu o faria mudar de ideia sem pensar duas vezes. Diante de seu silêncio vergonhoso, dei-lhe um ultimato.
– Você vai falar, ou teremos que exumar os restos mortais do dr. Sellers para perguntar o que ele sabe a respeito disso?
– Está bem, está bem, acalme-se! – ele suspirou enfim, tirando os óculos e esfregando os olhos em sinal de cansaço – É melhor eu falar de uma vez antes que você faça uma besteira.
– Por favor, sou toda ouvidos – concordei, retomando meu lugar na cadeira e olhando-o com atenção.
Alguns segundos de preparação precederam suas palavras.
– Mas com uma condição: isso não pode sair daqui.
Cerrei os olhos, verdadeiramente confusa, e não pude evitar rir mais uma vez, agora de incredulidade.
– Você não entendeu o que eu disse? Um menino de seis anos não sabe quem é o próprio pai porque alguém está acobertando a verdade. Não posso prometer isso. Essa é a sua chance de se redimir por saber do esquema e ajudar a mantê-lo em segredo.
– Eu posso ir preso por isso, ! – ele murmurou, entre dentes. Dei de ombros, com toda a sinceridade do mundo.
– Se foi burro o bastante para não seguir seu próprio conselho sobre ética profissional, não é uma criança quem deve pagar por seu erro.
Meu pai bufou, recostando-se na cadeira. Elliot apenas assistia a tudo, boquiaberto, chocado e intimidado demais pela atmosfera pessoal da conversa para se intrometer. Apenas cruzei os braços, aguardando uma resolução para seu conflito interno.
– Se eu não contar, o que você vai fazer?
– Casualmente informar ao Conselho Geral de Medicina que dois exames de DNA foram falsificados por um médico, e aproveitar para casualmente mencionar que você era amigo do médico cujo nome foi usado na manipulação dos resultados.
Com um sorrisinho cínico, esperei que ele digerisse o peso de minha resposta. Após engolir em seco, ele voltou a me questionar, apelando para a sentimentalidade.
– Você teria coragem de entregar seu próprio pai?
Ergui uma sobrancelha, forçando-me a manter minha postura desafiadora apesar da dor que aquela possibilidade trazia.
– Claro, assim como você teve coragem de se submeter a um esquema vergonhoso desses.
Meu esforço se mostrou eficiente, a julgar pela súbita seriedade em seu rosto.
– E se eu contar?
– Garanto que as autoridades nunca saberão disso... Mas você terá que confessar tudo para a família do garoto, ou nada feito.
– Como você sabe que eles não me entregarão? – ele perguntou, de olhos arregalados.
– Porque eu não vou deixar – Elliot enfim se pronunciou, olhando rapidamente para mim e confirmando sua participação no esquema – A verdade sobre Ben é só o que importa para nós. Além do mais, sua filha é amiga da família, e em consideração a ela, nada será feito contra o senhor.
Papai analisou a proposta por um momento, lançando-me um último olhar suplicante, que obviamente não surtiu qualquer efeito. Ao perceber que não encontraria escapatória, um suspiro pesado deixou seus pulmões, e ele se rendeu.
– Está bem.
Elliot e eu nos entreolhamos, nervosos com o que estava por vir, e voltamos a prestar atenção em meu pai, que, sem mais delongas, solucionou o mistério.
– Sim, fui eu que falsifiquei os resultados usando o nome do dr. Sellers como disfarce.
Ouvir as palavras saindo de sua boca foi infinitamente mais doloroso do que eu imaginava que seria, mesmo tendo previsto o teor de sua confissão com várias horas de antecedência. Controlei o frio desapontamento que brotou em meu peito, e deixei que ele prosseguisse.
– Quando o primeiro exame foi feito, uma mulher chamada Emily me procurou. Ela estava desesperada... Disse que o pai de seu filho a ameaçava, que não queria a criança, e pediu... Pediu para que eu forjasse o resultado do teste, ou então algo terrível poderia acontecer.
Estremeci ao me recordar das palavras de sobre como ele manipulara Emily a falsificar o exame. Imaginar o medo e a repulsa que ela deve ter sentido por ele naquela época, e que ainda devia sentir, apenas tornou aquele momento ainda mais difícil. As versões batiam até ali... Tudo indicava que ele tinha razão.
– Tentei argumentar, expliquei que não seria possível fazer o que ela me pedia, até que... Até que ela me ofereceu dinheiro. Muito dinheiro.
Ao visualizar a cena, meu estômago automaticamente protestou contra a imagem mental repugnante. Meu próprio pai, aceitando dinheiro em troca da adulteração de exames... E como se aquilo já não fosse suficiente, da família de ... Só podia ser um pesadelo.
– Eu estava com dificuldades financeiras na época... Meu primeiro filho do segundo casamento tinha acabado de nascer, o hospital estava em crise... Filha, procure entender...
Ele tentou colocar sua mão sobre a minha, mas eu a retraí de imediato, voltando a ficar de pé ao sentir lágrimas de decepção e vergonha embaçarem minha visão.
– E então você aceitou o suborno – falei, sem cerimônias, e minha sinceridade o fez fechar os olhos – Você aceitou manipular não só a vida daquela criança, mas a vida do homem sobre cujos ombros a falsa paternidade caiu, e as vidas de todos os outros familiares diretamente envolvidos no caso, como, por exemplo, Elliot.
Não tive coragem de olhar para o lado e descobrir o que ele estava pensando ou sentindo. Apenas mencionei seu nome para que meu pai sofresse ainda mais, para que percebesse o impacto de seu deslize, e sentisse o desprezo por si mesmo que eu sentia naquele instante.
– Nada, pai... Nada justifica o que você fez.
– Eu não queria! Mas... Mas eu nunca tinha visto tanto dinheiro na vida...
– Por favor, poupe-me dos detalhes sórdidos! – exclamei, absolutamente enojada, afastando-me da mesa com as mãos sobre as orelhas – Uma criança teria passado a vida inteira achando que o próprio tio era seu pai! Um homem teria passado a vida inteira achando que dormiu com a própria prima! O verdadeiro responsável por tudo isso teria saído impune se a vida não tivesse dado seu jeito de fazê-lo pagar por seu erro! E você vem me falar de dinheiro? Desculpe-me por não conseguir engolir esse papinho furado. Eu e mamãe também sofremos financeiramente quando você saiu de casa, e isso não quer dizer que ela se tornou uma criminosa para colocar comida na mesa!
À essa altura, lágrimas rolavam por meu rosto, que eu mais que depressa enxuguei, recusando-me a demonstrar fraqueza diante daquele homem que eu definitivamente não conhecia. Ele abriu e fechou a boca algumas vezes, buscando palavras para se redimir, mas não as encontrou; apenas devolveu meu olhar com um penalizado, arrependido. Estava transtornada demais para sequer considerar a possibilidade.
– Por que você manipulou também o segundo exame? – indaguei, buscando reprimir ao máximo meus sentimentos e focar nas informações restantes para completar o quebra-cabeça – Foi a pedido de Emily ou por conta própria, para encobrir o rastro da primeira falsificação?
– Assim que você me passou o número do protocolo do exame e eu li o nome dos pacientes, entrei em contato com Emily, como ela me pediu para fazer caso alguém tentasse realizar outro teste sem o seu conhecimento. Acredite, essa foi a única vez que fiz isso, nunca mais aconte...
– E ela te pediu para manipular o resultado mais uma vez? – perguntei, sem condições de aceitar explicações naquele momento – Por dinheiro também dessa vez?
Cabisbaixo, meu pai apenas assentiu. Suspirei profundamente diante de tamanho absurdo, e cobri o rosto com as mãos, desejando mais do que tudo poder sumir dali, voltar no tempo e corrigir toda aquela bagunça. Elliot se levantou e veio até mim, segurando meus braços como se temesse um desmaio meu ou algo parecido.
– Chega, chega... Vamos embora daqui – ele murmurou, mas eu logo me desvencilhei dele, reaproximando-me da mesa com o rosto vermelho de raiva.
– Eu sempre tive a maior admiração por você – falei, incapaz de continuar lutando contra o choro entalado em minha garganta – Sempre me interessei pelo seu trabalho, porque para mim salvar uma vida é a coisa mais incrível que alguém pode fazer... Você sempre foi um exemplo de retidão para mim, mesmo depois do divórcio. Mas agora... Agora eu não sei mais o que pensar.
– Me perdoe... Minha filha, me perdoe... – ele implorava, com os olhos cheios de lágrimas, mas eu não conseguia sentir nada além de decepção.
– Elliot, por favor, escreva o endereço da sua casa – pedi, pegando um papel e uma caneta da mesa e entregando-os a ele antes de voltar a me dirigir a meu pai – Você tem até a meia-noite de hoje para ir até lá e explicar tudo para a família, ou então eu o entregarei. Nem pense em fazer alguma gracinha.
Elliot obedeceu, entregando o papel a meu pai, que o aceitou e concordou com a cabeça. Sustentei seu olhar desolado por alguns segundos, tentando encontrar nele o carinho e a confiança sempre presentes, mas a sensação de traição era forte demais para ignorar. Com a voz grave, sem qualquer vestígio de emoção, pronunciei minhas últimas palavras antes de deixar sua sala.
– Se realmente quer o meu perdão, prove para mim que ainda existe algo de admirável em você.
Dei-lhe as costas sem olhar para trás, e Elliot me seguiu em silêncio durante o breve trajeto até a rua. Meu corpo inteiro tremia, ainda processando o peso da descoberta e a indignação que ela trouxera, mas só sucumbi às emoções quando entrei no carro, acompanhada por seu proprietário. Encarei o painel diante de nós por alguns segundos, com a respiração entrecortada, até que o baque dos últimos minutos enfim me atingiu e eu desmoronei. Elliot me abraçou, murmurando palavras de conforto, e embora eu tentasse me recompor, tudo doía muito.
Meu próprio pai foi cúmplice de toda a confusão na vida de . Como eu poderia sequer começar a explicar tudo isso? Como eu poderia sequer começar a aceitar tudo isso?
– Tente se acalmar – Elliot disse, enxugando algumas lágrimas de meu rosto – Tenho certeza de que ele não fez por mal. Procure entender o lado dele também.
– Entender? – solucei, incrédula – Ele aceitou falsificar um exame de DNA que mudou a vida de várias pessoas por dinheiro... Não me peça para tentar entender o lado dele.
– Minha família também teve culpa... Minha irmã, mais especificamente. Mas acima de tudo, foi o principal responsável por tudo isso, não se esqueça.
– Mesmo assim... Nunca imaginei que uma coisa dessas fosse acontecer – insisti, procurando recuperar o fôlego – Não sei nem como você ainda está me consolando, agora que sabe que meu pai faz parte dessa sujeira.
– Não se martirize desse jeito, , pelo amor de Deus – Elliot exclamou, chacoalhando-me de leve pelos braços – Você não tem culpa de nada disso! Pelo contrário, sem você, essa mentira teria permanecido encoberta por muitos anos, se não para sempre! Eu sou é grato por você ter insistido em trazer a verdade à tona desde o início.
Devolvi seu olhar sincero com um emocionado, ainda que não me sentisse merecedora de sua consideração.
– Obrigada... Mas duvido que sua família pense da mesma forma – respondi após me recuperar do efeito de suas palavras – Especialmente um membro dela.
Elliot bufou, soltando-me como se eu tivesse uma doença contagiosa.
– É claro que ele vai concordar comigo, não seja ridícula. Ele te ama, todo mundo sabe disso! Além do mais, que motivo ele teria para não concordar, se você vai tirar um peso enorme de seus ombros, um peso que ele carrega há anos?
Balancei negativamente a cabeça, enxugando os olhos com as mangas da blusa.
– Ele se apegou a Ben, eu sei disso. Não será fácil para ele descobrir a verdade.
– Não estou falando de Ben. Estou falando da culpa que ele sente por não tê-lo assumido antes.
Um momento de silêncio se seguiu, até que dei voz às minhas reflexões.
– Ben merece saber a verdade... Mas não sei se ele merece essa verdade. Não sei se pode ser um bom pai.
Elliot respirou fundo, partilhando de minha preocupação, porém não se deixou abalar por muito tempo.
– Não se preocupe com o futuro – ele sorriu, segurando minhas mãos – Você já fez mais do que deveria por nós. Deixe que cuidemos do resto agora.
– Mas...
– Sem “mas”, garota. É sério. Olhe só o seu estado. Você precisa relaxar depois de tudo isso.
Agradeci a gentileza com um esboço de sorriso, embora soubesse que não seria tão simples assim.
– Não. Ainda tem mais uma coisa que preciso fazer.
– Elliot! Chegou bem na hora do almoço.
Fechei os olhos ao ouvir a voz afetuosa de Audrey assim que ele surgiu na sala de jantar. Eu estava a alguns passos da entrada, esperando o momento certo para aparecer. Isto é, se eu conseguisse desgrudar da parede e resolver minha última pendência com aquela família.
– Por favor, escutem – Elliot começou, parado em frente à mesa ao redor da qual todos os familiares já esperavam pela refeição – Eu trouxe uma pessoa comigo, e... Tem uma coisa de que vocês precisam saber. Ouçam o que ela tem a dizer.
Esperei até que ele me olhasse e permitisse minha entrada com um aceno de cabeça. Quando ele o fez, reuni toda a coragem que ainda me restava e caminhei até ele, revelando minha presença a todos. De início, fitei o chão, incapaz de encarar os vários pares de olhos que imediatamente se fixaram em mim; no entanto, uma voz me fez erguer o rosto e procurar sua origem.
– ?
Meus olhos arderam com mais lágrimas ao devolver o olhar completamente confuso de .
– Oi.
– Oi... O que está... O que está fazendo aqui? – ele gaguejou, ficando de pé assim que assimilou o que estava acontecendo. Balancei a cabeça em negação, num pedido mudo para que ele ficasse onde estava.
– Prometo que não vou demorar.
Enquanto me preparava para começar a falar, meus olhos encontraram os de Emily, bem ao lado de . O medo que vi neles, similar ao de um animal encurralado, prejudicou ainda mais minha firmeza, ou falta dela.
Logo ao seu lado, identifiquei o rostinho de Ben, encarando-nos com inocente curiosidade. Toda a determinação que me levara até ali voltou com força total ao reafirmar para mim mesma que ele seria o principal beneficiado por tudo aquilo. Contudo, aquela não era a hora nem a ocasião apropriada para que ele descobrisse a verdade sobre seu pai; lancei um olhar rápido a Elliot e discretamente indiquei seu sobrinho com a cabeça, mensagem que ele logo compreendeu.
– Por favor, leve-o para dar uma volta no jardim – ele pediu a uma das empregadas que aguardava a permissão para servir o almoço, e somente quando ela se retirou com o pequeno é que comecei a falar. Emily não se manifestou, apenas acompanhou a sequência de eventos sem mover um músculo.
Expliquei tudo. Do dia em que me procurou para contar sua versão da história ao momento em que meu pai confessou ter adulterado os resultados, há pouco menos de uma hora, tudo o que importava para o entendimento dos fatos foi relatado com o maior detalhamento possível, e com a confirmação de Elliot, que por vezes também tomava a palavra. Alguns momentos foram particularmente difíceis, mas não me deixei abalar, sabendo que todos ali mereciam parar de viver uma mentira.
– Eu... Eu sinto muito – disse por fim, sem saber mais como encarar aquela família que agora sabia de tudo, embora ainda estivesse chocada demais para reagir – Eu nunca quis prejudicar nenhum de vocês... Nem mesmo você, Emily.
Ao ouvir seu nome, ela engoliu em seco, pega de surpresa por minhas palavras de apoio. Lutando contra as lágrimas que se acumulavam em seus olhos, ela me observou atentamente enquanto eu prosseguia.
– Sei que você não tem culpa. Sei que te ameaçou, e você, tendo a idade que tenho hoje naquela época, sozinha, arrependida, assustada, com uma responsabilidade tão grande nas costas, fez o que achou melhor para seu filho. Não consigo me imaginar em seu lugar, e exatamente por isso não posso te julgar pelas decisões que tomou. Mas Ben não deve ser prejudicado... Nem . Quanto antes todos souberem a verdade, menos sofrimento será causado.
Ela fechou os olhos por um momento, derrubando duas lágrimas pesadas, e então assentiu, compreendendo que eu tinha razão. Elliot sorriu para a irmã quando seus olhos se encontraram, e ela devolveu o gesto, aliviada por não ser condenada pela própria família por um erro que não poderia ser atribuído somente a ela.
– Meu pai virá até aqui ainda hoje confirmar e esclarecer a situação – falei, voltando a me dirigir a todos, e evitando uma pessoa em especial, ainda de pé, abalada demais para reagir – Novamente, peço desculpas por seu comportamento inaceitável, e desculpas também por causar tanto transtorno em suas vidas. Eu sinto muito.
Respirei fundo, sentindo-me trêmula e fraca, prestes a desabar diante de todos. Sem saber mais como agir e precisando me esconder do mundo por algumas horas depois de resistir a tantos impactos, simplesmente saí por onde havia entrado.
Antes disso, examinei a expressão estarrecida de , e guardei na memória seu olhar distante, perplexo, sem saber quando poderia fazer aquilo outra vez.
– Espera! – Elliot exclamou, quando eu já descia os degraus externos da casa; relutei a atender seu chamado, mas ele me alcançou e me segurou pelo braço – Aonde você vai?
– Para casa... Preciso... Preciso respirar – murmurei, tão exausta emocionalmente que minhas pálpebras pesavam – Você pode cuidar do resto sozinho, não pode?
– Claro, mas... Você não vai falar com ele?
Neguei com a cabeça sem pestanejar.
– Ele precisa de tempo para processar tudo isso, e eu também. Não sei nem como olhar para ele agora.
Elliot abriu a boca para contestar, mas, vendo que eu não estava em condições de discutir, desistiu.
– Vou chamar um motorista para te levar. Espere aqui.
Quis negar sua oferta, mas o cansaço e a tremedeira que se apoderavam cada vez mais de mim foram mais fortes. Terminei de descer a escada e aguardei seu retorno, com o rosto coberto por minhas mãos geladas. Minha cabeça latejava depois de tanto estresse, e a noite em claro enfim manifestava seus efeitos colaterais.
– ...
Por um instante, pensei ter alucinado, mas bastou olhar por sobre meu ombro para saber que estava enganada. Meus joelhos quase cederam ao meu peso quando me deparei com a apenas alguns metros de distância. Seus olhos estavam vermelhos, e uma lágrima solitária escorria devagar sob um deles.
Por longos segundos, apenas nos encaramos, tentando encontrar palavras para expressar o que sentíamos, porém estávamos tão revirados, tão bagunçados por dentro que nenhum de nós emitiu um som sequer. Desisti de dizer qualquer coisa quando ele abaixou a cabeça e levou uma mão ao rosto, para depois voltar a me olhar. Notei Elliot se reaproximar com o motorista, e fiz a única coisa em que consegui pensar.
– Eu sinto muito – repeti, vencendo a distância entre nós e levando meus lábios até sua bochecha, de onde enxuguei sua lágrima numa demonstração singela de amor. procurou meus olhos com os seus quando me afastei, ainda atordoado com tudo o que acabara de descobrir, mas ligeiramente consolado por meu beijo. Forcei um sorriso fraco antes de dar meia volta e acompanhar Elliot e o motorista até o carro estacionado a alguns metros dali, com o coração dolorido e o gosto salgado de sua tristeza ainda nítido em minha boca.
– Cuide-se – Elliot disse ao me abraçar, quando o motorista abriu a porta para mim – Obrigado por tudo.
– Cuide-se você também – suspirei, apertando-o contra mim com toda a força que pude convocar, o que não era muito dadas as circunstâncias – E por favor, cuide...
–Pode deixar – ele confirmou, sabendo exatamente a quem me referia – Ele sabe onde te encontrar.
Concordei com a cabeça antes de entrar no carro, e com mil pensamentos disputando espaço em minha mente cansada, observei o extenso jardim e a alta cerca viva da mansão ficarem para trás.
A verdade doeu. O silêncio que a sucedeu doeu ainda mais.
Dias se passaram sem qualquer contato, dias que viraram semanas, duas semanas de ligações sussurradas com Elliot e mais nada. Fora isso, silêncio.
Meu pai não ousou pagar para ver se eu teria coragem de cumprir a ameaça que o fiz, e apareceu na casa dos ao anoitecer daquele dia, para confirmar tudo o que eu dissera, com muita vergonha e arrependimento, de acordo com Elliot. Parte de mim, ainda que ínfima comparada ao resto ainda muito machucado por sua participação naquela trama, ficou aliviada ao saber disso; no fundo, eu sabia que queria perdoá-lo, agora que a poeira baixara e eu enxergava a situação com olhos mais distanciados, com a mente menos atribulada pelo furor da descoberta. Somente o tempo diria o que de fato aconteceria.
No momento, eu tinha outras preocupações mais urgentes com as quais lidar. Como, por exemplo, o fato de que estava passando as tardes na mansão, junto ao filho, enquanto ainda estava lá.
– Não posso dizer que o clima é leve – disse meu espião, numa de nossas conversas telefônicas às escondidas – Mas não aconteceu nenhuma tragédia até agora. Cada um fica no seu canto, sem sequer se verem. Mesmo assim, não é difícil perceber que fica no limite de seu autocontrole só de saber que está aqui.
Meu coração doeu ao imaginar o que ele estava enfrentando, a batalha interna que travava... Se o desejo de correr até ele e abrigá-lo em meu abraço apenas se intensificou, mas eu sufoquei o impulso com todas as minhas forças, mesmo que isso me causasse ainda mais sofrimento.
– Não deve ser fácil para ele assistir ao homem que tanto o prejudicou entrar pela porta da frente em sua própria casa, e ocupar o posto com o qual ele enfim começava a se acostumar.
– Realmente, não é uma cena nada bonita de se ver – Elliot concordou, penalizado – Pelo menos Ben tem se dado bem com o pai. Claro que ainda existe uma confusão a respeito dessa mudança brusca, mas ele está se adaptando bem, e está bastante comprometido com a tarefa de deixá-lo o mais confortável possível durante essa transição.
– Fico feliz por isso, de coração... Por Ben, por Emily, por todos vocês. Mas por ... – falei, com um nó na garganta ao me recordar da forma como ele olhou para o filho no fatídico encontro há alguns dias – Depois de tudo o que me fez passar, e não falo só dos recentes acontecimentos, acho que levarei um bom tempo para aceitar que ele está feliz, que conseguiu o que tanto queria, apesar de seus métodos horríveis.
– Entendo perfeitamente... Você tem todo o direito de se sentir assim.
Alguns segundos de quietude reflexiva se seguiram, até que ele se pronunciou, como se soubesse exatamente a pergunta que eu queria fazer.
– Ele não está bravo com você.
Suspirei, apertando a réplica de tartaruga prateada pendendo de meu pescoço como um fanático religioso apertaria um pingente da cruz em seus momentos de aflição.
– Como pode ter tanta certeza?
– Primeiro, porque ele não é capaz de nutrir qualquer sentimento ruim por você. Segundo, porque ele não está bravo comigo.
– Não está? – questionei, positivamente surpresa, e Elliot confirmou – Ele disse alguma coisa? Conversou com você?
– Não exatamente. Ontem à noite, depois do jantar, eu o procurei. Disse que você merecia uma satisfação depois de tudo o que fez pela nossa família, fosse ela positiva ou negativa.
– Você disse isso? – indaguei, sem conseguir conter a angústia que crescia cada vez mais dentro de mim.
– Claro que sim, eu precisava dizer e ele precisava ouvir – Elliot confirmou com veemência – Conversamos por alguns minutos sobre você... Ele perguntou como foi sua conversa com seu pai. Eu falei a verdade, que você foi muito corajosa e que ele deveria se orgulhar... Nem todo mundo iria tão longe para descobrir uma verdade que mal lhe diz respeito.
Mordi o lábio inferior, tocada por suas palavras. Nota mental: abraçar (e muito) Elliot quando o visse outra vez.
– Obrigada pelo apoio – murmurei com sinceridade – Significa muito para mim.
– Sem problemas, só fui honesto – ele disse num tom bem humorado – levou anos para encontrar a mulher perfeita, e agora que ele a tem, não posso deixá-lo perdê-la. Já que eu não tenho mesmo chances com ele, que esteja em boas mãos, e seu nome vem logo abaixo do meu na minha lista.
Ambos rimos de seu comentário; em momentos assim, eu sentia que já o conhecia há muito mais tempo do que apenas algumas semanas.
– Prometo que cuidarei muito bem dele – suspirei quando nosso riso cessou, adornando minha voz com alguma melancolia – Isto é, se ele voltar pra mim...
Elliot grunhiu do outro lado da linha, claramente enojado com minha postura derrotada.
– Eu me recuso a sustentar esse tipo de pensamento. Dê tempo ao tempo, garota! Mais cedo do que você imagina, ele estará batendo à sua porta de novo. Confie em mim, conheço o primo que tenho.
– Espero que sim, Elliot – falei, de olhos fechados, como uma prece – Espero que sim.
– Eu não consigo acreditar... O seu... O seu pai?
Assenti com um suspiro monótono após narrar mais uma vez o ocorrido a , enquanto andávamos com passos monótonos pelo shopping que me parecia cheio de pessoas e lojas monótonas. Ela me acompanhava com os olhos estarrecidos, perdidos à frente, mal enxergando o ambiente ao nosso redor.
– Isso é demais... É chocante demais, eu... – balbuciou, balançando a cabeça em negação enquanto eu confirmava os fatos com a minha – Estou até arrepiada!
Ela passou as mãos pelos braços depressa, na tentativa de se livrar daquela sensação. Dei de ombros, já sem reação diante da verdade, apesar de ainda não ter derrubado uma lágrima sequer.
Se o fiz, não foi de tristeza ou arrependimento. Foi de saudade, temendo que ela durasse muito mais tempo.
– Estou muito triste, amiga – disse, após quase um minuto de silêncio, passando um braço ao redor de meus ombros – Quer dizer, você não consegue uma folga!
Fingi entreter-me com a vitrine de uma livraria, prevendo o discurso que estava por vir, e ciente de que não conseguiria me manter firme se não buscasse uma distração para dividir minha atenção.
– Primeiro, você ficou triste porque estava longe, depois voltou a ficar feliz quando se resolveram. Aí você ficou triste de novo pelo que fez, e feliz outra vez quando descobriu que foi apenas um susto. E agora você está triste de novo porque ajudou a revelar um segredo terrível, e como se não bastasse o envolvimento de seu pai nisso tudo, não deu sinal de vida até agora.
Senti-me ainda mais deprimida depois da recapitulação dos últimos meses, que mais parecia uma montanha-russa de emoções. Não satisfeita, continuou, alheia ao efeito deprimente de suas palavras.
– Tudo isso é culpa do . Tudinho. Que raiva… Que raiva daquele cara!
Estava tão exausta, tão cansada de tudo, que mal pude concordar, por mais que quisesse; contentei-me com murmurar as únicas palavras que tinha a dizer a respeito, com os olhos fixos na capa de um livro que mostrava um casal abraçado, como se zombasse de minha solidão.
– Eu nunca mais quero vê-lo na vida.
não reagiu, pelo menos não ao meu comentário, já que a senti paralisar ao meu lado. Estranhando sua atitude, virei-me para observá-la, notando que ela encarava algo diante de nós, de olhos arregalados...
Ou melhor, alguém.
– Espero sinceramente que não estejam falando de mim.
Meus olhos também se arregalaram ao ouvir a voz que eu conhecia melhor do que ninguém, e que não ouvia há quase três semanas.
– Estávamos falando do… Não, não era de você – respondeu, claramente mais capacitada para falar do que eu, que ainda nem tinha me movido, com o coração prestes a sair pela boca. Lentamente, como se ele fosse desaparecer caso eu fizesse algum movimento brusco, segui seu exemplo, deparando-me com os radiantes olhos de .
– Como vai, ? – ele sorriu, olhando para ela, como se nada tivesse acontecido, como se tivéssemos passado os últimos dias juntos, e não sem trocar uma palavra sequer. Como se eu não estivesse prestes a desfalecer ali mesmo.
– Bem, obrigada – ela disse, e eu senti seu braço se afastar de meus ombros – E de saída.
Sem nem se despedir apropriadamente, ela nos deixou sozinhos; só então ele desviou o olhar até o meu.
– Oi – gaguejei enfim, com os batimentos cardíacos reverberando em meus tímpanos. inclinou a cabeça para o lado de leve, certamente percebendo o nível de meu nervosismo em minha voz e expressão.
– Oi.
Encaramo-nos por alguns segundos, durante os quais pensei que desfaleceria de tanta ansiedade no mínimo umas sete vezes. Ele quebrou contato visual, engolindo em seco, e se minha paranoia não estivesse nublando tanto meu discernimento, poderia jurar que ambos estávamos igualmente apreensivos e sem jeito.
Por alguma graça divina, ou talvez apenas devido à angústia crescente em meu peito, consegui recuperar minha voz, vencendo o silêncio entre nós.
– Não sabia que estava na cidade.
Ele coçou a nuca, ainda evitando me olhar, e deu um sorrisinho encabulado.
– Eu... Não estava. Acabei de chegar.
Subitamente, um único pensamento preencheu minha mente.
Que saudade...
– Ah – foi só o que disse, tentando devolver seu sorriso, porém falhando completamente. Mais alguns segundos de mudez, até que ele voltou a falar.
– Passei na sua casa, mas você não estava... Sua mãe me disse que você estaria aqui.
Assenti devagar, lidando com a surpresa de sua afirmação. Ele estava me procurando... Certamente, queria conversar...
Depois de dias querendo mais nada além disso, agora que o momento chegara, eu não sabia se estava pronta para ouvir o que ele tinha a dizer. E se fosse algo terrível? E se...
– Você está ocupada agora? Ou... Não sei, podemos... – ele murmurou, cada vez mais tropeçando nas próprias sentenças, e com um suspiro rendido, voltou a me encarar, deixando claro que estava dando seu melhor para conduzir o diálogo.
Dei um risinho esganiçado, olhando para os lados e então erguendo as sobrancelhas.
– Pareço estar ocupada?
Patético. Absolutamente patético. Mas, ao perceber um esboço de sorriso em seus lábios, percebi que minha tirada desesperada funcionara. balançou a cabeça, percebendo a óbvia falha em sua pergunta.
– Uh... Está um pouco cheio aqui – ele observou, colocando as mãos nos bolsos da calça, inquieto assim como eu – Você se importaria de me acompanhar até um lugar mais reservado... Meu apartamento, por exemplo?
Se respirar já era uma tarefa difícil até então, depois daquilo...
– Tudo bem – concordei com o pouco de fôlego que me restava, esforçando-me para não parecer tão solícita a aceitar seu convite, e ao mesmo tempo tão disposta a correr na direção oposta à dele. indicou o caminho para a escada rolante com um gesto de cabeça, e fomos em silêncio rumo ao estacionamento do shopping.
Minhas pernas viraram gelatina ao perceber que ele estava de moto. Não pude evitar parar diante dela, por mais tempo do que o necessário, o que não escapou de sua atenção.
– Eu... Deixei o carro na garagem. Ainda não tirei a bagagem do porta-malas.
– T-tudo bem – repeti, limpando a garganta e aceitando o capacete que ele me oferecia. Atribuí a vaga impressão de que aquela era uma desculpa esfarrapada para que ficássemos fisicamente próximos ao fio de esperança a que ainda me agarrava com todas as forças.
Subimos na motocicleta, e como de costume, passei os braços ao redor de seu tronco, encostando a cabeça em suas costas. respirou fundo ao ser abraçado por mim, mas antes que eu pudesse tirar qualquer conclusão disso, ele acelerou, deixando para trás todos os meus pensamentos, levando consigo – conosco – todas as emoções que enchiam meu coração de energia e faziam com que minha pulsação reverberasse contra sua pele. Durante os poucos sinais vermelhos que pegamos no trajeto, ele virava discretamente a cabeça para o lado, como se precisasse certificar-se de que eu ainda estava ali, de que eu estava bem, de que ele não estava apenas imaginando minha presença. Não ousei mover um músculo, por mais que o esforço causasse um leve desconforto, temendo acordar de um sonho que até então ia muito bem, considerando-se as possibilidades.
Chegamos ao seu prédio, onde fui engolida por mais uma onda de saudade conforme repetíamos o percurso que já estávamos tão acostumados a fazer, da moto até o elevador. Ocupamos o cubículo sem dizer uma palavra, cada um num canto, e embora eu tenha mantido meus olhos fixos no visor acima da porta, que indicava nossa ascensão dolorosamente lenta, pude perceber que ele não tirou os dele de mim, nem por um segundo, até que estivéssemos em seu andar.
– Fique à vontade – ele disse, indicando a passagem para dentro do apartamento, percebendo minha hesitação em me mover. Deixei o elevador com passos cautelosos, sentindo seu olhar arder em minha nuca. Observei enquanto ele deixava as chaves da moto sobre a bancada que separava a sala da cozinha, na expectativa de que dissesse alguma coisa; encontrando nada além de silêncio, a não ser por suas íris fervorosamente cravadas em mim, não pude mais suportar a pressão.
– Eu sei porque estamos aqui.
ergueu uma sobrancelha.
– Sabe?
Confirmei com a cabeça, travando o maxilar por um instante para me manter firme.
– Então diga – ele pediu, avançando lentamente em minha direção, o que prejudicou ainda mais meu equilíbrio – Por que estamos aqui?
Soltei parte do ar que prendia involuntariamente em meus pulmões, buscando as palavras que estavam na ponta de minha língua meros segundos atrás. Sem qualquer sucesso, cedi ao peso sobre meus ombros. Meus olhos despencaram até o chão, assim como a determinação em minha voz, o que a fez sair baixa, quase como um murmúrio.
– Eu nem sei o que dizer. Estou tão envergonhada...
Cobri o rosto com as mãos, buscando a calma que eu desejava manter durante aquela conversa, mas que a cada segundo esvaía-se por entre meus dedos. Senti sua presença cada vez mais próxima, e então ele segurou meus pulsos suavemente; seu toque, tão carinhoso, tão convidativo, mesmo depois de tudo o que ele descobrira, depois de tudo o que ouvira de minha própria boca, foi a gota d’água.
– Eu sinto muito... Sinto tanto, tanto, por tudo isso – comecei, desvencilhando-me de suas mãos e afastando-me dele, somente satisfeita quando estava do outro lado da sala – Por toda essa confusão. Eu jamais poderia imaginar que meu pai...
O resto de minha frase ficou preso por um instante em minha garganta, assim como das outras vezes em que tocava no assunto de forma tão direta. fez menção de abrir a boca, mas eu estava apavorada demais para deixá-lo falar, temendo que ele despejasse ofensas sobre mim e me desse as costas sem me permitir dizer tudo o que ele precisava saber antes de desprezar minha existência.
– Que meu pai foi capaz disso – completei, sentindo lágrimas arderem nos olhos devido à sinceridade de minhas desculpas – Entendo perfeitamente se você não puder perdoá-lo.
– ...
Mal percebi que ele me chamara, afogando-me na culpa e no pânico que me faziam gesticular freneticamente e apenas encorajavam o fluxo de palavras saindo de minha boca.
– Entenderei também se você não conseguir dissociar essa mágoa de mim, claro – adicionei, dando-lhe as costas brevemente – Ele é meu pai, é compreensível que não queira mais se relacionar comigo depois de tanta...
– ! – ele interrompeu com urgência, agora bem atrás de mim após reaproximar-se sem que eu percebesse, como se cada sílaba que ouvia fosse uma tortura – Eu não vou fazer nada disso.
Virei-me de frente para ele e deixei que nossos olhos se encontrassem, boquiaberta; todo o resto de meu raciocínio evaporou de minha mente. Meu queixo permaneceu caído por alguns segundos, até que eu enfim consegui colocá-lo no lugar e reagir apropriadamente.
– Não... Não vai?
– Não, não vou – ele respondeu, com uma sombra de sorriso em seu rosto, achando graça de minha inocência – Digamos que eu tenha... Outra forma de enxergar tudo isso.
– Outra forma? – balbuciei, estapeando-me internamente por não conseguir formular outras respostas que não fossem meras reproduções das dele. concordou com a cabeça, olhando fundo em meus olhos, mergulhando neles, para ter certeza de que o que diria a seguir teria o impacto necessário. Eu conhecia exatamente aquela expressão, e ele só a usava quando estava prestes a fazer algo que me faria amá-lo mais ainda. Meu coração acelerou só de imaginar como tal feito seria possível, mas jamais duvidou de sua capacidade de fazê-lo.
– Eu encaro essa situação como um prenúncio – ele começou, e apesar da tranquilidade em seus traços, sua voz carregava uma seriedade imensa, para que nenhuma sílaba fosse mal compreendida – Uma forma que a vida encontrou de nos aproximar, mesmo que indiretamente, mesmo que de um jeito distorcido, antes de nos conhecermos.
Franzi a testa de leve, buscando compreender o que ele dizia. Lendo a confusão em meu rosto, ele prosseguiu, colocando as mãos sobre meus braços de forma reconfortante.
– Você não percebe, talvez porque esteja machucada demais por tudo o que aconteceu, por tudo o que enfrentou... Mas para mim, é óbvio, tão óbvio quanto o amor que eu sinto por você, e que sei que você também sente por mim.
Um suspiro aliviado escapou de meus lábios ao ouvi-lo dizer que me amava, no presente, ao ver a honestidade em suas pupilas, transbordando ternura e saudade, a saudade que corria em minhas veias com velocidade assustadora, arrasadora, impedindo que qualquer outro sentimento se manifestasse. Recebendo incentivo em meus olhos, ele disse mais.
– Como eu poderia te odiar... Como eu poderia não te perdoar por algo que você não fez? Pelo contrário, por algo que ajudou a desfazer? Você não é seu pai. Você é você. E eu sou eternamente grato por isso. Eternamente grato por suas escolhas, apesar de todos os obstáculos em nosso caminho, vários deles colocados por minhas próprias escolhas ruins.
Pisquei algumas vezes, em transe, hipnotizada pelo som de sua voz, pelo calor de seu toque, pelo sorriso em seu rosto... Por ele, por tudo o que pudesse dizer respeito a ele, ainda que minimamente... Eu o amava. Eu o amava demais...
– Mesmo que eu quisesse, mesmo que decidisse terminar tudo entre nós, com toda a força de vontade que existe em mim... Por mais que eu tentasse culpá-la por toda essa mágoa, por toda essa raiva que eu senti nesses últimos dias... Eu sabia, da mesma forma que sei, com toda a certeza do mundo, que um dia eu morrerei, eu sabia que... No momento em que eu colocasse os olhos em você, no segundo em que você entrasse em meu campo de visão... Você estaria perdoada. Sem precisar dizer qualquer coisa, sem precisar derrubar uma lágrima.
deslizou o polegar sob meu olho direito, enxugando o pequeno filete salgado que escorreu dele sem que eu percebesse. Um sorriso emocionado surgiu em meu rosto, que ele reproduziu no seu.
– Mas nada disso importa... Porque eu não culpo você – ele sussurrou, traçando o contorno de minha bochecha com o indicador até alcançar a base de meu queixo, com a testa quase unida à minha – Nem um pouco. Não existe um motivo sequer pelo qual você deva se sentir em dívida comigo.
Fechei os olhos brevemente, tentando quebrar o feitiço que ele colocara sobre mim para que toda a angústia acumulada em meu peito pudesse se manifestar.
– ... Eu menti para você...
– Isso não importa – ele interrompeu, segurando meu rosto com ambas as mãos para me impedir de romper a bolha de felicidade que ele tentava construir ao nosso redor – Eu também menti para você uma vez, já fiz coisas horríveis com você, coisas de que me arrependo amargamente... E mesmo assim, você me perdoou. Você sabe que o que somos juntos é mais forte do que o que somos quando erramos, individualmente, mesmo que sempre na tentativa de acertar.
Relutante, voltei a encará-lo, enxergando em seus olhos a súplica que enxergara pela última vez há muitos meses, quando ele implorou para que eu não o mandasse embora, na noite do baile de primavera.
Acho que vou enlouquecer se você me recusar mais uma vez. Você não sabe o quanto eu preciso disso... O quanto eu preciso de que você me queira.
Minha resposta ainda era a mesma, independentemente de todos os acontecimentos que separavam aquele momento do agora.
Eu quero você.
– Eu só queria ajudar – soprei, mal conseguindo fazer minha voz atingir um volume audível, mas ele assentiu, compreendendo perfeitamente – Eu só quis ajudar, sempre, sempre... Ajudar você.
– Eu sei, meu amor, eu sei – sorriu, encantado com minha declaração – E eu só quero amar você, sempre, sempre, sempre...
Nossos lábios se encontraram na metade do caminho, saudosos demais para esperarem mais um segundo distantes. Lágrimas escorreram por meu rosto, misturadas aos risos aliviados que escapavam de nós dois durante aquele beijo atrapalhado, porém visceral, vital, indescritível.
Estávamos mais uma vez onde pertencíamos: nos braços um do outro.
– Não acredito que isso está acontecendo – confessei, apertando seu pescoço com meus braços e respirando seu perfume – Pensei que nunca mais...
– Shh, não diga isso – ele pediu, envolvendo minha cintura com seus braços e prensando-me contra si – Não consigo nem imaginar como seria ficar sem você, e já passamos tempo demais separados para sequer tentar repetir a dose.
– Concordo – murmurei perto de sua orelha, fazendo-o respirar profundamente e rindo de sua reação. , que me erguera do chão com nosso abraço monstro, colocou-me de volta, observando meu sorriso largo e permitindo-me ver minha alegria refletida no dele.
– Você é incrível – ele disse, afastando meu cabelo do rosto com o olhar pensativo – Você descobriu tudo sozinha... Mesmo quando eu duvidei de você...
– Shh, não diga isso – interrompi, repetindo suas palavras, colocando o indicador sobre seus lábios e os meus logo em seguida – Você tentou me ajudar, eu sei disso. Com todas as evidências apontando na direção oposta, e depois de tudo que aprontou, você imaginou que eu estivesse confusa... Não posso dizer que teria acreditado em você se os papéis estivessem trocados.
– Mesmo assim, eu deveria ter escutado o que você tinha a dizer...
– – falei, segurando seu rosto como ele segurara o meu há pouco – Chega. Vamos deixar tudo isso para trás e olhar para frente, para o futuro. Para o nosso futuro.
Ele pareceu gostar da alternativa, ainda que resquícios de arrependimento perdurassem em seus olhos. Seu sorriso voltou a ganhar força, e ele selou o acordo com um beijo breve, mas que continha o infinito em cada segundo de sua duração.
– Posso só comentar uma coisa que me veio à mente durante esses últimos dias? – ele murmurou, enquanto permanecíamos abraçados, enroscados um no outro, e eu assenti – É irônico, na verdade...
Suas mãos seguraram meus pulsos, que repousavam sobre sua nuca, e trouxeram-nos para seu peito, observando-os com um sorriso intrigado.
– O que é irônico? – indaguei, subitamente curiosa com seu comportamento enigmático.
– Você se lembra de qual foi nossa primeira conversa?
Não foi difícil revirar minha memória em busca daquele momento, e assim que encontrei o registro que procurava, sorri de leve.
– Você me ajudou... Com as mangas...
completou a frase por mim.
– Do avental do seu pai.
Ergui minhas sobrancelhas, verdadeiramente chocada com a constatação. Um arrepio percorreu minha espinha.
– Que bizarro – suspirei, vendo-o rir de minha reação – Nós somos muito bizarros, fala sério.
– Eu não sou bizarro, você é bizarra – ele retrucou, fingindo estar ofendido – Olha essa cara bizarra!
Antes que eu pudesse dizer alguma coisa igualmente rude, ele cobriu meu rosto de beijos, ao mesmo tempo em que fazia cócegas em minha barriga. Cambaleamos até o sofá e ali desmoronamos, gargalhando de nossa própria bizarrice.
Bizarrice que não trocaríamos por nenhuma normalidade no mundo.
Abracei o travesseiro outra vez, escondendo meu rosto do olhar inquisitivo de , que terminava de organizar algumas roupas e pertences na mala ao meu lado sobre a cama. Apesar de ter sucesso em minha missão, não foi suficiente para bloquear sua voz; como antídoto, inalei os traços de seu perfume que sobreviviam na fronha a que eu me agarrava feito uma bolinha (insegura) de gente.
– , você não precisa ir se não quiser – ele suspirou, e eu me encolhi ainda mais ao ouvir a resignação em seu tom.
– Mas você quer que eu vá – resmunguei, ainda mergulhada no travesseiro, o que fez com que minhas palavras saíssem abafadas – Não quer?
Ouvi seus passos se afastando da cama e seguindo rumo ao banheiro, sem receber resposta. Alguns segundos de silêncio depois, ousei erguer um pouco a cabeça e inspecionar meus arredores, mas logo retomei minha posição defensiva quando notei seu retorno.
– É claro que eu quero. Eu sempre quero que você esteja comigo, e dessa vez não é diferente, ainda mais agora que...
Sua frase permaneceu incompleta por um momento, durante o qual deixei minha manha de lado e devolvi seu olhar distante com um preocupado, angustiado. Larguei o travesseiro, esticando os braços para segurar uma de suas mãos com as minhas.
– Vem cá – murmurei, puxando-o em minha direção e liberando espaço sobre o colchão para que ele se sentasse. Obviamente, assim que ele o fez, coloquei-me em seu colo, aninhando-o em meus braços com um beijo no pescoço.
– Tudo bem, está tudo bem – disse ele, baixinho, devolvendo o abraço com carinho.
– Não está tudo bem, – refutei, encarando-o com seriedade – Sei que já faz um mês desde que tudo aconteceu, mas o impacto ainda é forte demais para enfrentar sozinho.
– Mas é o aniversário de Ben – ele argumentou, dando de ombros – Não posso simplesmente ignorar isso, nem quero. Não vou me esconder.
– E nem deve – concordei prontamente – Também acho que você deve ir. Sei que Ben sentirá sua falta se você não aparecer.
desviou o olhar do meu antes de falar, sabendo que eu reprovaria o que viria a seguir.
– Não tenho tanta certeza… Ele tem… Outra pessoa para cuidar dele agora.
– , não seja ridículo! – exclamei, e como prova de minha irritação, segurei seu rosto para que ele não pudesse evitar minhas pupilas transbordando determinação – Ainda que ele tivesse trezentas pessoas para tomar conta dele, isso não se compararia ao vínculo que vocês formaram durante o tempo em que conviveram. Ele vai ficar chateado se você não for, tenho certeza absoluta disso.
– E eu vou ficar chateado se você não for! – foi a réplica que recebi, acompanhada de uma expressão de cachorrinho sem dono com vestígios de desespero verdadeiro. Após respirar fundo, ciente de que ele tinha razão em resistir à minha ausência na casa de seus pais, ponderei sua chantagem emocional.
– Eu sei. Eu deveria ir. estará lá, e por mais que eu não queira mais vê-lo nunca mais na vida, só de imaginar vocês dois no mesmo ambiente já me dá um aperto no peito.
– Eu não vou fazer nada de errado – se prontificou a esclarecer, tirando as mãos de minhas costas por um instante para erguê-las em sinal de paz, assim como fez com suas sobrancelhas – Já ele...
Concordei com a cabeça enquanto massageava o lóbulo de sua orelha distraidamente.
– Como sempre, ele é o problema. Depois de tudo o que aconteceu, não podemos ser considerados culpados por não confiarmos nele.
reproduziu minha confirmação silenciosa, com um pouco mais de pesar, no entanto.
– Se bem que... – ele começou, porém precisou de incentivo de minha parte na forma de um afago atrás da orelha para prosseguir – Se bem que ele já conseguiu o que queria, supostamente. Não significa que confie nele, nem um pouco, mas... Talvez dessa vez ele pare de nos atormentar.
A ideia me parecia razoável, embora o receio de estar perto dele, ainda que por algumas horas, não diminuísse nem um pouco com a possibilidade.
– Espero que sim – murmurei depois de alguns segundos de reflexão. Ao perceber que me perdia em pensamentos, ele aproximou seu nariz do meu, novamente com seus olhos de cachorrinho que caiu do caminhão de mudança.
– Espero que você esteja lá comigo para ver.
Disfarcei um sorriso conflituoso que cismou em desabrochar diante de seu charme. A ansiedade que me levara a buscar refúgio no travesseiro há alguns minutos voltou com força total.
– , eu já expliquei que não tenho coragem de pisar naquele lugar depois da última vez em que estive lá...
– , eu já te expliquei que eles não têm nada contra você – rebateu ele assim que minha última sílaba ecoou pelas paredes de seu quarto – Pelo contrário!
– Como pode ter tanta certeza? – retruquei na mesma velocidade. Ele revirou os olhos, todo dramático.
– Pirralha, você caiu nas graças da última pessoa que imaginei que gostaria de você. Tem certeza de que quer continuar discutindo?
Ambos rimos brevemente da menção à amizade inesperada entre Elliot e eu. De fato, aquele era um ponto fortíssimo a seu favor. Mesmo assim, lancei-lhe um olhar cético.
– É diferente, e você sabe.
– Só o que sei é o que já disse – ele afirmou, balançando negativamente a cabeça em resposta ao meu desconforto – Ninguém na minha família tem motivos para não gostar de você.
Nossos olhos traduziram a profundidade do dilema que se camuflava na atmosfera amena de nosso debate. Quando voltou a falar, essa profundidade estava presente em sua voz, fazendo-a soar mais grave do que há poucos segundos.
– Se existem motivos para que se sintam de alguma forma em relação a você, eles são inteiramente positivos. Você abriu nossos olhos... Você aliviou Emily de um fardo terrível. Graças a você, Ben evitou um drama ainda maior do que a atual confusão, da qual ele se lembrará vagamente no futuro. Só de imaginar o caos em sua mente caso ele soubesse a verdade anos mais tarde... O que você pensa ter sido algo doloroso, vergonhoso, repudiável, nos libertou de uma tempestade ainda mais tenebrosa. é o alvo de nossas desconfianças e decepções, não você, a pessoa que nos fez enxergar a realidade, a única pessoa que poderia ter feito isso da maneira limpa e discreta que fez.
Seu discurso aniquilou completamente qualquer possível resposta que estivesse esperando em minha garganta. Apenas sustentei seu olhar sincero, disposto a me oferecer o mundo, o universo e todos os outros universos existentes para que eu acreditasse no que dizia, com a respiração levemente acelerada pela emoção que aquecia meu peito. beijou o canto de minha boca e então dirigiu a sua até minha orelha para concluir o argumento que enfim me faria ceder.
– Todos são eternamente gratos a você. E eu também... Por muito mais motivos do que esse.
Encolhi-me em seus braços, arrepiada da cabeça aos pés, sentindo-me amada da cabeça aos pés. Percebendo a eficácia de sua declaração, e a consequente mudança de decisão que eu estava prestes a anunciar, ele riu baixo em meu ouvido, ao mesmo tempo em que sua mão experiente escorregava de meu joelho para a parte superior de minha coxa, somente satisfeita quando as pontas dos dedos encontraram o tecido da samba-calção que eu roubara de sua gaveta mais cedo naquela manhã de sábado.
– Está bem – murmurei, praticamente ronronando sob o efeito dos beijinhos que ele depositava em meu pescoço e ombro – Eu vou.
Cerca de uma hora depois, passamos em minha casa para que eu também reunisse algumas roupas e pertences numa mala. Durante todo o tempo, mamãe se juntou a nós, ajudando-me a agilizar o processo e mantendo uma conversa amigável com , deitado em minha cama, dividindo o estreito colchão com a mochila que eu rapidamente enchia, com um de meus bichinhos de pelúcia em seu colo. Trocamos vários olhares cúmplices ao recordarmo-nos de quando aquela cena aconteceu pela primeira vez, na noite do baile de primavera, seguida da manhã em que quase fomos pegos no flagra e que resultou em seu salto de minha janela sem que minha querida progenitora sequer percebesse. E novamente, ela não notou a faísca de lembrança em nossos olhos, ou fingiu não notar.
– Tem certeza de que está pronta para voltar àquela casa? – ela murmurou alguns minutos depois, já diante da porta de casa. Olhei por sobre meu ombro, vendo colocar minha mochila no bagageiro, e suspirei antes de responder, com um sorrisinho otimista.
– Tenho. Ficarei bem.
Mamãe assentiu, também olhando na direção dele, e acenou, em resposta ao gesto de despedida que imagino que tenha feito. Logo em seguida, nos abraçamos rapidamente.
– Cuide-se. Qualquer coisa, é só ligar.
– Pode deixar – respondi, descendo os degraus da soleira devagar – Cuide-se você também. Amanhã à noite estarei de volta.
Caminhei até o carro e acomodei-me no banco do carona, onde confortavelmente passei cerca de uma hora ouvindo música e jogando conversa fora com o belo motorista que nos levava até a casa de sua família. Por mais que tivéssemos resolvido nosso primeiro impasse mais cedo, ainda restava uma apreensão latente, um incômodo diante do iminente encontro indesejado com . Contornamos a situação como pudemos no limitado espaço interior do carro, vez ou outra apenas curtindo a trilha sonora com o olhar perdido no vasto espaço do mundo exterior ao nosso redor.
A imponente cerca viva que circundava a casa dos se aproximou sem demora, e com ela se desfez nossa pequena cerca imaginária contra as preocupações que as próximas horas reservavam. parou diante do portão, esperando sua abertura; percebi que seus dedos se fecharam ao redor do volante, em sinal de nervosismo. Instintivamente, levei uma mão ao seu braço e o apertei de leve, recebendo um sorriso sereno que não atingiu seus olhos, estrategicamente escondidos sob as lentes dos óculos escuros. Ele estava tenso, e não o culpei, pois também estava. No entanto, naquele instante, seus esforços para manter-se calmo eram muito maiores do que os meus, sem sombra de dúvida. Eu podia sentir sua instabilidade emanando de cada poro, por mais que ele mantivesse a fachada de tranquilidade que talvez pudesse enganar alguns de seus parentes.
Naquele breve instante, que não durou mais do que meio minuto, fiz a única coisa em que pude pensar para demonstrar meu apoio.
– Ei – cochichei para que ele voltasse a me olhar, e quando o fez, levei as mãos à corrente prateada ao redor de meu pescoço. apenas me observou passar o colar por minha cabeça, e então passá-lo pela sua, abrigando o pequeno talismã sob a gola de sua camiseta. Minha mão repousou sobre seu peito, sentindo os batimentos cardíacos um tanto acelerados reverberarem contra minha palma; meus lábios repousaram sobre os dele num beijo breve, porém significativo, que me permitiu transmitir a mensagem desejada sem emitir um som.
Você precisa dele mais do que eu.
– Obrigado – ele soprou enquanto nossos rostos ainda estavam próximos, ao que balancei a cabeça, pois seu agradecimento não era necessário.
Os portões se abriram e seguimos jardim adentro, até a frente da casa. Reunimo-nos após sair do veículo, caminhamos de mãos dadas até as escadas da mansão, e subimos juntos (eu com o braço livre envolvendo o dele, ele com a mão livre sobre o meu) os degraus em que há um mês e meio nos despedíramos – pela última vez, eu esperava.
– Querido! – Audrey exclamou ao nos ver à entrada da sala de estar, dando seu melhor sorriso – Ah! E querida!
Todos rimos de seu adendo, e trocamos abraços carinhosos. Ela tocou meu rosto com genuíno deslumbre, analisando-me atentamente, e apesar da nítida diferença no teor de suas intenções, reconheci em suas íris o mesmo brilho que tanto vira nas de seu filho. Disfarcei a enorme felicidade que seu gesto despertara em mim com um sorrisinho encabulado. apertou minha mão, e quando lancei-lhe um olhar emocionado, vi que ele também fora tocado pelo ato acolhedor da mãe.
– Obrigada – murmurei após reencontrar minha voz, ao que ela reagiu com um aceno gentil.
– Nós é que agradecemos. Você é muito bem-vinda aqui.
Abri a boca para agradecer novamente, mas não tive a chance de dizer uma palavra, tendo o momento ternura bruscamente interrompido por um grito estridente.
– Vocês chegaram!
Todos nós pulamos, e e eu olhamos para trás, não com o intuito de reconhecê-lo, já que tal reação inconfundível só poderia ter vindo de uma pessoa.
– Elliot!
Imitei seu sorriso eufórico e corri em sua direção, com os braços esticados para a frente assim como ele. Abraçamo-nos como se não nos víssemos há muito tempo, e de fato, desde nosso último fatídico encontro, nossa amizade crescera vertiginosamente. Falávamos um com o outro praticamente todos os dias desde então, fato que ainda espantava .
– Que bom que ele te convenceu a vir – Elliot riu, quando nos reaproximamos dos outros presentes, e também cumprimentou o primo com um abraço, tão carinhoso quanto o meu, embora menos empolgado – Essa sabe ser manhosa quando quer, não é mesmo?
– Ah, sabe – ele respondeu com uma risada convencida, e ergueu as sobrancelhas – Mas eu sei convencê-la muito bem.
– Pelo amor de Beyoncé, parem de esfregar todo esse amor na minha cara! – resmungou Elliot com a expressão enojada, abanando as mãos diante do rosto como se algo cheirasse mal – Tenha um pouco de respeito pela sua família!
Gargalhadas preencheram a sala, e uma sensação de conforto se estabeleceu sobre nós, um conforto que eu não esperava sentir, muito menos tão depressa. Meu coração estava mais tranquilo, ainda que a principal ameaça estivesse por vir.
– Vamos pro meu quarto fofocar enquanto seu hombre leva as malas lá para cima – disse meu mais recente amigo, sem esperar resposta, já me puxando rumo à escadaria principal. Tentei ancorar-me a , incerta de que o melhor a fazer era nos separarmos tão cedo, mas ele assentiu discretamente, certo de que ficaríamos bem com as atuais companhias, e murmurando um “até daqui a pouco” antes de me ver ser arrastada degraus acima, com um sorrisinho divertido.
Por mais que tenhamos rido e tagarelado a ponto de enxugar lágrimas dos cantos dos olhos e sentirmos as gargantas secas, parte de mim continuava preocupada com meu namorado. Embora eu soubesse que a festa de aniversário de Ben só começaria dali a duas horas, a consciência de que poderia aparecer a qualquer momento me perturbava como se ele já estivesse ali, bem atrás de mim, e por mais que eu olhasse por sobre meus ombros, não podia enxergá-lo.
– Entendi, você quer voltar pro seu bofe, é isso – Elliot suspirou, deixando o celular de lado depois de postar uma foto nossa no Instagram – Você não me engana com esse arzinho melancólico e essas olhadas pela janela.
Esfreguei os olhos com as pontas dos dedos, sinceramente envergonhada, mas incapaz de desmentir a veracidade de sua constatação.
– Desculpe... Estou nervosa com essa festa. Você deve imaginar o motivo.
– Claro, e não tiro sua razão – disse ele sem pestanejar – Eu também estaria em seu lugar. Na verdade, mesmo não estando em seu lugar, estou um pouco apreensivo.
– Pelo que você me disse, ele tem se comportado bem durante suas visitas – comentei, cruzando as pernas sobre sua cama – Espero que essa boa conduta se mantenha hoje.
Elliot concordou com a cabeça, e sua postura transmitia tranquilidade. Ele era a fonte mais confiável que eu tinha a respeito do comportamento do ilustríssimo convidado que me causava certa dor de cabeça, portanto sua opinião valia muito.
– Ele não é doido de aprontar alguma coisa com tanta gente em volta, especialmente agora que conseguiu o que tanto queria, comprovar sua paternidade. Sério, essa tensão de vocês é totalmente justificável, mas tenho 99% de certeza de que tudo correrá bem, e não os importunará.
– O 1% é o que me estressa – confessei, mas dei de ombros logo em seguida – Enfim, não posso prever o futuro. Teremos que esperar para ver.
– Relaxa, mulher, vai dar tudo certo! – ele disse, colocando as mãos sobre meus ombros e dando um apertão que fez com que eu me contorcesse contra o encosto da cama – Agora vamos encontrar seu homem antes que todo esse seu nervosismo me deixe com acne.
Ainda rindo de sua massagem relâmpago e também de sua frase exagerada, deixamos o quarto e exploramos o resto da casa em busca de ; levamos algum tempo para enfim encontrá-lo no jardim, enchendo balões de ar com o pequeno aniversariante e sua mãe.
– Não acredito que não me chamaram para esse belíssimo ritual! – Elliot guinchou, apressando-se para ocupar o espaço livre ao lado da irmã sobre a toalha estendida na grama – Venha ajudar, , todo par de pulmões é bem-vindo quando o assunto são bexigas coloridas.
Assenti prontamente, mais do que disposta a ajudar, mas a fragilidade do momento compartilhado por Ben e o tio, que até pouco tempo achava que era seu pai, manteve meus pés grudados a uma pequena distância do trio, que agora se tornara um quarteto, feliz, de bochechas coradas após tanto soprar. retribuiu meu olhar comovido com um contente, verdadeiramente pleno, que dissipou a neblina de preocupação em minha mente. Acalentada pela alegria em seu sorriso, e também pelo doce cumprimento que recebi de Emily (“sim, por favor, junte-se a nós”) e de seu filho (“você e o tio Elliot enchem as bexigas rosa e verdes, eu e tio enchemos as amarelas e azuis”), sentei-me sobre a estampa xadrez e contribuí com o máximo de gás carbônico que pude.
Graças ao reforço à equipe, todos os balões foram devidamente soprados, amarrados e organizados com barbante em enfeites aleatórios – a especialidade do “tio Elliot”, segundo Emily, o que fez seu primo rir ao se recordar de alguma lembrança que ele narraria mais tarde durante a festa, e que também me faria rir – e então colados às paredes, pilares, portas, beiradas de mesas... Enfim, quaisquer superfícies horizontais desocupadas. Tão empolgado com sua missão de enfeitar a casa com bexigas, e também contagiado pela eletricidade do sobrinho, que saltitava em seu encalço para onde quer que fosse para orquestrar a decoração, Elliot chegou a colar uma bexiga em minha testa, como se fosse um chifre azul pendendo para a frente.
– Vejam só, a tia virou um unicórnio! – ele riu, admirando sua obra-prima, e eu balancei a cabeça repetidas vezes para intensificar o efeito dramático de seu feito. Não havia uma pessoa que estivesse por perto, fosse da família, fosse do grupo de funcionários que trabalhavam na casa, sem um sorriso no rosto, infectados por nossas risadas, não só nesse momento, mas durante todo o tempo em que trabalhamos em conjunto na arrumação para a chegada dos convidados.
O céu já exibia nuances alaranjadas quando declarou o fim dos preparativos.
– Tudo certo, pessoal, agora podemos seguir para nossos respectivos cômodos e ficarmos lindos e cheirosos para a festa do... De quem mesmo?
– Ei! – Ben reclamou, puxando a blusa do tio com falsa revolta – É a minha festa!
– É a sua festa! Rargh! – ele repetiu, erguendo o menino do chão e fingindo que mordia sua barriga, enquanto o pequeno lutava como podia, contorcendo-se e implorando por misericórdia. Cobri a boca com uma mão, abafando uma gargalhada, e percebi que Emily cruzou os braços sobre o peito ao meu lado, lutando contra a mesma reação.
– , ele vai ter outra crise de asma, cuidado – ela advertiu, e não precisou repetir. Sua hilária tortura acabou, mas ele manteve a criança nos braços, vendo-o apontar para a faixa a alguns metros dali que dizia “Feliz Aniversário, Ben!” e ouvindo-o explicar com o melhor de sua capacidade, ainda que alguns problemas de dicção persistissem, que aquela era a sua festa e que naquele dia ele completava sete anos de vida. O interlocutor atento se desculpou pelo breve e descabido esquecimento, e libertou o garoto após trocarem beijos gostosos nas bochechas.
– Como você pôde esquecer de quem é a festa? – brinquei ao vê-lo caminhar até mim, sem conseguir disfarçar o sorriso causado pela fofura do que acabara de presenciar – Já está ficando gagá, senhor ?
– Não me venha com esse papo de velhice, ou terei que refrescar a sua memória em relação a alguns assuntos, como por exemplo... – retrucou ele, passando um braço ao redor de minha cintura, e o resto de sua resposta foi sussurrado ao pé de meu ouvido, causando-me arrepios e risinhos envergonhados.
– Vamos para o quarto – pedi, já sentindo a respiração prejudicada depois de alguns segundos indecentes de sua voz rouca narrando momentos ainda mais indecentes somente para que meus tímpanos a captasse – Por favor...
– Só se me ajudar a subir as escadas – ele impôs, afastando-se para exibir a curva maldosa que moldava seus lábios – Estou um pouco sem fôlego... Sabe como é, a idade chega para todos.
Dei um tapa em seu braço, mostrando a língua da forma mais imatura que pude, antes de puxá-lo pela mão casa adentro.
– Vamos lá, vovô.
– E aí ele se enroscou nas bexigas de um jeito que o fez tropeçar e cair bem em cima da aniversariante!
Gargalhadas altíssimas se seguiram à explicação de a respeito do tempo em que Elliot trabalhou como decorador de festas de aniversário, seguindo um hobby da mãe, que se ocupara com a tarefa há alguns anos, apenas para se aproximar de um confeiteiro bonitinho que trabalhava no buffet contratado por ela. Lancei meus braços ao redor do protagonista desastrado da anedota, que buscava se esconder atrás do copo de suco de framboesa que bebericava, o que só tornou tudo ainda mais engraçado. Considerando o fato de que todos no grupo (eu, , Elliot, Emily, Ben, Audrey e Margaret, avó do aniversariante) também estávamos bebendo suco, refrigerante ou água, regra expressa de toda festa de criança da família , pelo menos até a hora em que os pequenos estivessem dormindo, os risos custaram a cessar.
– Obrigado por arruinar a minha reputação para mais uma pessoa, priminho – ele resmungou, fazendo beicinho.
– Qualquer dia desses eu conto a quantidade de micos que meu passado sombrio esconde, pode ser? – sugeri, e com um aperto de mão, selamos o acordo.
A festa começara há meia hora, e a todo instante mais convidados chegavam com presentes dos mais variados tamanhos e formatos, roubando a atenção dos anfitriões de diversas formas e por diversos períodos de tempo conforme sua proximidade com cada um. nunca saía de meu lado, sempre com uma mão sobre minha coxa, ou com o braço esticado sobre o encosto de minha cadeira, ou lutando com seu pé direito contra o meu esquerdo pelo ínfimo espaço entre nossos lugares, só pelo prazer de ter uma desculpa para contato físico, ou com os olhos fixos em meu rosto, ou nos meus, ou com alguma parte de si diretamente ligada a alguma parte de mim.
Tudo ia às mil maravilhas, até que...
– E aí, cara? Feliz aniversário!
Ao ouvir a voz familiar, a voz que temera ouvir desde que decidira comparecer à festa, a poucos metros de nós, meu corpo inteiro ficou tenso, meus sentidos se apuraram, meu rosto se fechou, prevendo um desastre que muito provavelmente não viria, mas que seria muito desastroso caso ocorresse. De imediato, coloquei minha mão sobre a , que por sua vez se achava sobre meu joelho, notando que ele também percebera a chegada de , embora não demonstrasse qualquer sinal de irritação a não ser pelo maxilar travado.
Por um longo tempo, aquele foi o único sinal de sua presença de que tivemos notícia. Nem sequer olhamos em sua direção ao chegar, e por mais que conter o impulso de localizá-lo visualmente tenha prevalecido sobre a indiferença, não encontramos sinal dele. Se Elliot não tivesse se reaproximado de nós, após zanzar por entre os convidados durante quase quarenta minutos, teria começado a duvidar da autenticidade de meus sentidos.
– Acho melhor evitarem o jardim por um tempo – ele murmurou, o mais neutro possível – Quando a barra estiver limpa, eu aviso.
Suspiramos aliviados ao enfim termos notícias do paradeiro de , por mais inconveniente que sua presença fosse. Sem dúvida alguma, seguiríamos o conselho de Elliot, que voltou a sumir na restrita multidão ao nosso redor. Estávamos mais do que confortáveis com a quietude de nosso cantinho no sofá, numa ponta, eu no meio, e Audrey ao meu lado, incansável em sua tarefa de ser a pessoa mais fofa do universo. Algum tempo de conversa agradável depois, ela pediu licença para agraciar também outros convidados com sua presença, liberando um espaço para que outra pessoa se sentasse ao meu lado.
Cerca de dez segundos se passaram, durante os quais trocamos um beijo recatado e rimos de algo que sua mãe acabara de dizer, até que tia Margaret ocupou o assento vago, com três álbuns de fotografias em seu colo e um sorriso beirando o assustador em seu rosto exageradamente empolgado.
– Você gosta de fotos? – ela questionou, acendendo um cigarro, e sem esperar resposta, abriu o primeiro álbum, apontou para a imagem de um casal de crianças, sob o qual se lia “ e Lucy, verão de 1993”, começou a explicar sobre o terrível incêndio na casa da família Hayes...
– Ah, não, tia, hoje também não vai rolar – Elliot interveio, emergindo do mar de pessoas com uma mão esticada em minha direção – Posso roubá-la um minutinho? Obrigado!
parecia confuso demais para responder, e pela segunda vez consecutiva, a pergunta não precisou de resposta, pois pela segunda vez naquele dia, encontrei-me sendo arrastada para fora da sala de estar.
– O que foi, criatura? – indaguei, quando enfim paramos próximos à saída principal da casa. Elliot mordeu o lábio inferior, apreensivo, antes de revelar o motivo de seu pequeno sequestro.
– Ele quer falar com você.
Levei alguns segundos para processar aquelas cinco palavras, e então mais dez para aceitar o sentido que meu cérebro atribuíra a elas.
– O quê?
Ele balançou as mãos nervosamente na frente do corpo, temendo que eu tivesse um surto psicótico.
– É sério, ele disse que precisa... Que precisa se despedir.
À essa altura, meu coração ricocheteava contra as costelas, em completa desordem.
– Como assim, “se despedir”? Por acaso ele vai embora, ou...
Não pude completar a pergunta, por mais que minha mágoa quisesse com todas as forças que eu fosse capaz de dizer ou vai morrer?
– Não, não, nada disso – Elliot esclareceu sem demora – Mas ele sabe que você, er... Não quer vê-lo nunca mais, e muito menos. Ele diz que entende, e que evitará dividir os mesmos espaços que vocês quando vierem nos visitar, mas não quer que seu último contato tenha sido... Bem, o que foi.
– Ele está certo, eu nunca mais quero vê-lo – afirmei, uma onda de repulsa subindo por minha espinha e esquentando meu rosto – Por que ele ainda insiste em me atormentar?
– Por favor, – murmurou ele, tentando me acalmar – Ele está sendo sincero dessa vez. Deixe que ele diga o que tem a dizer e então suma de sua vida. De suas vidas.
– Elliot, você não entende...
– Sei disso. Mas eu entendo que você se importa com o futuro dessa família, inclusive com o de Ben, e essa é a sua oportunidade de selar o acordo de paz nesta casa.
Franzi a testa, sem entender o que ele queria dizer, e ele completou sua linha de raciocínio.
– Deixe que ele diga o que quer que seja, deixe-o atingir algum tipo de paz, não incite ainda mais raiva em seu coração agora que tudo está bem... Dê adeus a essa parte da sua vida em definitivo. Sei que você tomou a mesma decisão da outra vez, quando ambos descobriram sobre seus relacionamentos às escondidas. Tome a decisão certa de novo e siga em frente, de consciência totalmente limpa.
– Como você sabe de tudo isso? – balbuciei após longos segundos de assimilação; ele apenas deu de ombros.
– Eu sei de algumas coisas, baby.
Olhei para as portas abertas, esperando que a brisa noturna que passava por elas me trouxesse a resposta para aquele impasse. Quando voltei a encarar Elliot, minha decisão estava tomada.
– Ele ainda está no jardim?
A resposta foi afirmativa.
Elliot me acompanhou até o banco em que três pessoas, dois adultos e uma criança, observavam o céu estrelado em meio aos arbustos e esparsas árvores que recobriam a área externa da casa. De alguma forma, contive meu instinto de sobrevivência ao vislumbrar o perfil , e não corri o mais rápido possível na direção oposta.
– Vem, filho, vamos voltar para dentro, está frio aqui fora – Emily ordenou, levantando-se ao nos ver e levando o pequeno consigo de volta para sua festa. Meu estômago se revirou ao estabelecer contato visual com a pessoa que só então se levantava. Elliot apertou meu braço de leve, sussurrando que ficaria por perto, antes de nos dar alguma privacidade, por mais indesejada que fosse.
– Obrigado por concordar em me ouvir – começou, bastante nervoso; não movi um músculo, com os braços firmemente cruzados e cara de poucos amigos – Sei que não deve ter sido uma decisão fácil.
– Diga o que tem a dizer de uma vez e me deixe em paz – falei, curta e grossa, a cada segundo mais desconfortável. Ele assentiu, depois de processar a desagradável ardência de minhas palavras, que o atingiram como um tabefe.
– Eu só quero... Agradecer. Pelo que fez. Por ter desvendado o mistério. Por ter insistido em minha versão dos fatos, por mais mirabolante e improvável que fosse. Eu fui uma pessoa horrível com você, e me arrependo sinceramente do quanto te fiz sofrer.
Ergui as sobrancelhas, quase impressionada com seu discurso esfarrapado, ainda que soasse vagamente sincero. No entanto, o que se seguiu comprovou o quão certa eu estava a respeito de querê-lo fora de minha vida o quanto antes.
– Mas entenda que você também me feriu, e muito, ao me trair com meu melhor amigo...
Cerrei os olhos diante de sua cara de pau, diante de sua atitude ridícula de desenterrar aquele argumento, logo aquele argumento, e jogá-lo na minha cara, àquela altura do campeonato, depois de tudo o que acontecera, depois de tudo o que fizera, não só a mim, mas a , a Emily, a Ben, ao resto da família... Agradeci mentalmente por ter comido pouco na festa até então, pois o mísero conteúdo de meu estômago ameaçava voltar por onde entrara.
– Sabe o que eu entendo, ? – comecei, com o máximo de esforço para conter a gargalhada ensurdecedora que eu gostaria de dar – Eu entendo que você é uma pessoa horrorosa, e que nunca vai mudar. Essa é a única explicação para esse momento, para definir a personalidade de alguém que prejudica as vidas de tantas pessoas e ainda tem a coragem de se fazer de vítima.
Assim que percebeu o tom de minha resposta, ele se encolheu, evitou meu olhar, largou a postura de sutil superioridade disfarçada de humildade carregada que mantivera até então, trocando-a por sua verdadeira face, a de pura covardia. Olhei-o de cima a baixo com desdém queimando em minha garganta, e não me arrependo de uma palavra sequer que por ela passou naquele odioso instante.
– E sabe o que mais eu entendo agora, depois de todo esse tempo? Eu entendo que a promessa que me fez, a maldita promessa que eu te fiz fazer na casa de praia, onde eu te traí duas vezes com o seu melhor amigo enquanto você dormia, já estava sendo cumprida muito antes de ser feita. Você me machucou muito mais ao ter plena consciência de que me iludia com a mentira de que eu era a única em sua vida, quando decidiu começar um relacionamento comigo mesmo já sendo noivo de outra, quando nem sequer pensou em ser honesto comigo mesmo estando prestes a se casar.
fechou os olhos com força, resistindo ao ácido extremamente corrosivo que saía de minha boca na forma de palavras, e que aos poucos abria feridas não em sua pele, mas em seu orgulho, em sua dignidade, se é que ele possuía algum dos dois. Não me forcei a parar, nem mesmo quando senti lágrimas incômodas borrarem minha visão, lágrimas que jamais derrubei, não por ele, nunca mais por ele.
– E depois, você voltou para enfiar o último prego no caixão, não é mesmo? Aproveitou-se da ironia do destino e fez o que pôde para me infernizar... Afinal, eu te fiz prometer, não fiz? Pois bem, promessa cumprida. Pode fazer o que quiser com ela agora. Espero que ela te ajude a dormir à noite quando os fantasmas de todas as merdas que você aprontou finalmente te encontrarem e te assombrarem até mesmo quando as luzes estiverem acesas.
– Eu não mereço ser tratado desse jeito...
– Não, não merece – interrompi, permitindo-me rir de sua tentativa fajuta de se defender – Você merece pior. Mas felizmente não quer nem lembrar que você existe. Considere-se um homem de sorte.
Por alguns segundos, encarei seu rosto ridiculamente contorcido num misto de medo e tristeza, sentimentos que não me pareciam sinceros, nem mesmo com o quilate de minhas ofensas. Nada que viesse dele me parecia sincero, não depois de ouvi-lo ressuscitar acusações que pouco importavam, considerando-se a atual conjuntura dos fatos. Além do mais, ele estava certo desde o começo: não merecia minha atenção, muito menos meu respeito, e menos ainda a minha consideração.
– Só mais uma coisa – falei por fim, apontando um dedo em sua direção – Se eu souber que você saiu da linha, , nem que por um milímetro, nem que por um segundo... Eu juro que eu, e Elliot, e Emily, e , e toda a família desse garoto, todos estamos de olho. Se aprontar mais uma, você nunca mais verá seu filho.
Ele abriu a boca para retrucar, ou implorar, ou insultar, mas eu não estava interessada. Dei meia volta sem a menor necessidade de olhar para trás, e marchei de volta para a casa, da qual não deveria ter saído, já que aqueles preciosos minutos desperdiçados em má companhia teriam sido muito melhor aproveitados vendo álbuns de fotos com tia Margaret.
– Garota, essa sua língua é terrível – Elliot murmurou ao se unir a mim na metade das escadas que levavam às portas de entrada – Amanhã o jardineiro terá que recolher os pedaços de que sobraram depois dessa conversa.
– Eu faço o que posso – respondi, desfazendo-me de toda a ira com um suspiro profundo e voltando a sorrir assim que pisei na sala de estar outra vez.
– Está tudo bem? – perguntou quando me reaproximei, oferecendo-me um copo d’água – O que ele queria?
Por uma fração de segundo, pensei em ocultar a verdade, mas dispensei a possibilidade ao me recordar do histórico de mentiras entre nós, e do rastro destruidor que deixara. Drenando quase todo o conteúdo do copo num só gole, apenas balancei a cabeça negativamente.
– Mais tarde. Agora, eu só quero fazer uma coisa.
Minha resposta evasiva deixou-o bastante confuso, porém seu complemento, um beijo na boca, acompanhado de meus braços ao redor de seu pescoço, bastou para desanuviar seus pensamentos até que a explicação viesse, mais tarde, em nosso quarto, depois de uma noite tranquila na companhia de sua família.
Fim
Nota da autora: muito obrigada a todos que acompanharam essa fanfic.
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