Drogada e Prostituida

Fanfic finalizada.

Nota da Autora:
Aqui estão fotos para vocês terem uma ideia de como eu imaginei cada personagem. É só clicar no nome. (Adam, Avó, Catarina, Derick, Edgar, Ethan, Foxxy, Gabrielle, Kevin, Lilá, Lilian, Mãe, Matt, Michael, Pai, Penny, Rose, Ruby, Sam, Samantha)

A primeira fase da minha vida.

Meus pais se conheceram em um show, perto da cidade onde eles moravam, minha mãe era A riquinha da cidade e o meu pai O vagabundo. Já deu para perceber que não deu em boa coisa? Pois é. Realmente, não deu em boa coisa.
Em menos de um mês que os dois se viam, minha mãe engravidou de mim. Ela fugiu de casa e foi para a casa do meu pai, ficou lá até o dia do meu nascimento. Sabe, existem alguns tipos de mães por aí... Algumas amam os filhos e sempre estão com eles. Umas amam os filhos, mas não podem cuidar deles ou fingem que cuidam. E outras simplesmente somem. Como a minha mãe fez. Meu pai não foi muito melhor que a minha mãe... Ele nunca ligou muito pra mim, a gente não brigava, mas também não conversávamos. Ele não parecia meu pai, parecia apenas um senhor que me deixava morar na casa dele. Eu tinha uma madrasta, o nome dela era Mary. Ela não era a típica madrasta que todo filho odeia. Ela não era muito mais nova que o meu pai, não era fútil... Havia alguma coisa na Mary que não me parecia ‘normal’. O filho dela também era um problema. O Sam era dois anos mais velho que eu. Ele também parecia ser legal. Mas não era. Para todas as menininhas a nossa volta, ele também parecia ser muito bonito. Mas ele não era. Pelo menos para mim. Tinha alguma coisa de estranho naquele menino. Eu preciso admitir que eu também não gostava muito dele, porque o meu pai o tratava como filho. Parecia que o Sam era filho dele e não eu.
Um dia, quando eu tinha doze anos e o Sam uns quatorze, eu entrei no quarto dele sem bater e o vi se masturbando. Eu fechei a porta e saí correndo para o meu quarto. Eu nem tinha certeza se sabia o que ele estava fazendo. Eu já havia ouvido alguns meninos do meu colégio falando sobre... Mas eu nunca escutei com detalhes.
Eu estava deitada na minha cama, olhando para o teto, quando o Sam entrou e se sentou ao meu lado.
- Hey, ... – Ele disse, passando a mão no meu rosto.
E eu realmente senti muito nojo daquela mão.
- Você... Você não vai contar para ninguém o que você viu, né?
- Eu? Eu não... Eu nem sei direito o que você estava fazendo. – eu disse em um sussurro.
- Você não sabe? – fiz que não com a cabeça e ele aproximou o rosto de mim – Se você quiser, eu te explico. Você quer? – fiz que sim com a cabeça, eu não conseguia falar, ele estava muito perto de mim. – Você deve saber o que é sexo, não é?
- Eu sei algumas coisas... – dessa vez pude falar.
- Que tipo de coisas?
- Ah, eu às vezes escuto alguns meninos comentando. E tem uma menina na minha sala que jura que já fez.
- Quer que eu te mostre o que é, ? – e passou novamente a mão no meu rosto, dessa vez não senti nojo. Ele estava sendo ‘legal’ comigo.
- Sim. – eu disse, sem saber onde estava me metendo. Se eu pudesse voltar atrás...
- Só porque gosto de você. – ele aproximou o rosto de mim e sussurrou no meu ouvido. – Mas ninguém pode saber disso. Você promete que nunca vai contar para ninguém?
- Prometo.
Mal terminei de falar e ele já estava me beijando, não era bom como eu ouvia as meninas do colégio dizendo. Ele me machucava, apertava-me e não me deixava respirar direito. Eu não estava gostando. Mas eu queria saber o que era. Mas se fosse aquilo, eu tinha certeza que nunca mais ia fazer. Eu não fiz nada, só fiquei parada, deixando-o fazer tudo. Ele começou a tirar a minha roupa até me deixar só de calcinha e, então, começou a tirar a roupa dele, eu olhava tudo com os olhos arregalados e apreensivos para o próximo passo dele.
Quando ele terminou de tirar a roupa, ele me puxou para perto dele, começou novamente a me beijar e com mais força ainda. Ele passava as mãos pelas minhas pernas, levantando-as e apertando-as. Deitou-me na cama e passou a beijar o meu pescoço e, de repente, com um golpe só, ele tirou o que restava da minha roupa, ou seja, a minha calcinha. Então, eu senti dor. Ela não era horrível, mas também não era agradável, mas não durou muito. Ele fazia movimentos rápidos. Com o tempo, a dor desapareceu e eu comecei a sentir uma sensação boa. Eu gemi um pouco alto, eu acho, pois ele tapou a minha boca com a mão e me disse para fazer silêncio. Fiquei calada desde então. E tudo terminou mais rápido do que começou.
Isso se passava pelo menos duas vezes por semana... O Sam ia ao meu quarto de madrugada e sempre me acordava, passando uma das mãos no meu rosto e me chamando de ‘’. E foi assim por três anos.
Eu já não tinha mais doze anos e já não era ingênua como antes. Eu fui crescendo e passei a entender o que ele fazia. Percebi que ele não estava sendo legal comigo, como eu sempre pensei. Mas eu ia contar para quem? Para o meu pai? Nunca. Ele não acreditaria.
Eu não tinha ninguém, caso você não tenha percebido, e isso já é o suficiente para deixar uma menina deprimida. Mas comigo, não. Comigo sempre tem que acontecer algo mil vezes pior, só para me deprimir mais ainda. E dessa vez não foi diferente.
Eu estava trancada no meu quarto o dia todo, não queria sair de lá e ver uma família que não era minha. No meio da noite, resolvi tomar um copo de suco ou alguma coisa assim... Afinal, não tinha comido nada o dia todo. Já estava nas escadas, a caminho da cozinha, quando escutei algumas vozes na sala. Pude reconhecer a voz de meu pai e a voz de Mary. E pude perceber que os dois brigavam também. Não gritavam, mas discutiam.
- David! Você precisa fazer alguma coisa! Essa menina não tem jeito.
Por um segundo, eu cheguei a pensar se era de mim que eles falavam.
- O que eu posso fazer? Ela tem que ficar com a gente. Não tenho para onde mandá-la.
Ah, sim. Era de mim que eles falavam.
- Podemos mandá-la para um colégio interno. O que você acha?
- Não temos o dinheiro, Mary. – dei um suspiro aliviado, mas não por muito tempo. – Por que nasceu essa menina?
Em momento algum na vida, palavras me machucaram tanto como essas. Eu sempre soube que ele não gostava muito de mim, mas nunca pensei que ele desejasse que eu nunca tivesse nascido. Tive que segurar no corrimão da escada para não cair, minhas pernas estavam bambas e não respondiam à minha vontade de sair correndo. Escutei um ranger de porta e olhei na direção do barulho, Sam estava apenas com a cabeça para fora do quarto, chamando-me. Sem pensar direito, fui até ele.
- , você precisa sair daqui. – ele disse, sussurrando.
- P-por quê?
- Você ainda pergunta? – ele riu desgostoso. – Qual é! O seu pai é um merda e a minha mãe... Bom, só faça as malas e saia daqui. – disse, empurrando-me para fora do quarto.
- Eu não tenho para onde ir. Não tenho ninguém. – falei de cabeça baixa.
- Vai atrás da sua mãe.
Eu cheguei a abrir a boca para falar alguma coisa, mas não consegui. Ele já havia me empurrado para fora do quarto e batido a porta na minha cara.
Entrei no meu quarto, um pouco atordoada de tudo o que aconteceu em menos de dez minutos, eu tentava lutar contra as lágrimas. Tentava. E não conseguia. Eu não entendia, realmente não entendia, será que eu era uma pessoa tão ruim, a ponto de ninguém gostar de mim? Fiquei sentada na cama um bom tempo, pensando no que Sam havia me dito. Eu sempre imaginei como seria ter uma mãe... Levantei da cama em um pulo e fui até o armário, peguei minhas poucas roupas e enfiei tudo dentro de uma mochila preta.
Abri a porta do quarto para me certificar de que a Mary e aquele senhor, o qual eu chamava de pai, não estavam mais na sala. Comecei a descer as escadas e, quando estava quase no final, comecei a subi-las novamente. Fui até a porta do quarto de Sam e bati fraco, ele abriu a porta e eu, por incrível que pareça, abracei-o. Ele me abraçou mais forte e falou que gostaria de me ver um dia desses, eu lhe disse que com certeza iria procurá-lo um dia.
Saí de casa me sentindo livre, sentindo-me adulta, uma aventureira, mas logo esse pensamento desapareceu e eu comecei a me preocupar com outra coisa. Minha mãe. Está ótimo, eu sei o nome dela. Mas e o endereço? E o telefone? Eu não tinha nada disso. Saí andando pelas ruas de Harrow, sem destino, quando cheguei a um orelhão, logo lembrei que dentro deles costumavam ter listas telefônicas. Não deveria existir muitos Myers por aqui. Meu palpite estava certo. Havia só duas pessoas com esse sobrenome na lista, uma tal de July Myers e um homem chamado Jensen Myers. Liguei para o tal homem, que foi bem grosso comigo, principalmente quando perguntei se ele conhecia uma Jamie Myers. Liguei para a tal July com um pouco de medo, admito.
- Alo? – escutei a voz de uma senhora atender.
- Oi, eu poderia falar com a Jamie? – fui direto ao assunto.
- Oh, desculpe. Mas acho que você está com o telefone errado. – suspirei. – A Jamie não mora mais aqui.
- A senhora poderia me dizer onde ela está morando?
- Sim, mas antes me conte: quem é você? O que quer com minha filha?
‘Minha filha’? A Jamie, digo, minha mãe, era filha dela?
- Eu... Eu... Sou a filha dela. – eu disse com a voz embargada e um pouco confusa.
- Filha? Você é minha neta?
- Suponho que sim...
- Anote o endereço. – não pude evitar sorrir, nunca ninguém ficou tão feliz com a minha existência.
- Pode falar.
Ela me passou o endereço e eu lhe prometi que no dia seguinte, logo pela manhã, iria vê-la e assim veria minha mãe também, pois ela era vizinha de July.
Mas não consegui esperar o dia seguinte, eu não tinha para onde ir mesmo. Eu segui o caminho que July tinha me dado e parei em frente a uma casa grande e muito bonita. Nunca tinha visto uma casa como aquela. Parecia um cenário de filme. Olhei em volta e vi uma árvore muito alta e com vários galhos, cheia de folhas, ela parecia mais uma cabana, para ser sincera. Fui até ela e me sentei no chão. Fiquei olhando o céu e imaginando qual seria a reação de minha avó ao me ver, pensei na minha mãe também, mas eu não tinha uma sensação muito boa a respeito disso.
Acordei com os raios de sol quase me cegando, tentei cobrir os olhos com os braços, mas não tinha jeito. Olhei para o outro lado da rua e vi a casa de July, havia uma menina, uns cinco anos mais nova que eu, regando umas plantas da casa ao lado. ‘Será que é a casa da minha mãe? Porque se for... Essa menina pode ser minha irmã. Irmã... ’ Na casa do outro lado da de minha avó, havia um menino sentado na grama, ele me olhava.
Fui me aproximando da casa de July e reparei que a tal menina olhava para mim, diferente do menino, que já não me olhava mais, estava esparramado no chão, cantando alguma coisa irreconhecível, pelo menos para mim. Bati na porta e, no mesmo instante, a menina parou o que estava fazendo e veio até mim.
- O que você quer com a minha avó? – disse como se fosse uma policial, não gostei disso. Nunca gostei de policiais.
- Bom, eu vim visitar a minha avó. – dei bastante ênfase quando disse avó. A menina abriu e fechou a boca diversas vezes e ficou me encarando como se eu fosse um fantasma.
- Então, é você? – ela falou, apontando para mim.
- Sou o quê? – falei, arqueando uma sobrancelha.
- Você é a minha irmã? Sempre achei que você estivesse morta. Mas não está. – ela disse essa última parte mais para ela mesma.
- É, eu acho que ainda não morri. – bati na porta de novo.
- Ela não está aí. – ela olhou para a porta e depois apontou para a casa ao lado. – Está lá. Vem, eu te levo até lá.
Ela pegou na minha mão e começou a me puxar. Entramos dentro da casa e... Meu Deus, que casa! Parecia casa de revista. Acho que meu pai não mentiu quando disse que a família de minha mãe era rica.
- Elas estão ali. – a menina apontou para uma porta.
- Obrigada. – Mas ela nem escutou o meu agradecimento, já tinha ido embora.
Fui chegando perto da porta e pude escutar algumas vozes.
- É ela, eu tenho certeza!
- Mamãe, eu já lhe disse que é impossível.
- Por que é impossível? Não me venha com aquela história de novo! Jamie, eu sei que nunca conversamos direito sobre aquela época, sei que fui cruel com você, eu a julguei e a expulsei de casa. Mas... - Mas é a mais pura verdade! Ela morreu, mamãe. Morreu.
Fiquei escutando a conversa com o ouvido na porta e tentando descobrir de quem elas falavam – mas no fundo eu sabia de quem era -, escutei passos e logo me distanciei e sentei em um sofá que estava próximo. A porta se abriu e eu pude ver a imagem de uma mulher muito bonita, olhando-me assustada, e logo surgiu outra imagem, a de uma senhora. As duas ficaram me olhando como quem pede explicações. Contei tudo, só não contei que escutei a conversa. Achei mais educado dizer que eu percebi que elas estavam ocupadas e resolvi esperar sentada no sofá. A senhora era a minha avó, veio correndo até mim e me abraçou forte. A mulher ficou me encarando, balançando a cabeça negativamente.
- Olhe, Jamie, ela está aqui! Eu não lhe disse?
- Não. Não, não e não! O que você faz aqui?
- Eu... Eu vim conhecer a minha mãe. – falei, olhando para baixo.
- Pois está na casa errada. – falou, saindo da sala.
Olhei minha avó, que não parecia muito feliz. Sorri forçado e, então, minha avó me puxou pelo pulso e me levou à minha mãe.
- Jamie Carlotta Myers!
- Não me chame de Carlotta! Você e esse nome horrível que você me deu. – ela falou, com as mãos na cabeça.
- Não me importo com o que você pensa sobre esse nome! Nunca me importei.
A minha mãe ficou olhando para minha avó com os olhos arregalados e com uma expressão de quem quer muito gritar.
- Será que você poderia vir até aqui e abraçar a sua filha?
- Já disse que ela morreu. – ela disse com ódio.
- De-desculpe. Eu vou embora. – falei, saindo.
- Você vai deixá-la ir assim? – minha avó gritou.
- Vou. Ela não é nada minha. Por que eu me importaria?
Minha avó bufou e veio atrás de mim.
- Desculpe-me por ela. – disse, pegando em minha mão.
- Não, tudo bem. – forcei um sorriso.
- Fique comigo, na minha casa.
- Oh, obrigada... Mas não posso. – Lógico que podia, mas não queria.
- Certeza? Tome um chá comigo pelo menos, por favor! – neguei com a cabeça, sorrindo sem graça. - Tudo bem, então, mas, por favor, dê notícias, !
Com um aceno fraco de cabeça, concordei e saí de casa como um furacão.
Por incrível que pareça, eu não chorei, eu meio que já esperava por isso. Saí, com raiva, daquela casa e não magoada.
Olhei para os lados, pensando em que caminho seguir.


A segunda fase da minha vida

- Ei, garota. – o tal menino, vizinho de minha avó, disse.
- Eu? – falei, apontando para mim.
- Está vendo outra menina por aqui? – olhei em volta e vi que, realmente, só havia nós dois na rua.
- O que foi? – falei direta, não estava a fim de papo.
- Não quer ficar comigo lá em casa?
- E por que eu faria isso? – Tremi.
- Eu gostei de você e não parece que você tem para onde ir.
- O que te faz acreditar que eu não tenho para onde ir? – falei, arqueando uma sobrancelha.
- O fato de você ter dormido essa noite debaixo da árvore e, é lógico, pela sua cara de perdida. – sorriu.
- Mas eu nem sei quem você é! – ele estava quase me convencendo.
- Kevin Carter, prazer. – falou, estendendo a mão.
- .
- Então, , vai lá pra casa? Está ficando frio.
É, realmente estava frio. Eu não o conhecia e senti um pouco de medo, mas eu realmente não tinha para onde ir... Essa definitivamente seria a coisa mais insana da minha vida. Concordei e fomos para a casa dele. A casa de Kevin não era diferente da casa de minha mãe, era tão grande quanto e ainda mais bonita.
Ele me perguntou se eu estava com fome, eu disse que não, eu só estava cansada.
- Vamos para o meu quarto, então, lá você pode dormir.
- Onde, na sua cama? – disse, assustada com o fato de ele querer dormir comigo.
- Não se preocupe, não sou um maníaco sexual. – falou, rindo sarcasticamente.
O que eu poderia fazer? Concordei. Eu já estava dentro da casa dele mesmo. O quarto dele parecia um mundo paralelo comparado ao resto da casa, não tinha nada a ver com a decoração toda chique, o quarto dele era escuro, todo bagunçado, com muitos pôsteres de bandas antigas.
Ah, mas a única coisa que me chamou a atenção naquele momento foi a cama dele. Esqueci-me das boas maneiras e me joguei com tudo na cama, ele só ficou me olhando e rindo.
- Não! Eu não estou morta! Estou aqui. – gritei.
- ! Acorda, ou para de gritar pelo menos! – Kevin falou, cutucando-me.
- Ahn? O que foi, Kevin?
- Eu acho que você estava tendo um pesadelo. – olhei-o com cara de interrogação – ‘Não, eu não morri! Blá, blá, blá. ’ – ele disse, tentando me imitar.
Fiz uma careta e já ia voltar a dormir, quando ele me chamou.
- Já que você acordou... Faz companhia para mim?
- Mas eu ia dormir de novo. – falei, fazendo voz de criança.
- Por favor. – a voz de pedinte dele foi pior que a minha.
- Tá bom. – falei, sentando-me na cama. – O que você está fazendo?
- Nada de mais, . – ele disse, passando-me um... Cigarro? Não, não era um cigarro, era diferente.
- O que é isso, Kevin? – falei, colocando o tal ‘cigarro’ na boca. Incrível como eu era inconsequente, eu nem sabia o que era, mas já estava colocando na boca.
- Ahhh, qual é! – começou a rir.
- Idiota.
- , é só curtir o barato, beleza? – eu olhei desconfiada. – Puxa, prende e passa.
Sabe, pode me chamar de louca, mas eu enfiei o cigarro na boca e mandei ver, como o Kevin mandou. E quer saber? Foi bom.
No dia seguinte, acordei morrendo de fome, cutuquei o Kevin, que dormia no chão ao lado da cama, e ele resmungou algo como: ‘Não tem comida, pega dinheiro na gaveta. ’ Saí de casa sem nem saber onde tinha um mercado. Por sorte, a tal menininha do dia anterior estava sentada na calçada.
- Hey, você sabe onde tem um mercado?
- Tem um na rua de trás. – ela disse, apontando o caminho.
- Obrigada. – dei as costas e fui andando.
- ? – a menina gritou, vindo correndo em minha direção.
- Como você sabe o meu nome? – falei.
- Escutei a vovó dizendo para a mamãe. – ela deu de ombros.
- Eu não sei o seu. – falei emburrada.
- Penny. – disse sorridente.
- Por que me chamou, Penny?
- Para lhe dar isso. – ela tirou uma correntinha do pescoço e me entregou.
- O que é isso? – falei, olhando para o presente. – Por que você está me dando isso?
- Porque você é minha irmã. Eu passei a vida toda sem te ver e não sei quando vou te ver novamente, então isso é só pra você não se esquecer de mim. – falou, corando, e saindo correndo logo em seguida. Fiquei um tempo olhando o presente e depois segui para o mercado, eu estava com fome.
Logo quando entrei no mercadinho do bairro, vi um menino com umas roupas estranhas, com as calças largas demais... Mas, mesmo assim, ele não deixava de ser bonito. Eu realmente não conseguia deixar de olhá-lo e ele percebeu. Ele deu um sorriso e a única coisa que pude fazer foi sair andando. Mas como desastre é o meu nome do meio, eu esbarrei em uma pilha de latas de ervilhas verdes mexicanas, fazendo com que todas viessem ao chão. O mercadinho inteiro me olhou e logo começaram ‘os sussurros’. Cara, como eu odeio esses sussurros. E o pior é que ninguém teve a capacidade de me ajudar. Só sabiam rir e sussurrar. Mas ele não. O menino das calças engraçadas veio me ajudar. Ajudou-me a levantar e perguntou se eu estava bem, ou algo do tipo... Não conseguia prestar atenção em nada que ele dizia. Seus olhos e seu sorriso chamavam mais atenção.
- , prazer. – ele disse, olhando-me nos olhos.
- . – respondi um pouco tímida.
- Então, , o que você faz, além de destruir mercados? – ele perguntou simpático.
- Hum, não faço nada. – respondi tímida
- Nunca te vi por aqui... – ele coçou o queixo. – Acabou de se mudar, por acaso?
- Mais ou menos... – eu olhei para baixo.
- Como assim mais ou menos? – Oh, a carinha de curioso dele era tão linda!
- É uma longa historia. – eu o encarei por um segundo. – E eu nem sei se deveria lhe contar! – virei as costas e saí andando, deixando-o com cara de taxo.
Mas ele me deixou em paz? Não. E eu agradeço até hoje por isso.
- Eu tenho tempo de sobra, você poderia me contar. – ele sorriu, um sorriso inesquecível, sincero. O sorriso que me faria sorrir muitas vezes depois desse dia.
O olhei e pensei comigo mesma: ‘Ele parece ser tão legal e bom menino. Para quem tem coragem de dormir no mesmo quarto que o Kevin, isso não é nada. ’
- Tudo bem, deixe-me apenas passar essas comprar e depois deixá-las em casa?
balançou a cabeça concordando e, então, passamos as compras e saímos do mercado. Fui mostrando a ele o caminho da “minha” casa. Ao chegarmos à rua da casa, Kevin estava sentado na grama, como ontem. Quando ele me viu chegar, levantou-se e correu até mim.
- ! – gritou, vindo ao meu encontro – Até que enfim você chegou, achei que você tivesse se perdido.
Eu não disse nada, apenas lhe passei a comida, mas antes roubei uma bolacha de dentro da sacola. o encarava, curioso. Quando Kevin virou as costas, sussurrou no meu ouvido: “Não sabia que tinha namorado”. Eu o olhei, sorrindo, “Não tenho namorado” respondi e saí andando, atravessei a rua e me sentei na árvore grande, a que havia passado a noite retrasada.
- Bom, quer mesmo saber a minha história? – olhei para trás e vi um vermelho.
- Para falar a verdade... Eu quero mesmo é ficar com você, sei lá, conversar.
- Eu não sou uma pessoa muito interessante, ...
- Me chame de , ! – ele falou, deitando-se na grama.
- Ah, ok... – Não gostava de “”, preferia mil vezes chamá-lo de . parecia muito infantil.
- Você mora com aquele menino?
- Para falar a verdade, eu não sei... – respondi sincera.
- Como não sabe?
- Bom, minha vida nunca foi um conto de fadas sabe... – eu comecei a contar a minha vida a , não escondi nada. Era tão fácil contar essas coisas a ele! Ele parecia me entender, e o melhor: ele estava disposto a escutar. E eu realmente não sabia o que era isso. Digo, ter um amigo. Ter alguém para conversar.
Com o tempo, eu fui ficando cada vez mais amiga dele. E admito, apaixonando-me também. Eu morava com Kevin, contra a vontade de , mas passava grande parte do meu tempo sentada com o debaixo da Dolores, a árvore.
As festas de Adam, amigo de Kevin, tinham fama. Não existia um junkie em Harrow que não tivesse uma história para contar sobre elas, ou que nunca houvesse ouvido falar. Adam tinha uns trinta anos, de família rica, tinha uma casa excepcional, e drogas. Muitas drogas. Tantas que precisava dar festas para que “amigos” o ajudassem a consumir tudo. Kevin era um desses amigos e eu passei a ser também. , um dia, atormentou-me para que eu o levasse junto, e eu levei, contrariada. Não gostava de tê-lo por perto quando eu... Hm, fazia as minhas coisas. Seu olhar em mim me destruía, ele me olhava como se eu fosse tudo que ele não desejava, tudo que ele não aprovava.
- Se for para ficar aí de cara feia, pode ir para casa, . – eu disse, ríspida, terminando de cheirar uma carreia.
Ele nem respondeu, apenas desviou o olhar. Olhei em volta também, não gostei do que vi. Algumas raras vezes eu me assustava com os lugares que freqüentava. Havia pessoas espalhadas pela casa inteira, rock dos anos 80 embalando a viagem de alguns, e o mais degradante: não havia uma rodinha de pessoas, sequer, que ninguém estivesse usando drogas. Alguns fumavam, outros cheiravam, e algumas pessoas, mais escondidas, injetavam heroína. Eu via na cara de o quanto ele não queria estar ali.
- Esse seu amigo, - Gabrielle começou, ela era irmã de algum fracassado que conheci na festa passada. Tão rica como Adam, tinha os cabelos loiros compridos e se parecia com a Barbie. Eu não gostava dela. – qual a dele? – Como não a respondi, começou a se explicar – Ele não... Não veio, você sabe, se divertir?
- Ele não usa drogas. – respondi, imaginando-me arrancando cada fio de seu cabelo.
- Ele tá aqui por quê? – ela perguntou, descrente.
- Porque quis. – aquela conversa estava me entediando, olhei para que estava um pouco longe de mim parado, olhando para todos os lados.
- Você sabe que...
- Que não-usuários não são bem vindos. – eu a cortei – Sim, eu sei. Mas já vamos embora, Gabrielle. – Mas antes que eu me movesse, ela foi mais rápida.
- Ora, por quê? – disse já caminhando até . – Agora que eu vou me divertir?
Com meu cérebro debilitado pela droga, a vi caminhar até em câmera lenta. Vi-a lentamente encostar seu corpo com o dele, passar suas mãos pelo seu peito e lentamente subir uma delas pelo pescoço de . Mas foi com muita rapidez que cheguei até os dois.
- Circulando, loirinha. – falei, assim que cheguei. Ela riu com o meu , e com o que eu disse.
- Só se ele me mandar ir embora. – falou com desdém. – Quer que eu vá? – perguntou a ele, roçando, de propósito, aquelas merdas de peitos em .
- Gabrie...
- Não. – respondeu, cortando-me, e antes que ela sorrisse vitoriosa, completou – Eu vou. – virou-se para mim e me puxou pelo pulso para fora da casa, não o fiz na hora, mas senti vontade de agradecê-lo por me tirar daquele lugar imundo.
Caminhamos em silencio por alguns minutos, eu não romperia o silencio tão facilmente.
- Porra. – ele disse, parando de andar. Parei também, um pouco mais a frente.
- Quê? – perguntei, andando até ele. Ele não respondeu, sentou-se no meio fio e colocou a cabeça entre as pernas. – ? – chamei, ainda de pé, não obtive resposta – ? – disse preocupada, sentando-se ao seu lado – O que houve?
- O quê? – ele quase gritou – O que houve? – ele estava nervoso – Cacete, ! Você viu da onde eu acabei de te tirar? Será que você consegue perceber que merda era aquela festa? – Não respondi de imediato, ficamos em silencio por alguns minutos.
- Eu sei. – falei, de cabeça baixa – Mas qual é? Você queria o quê? Uma festa de debutantes? – falei, um pouco áspera. Ele bufou e respondeu:
- Isso precisa acabar. – falou, encarando os pés. – Até onde você pensa que vai fazendo isso, ahn? Você realmente acha que todas essas pessoas farão isso até, o que, os trinta anos? Acha que terão filhos? Netos? – ele parou, respirou fundo e disse, pausadamente – Acha que são ou que serão felizes?
- Você fala como se elas se preocupassem com esse tipo de coisa. – falei, quase rindo.
- Você acha que não? – quem riu foi ele – Não seja estúpida! É claro que se preocupam, mas elas têm uma visão tão deturpada de si que acham que nunca conseguirão nada disso, então... Quando não se tem nada, não se tem nada a perder.
- Talvez algumas delas não tenham nada. Não tenham a menor chance, de tão ferradas que são. – retruquei, pensando em mim.
- Sim, talvez. – concordou, e olhando para mim, pela primeira vez desde o começo da conversa disse – Mas você não. Você tem chance, você só precisa acreditar mais em si mesma, pequena.
Dei de ombros, pensando o quanto podia ser ingênuo.
- Você não sabe o que diz...
- Tudo bem. – ele riu fraco – Você pode, ainda, não acreditar em você, mas eu acredito. Eu acredito por mim e por você.
- , um dia você vai se arrepender de me amar. – falei olhando em seus olhos, e não pude deixar de perceber que arrepiou.
- Você é quem não sabe o que diz, . – ele passou o braço pelo meu ombro, trazendo-me para perto.
- Não se preocupe, um dia isso irá acontecer. E você ficará bem! Você não precisa de mim, acredite, você...
- Eu sei o que você quer dizer com tudo isso, - ele me apertou em seus braços – e é totalmente o contrário do que você disse. – abraçando-me por completo, falou olhando em meus olhos. Ele disse tão sincero, que congelei – Eu nunca ficaria bem sem você, do mesmo modo que você nunca ficaria bem sem mim.
Meus olhos se encheram de lágrimas, assustando-me, e me matando de vergonha. Escondi o rosto no peito de , que, beijando o topo da minha cabeça, fez uma piadinha:
- Você está danada pelo resto da sua vida, ! – ele riu, passando a mão em meu cabelo – Eu nunca vou te deixar em paz.
- Por que você foi à festa? – perguntei, lembrando do que Gabrielle havia me perguntado.
- Por você.
Depois disso, não disse mais nada. Estar perto de me tornava tão frágil, eu amava estar entre seus braços, amava o seu cheiro, o seu toque e a maciez do seu cabelo. Ficamos ali, sentados no chão da rua, abraçados, até o sol nascer.
Mas não era apenas de dias ruins que nós vivíamos. Havia alguns dias que e eu passávamos como pessoas normais, como qualquer outro casal de namorados de dezesseis e dezessete anos. Em alguns dias, nós éramos felizes, de verdade!
Dia dezessete de junho. Meu aniversário. Ah, mas que data feliz! Não.
Acordei com Kevin entrando no quarto com uma garrafa de vodka. Vodka boa.
- Olhe o que comprei para você! – ele disse, sorrindo – E é das boas, não daquelas merdas baratas que estamos acostumados! Feliz aniversário de dezessete, ! – ele riu. Sorri também. – Ah, o imbecil do está lá em baixo. – levantei-me, beijei seu rosto, peguei a garrafa, colocando-a em cima da cama, e desci, correndo para ver .
- Bom dia. – ele disse. Eu não respondi, corri até ele e pulei em seu colo.
- Bom dia, ! – eu ri com gosto da sua cara de susto, acho que nunca havia sido tão receptiva com ele.
- Nossa, o que você tem hoje, pequena? – ele perguntou, comigo ainda nos braços.
- Nada. – eu disse, descendo do seu colo – Só... Não sei. – eu ri, já com os pés no chão – Acordei com vontade de te amar. – gargalhei.
- É mesmo? – ele riu junto – Então, me ame, por favor.
Fiquei na ponta dos pés, passei meus braços pelo seu pescoço e o beijei. Com tanta vontade, que até se assustou, recuando por um momento, e logo depois passou seus braços pela minha cintura, colando mais ainda nossos corpos.
- Por mim, - eu disse, rompendo o beijo – ficaria assim a vida inteira.
não respondeu. Beijou-me mais uma vez e com mais paixão ainda.
- Ah, mas logo de manhã essa agarração toda na minha sala? – Kevin, O Empata Foda, disse, descendo as escadas, terminando de bolar um baseado.
- Vai à merda, Kev. – mandei, soltando do abraço. – Vamos lá pra fora.
Puxei pela mão e o levei até a Dolores, sentamo-nos na grama.
- Você nunca mais falou com ela? – ele perguntou, vendo que eu olhava para minha mãe, que carregava algumas compras de mercado para sua casa.
- E para quê? – eu disse, desviando o olhar – Como se ela quisesse falar comigo...
- Ela é sua mãe...
- E disse para todos que eu havia morrido ao nascer. – respondi, virando-me para ele.
- Ela era uma criança, , - tentei falar algo, mas ele me cortou – e quando você apareceu aqui, crescida, sem avisar... Ela surtou. Deve ter sido uma surpresa para ela. - , não. – falei, não queria pensar em Jamie no dia do meu aniversario – Por favor... – encostei minha cabeça em seu peito. Ele ficou quieto e me abraçou, começou a cantarolar uma musica que eu não conhecia, mas era linda.
- Que música é essa? – perguntei. corou instantaneamente. Arqueei a sobrancelha e perguntei novamente – Que música é essa, ?
- Eu. – ele pigarreou e se afastou um pouco de mim – Eu escrevi esses dias...
- Parece ser muito bonita. – sorri – Canta pra mim?
- Não... – falou, um pouco envergonhado.
- Ora, por que não? – cruzei os braços – Está com vergonha de mim, ?
- Me dá cinco minutos? – perguntou, e antes que eu concordasse ou perguntasse por que, levantou-se e foi correndo até sua casa que ficava na rua de trás.
Voltou com o seu violão nas mãos, sentou-se na minha frente e sorriu. Eu ia falar algo, mas ele não me deu tempo, começou a tocar, assim que abri a boca. Ele estava realmente nervoso e envergonhado. Essa música devia ser especial.
- Been all around the world, – ele começou, sua voz enchia minha cabeça, eu amava quando ele cantava. – I never met a girl that does the things you do, and puts me in the mood. To love you, and treat you right, so come here and close your eyes. - Ele sorria, e eu, aos poucos, fui achando que a música era para mim, mas parecia muita pretensão - Lie back, release your mind. And let the world fall down, while I’m by your side. – Olhando em meus olhos, ele começou o refrão – I’ll be your man, through the fire, I’ll hold your hands through the flames. I’ll be the one you desire, because I want you to understand… I’ll be your man. – Meu coração batia acelerado, eu não sabia se a música era para mim, mas desejava de todo jeito que fosse. – I can make it through the days, and years can pass away, there’s lipstick on my face, and I love the way you taste… I’m right here, so lock the door. Because you need me, but I need you more. And I don’t care about your mistakes. – Tive certeza que era para mim. – Cause they all went away when I found you. – ele ora olhava pra mim, ora encarava as cordas do violão - I’ll be your man through the fire, I’ll hold your hands through the flames, I’ll be the one you desire, honey, ‘cause I want you to understand: I’ll be your man. – Cantei com ele o refrão - I’ll be your man. – ele disse, olhando em meus olhos. Tocou os últimos acordes da música e, com o violão ainda no colo, observou-me.
- Gostou? – ele perguntou, um pouco vermelho.
- É pra mim? – perguntei, direta, com os olhos arregalados, de susto, mas não porque não havia gostava da música, mas com a possibilidade dele ter escrito algo tão bonito para mim. E ele achou que meu susto foi porque não havia gostado. Mas é claro.
- Não gostou? – arregalou os olhos também.
- Gos-gostei! – quase gritei – Adorei, ! A música é linda.
Ele sorriu largamente e tirou o violão do colo, colocando-o na grama, e veio ao meu encontro, pegou na minha mão e disse:
- Sabe aquelas noites que não conseguimos dormir, porque não conseguimos desligar a mente? – perguntou, fazendo carinho na minha mão – Sabe quando não dormimos porque só conseguimos pensar em uma só coisa? Ou alguém?
- Sei. – eu falei, sorrindo e apertando sua mão – É assim comigo, todas as noites...
- Comigo também. – ele riu – Não há um dia sequer que eu não durma pensando em você, e em te ver no dia seguinte e, um dia desses, essa música me saltou na mente, inspiração instantânea, peguei o violão e ela praticamente se fez sozinha.
- Malditos músicos! – falei, afastando-me – Falando coisas belas e, por consequência, iludindo garotinhas inocentes, desde sempre! - comecei a rir, e ele me acompanhou.
- Músicos são sinceros com os seus sentimentos. – ele deitou na grama e me trouxe para perto – Vivemos disso...
- São todos uns idiotas! – falei chorosa, para esconder que de fato estava prestes a chorar. Era tão bom saber que existia alguém que me amava, alguém que não tinha vergonha de mim, que se preocupava comigo e que me queria por perto.
- Somos mesmo! – falou sério – Somos todos uns estúpidos! Nos apaixonamos de verdade, fazemos musicas, sofremos sozinhos com o nosso violão e ainda por cima somos obrigados a ouvir a mulher que amamos nos chamar de idiota! – ele me encarava, sério. Muito sério. Fiquei olhando para ele com os olhos assustados, sem me mexer. Eu não sabia o que dizer.
- Desculpa, era brincadeira. – falei baixo, olhando para as mãos.
- Como? – ele perguntou, aproximando o ouvido da minha boca – O que disse? – ele continuava tão sério, que eu estava quase sentindo medo.
- Desc-desculpa, . – falei, mais baixo ainda.
- , - ele falou sombrio, segurando meus pulsos com um pouco de força, eu estava ficando assustada de verdade – desculpas... Desculpas não são o suficiente, eu quero... – ele parou, olhou nos meus olhos e sorriu – quero um sorriso, uma gargalhada! – e, em segundos, subiu em cima de mim e começou a fazer cócegas. Eu me debatia inteira, o que era inútil, já que era muito mais pesado que eu, era impossível me livrar dele. Aos poucos, fui perdendo a força, mal conseguia respirar de tanto que ria, acabei por desistir e deixar que me fizesse cócegas livremente.
Quando ele se cansou, saiu de cima de mim, mais ofegante do que eu, e rindo muito mais do que eu.
- Você deveria ver a sua cara! – ele ria tanto que lágrimas saíam dos seus olhos – Oh, meu Deus, você estava realmente assustada? – me irritei um pouco, mas respondi com calma.
- Sim. – até ri um pouco. – Pensei que tivesse te ofendido...
Ele riu mais ainda. Mas logo parou, quando viu que eu já não ria.
- Ok, desculpe. – sentou-se. Ele tentava, mas não conseguia parar de rir. Colocou a mão na frente da boca, como se isso fosse impedir que a risada escapasse. Ficamos quase cinco minutos assim. Calados, sentados um ao lado do outro, ele com a mão na boca.
- Hoje é meu aniversario. – falei.
- Quê? – virou-se para mim, as sobrancelhas arqueadas, parou de rir completamente.
- Hoje é...
- Eu entendi da primeira vez! – falou, virando-se completamente para mim – Por que não me disse antes?
- Não sei.
- . – ele falou, um pouco triste – Poxa... Eu... Nossa.
Fiquei olhando para ele sem entender, não sabia porque ele tinha ficado tão surpreso e até... Triste.
- Você poderia ter me dito isso antes. – falou, de cabeça baixa – Eu teria pensado em algo legal para fazermos, teria te comprado um presente... Poxa. Não queria que hoje passasse em branco. – ele estava realmente triste.
- Hey, - eu falei, aproximando-me – não precisa ficar triste! Não poderíamos estar fazendo nada melhor do que estamos e a música foi o melhor presente que você poderia ter me dado!
- Mas... Mesmo assim. – ele estava triste, mesmo! Eu estava quase rindo.
- ! – falei, com o riso entalado na garganta – Ai, Céus! – não consegui segurar, comecei a rir. – Por favor. – eu ria, sem jeito.
- Caramba! – ele ficou vermelho – Eu queria fazer algo especial, ok? É seu aniversario, ! – estava sério, e de verdade dessa vez – Você não gostaria de comemorar?
- Não... – falei, deitando-me na grama – Quero apenas ficar aqui com você, jogando conversa fora.
E foi isso que fizemos pelo resto do dia. Jogamos conversa fora, cantamos, nos beijamos, comemoramos meu aniversário, vivemos uma típica tarde adolescente normal, sem drogas, cigarros e bebidas.
era um namorado muito romântico. Quando eu dizia isso, ele apenas falava que era “muito apaixonado, isso sim” e que o romance vinha como conseqüência. Ele vivia aparecendo na casa de Kevin de madrugada, apenas porque, segundo ele, não iria conseguir dormir sem me desejar boa noite. Depois de ter escrito I’ll be your Man, escreveu varias outras músicas para mim e fazia questão de sempre cantá-las. Às vezes, escrevia que me amava em pequenos pedaços de papel e colocava no meio das minhas coisas para que eu achasse mais tarde. Ele se importava.
Um dia ele apareceu em casa de madrugada, de surpresa, como sempre, e encontrou-me com Kevin, bêbada e fumando um baseado no jardim.
- Hm, oi. – falou, chegando perto.
- Você não deveria estar na cama, ? – Kevin perguntou, sério.
- Você não deveria já ter tomado vergonha na cara e parado com essas merdas que faz, Carter? – respondeu.
- Me dê um bom motivo para eu te dar ouvidos. – Kevin falou, entre dentes.
serrou os punhos e deu um passo à frente, visivelmente irritado. Eu assisti a tudo sentada, sem entender direito o que estava acontecendo.
- O quê? – Kevin riu – Vai me bater?
respirou fundo, relaxou os braços, fechou os olhos, e olhou para mim. Despertei do transe.
- Cale a boca, Kevin. – falei, sem ao menos olhar para ele. – Te vejo lá dentro.
- A casa é minha e você não é minha mãe, não fale assim comigo. – mais uma vez serrou os punhos, ficou um pouco vermelho, e olhava Kevin, sem piscar.
- Eu disse, - falei duro e o encarei – que te vejo lá dentro, Carter.
Kevin bufou, levantou-se devagar e, pisando duro, entrou em casa.
- E que fique claro que só vou entrar porque preciso ir ao banheiro. – falou, antes de bater a porta.
- Ridículo. – disse, sentando-se ao meu lado. – Você poderia apagar isso? – referiu-se ao baseado em minha mão. Dei uma última tragada e joguei para longe. Ele bufou.
- Joguei fora, não joguei? – perguntei, quase irritada.
- Pequena, não quero te ver assim... – ele falou baixo, passando a mão pelo meu cabelo. Por reflexo, tirei-a rapidamente, olhou para mim, magoado.
Um silêncio assustador começou, eu não queria conversar, e não sabia como começar uma conversa comigo naquele momento. Porém, por mais que eu não quisesse companhia, senti-me incomodada com a situação, bati meu ombro de leve no de , e sorri. Ele não sorriu de volta e isso me incomodou mais ainda.
- Desculpe. – falei, olhando para o céu.
- Tudo bem – ele murmurou.
- Não. – eu ri, e o encarei – Não está tudo bem... – Deitei em seu colo e joguei todo o cabelo em cima dele. – Todos seus. – ele riu – Vamos, , me faça carinho!
Timidamente, ele começou a passar os dedos em meu cabelo. Fechei os olhos e comecei a apreciar o carinho. Era bom. Eu estava quase dormindo.
- Está com sono? – perguntou, suave, eu nem abri os olhos ou falei, apenas balancei a cabeça concordando. – Quer que te leve lá pra cima?
- Não. – respondi, levantando-me. Tudo o que eu menos precisava era que ele e Kevin se estranhassem de novo. – Posso ir sozinha. – falei, um pouco dura e ele recuou. Respirei fundo – Não quis ser grossa, desculpa. Quero dizer que não precisa se incomodar, consigo ir sozinha, e não quero que você e Kevin se encontrem.
concordou com a cabeça e se levantou. Tentei fazer o mesmo, mas caí. Estava tão chapada que não conseguia ficar em pé. Tentei de novo, e outra vez caí. me deu a mão e então consegui.
- Tem certeza que não...
- Tenho. – cortei-o – Pode ir para casa. – sorri para ele, a primeira vez naquela noite – Durma bem, .
Dei dois passos tortos e caí no chão. Rapidamente, estava ao meu lado, ajudando-me a levantar.
- Cale a boca e me deixe te ajudar. – falou, já me pegando no colo. Abriu a porta da casa, e Kevin estava largado, dormindo. – Como você tem coragem de dormir sob o mesmo teto que isso? – ele apontou com a cabeça para Kevin, que dormia todo espalhado pelo chão. Nem respondi. Estava muito mole para isso.
Ele entrou no quarto de Kevin, correu o olhar por todo o cômodo e esboçou um sorriso triste, desolado. O lugar parecia um chiqueiro.
- Não quer dormir lá em casa? – abri os olhos na hora, a idéia de ir para a casa do fazia meu estômago girar. Com que cara eu me apresentaria à sua mãe?
- Não. – falei, assustada. – Minha cama, por favor. – eu já estava lá há tanto tempo que chamava a cama de Kevin de minha.
Pesaroso, me colocou na cama, cobriu-me, e ficou me observando por uns instantes. Acho que pensando se eu faria muito barulho se ele me levasse à força para sua casa.
- Quer que eu fique mais um pouco? – perguntou, passando a mão no meu rosto, sua mão era quente e meu corpo gelado, causando-me arrepios. Com os olhos quase fechados, fiz que não com a cabeça.
- Não precisa. – murmurei – Passa aqui amanhã?
- Como sempre. – falou. – Boa noite, pequena. – dirigiu-se à porta.
- Eu te amo. – falei e no mesmo instante adormeci. Não consegui ouvir se ele respondeu, não ouvi se ele havia saído do quarto, não ouvi a porta batendo, não consegui ouvir mais nada. Não sei por quanto tempo dormi, mas pareceram minutos. Acordei do nada, abri os olhos e vi tudo escuro, ainda era madrugada, virei para a parede e tentei voltar a dormir, mas ouvi um soluço. Abri os olhos de novo e fiquei atenta. Ouvi outro soluço. Um suspiro e uma respiração entrecortada. Parecia alguém chorando. Olhei para onde vinha o choro. E vi uma mancha escura ajoelhada na porta do quarto. Por um instante, pensei que estava sonhando, depois imaginei ser Kevin e quase mandei tudo à merda e voltei a dormir, mas como um relâmpago, a memória de me deixando na cama para dormir me atingiu. Não. Não poderia ser ele. Por quê?
Levantei-me da cama e, devagar, caminhei até a mancha escura. Ele chorava tanto que nem viu eu me aproximar.
- ? – perguntei, com o coração acelerado – ? É você? – Ele não respondeu, apenas me abraçou, com desespero. Comecei a chorar. – O que houve? – ele não respondia. – , o que houve? – perguntei, um pouco mais alto. – ! – gritei, peguei em seus ombros e, afastando-o de mim, perguntei pela terceira vez – O que aconteceu? – chacoalhei-o de leve – Anda, me diz! – Nada. Ele estava mudo, as lágrimas jorravam dos seus olhos. estava vermelho, eu nunca tinha o visto assim – Mas que inferno, , me diga o que houve! – eu estava ficando desesperada, comecei a achar que estava tendo um pesadelo, uma bad trip por causa da maconha. – Isso não é real, não é real. – falei em voz alta, afastando-me dele. – Puta que pariu, pare com isso! – quase gritei, e voltei a chorar.
- Como você pode pisar em tudo que faço por você, me tratar com tanto descaso e desdém e depois dizer que me ama? – ele falou, um pouco rouco. Não tive tempo de responder. – Eu já não agüento mais. – disse, pausadamente – Estou enlouquecendo! Você está me matando, não vê? Quantas vezes mais eu vou ter que te carregar porque você está tão chapada que não consegue ficar de pé? – ele soluçou, o choro voltando – Porra, pequena! Eu... – o choro voltou com tudo, ele quase não conseguia falar – Eu te amo tanto! Você faz parte de mim, , e essa parte está morrendo aos poucos, por mais que eu tente salvá-la... – ficou quieto. A cabeça entre as mãos, algumas lágrimas escorrendo lentamente pelo seu rosto.
- Eu disse que um dia você se arrependeria de me amar. – falei, com uma calmaria mórbida.
levantou a cabeça e me encarou, como se eu tivesse assumido a autoria de um crime hediondo.
- Eu nunca vou me arrepender de te amar, só me arrependerei de não ter te amado o suficiente para que você largasse todas essas porcarias que te matam!
Meu coração parou. Fiquei olhando para ele sem saber o que dizer. Buscava em minha mente algo que pudesse acalmá-lo, mas não encontrava nada. Nada prestava. Então, ao invés de dizer algo idiota, eu o abracei. E as palavras começaram a serem ditas sem que eu nem ao menos percebesse.
- Calma – murmurei – Calma, meu amor. Eu te amo, ok? – falei, com sua cabeça em meu peito – Amo de verdade, não faço nada disso para te machucar – ele soluçou – mas não consigo evitar, , eu quero mudar, mas não tenho forças suficientes, gostaria de te prometer nesse momento que a partir de agora tudo mudaria, mas eu estaria mentindo. – eu passava as mãos em seu cabelo, e balançava o seu corpo, como um bebê – Sinto muito, . Mas não deixe que minha infantilidade e insegurança o façam pensar que eu não te amo, ou que você não me ama o suficiente. Acalme-se, sim? – falei, puxando seu rosto para frente, para que pudesse ver seus olhos. Ele estava tão frágil, destruído. Meus olhos umedeceram, e eu colei seu rosto em meu peito novamente, para que ele não me visse chorar. – Por favor, pare de chorar. Faça qualquer coisa, vá embora, me surre até que eu fique inconsciente, mas não chore!
- Um dia eu vou acabar desistindo de verdade, e vou parar de te carregar bêbada. – Não agüentei e comecei a soluçar como ele. Só de imaginar um dia sem ao meu lado, minha cabeça já entrava em colapso.
E assim ficamos, chorando um no peito do outro, até que dormimos de exaustão, abraçados.
Ele vivia falando que um dia ele cansaria de me carregar bêbada, e me deixaria. Eu nunca acreditei. Mas deveria. Tive a prova disse em uma noite fria quando voltava de outra festa de Adam:
- , chega. – falou, sentando-me no gramado da casa do Kevin.
- Ahn? O que foi, ? – Eu estava tão chapada...
- Eu não posso mais te ver assim. – ele se sentou ao meu lado – Não agüento mais ver você se destruir desse jeito.
- , o que você está dizendo? Se você me ama, você me ama pelo que eu sou.
- Eu te amo pelo que você era, não pelo que você está se tornando. – pensei ver uma lágrima solitária escapar dos olhos de , aquilo me machucou, mas o que eu poderia fazer? Ele não sabia como era acordar todos os dias de manhã e ser . Era um pesadelo que não acabava.
- , vem morar comigo?
- Não... Não posso.
- Lógico que pode, ! Você não gosta do Kevin, nós dois sabemos disso. Por favor, – ele faloum carinhoso – Venha morar comigo! Pode ser difícil no começo, mas... A gente dá um jeito. Eu te amo, . E eu apenas quero te ver bem, e longe dessas coisas insanas que você faz. Chega de beber até cair, de fumar maconha, – ele estremeceu - e chega de esquecer onde você está, de esquecer até o seu próprio nome. Eu quero a que eu conheci de volta.
- Eu... Eu ainda estou aqui. Continuo a mesma de sempre.
- Não, você é um rascunho do que você já foi, ! – Ok, eu sei... O que eu fazia não era nenhum exemplo. Eu sei que eu me destruía cada dia que passava... E eu sabia que não gostava nem um pouco, e olha que ele só sabia das bebidas, e da maconha... Se soubesse do resto, ele nunca mais olharia na minha cara. E muito menos me convidaria para morar com ele e seus pais. Eu tinha que ficar com o Kevin, embora não gostasse dele, era com ele que eu conseguia a minha droga. Na casa do não. Eu o amava, mas eu era fraca demais na época.
- Não, ! Eu não vou. – disse, decidida.
- ... – ele me chamou, em um sussurro – Eu... Desculpa, mas eu não posso mais. Acho melhor a gente não se ver por um tempo.
Aquelas palavras me atingiram como pedras jogadas de um prédio. Eu perdi o meu , a única pessoa que eu podia chamar de amigo. O único que se preocupou comigo. E tudo por egoísmo. Eu não queria largar as drogas, porque com elas eu esquecia tudo e não ficava remoendo o meu passado. Se eu as largasse, eu teria que sentir toda a angústia de novo. Teria que enfrentar os meus problemas, coisa que eu nunca fui muito boa em fazer...
Hoje eu vejo que não seria tão difícil, pois tinha ao meu lado. Mas eu ainda começava a usar drogas, estava na época em que elas me davam prazer e não agonia. Elas ainda não me causavam desespero, como um dia elas chegaram a causar.
Levantei-me, brava com . Brava por ele estar me abandonando. Não disse nada a ele, apenas me levantei, atravessei a rua e entrei na casa de Kevin. também não fez nada, apenas me seguiu com o olhar. E pelo que eu o conheço, ele já estava se martirizando por ter me dito todas aquelas coisas. Eu precisava ir embora. Sumir, antes que ele viesse me pedir desculpas. Antes que eu destruísse a vida dele, como estava destruindo a minha.
Olhei Kevin, que estava largado em cima do sofá com um cigarro em mãos. Mais uma vez optei pelo silêncio, subi as escadas, peguei as minhas – poucas – coisas, desci as escadas de dois em dois degraus, parei ao lado do Kevin, e apenas dei um sorriso. Ele entendeu, sorriu de volta e fez menção de se levantar para me abraçar. O empurrei de volta no sofá. Ele estava muito chapado. Dirigi-me à porta, pronta para ir embora.
- Pega dinheiro, . – Kevin disse, em um sussurro.
- Obrigada. – eu não tinha como recusar, eu, de fato, não tinha dinheiro algum – Tchau. E obrigada por tudo.
Dessa vez, eu não tive como impedir, ele se levantou e veio até mim.
- Você não deveria me agradecer, você foi a única que me agüentou por mais que uma semana. – ele disse, olhando para baixo. Senti-me culpada, afinal, dizia a quem fosse que ele era um porre. – Vou sentir a sua falta, . – Eu também sentiria falta dele. Talvez eu gostasse dele, mais que eu pensava.
- Eu volto.
Falei e abri a porta. Lá estava , parado, como se estivesse decidindo se tocava a campainha ou não. Passei por ele sem dizer nada e comecei a subir a rua.
- Você sabe que nós dois podemos sair dessa cidade e correr de tudo para sempre, hã? – ouvi a voz de gritar.
- Eu sei que em algum lugar, de algum jeito, nós ficaremos juntos. – gritei de volta, virei a esquina e comecei a correr.
Doía deixar , e até mesmo Kevin. Eles foram o mais próximo que eu já havia estado de uma família. O era meu pai, e o Kevin meu irmão mais velho inconseqüente.
Mas eu precisava deixar Harrow, deixar tudo que eu conhecia.


A terceira fase da minha vida

Desci do trem e pude sentir o meu rosto ser cortado pelo frio que fazia naquela noite. Ótimo, eu não tinha para onde ir e, para ajudar, fazia um frio horrível. Ah, começou a chover também... Apertei o meu casaco contra meu corpo, na intenção de me aquecer, o que não ajudou, já que aquele casaco era tão velho e puído, que mais parecia um pano de chão.
- Ei! – Ouvi um grito estridente vindo de um beco escondido. – Onde você pensa que vai? Cadê o meu dinheiro?
Vi a sombra de um homem sair de dentro do beco.
Fiquei parada, pensando no que eu faria da vida. Talvez sair daquele jeito de Harrow não tivesse sido uma escolha muito inteligente.
- Você poderia me ajudar? – uma voz feminina me perguntou.
- Ahn? – disse, virando o rosto, procurando pela dona da voz.
- Aqui! – ela balançou a mão. – Aqui no chão.
Fui até a tal garota que estava sentada no chão, encostada em uma lata de lixo, com a roupa rasgada e com a maquiagem toda borrada.
- Você está bem? – eu perguntei preocupada, ajudando-a a levantar.
- Parece que eu estou bem? – ela riu irônica.
- Quer ajuda para o quê? – eu perguntei ríspida.
- Você pode me dizer onde estamos? – ela me olhou, confusa.
- Bom, não sei exatamente... Mas estamos perto da King Cross, se isso te ajuda... – eu disse, mais confusa que ela.
- Er, isso não é bom! Não é mesmo. – ela murmurou, levantando-se. – Como eu voltarei? Bloody Hell! - ela parecia falar sozinha e eu não tinha a menor vontade de perder tempo com uma maluca.
- Tchau. – eu disse simplesmente e virei as costas, preparando-me para ir embora.
- Me espera. – ela gritou, alcançando-me. – Para onde você está indo?
- Não sei...
- Vamos! Pode me dizer, não vou te matar ou algo assim! – ela riu alto. - Podemos tomar uma cerveja, o que acha? – ela perguntou, apontando com a cabeça para um pub um pouco mais à frente.
- Obrigada, mas... – eu sorri sem jeito, queria muito aceitar, tomar uma cerveja e fumar um cigarro. – Não tenho um real.
- Sem problemas! – ela sorriu e tirou de dentro do sutiã um maço de dinheiro. – Por minha conta! – sorri como ela e, sem pensar duas vezes, segui-a até o pub - Qual seu nome?
- , e o seu?
- Lilá. – sorriu. - Duas Heineken, cara. – ela gritou do balcão para um rapaz espinhento. – Hm, e aí, ? – encarei-a, não sabia o que dizer, muito menos o que ela queria ouvir. – Quem é você? – ela quase gritou. – O que faz aqui em Londres?
- Eu. – pigarreei. – Hm, não sei. – Quem eu era? Eu não fazia idéia. – Vim para Londres, digo, estou em Londres porque... – olhei em volta, estava nervosa. – Eu... – beberiquei a Heineken. – Acho que...
- Você não faz a menor ideia, não é mesmo? – ela riu displicente, acendendo um cigarro. Concordei levemente com a cabeça. – Bem vinda ao clube! – inconscientemente, eu sorri e brindei minha garrafa com a dela. – Tem lugar para ficar?
- Não. – eu ri. – Saí de casa sem pensar... – estava me sentindo mais à vontade. – Arrumei minhas roupas e saí correndo, quando vi, estava aqui.
- Gosto de gente como você. – ela disse séria. – Gente de coragem!
- Não sei se sou tão corajosa... – arqueei a sobrancelha. – Sou apenas irresponsável.
- Melhor ainda! – ela riu. – Isso te torna muito mais corajosa! Você sabe que está errado, sabe que provavelmente vai se ferrar, mas mesmo assim você se arrisca! Cara, gosto disso em alguém. – sorri e não disse mais nada. Ficamos em silêncio por um tempo, só se ouvia algumas pessoas conversando no bar quase vazio. Lilá quebrou o silencio.
- Sabe, tenho uma amiga como você... – começou, acendendo outro cigarro. – Ela saiu de casa para seguir uma banda de rock qualquer quando tinha treze anos e, bom, nunca mais voltou. – Lilá riu. Eu acompanhei sua risada, mas admito que não ri com tanto entusiasmo. – Bloody Hell! – gritou de repente e se levantou da cadeira como se estivesse pegando fogo. – Estava falando de você agora!
Lilá estava abraçada a uma menina alta, muito magra, mas não de aparência doente, apenas muito magra, tinha cabelos volumosos e cacheados, muito vermelhos, eles caíam até a sua cintura. Usava uma blusa cinza curta, mostrando a barriga, e uma calça preta de tecido parecido com couro, botas de saltos enormes e batom vermelho.
- Foxxy... - Lilá a pegou pelo braço e trouxe até mim. – Essa é a . - Encarei Foxxy, parecia que ela não pertencia àquele lugar, ela era diferente, havia algo nela que me intrigou. Quando peguei sua mão, cumprimentado-a, senti como se alguma coisa houvesse mudado profundamente e irreversivelmente na minha vida. – O que faz por aqui, Fox? – Lilá perguntou, depois de nos sentarmos.
- Estava atrás de uma vadia que disse ter interesse no apartamento. – Foxxy sorriu forçado, praticamente um rasgo em seu rosto. – Queria entender por que marcam comigo e depois somem! Ainda vou pegar uma delas e...
- Fox! – Lilá disse do nada, cortando-a, a menina quase não cabia dentro de si. – Fox! A ! Ela precisa de um lugar para ficar! Não é mesmo? – perguntou, virando-se abruptamente para mim, pegando-me de surpresa.
- Sim. – disse em um murmúrio. – É, preciso.
Foxxy me encarou. Olhou-me dos pés à cabeça com uma expressão estranha, mas não demonstrava desagrado, nem muito menos que gostava do que via.
- De onde você a conhece? – perguntou para Lilá sem desviar o olhar de mim.
- Acabei de conhecê-la! – Lilá gargalhou. – Mas não tem problema, certo? É ainda melhor! – parou de rir e segurou no ombro de Foxx. – Ela não é daqui, Fox, não é como essas vadias folgadas que estamos acostumadas.
Foxxy concordou levemente, um movimento por pouco imperceptível, e voltou a me encarar.
- Se mudaria quando? – perguntou para mim, seus olhos correndo todo o meu rosto, guardando cada detalhe.
- Agora, né? – Lilá disse, batendo com uma das mãos na coxa. – Fox, ela não tem outro lugar para ir!
- Tem emprego? – Lilá bufou.
- Ela acabou de chegar, Foxxy! – a garota estava perdendo a paciência.
- Será que você pode calar a boca? – perguntou Foxxy, encarando-a. – Deixe-me ouvir a voz dela, por favor! – com um sorriso debochado, Lilá voltou à sua cerveja. – Tem emprego? – ela repetiu a pergunta.
- Não. – falei, corando de leve, e, admito, tremendo.
- Olhe... - Foxxy começou, um pouco mais relaxada, tomando um gole da cerveja de Lilá. – O lugar não é grande... Você poderá dormir no sofá. – sorriu. – Não aceito animais e muito menos homens dentro do apartamento, ok? – ela parou por um momento. – E, bom, eu estava procurando alguém para dividir o aluguel... – antes que ela terminasse a frase, cortei-a.
- Não se preocupe! – falei rápido, quase embolando as palavras. – Arrumo um emprego logo, se não, te garanto que vou embora.
- Por aqui todas as garotas trabalham com uma só coisa.
- Cale a boca, Lilá! – Foxxy quase gritou e olhou rispidamente para ela. – , né? – concordei com a cabeça. – Em relação a isso, sem problemas, te darei um tempo para se ajeitar, não é? É assim que dizem, certo? – riu. – Se ajeitar. Isso.
- Foxxy? Hm, nome interessante. – eu disse baixinho, depois de um tempo em silêncio, na esperança de puxar assunto com Foxxy, sem deixar transparecer que ela me intimidava.
- Não! – ela riu alto. – Esse não é meu nome... E esse é um segredo que eu jamais direi. – ela riu alto.
- , eu... Sou uma prostituta. – disse de repente, olhando-me nos olhos, Lilá quase engasgou. – Ela também é. – apontou com a cabeça para Lilá, que agora tossia violentamente.
- Hm. - eu fiquei sem jeito. – Eu, bom, ok. – sorri amarelo, não por serem prostitutas, mas pelo modo como ela disse, parecia querer dizer aquilo desde a hora que entrou no bar, ela praticamente “vomitou” a palavra, disse rápido como se fosse se arrepender. – Digo, não me importo com isso.
- Será que conseguiremos tirar esse discurso hipócrita dela com o tempo? – Foxxy virou-se para Lilá e perguntou em bom som, como se eu nem estivesse ali ouvindo. Lilá riu.
- , não leve tudo o que a Fox diz a sério, ok? – olhou para a amiga de jeito brincalhão. – Não precisa assustar a garota desse jeito. – as duas riram e eu fiquei com cara de trouxa, apenas observando.
Em alguns minutos, a atmosfera mudou, Foxxy se mostrou um pouco mais receptiva, fez piadas, perguntou da minha vida, contou um pouco sobre ela e ria alto de Lilá cada vez que essa fazia alguma idiotice por estar bêbada. Horas, cervejas e risadas depois, Foxxy tocou minha mão e disse calmamente.
- Vamos? – já estava se levantando, demorei a entender para onde iríamos, pisquei algumas vezes e me senti hipnotizada pelos seus cabelos vermelhos, levantei-me sem saber direito o que fazia e quase caí quando Lilá passou por mim tombando e rindo, fazendo-me sair do transe.
Olhei em volta, reconhecendo o lugar onde estava, e parei o olhar em Foxxy sorrindo para mim, caí em mim e fiz que sim com a cabeça, concordando que fôssemos para casa, e ela me puxou pela mão, andando depressa, levando-me para uma nova vida, uma nova fase. Foxxy era mais velha que eu, já tinha 21 anos e morava sozinha em um pequeno apartamento, em um bairro afastado do centro de Londres. Lembro-me como se tivesse sido ontem que entrei lá pela primeira vez. Ele quase não tinha móveis, era meio vazio, mas tinha uma aparência muito aconchegante, era de apenas um quarto, portanto, eu dormiria na sala, como Foxxy disse quando nos conhecemos. O quarto da Foxxy era uma zona. Roupas para todo o lado, alguns copos usados com cigarros dentro, pratos com pizzas já velhas... Ela não era a rainha da limpeza, mas eu também não era. Não me importei. Com o tempo, comecei a perceber que eu e ela tínhamos muitas coisas em comum. Ela não tinha família como eu, não tinha amigos e estava sozinha. Era teimosa, orgulhosa e egoísta como eu. Fugiu de uma cidade pequena no interior da Inglaterra para ir atrás do seu sonho de conhecer o Steel Dragon e de dormir com pelo menos um dos integrantes. Acabou vindo morar em Londres quando seu sonho fracassou. E era tão viciada quanto eu. Talvez isso tenha sido o que mais gostei nela. Afinal, eu não teria que fingir ser uma pessoa sem vícios e esconder a minha droga. Eu podia dividi-la com a Foxxy. Naquela época, eu via isso como ter ganhado na loteria.
Após uns quatro meses morando com a Foxxy, eu comecei a sentir certa curiosidade pelo que ela fazia para ganhar a vida. Comecei achar interessante e empolgante. Diferente do que eu pensava sobre isso algum tempo antes. Eu achava excitante poder dormir com um cara novo todas as noites e ainda ser paga para isso. E, além do mais, os empregos cretinos que eu arrumava como garçonete ou coisas do tipo, chateavam-me terrivelmente.
No dia 7 de janeiro de 2006, fiz o meu primeiro programa. Lembro da data até hoje. Perdi minha “virgindade” naquele dia e, embora eu não soubesse, outra fase começava e eu estava prestes a perder outras coisas.
Algum tempo depois, uns dois meses, eu estava com a Foxxy na Avenida Jean Lewis, onde nós fazíamos ponto. Já fazia um bom tempo que estávamos lá, e nada. Quando um Volvo prateado parou um pouco longe de nós e buzinou. Foxxy olhou para mim, sorriu de lado e, com a cabeça, mandou-me ir em direção ao carro. Era sempre assim, digo, o primeiro cliente era sempre meu. Ela dizia que preferia ficar sozinha esperando o próximo, a me deixar sozinha.
Eu caminhei até o carro com o meu melhor rebolado. Mal cheguei perto do Volvo e a porta se abriu, não pensei duas vezes e me sentei, olhei para o lado e vi um dos homens mais bonitos que já havia visto. Ele era jovem, devia ter uns 20 anos, tinha os cabelos pretos e lindos olhos azuis. Ele sorriu tímido e ligou o carro. Eu não disse nada. Apenas fiquei olhando para frente com as mãos nos joelhos. Aquele menino tinha me deixado estranhamente e incrivelmente tímida. Ele parou o carro em um beco escuro, não muito longe da Avenida Jean Lewis. Ele apenas ficou me olhando sem dizer nada, passou a ponta dos dedos pelo meu braço e sorriu. Virei-me de frente para ele e passei as mãos pela perna dele, fazendo-o arrepiar. Ele passou as mãos no meu cabelo, depois pelo meu rosto e escorregou para o meu pescoço. Pegou o meu rosto com delicadeza e se preparava para me beijar. Mas eu não podia beijá-lo. Beijo é muito pessoal. Apaixonante. E eu não podia me apaixonar. Desviei o rosto e comecei a beijar-lhe o pescoço, peguei as mãos dele e as posicionei em minha cintura, ele me apertava como se tivesse medo que eu fosse embora. O menino me empurrou e começou a beijar o meu colo, logo depois tirando a minha blusa e passando as mãos pelas minhas pernas. Em praticamente três meses que eu trabalhava com isso, eu nunca havia tido um cliente assim. Ele me beijava com urgência, passava as mãos por mim com desejo, mas fazia eu me sentir bem. Pela primeira vez, eu fiz o meu serviço com prazer. E não pelo dinheiro. Eu tinha gostado.
Matthew morava em um bairro chique de Londres, passava pela Avenida Jean Lewis para “me ver” pelo menos uma vez por semana, às vezes até duas. Ele era um menino doce e tímido. E eu adorava saber que, pelo menos uma vez por semana, eu teria um cliente que valeria à pena. Eu gostava dele. Foxxy vivia me avisando que isso não daria em boa coisa, que eu ainda iria me arrepender de tudo isso.
Já fazia cinco meses que eu havia conhecido o Matthew, eu estava parada na esquina da Jean Lewis com a Rua Jack Lee Hale, quando avistei o Volvo prateado do Matt. Aproximei-me e vi que além de Matthew havia outra pessoa dentro do carro. Subitamente parei de andar. Matt buzinou e eu continuei parada. Então, ele saiu do carro e veio até mim, encarando-me. Puxou-me pela mão e disse que sentia muito, mas que um amigo dele insistira em acompanhá-lo até Londres naquele dia. Olhei-o assustada, não tinha gostado disso! Quem era esse tal amigo? Não iria fazer um programa com dois caras ao mesmo tempo. Não mesmo.


A quarta fase da minha vida

O tal amigo de Matt abriu a porta do carro e caminhou até Matthew e eu. Eu encarava o chão, sem dizer nada. Estava magoada com o Matt. Nunca pensei que ele, logo ele, fosse me tratar como uma prostituta. Porque era assim que eu estava me sentindo. Mas, afinal, era o que eu era... O que mais eu poderia querer? Matt não era o meu príncipe.
- Oi...? – o outro menino murmurou.
Olhei para a pessoa que se encontrava ao meu lado, Matt, e sorri irônica, virando-me para cumprimentar o “segundo cliente".
Meu coração parou, minha garganta secou. Eu não tinha o que dizer! Eu não sabia o que dizer. Não podia acreditar.
- Oi, . – ele falou, sorrindo, e mais alto do que da última vez.
Era o meu . O meu único amigo. Ele estava lá, na minha frente. Mesmo depois de quase um ano, ele continuava lindo como sempre. Aquele olhar aconchegante, aquele sorriso meigo e sincero que fazia o meu estomago dar pulos de excitação. Eu não podia acreditar.
- Er, oi... – eu murmurei, sentindo as minhas pernas moles. Sim. Eu sempre amei esse homem, desde o dia em que derrubei uma lata de ervilhas verdes mexicanas no mercado e o conheci. E sim. Eu ainda pensava nele todas as noites. Às vezes, pegava-me chorando de saudades e de arrependimento.
- Você... Você está diferente. – ele disse, sorrindo sem graça.
- Você continua o mesmo, . – Como era bom dizer o nome dele em voz alta!
- Err... O que tem feito, ahn?
- Ahn, você sabe... – olhei para baixo. – Me virando como sempre. Como andam as coisas em Harrow?
- Honestamente, não sei! – ele riu. – Me mudei de Harrow nem um mês depois que você foi embora. Estou morando em Essex, mas estou em Londres por um tempo.
- Comigo. – disse Matt.
- Temos uma banda. – disse.
- Oh, que legal. – murmurei. – Qual o nome?
- and the Pussycats. – disse triunfante, estufando o peito de orgulho.
Fiquei pasma e olhei para Matt, espantada.
- Calado, ! – Matt lhe deu um tapa na cabeça. – O nome é Ugly Truth.
- Ugly Truth? – Mas que diabos de nome é esse?
- Eu queria McFLY...
- McFLY é um nome ruim! Nossa banda não teria sucesso. Não tem impacto suficiente. – Matthew estava prestes a perder a paciência, eu podia sentir.
- Tanto faz. – disse.
Eu ainda não podia acreditar que o estava na minha frente. Sorrindo da forma infantil como sempre sorriu. Céus, eu senti falta disso. Muita falta.
- Oh, eu senti tanto a sua falta! – não pude me conter, o meu coração gritava por ele, minha pele pedia contato. Abracei-o forte e fui abraçada de volta. Com carinho! Há tempos não era abraçada assim.
- Senti sua falta também, pequena. – ele disse simplesmente e direto. Eu pude sentir o sentimento nessa única fala, eu sentia o amor e o carinho. Ter ele por perto é tão bom.
Meus olhos cheios de lágrimas piscaram para ele, eu tinha tanta coisa para dizer! Tanta coisa para explicar. Eu tinha que pedir desculpas.
- Eu... – olhei para baixo. – Eu tenho tanto para exp...
- Hey, depois. – ele me cortou e me abraçou mais forte ainda.
Pelo canto dos olhos, eu vi Matt nos encarando. Matt. Como eu me esqueci dele?
- Você, er, quer... – apontei com a cabeça o Volvo prateado de Matt.
- Não. – os dois responderam.
- Você sabe? – perguntei ao . – Digo, como eu conheci o Matthew?
O menino não respondeu. O silêncio, às vezes, diz muito. Encarei , virei as costas e comecei a andar pela Avenida. “O ” havia mudado.
- . – ele gritou. – , não me dê as costas de novo. Por favor.
Parei de andar subitamente.
- , você sabe o que eu faço?
- Sim, você... – ele abaixou o tom. – Você é...
- Uma PROSTITUTA! – eu gritei e me virei para encará-lo. – Eu sei o que aquele silêncio significou! Já me deparei com ele algumas vezes. Mas quer saber? É o que eu sou. E se ser uma prostituta me faz ser menos importante para você, sinto muito.
- , não é isso. – ele falou, medindo as palavras. – Eu não quis que você entendesse desse modo!
- ...
- Não. Você sabe que não é isso! – ele disse, aproximando-se. – Eu só... Eu me assustei, ok? Ser uma... – eu o encarei. – Prostituta não é algo que eu imaginei para você.
- E o que você imaginou para mim, ? – eu ri. – Uma casa amarela com cerca branca, um labrador chamado Bob, dois filhos inteligentes e um marido de sorriso encantador?
Ele corou e encarou o chão sujo por um tempo.
- Quase isso. – ele murmurou. – Tirando a cor da casa, prefiro azul.
Soltei um dos braços ao longo do corpo e coloquei a bolsa no chão, senti um peso enorme nos meus ombros.
- , você sabe que esse estilo "família perfeita dos anos 50" não funciona comigo.
Olhei nos olhos dele e vi refletida a minha grosseria. Eu havia o magoado. Como isso aconteceu? Há poucos minutos, eu estava protegida pelos braços desse homem! Agora eu só quero correr. Correr de ter que enfrentá-lo, de contar a ele tudo o que aconteceu comigo, de me explicar. Correr do choque de saber que ele queria ficar ao meu lado, mas que eu não poderia fazer isso. Eu não posso amar o . Não sou o tipo de pessoa que constitui família. Eu apenas procurava um motivo, qualquer um, para poder fugir disso tudo.
Dei alguns passos para trás e me virei, novamente, para seguir pela avenida. Quando eu já estava a alguns metros de distancia deles, um carro parou e abriu a porta e, com uma última olhada na direção de , entrei e me sentei com o sorriso mais falso que a angústia me permitia dar. O que diabos eu estava fazendo? Eu estava deixando o para trás pela segunda vez! Meu coração doía, minha mente era um turbilhão. Por um lado, eu realmente achava ótimo me distanciar de , mas eu sabia que sentiria a sua falta sempre e que nunca o esqueceria.
Com os scarpins vermelhos em uma mão e com a bolsa arrastando no chão na outra, eu caminhava de volta para casa, mais um pouco e o dia nasceria. Eu sempre achei isso bastante engraçado, enquanto eu voltava para casa destruída, como se houvesse passado a madrugada inteira comemorando, algumas mulheres passavam por mim arrumadas com pastas. Eu pensando em quanto ganhei durante a noite e elas com contratos e reuniões na cabeça. Pensando bem... É triste, não engraçado. Mas eu gostava dessa vida.
Às vezes, eu me perdia em meu pequeno mundo, ficava pensando nos desfechos que minha vida poderia ter tido. E era esse o fim, drogada e prostituída, que me parecia o mais plausível. Minha vida sempre foi um grande clichê. Oh, a pobre menina sem pais, que se afunda nas drogas como fuga da realidade e que acaba vendendo o corpo para pagar pelo vício. Esse era o meu fim clichê para a minha vida clichê. Às vezes, eu gostava de agir como se estivesse em um filme. Sei as falas de Uma Linda Mulher de cor até hoje. Havia momentos em que eu me sentia como a Julia Roberts. Mas logo acordava quando me dava conta de que não tinha um Edward, nada de Richard Gere para me salvar. Eu nunca seria a princesa salva na torre mais alta do castelo. Foxxy, às vezes, partilhava desse pensamento comigo, ela se via mais como Christiane F., totalmente auto-destrutiva. E eu concordava com ela, ela era aquele tipo de pessoa que você vê na rua e pensa: morrerá jovem.
Esse tipo de pensamento sempre acabava me levando até a Lady C, eu mandava um, cheirava uma carreira e me sentia como a mulher maravilha, nada me afligia.
Naquele dia, minha frustração por saber que não poderia mudar o meu destino e a mágoa de abandonar mais uma vez, fez com que eu mergulhasse em um poço sem fim, um lugar onde eu jamais pensei que chegaria. Eu não conseguia pensar direito, tudo estava embaçado, olhei-me no espelho e não me reconheci, não pude enxergar a pessoa que eu pensava que era. Com choque, percebi que eu nunca soube quem eu era.
Foxxy entrou no quarto como um furacão.
- . - ela disse, quase gritando. – Se o Vincent vier me procurar, diga que você não sabe onde estou, ok?
- Foxxy. – eu comecei.
- Não tenho tempo! – ela gritou. – Ah, esconda isso! – passou-me um pequeno saco transparente com algumas pílulas rosa. – Vamos nos divertir essa noite com essas belezinhas, hã. – ela riu e saiu batendo a porta.
Encarei o pacote que segurava e sorri. Pílulas não era o meu lance, sempre ficava mal após usá-las. Geralmente, eu tinha alguns pesadelos e colocava o estômago pra fora, literalmente. Ah, sem contar com a depressão que vinha como uma bomba.
Tomei duas das pílulas e deitei no sofá, fechei os olhos e tentei me esconder no meu pequeno mundo. Mas ele estava em guerra, melhor, estava em apocalipse. Pela primeira vez, comecei a perceber as besteiras que estava fazendo. Por que eu não podia ficar com o ? Por que eu não podia começar de novo? Não me faça perguntas difíceis. Peguei outra pílula e engoli em seco. Senti minha garganta rasgando, ela não queria descer e eu não deveria ter insistido.
Um pequeno pássaro parou na janela da sala, de frente para o sofá, fiquei observando-o por um tempo, por que eu não posso ser livre assim? A palavra morte me veio à mente, talvez se eu morresse, eu poderia ser livre assim... Mas eu era muito egoísta para sequer pensar em suicídio. O pássaro começou a cantar e, consequentemente, a me irritar. Levantei-me de supetão e caminhei até a janela. Mas, antes de ao menos poder chegar à janela, senti meu corpo amolecer e eu parecia pesar uma tonelada, caí no chão e por lá fiquei. Minha língua estava pastosa e grudada no céu da minha boca. A pior sensação possível. Senti uma bola de fogo se formar em meu estômago e explodir pelo meu corpo, senti todo o meu corpo tremer, eu parecia pegar fogo e congelar ao mesmo tempo. Deitei-me no chão e fechei os olhos, apenas querendo que parasse. Um segundo virou uma eternidade. Agarrei o pé do sofá, como que procurando forças e, com os movimentos bruscos que eu fazia, meu celular caiu, fazendo barulho no chão, barulho esse que quase fez minha cabeça explodir. Quando senti a bola diminuindo, peguei o celular e disquei o número de Matt, o primeiro nome que me veio à cabeça. Mas não foi sua voz que ouvi.
- ? – perguntou.
- . - eu gaguejei. – , preciso de ajuda!
- O que foi? – ele praticamente gritou do outro lado da linha. – , o que foi? Onde você está?
- Doheny Hotel. – eu ofeguei, a bola estava voltando. – 452.
E desliguei o telefone. O meteoro dentro de mim explodiu de vez, devastando tudo e, então, eu apaguei.
Eu via um ponto de luz distante, como se estivesse dentro de um túnel e pudesse ver o caminho para a saída. Oh, não. Não sou estúpida! Sei muito bem que é melhor não ir para a luz. Apertei os olhos e a luz sumiu.
- ? – uma voz disse rouca. – , você está me ouvindo?
Eu morri. E por causa de algumas pílulas estúpidas!
- Acho melhor eu chamar alguém. – a pessoa disse e eu abri os olhos.
- É assim que o céu é? – eu falei, observando como tudo era branco. – Mas sempre achei que eu fosse para o, hm, infer...
- !- olhei em direção à voz e vi . – Você não morreu.
- Onde eu estou?
- No hospital. – ele disse. – , nós precisamos conversar.
Eu o encarei, tentando adivinhar os seus pensamentos... Mas eu não precisava ser uma vampira e ler os pensamentos de naquele momento. Eu sabia o que estava por vir, ele iria soltar um sermão enorme sobre a minha vida e o quanto foi inconsequente eu tomar aquelas porcarias e blá, blá, blá. Mas ele nem teve chance.
- , qual é a sua, hein? – Foxxy entrou no quarto, seus cabelos ruivos chicoteando seu rosto. – Sério, qual... É... O... Seu... Problema...? – ela disse pausadamente.
- Eu, eu acho que...
- Fica na sua aí, almofadinha! – ela cortou o . – Quantas, QUANTAS vezes nós já combinamos que só faríamos essas coisas quando estivéssemos juntas? Porra, !
- Foxxy... – eu comecei. – Não sei o que me deu, me desculpa.
- Você estava pensando naquilo de novo, né? – ela disse e olhou rapidamente para o , que estava encostado no pé da cama, observando-nos. – , já disse que...
- Eu sei, eu sei. – falei, pondo um ponto final no assunto.
- ? – me chamou baixo.
- Olha, cara, eu acho que você não é mais, er, necessário. – Foxxy o encarou, caminhando até a porta. – Obrigada por ter trazido a ao hospital, obrigada mesmo. – ela juntou as mãos em reza. – Mas eu já estou aqui, ela já acordou, então... Até depois.
me olhou de canto de olho, creio que esperando que eu falasse alguma coisa, mas o que eu poderia dizer? "Não, , fique! Não vejo a hora de você começar a se meter na minha vida e nos meus problemas! Sério, quero muito uma bronca agora." Bom, acho que não. Apenas fechei os olhos e só os abri quando ouvi a porta bater.
- Pô, que cara chato! – Foxxy disse, sentando-se na beira da cama. – Eu já achava o Matt um almofadinha irritante, mas esse ... Bloody hell.
Senti vontade de dizer à Foxxy o quanto o poderia ser legal, que ele não era um almofadinha... Mas eu simplesmente não tinha forças, só deixei que ela falasse e falasse. Era sempre assim, digo, nossas conversas eram monólogos, onde apenas ela falava e eu escutava. Eu realmente gostava disso, sempre gostei de ouvir os outros, uma vez me disseram que quem ouve muito, tem dificuldade em se fazer ser ouvido. E isso era verdade no meu caso. Não que eu não tivesse alguém para me ouvir, pois podemos fazer isso com o cara da banca de jornal da esquina... O meu problema é falar. Não me abro com ninguém desde, er, sempre. Acho que, em algum momento, eu cheguei perto de fazer isso com o ... Por que sempre está em meus pensamentos, hã? Por que não sou capaz de esquecer esse menino por um tempo?
Pensando em seu sorriso, adormeci. A voz de Foxxy se tornou um sussurro.
Não sei por quanto tempo fui capaz de sonhar, só sei que, antes mesmo de chegar ao fim do meu conto de fadas, fui acordada pela enfermeira. Meu conto de fadas nunca teria fim, nem mesmo em sonhos, literalmente.
- Em alguns minutos, o médico virá ver como a senhora está e se tudo estiver bem, estará dispensada. – a mulherzinha de branco disse e saiu pela porta.
- Ufa, até que enfim! – Foxxy riu. – Essa decoração branca me dá nos nervos!
- Tudo te dá nos nervos, Fox! - ri. – Estou com fome...
- Saindo daqui, passamos no Green Club.
- Com que dinheiro, Foxxy?
- Ah, o Julios dá um jeito. – ela riu.
- Estou cansada desse tipo de coisa...
- Que coisa? – ela perguntou, arqueando a sobrancelha.
- Isso, Fox! – sentei-me na cama. – Usar as pessoas! Viver sem limites... Sem responsabilidades. Viver por viver.
- ... – ela sentou no sofá encardido. – Não quer mais viver comigo? É isso? O que eu faço por você não é mais o suficiente, certo? Agora que esse apareceu, é para os braços dele que você quer correr à noite.
- Foxxy! Não é isso! – disse. – Lógico que não é isso! Eu só acho que nós duas podemos mudar... Juntas. Está na hora de ter uma vida de adulto, não acha?
- Não. – disse, olhando para baixo. – Não acho, .
- Foxxy...
- Quer saber? – ela se levantou, encarou-me e saiu pela porta. Nem ao menos terminou a frase.
Logo em seguida, o médico entrou sorridente e com uma prancheta em mãos.
- Você está quase cem por cento, ! – ele sorriu. – Se recuperou muito rápido, parabéns. – sorri de lado. – Deixe-me só assinar a sua alta e você está autorizada a sair, ok? – sorri mais ainda, eu não via a hora de poder ir embora. – Ah, só mais uma coisa... Não estou aqui pra te passar sermão algum, mas é muito ruim, para não dizer triste, ver uma menina tão jovem sendo internada com princípio de overdose... Você tem uma vida inteira pela frente, muitos sonhos a serem realizados, muitas metas a serem conquistadas... Dê uma chance a você mesma, .
Eu não disse nada, nem vi de onde veio tudo isso. Apenas ouvi, sorri e concordei, como sempre fazia alguém me amolava.


A quinta fase da minha vida

E mais uma vez a cena se repetia. Lá estava eu andando descalça na rua de casa... Mas dessa vez era noite, eu voltava para casa junto com as mulheres bonitas e com pastas.
No minuto em que vi aquele carro preto, que eu nem ao menos sabia o modelo, meu coração parou. Eu podia não saber o modelo, mas sabia a quem pertencia, algo dentro de mim me dizia, alertava-me. . Parei de andar quando cheguei ao lado dele e quase sorri.
- . – ele disse baixo. – Essa, er, vida que você leva... , isso não está certo! – quase explodiu, acho que ele estava se preparando para dizer isso há horas, talvez dias.
- E você acha que eu não sei? – eu ri desgostosa. – Mas é o que eu tenho, o que mereço, .
- Não! Você não merece isso! – tocou minhas mãos de leve. – É tão difícil para você entender que eu te amo e faria tudo por você? Que tudo que quero é poder te ter ao meu lado? , mais uma vez, eu estou te pedindo para vir ficar comigo. – tinha um jeito tão apaixonado de falar...
Olhei para o céu, ele parecia estranho naquela noite, não se parecia com o céu de Londres, a lua estava muito grande e as estrelas brilhavam muito intensamente.
- Por favor, . – ele disse, fechando os olhos.
Olhei para a janela do quarto onde eu e Foxxy morávamos, a luz estava acesa, ela devia estar em casa. Fazendo o quê? Imagine o que ela deveria estar fazendo... Ah, não, eu cansei disso. Não quero mais. Serei livre como o pássaro que eu vi hoje, ontem ou anteontem. Não me lembro.
Sem dizer nada, apertei de leve as mãos de e entrei no carro. olhou para o céu e sorriu, isso aqueceu meu coração de uma forma desconhecida e eu só fui capaz de sorrir junto. Ele entrou no carro, passou uma das mãos pelo meu rosto e beijou-me delicadamente na testa. Estremeci por completo, cada parte do meu corpo se arrepiou e meu estômago revirou. Eu, por incrível que pareça, havia esquecido o quanto o toque dele é delicado e carinhoso e como me fazia bem ter suas mãos nas minhas. ligou o carro e partiu pela rua escura, seu sorriso era enorme.
- Obrigado. – ele disse.
- Pelo o quê? – perguntei.
- Por estar aqui! – me olhou rapidamente. – Estar dentro desse carro, por me dar uma chance, por me deixar tentar te fazer feliz.
- Ah, ... – eu ri. – Eu que devo agradecer por você nunca desistir de mim, sempre estar ao meu lado mesmo eu não merecendo nada disso.
- Eu vou te provar que você merece ser amada, . Te prometo isso.
Gargalhei. Incrível como pode ser sonhador, às vezes... Ele realmente deve estar achando que isso será um conto de fadas! Que ficaremos juntos para sempre, sem nenhum problema. Mal sabia ele que eu já estava louca por um baseado.
As árvores se transformavam em borrões, graças à velocidade do carro. Eu gostaria de poder fazer isso com a minha vida, sabe? Poder transformar tudo que me causa angústia em um grande e preto borrão. Mas tenho a impressão de que essas coisas pretas me seguiriam pelo resto da vida. O certo era apagá-las, fazê-las sumir.
Quando me dei conta, os borrões estavam tomando forma, o carro estava parando. Olhei pela janela e vi um grande letreiro com luz neon verde, onde se lia: Engel’s Hotel.
- Onde estamos? – perguntei sem tirar os olhos do letreiro, aquela luz me hipnotizava.
- Eu estou hospedado aqui esses dias, .
- Pensei que estávamos indo para a sua casa.
- Em Essex? – Fiz que sim com a cabeça - Não... Eu vim passar uns dias na casa do Matt, mas... Nós brigamos ontem e eu vim pra cá. – ele disse, batendo a porta do Mercedes.
- Brigaram por quê? – perguntei quando ele abriu a porta para mim.
- Coisa de menino.
- Ah, qual é! Vocês têm dez anos? – quase gritei. – Por que brigaram?
- Por nada.
- Deve ter sido por besteira! – eu ri. – Está com vergonha de contar, ?
- Não. – ele estava ficando nervoso e eu começando a achar divertido irritá-lo.
- Foi besteira. – falei séria e com desdém.
- ... – ele riu fraco e encarou o chão, estávamos quase chegando ao quarto.
- Aff, , vocês brigaram e ainda por cima por besteira?
- Se você se considera uma besteira... – ele disse e abriu a porta do quarto, entrando logo em seguida.
- Brigaram... Por mim? – Sentei-me na cama.
- Sim. – disse e entrou no banheiro.
- Por quê?
- Porque eu estava cansado de ouvir o Matt falando de você como se você fosse uma puta. – ouvi a voz de abafada pelo som do chuveiro.
- Mas... – respirei fundo. – , eu sou uma puta.
O som da água caindo parou no mesmo segundo em que eu terminei a frase.
- Não, você não é. – ele disse da porta do banheiro, o cabelo todo bagunçado e um pouco de espuma nos braços.
- , eu sou uma puta! E uma viciada.
- Não, , você não é. – ele se sentou ao meu lado. – Você nunca será.
- , se você soubesse tudo o que já fiz, tudo o que eu já passei...
- Nada disso me importa. Não quero saber se meia hora antes de eu te encontrar, você estava fumando um baseado com a Foxxy ou se você está pensando em fumar um agora. Ou se você já cheirou cocaína, injetou heroína, tomou chá de cogumelo ou tomou ácido. E me importa menos ainda se você já fez sexo por dinheiro. – abri a boca para contestar algo, mas ele me impediu. – Porque... , você sempre será a minha menina. – acariciou-me o rosto. – A minha pequena. Não importa se você passou por momentos difíceis, fez escolhas, talvez, erradas, que o meu sentimento por você vai mudar. Eu nunca vou desistir da minha menina.
Ouvir essas palavras foi como ver Deus materializado na minha frente, meus olhos pesaram e logo minhas bochechas estavam úmidas, enfiei o rosto no peito de e chorei. Chorei como uma criançinha que acaba de quebrar seu brinquedo favorito. Como se não houvesse mais esperança para o mundo. E, na realidade, não havia. Pelo menos para mim.
- Eu nunca quis isso, ! – guinchei. – Eu nunca pensei que eu fosse fazer as coisas que eu fiz. Ser prostituta não é a profissão dos sonhos de toda menina! Eu queria ser bailarina, veterinária, atriz, mas nunca pensei em ser prostituta. Apenas a ideia de vender meu corpo me dava arrepios no começo, mas como diz uma amiga minha “sou comida à noite, para comer de dia”. – gemeu. – Desculpe, quando falamos isso entre nós, não parece tão vulgar.
- É horrível te ouvir dizer isso. – olhei para cima e encarei seu rosto. – Se eu, por um minuto, suspeitasse que você estava assim...
- Você faria o quê? – eu ri. – Apareceria em um cavalo branco e me salvaria?
- Acho que não em um cavalo branco, mas... – ele riu também.
Ficamos em silêncio por um tempo.
- Você precisa parar de desacreditar em mim, ... – disse baixo. – Eu te amo e você precisa acreditar nisso!
- , eu... Eu te amo. – dizer essas palavras foi como tirar cem pedras das costas. – Eu te amo com todo o meu coração e senti a sua falta todo esse tempo, todas as noites eu desejava que você aparecesse e me tirasse de tudo isso, que você me salvasse, eu queria sentir o seu corpo junto ao meu, queria sentir que não estava sozinha e que eu poderia ser algo melhor. Queria você ao meu lado, me mostrando que ainda havia alguma esperança... Queria ter o meu porto seguro de volta. – soltei-me do abraço e dei alguns passos para trás. – Acho que nem eu sei o quanto me arrependo daquele dia em Harrow, quando dei as costas a você. – as lágrimas rolavam pelo meu rosto de maneira violenta, eu nem ao menos tinha certeza se entendia o que eu dizia em meio de soluços e fungadas.
- Minha menina... - ele disse calmamente, aproximando-se. – Durante esse tempo, eu aprendi que o passado não nos prende a nada! Decisões infelizes acontecem, todos nós estamos sujeitos a elas. Mas é no presente que construímos o futuro. Não importa o que você fez, ! As coisas que você fez não são o que você é, se assim você desejar. Você controla o seu futuro.
Meu coração se aqueceu, pela primeira vez em muito tempo, eu tive vontade de começar tudo de novo, de correr atrás das coisas certas. Eu quis um futuro.
- Eu estava pensando em como te dizer isso... – ele começou baixo. – Minha mãe tem uma conhecida, Ruby, que trabalha como terapeuta em uma clínica de reabilitação, no interior de Londres, ela disse que você poderia ir lá um dia, apenas para conhecer e, então, se você gostar...
- Eu vou. – disse rápido, cortando-o.
- Ótimo. – ele disse mais rápido ainda. – Podemos sair amanhã pela manhã, se quiser.
Sorri para . Não apenas com os lábios, sorri com os olhos, com o coração, com o fígado, sorri com o corpo inteiro, com a alma. Eu estava feliz, esperançosa.
Depois de decidirmos que no dia seguinte acordaríamos cedo e iríamos para Clínica Harmony, tomamos banho e nos ajeitamos para dormir. Eu estava deitada sobre o peito de e ele me abraçava com um dos braços. Nunca me senti tão protegida.
- , por que... – eu não sabia como perguntar. – Por que você veio para Londres?
- Estava esperando você perguntar. – ele riu. – Há mais ou menos uma semana, Matt ficou muito bêbado lá em casa e começou a contar sobre uma tal garota que ele estava saindo, começou a descrevê-la e eu logo de cara me lembrei de você, mas não dei importância... – ele riu. – Eu costumo te ver em quase todas as mulheres. – arqueou a sobrancelha. – Mas, então, Matt disse o nome da tal garota: . – eu não acreditei no princípio, senti raiva de Matt, tentei me convencer que ele estava mentindo e senti mais raiva ainda de você, doía muito pensar que você já estava com outra pessoa assim... – me abraçou. – E quando Matt contou... – ele parou por um momento. – Bom, quando ele disse que era uma prostituta, o meu mundo caiu. Aí eu precisava ter certeza se era você, corri até meu quarto e peguei uma foto nossa para mostrar a ele, Matt te reconheceu na hora! Pequena, eu não sabia o que fazer... Não sabia se chorava, se gritava, se esmurrava ele por ter dormido com você ou se o obrigava a me trazer até aqui. – ficou vermelho. – Não falei nada no dia, esperei que se passasse dois dias e deixei nossa foto largada em cima da cama, Matt viu e veio me perguntar de onde eu te conhecia. Ele não lembrava que havia me contado tudo, eu expliquei, disse como nos conhecemos e ele ficou em choque. E, sem me contar por que, embora eu já soubesse, disse que sabia onde te encontrar e me trouxe até aqui.
Comecei a rir. Rir mesmo, com vontade. me encarava sério, sobrancelhas arqueadas.
- Do que esta rindo? – ele perguntou. – Pare de rir! Está me incomodando! – não pôde evitar e riu também.
- Você iria bater no Matt... - tomei fôlego. – Porque ele dormiu comigo? – eu ri tanto que estava ficando vermelha. foi parando de rir conforme eu fui falando. - E o que você faria com os outros infelizes que também dormiram comigo, ahn? – Quando terminei de falar, percebi o quão idiota e vulgar eu havia sido. Parei de rir na hora e escondi o rosto em seu peito, para que ele não visse que havia ficado vermelha.
- Só de pensar que todos esses caras te tiveram e eu... – ele ficou vermelho.
- Muitas vezes eu imaginei que estava com você. – falei, ainda com a cabeça enfiada em seu peito.
- Eu, quando nos conhecemos, sonhava que a sua primeira vez fosse comigo, . – estava mais vermelho que um pimentão. – Eu queria que fosse especial... – Ele sempre queria que tudo fosse especial e era isso que eu mais amava nele.
- Ainda dá tempo. – eu falei, levantei um pouco a cabeça, de modo que apenas meus olhos apareciam, fez cara de interrogação. – Eu não conto nenhuma dessas experiências como primeira vez, nenhuma delas foi por amor ou com alguém que valesse à pena. Nenhuma delas foi com você. – me olhou diferente, ele nunca havia me olhado assim, olhou-me com desejo e um pouco duvidoso, talvez pensando se deveria ou não, agi impulsivamente de modo que não deixasse dúvidas de como ele devesse agir.
Subi em cima dele, tirei minha blusa com rapidez e colei meus lábios nos dele. Enfiei minhas mãos por debaixo da sua blusa e com as unhas arranhava seu peito, ele apertava a minha cintura como se a qualquer minuto eu pudesse sumir, como se tudo fosse uma ilusão. Mais rápido do que eu tirei a blusa, ele trocou de lugar comigo, jogou-me na cama e subiu em cima de mim, beijava o meu pescoço e passava a mão por todo o meu corpo, explorando-o por completo. Arranquei sua blusa e pude ver a vermelhidão que causei arranhando-o, comecei a beijar seu peito, ao mesmo tempo em que beijava, eu arranhava, ele gemia, ora de dor, ora de prazer, ele puxava os meus cabelos a cada gemido de dor e, mais uma vez, a posição se inverteu, subi em cima dele de novo. Desci até a sua cintura, dando leves beijos em seu corpo, abri sua calça com a boca, pequeno truque que aprendi com a profissão, depois a tirei e joguei longe, passei os lábios pela borda da sua boxe e olhei para cima, olhei para o seu rosto.
estava vermelho, suando, sexy. Não pude evitar provocá-lo um pouco mais, subi o corpo e comecei a beijar o seu pescoço e morder o seu lábio, ele, já beirando o desespero, abriu a minha calça e enfiou as mãos dentro dela. Com força, foi puxando-a para baixo, tanto ela como minha calcinha, ele apertava a minha pele com força, isso iria deixar roxos. De novo, subiu em cima de mim, eu mesma já estava chegando perto do desespero. Com uma rapidez e agilidade surpreendentes, tirou minhas calças e, enquanto me beijava, tirou sua boxer. Nós tínhamos o encaixe perfeito. Toda a violência e a urgência de antes sumiram. fazia movimentos delicados e gemia ao pé do meu ouvido, eu já não o arranhava mais, passava a mão por todo o seu corpo, dando leves apertões, ele intercalava movimentos rápidos com lentos, olhava nos meus olhos e sorria, eu sorria também. Era tão bom estar vivendo isso com ele. Eu poderia ficar uma eternidade sentindo o corpo de sobre o meu, beijando-lhe o pescoço e recebendo suas carícias.
Minha pele ardeu de calor, mais do que já estava, ela quase poderia entrar em combustão, meus batimentos aceleraram como carros de corrida e, pelo olhar de , pude ver que os dele também. Pensei que talvez meu coração não fosse aguentar, talvez fosse muita excitação para ele, meus músculos enrijeceram, retraíram-se. Encolhi-me levemente sobre o corpo de , mais um pouco e iria doer. Atingimos juntos o orgasmo. Sorri involuntariamente e selei meus lábios com os dele, eu nunca havia tido tanto prazer fazendo sexo.
Essa havia sido a melhor primeira vez de todas, eu nunca poderia ter imaginado de outra maneira. também sorria, estava tão satisfeito quanto eu.
Essa foi a noite em que fiz amor, e não sexo, pela primeira vez.
O relógio marcava 03h33min da manhã. Eu estava deitada no peito de , estava segura. Levantei-me, fazendo de tudo para que ele não acordasse, busquei por seu celular no bolso da calça e entrei no banheiro.
- Alô? – uma voz sonolenta disse.
- Sou eu. – falei baixo para não acordar .
- O que você quer? – ela foi ríspida.
- Eu, hm. - pensei por uns segundos. – Queria saber como você está...
- Bem. – ela pareceu lutar contra si mesma. – E você, está com o ?
- Er, sim. – eu disse insegura. – Foxxy, eu...
- Não diga mais nada, ! – ela quase gritou. – Não preciso saber da sua linda história de amor, me poupe dos detalhes. Eu sabia que esse dia iria chegar.
- Não. – lágrimas estavam prestes a escorrer. – Preciso contar algo, por favor, me escute. – como ela não disse nada, entendi que era para continuar. – Amanhã, ou hoje, que seja, eu vou para uma clínica. Ela fica no interior de Londres, uma amiga do trabalha lá. Não sei quanto tempo vou ficar por lá, mas eu volto, Foxxy!
- Ah, claro! Você volta... – riu desgostosa. – Lógico que volta! Vai voltar para me ajudar, ahn? Para me salvar. Adivinhe, , eu não preciso ser salva! E nem você, caso queira saber.
- Fox, por favor... – sentei-me no chão.
- Por favor, o quê? – ela gritou. – Eu abri minhas portas para você, te tirei das ruas, te protegi, dividi minha vida com você, e para quê? Para você me deixar pelo seu amor adolescente? Te ensinei tudo o que sabia, sequei suas lágrimas, te ofereci meu abraço, eu te acalmava nas noites de pesadelos. Eu... - ela fungou. – Eu te amei.
Meu coração parecia em pedaços, eu mal conseguia respirar. Lágrimas desciam pelo meu rosto, era difícil deixá-la. Muito difícil, principalmente depois de tudo que passamos, eu a amava e ela precisava de mim.
- Por favor, por-por favor... – ela balbuciou. – Não me deixe.
- Eu. – as palavras lutavam para permanecer dentro de mim. – Estou voltando.
Desliguei o celular antes de ouvir sua resposta; entrei no quarto, cuidadosa, procurei pelas minhas roupas e pela chave do carro. me odiaria, mas eu não poderia simplesmente deixá-la. Quando eu não tinha mais ninguém, nem ao menos o próprio , foi a Foxxy que ficou ao meu lado.
Joguei-me no banco do motorista e, sem pensar duas vezes, liguei o carro, o ronco alto do motor perturbou a noite tranquila. Sem olhar para trás, dirigi rumo à espelunca que eu chamava de casa. Dirigi até Foxxy. Dei com as costas da mão esquerda na porta velha e, sem esperar por resposta, abri e entrei no apartamento escuro, chamei por ela e nada. Acendi a luz da sala e vi o mesmo caos de sempre: comida, roupas, cigarros, tudo largado pelos cantos. Senti o coração parar. Entrei no quarto e vi algumas coisas quebradas, o telefone jogado, a janela estava aberta e as cortinas puídas voavam desordenadas como um véu. A porta do banheiro estava fechada, mas havia um facho de luz. Bati, chamei pelo seu nome. Nada. Som algum. Encostei os dedos na maçaneta, mas algo me impediu de abri-la, eu sabia o que eu encontraria e eu não queria. Fiquei pensando, por alguns segundos, se seria possível mudar o destino, talvez se eu nunca abrisse a porta e nunca visse o que estava prestes a ver, significaria que nada teria acontecido. Abrir a porta seria aceitar, seria a concretização de tudo.
Em um rompante, abri a porta.
E lá estava ela, sentada, desajeitada como uma boneca de pano, o rosto pálido, o corpo gelado, o suor grudava os cabelos no pescoço, o olhar perdido e opaco. Não era a minha Foxxy. Ajoelhei-me ao seu lado e toquei seu rosto.
- . – ela disse fraco.
- Calma, vou levá-la ao hospital. – preparei-me para jogar seu corpo mole em meus ombros.
- Não. – fez força para falar. – Por favor, não. Apenas fique aqui comigo, ok?
Sentei-me relutante ao lado de Foxxy e senti sua cabeça encostando-se ao meu ombro. Puxei seu corpo para mim e a deitei em meu colo, enrosquei meus dedos em seus cabelos e comecei a cantarolar uma música qualquer.
- Hm... - ela tossiu. – Sentirei falta disso.
- Do quê? – perguntei.
- Do seu cheiro, do seu toque. – falou, virando a cabeça para encarar-me.
- Fox. – novamente lágrimas escorriam pelo meu rosto. – Por quê? Por que você fez isso? – perguntei quase gritando, observando a agulha suja e o cinto que ela usou para parar a circulação do braço. – Eu voltei, voltei para você!
- Por isso. – disse séria. – Eu não poderia deixar que você desistisse de tudo por mim e eu sei que, enquanto eu estivesse viva, você não me deixaria, pelo menos até eu ficar limpa. E eu nunca ficaria limpa, , nunca. Eu preciso te deixar partir. Você merece uma segunda chance.
- Você também! – eu gritei. – Todos nós merecemos! Não só “segundas chances”, mas terceiras, quartas, quintas e todas as chances necessárias! – meu estômago revirava dentro de mim, eu tremia, não estava acreditando no que ouvia.
- Lady. – ela sussurrou. Meu estomago deu mais um nó. – Meu nome de verdade é Lady, por algum motivo minha mãe me deu esse nome, talvez pra que as pessoas nunca se esquecerem de como me tratar... Como uma Lady.
Quando aqueles olhos se fecharam, meu coração fez o mesmo. Eu não fui capaz de nada, não chamei por ela novamente, não a balancei, não fiz nada. Fiquei sentada, deixando as lágrimas escorrerem livremente pelo meu rosto, com ela nos braços. Mais uma vez, eu perdia algo que podia chamar de família... Foxxy era como aquela prima mais velha, aventureira, cheia de histórias, cheia de paixão e confusa. Era como aquela personagem principal de um filme, que muda a sua vida, que te faz ter mais garra para lutar.
Minha cabeça latejava de tanto chorar, meus olhos estavam ardendo. Levantei-me cautelosa e entrei no quarto; liguei para a emergência e saí do apartamento. Não peguei nada, não olhei para nenhum detalhe, desci pela escada de incêndio e entrei no carro.
O nascer do Sol, aquele dia, tinha algo deprimente ou será que era apenas eu? Eu estava perdida, desiludida, eu não sabia o que fazer! Como ela pode me deixar assim? Eu voltei para ela, eu larguei tudo... Larguei um recomeço, o meu , minha busca pela felicidade e ela... Ela me largou. Eu estava sem a minha família disfuncional, sem , que sempre será um pai – já que eu tinha muita vergonha de enfrentá-lo agora -, sem a Foxxy e sem o meu irmão mais velho inconsequente... Não. Não, o Kevin ainda estava em Harrow. Eu ainda tinha alguém.
Com a ideia de encontrar o Kev em Harrow, liguei o carro. Minhas mãos tremiam, eu me perguntava se essa era a atitude certa, eu ainda poderia voltar ao hotel, deitar-me ao lado do e fingir que nada havia acontecido. Será que ele teria acordado e percebido minha saída? Mas, independente disso, eu saberia que tinha saído aquela noite e não conseguiria lidar com isso em silêncio ao lado dele. Quando passei do limite da cidade, meu coração deu um pulo. De alguma forma, eu sabia que eu estava virando a página, eu estava entrando em outra fase da minha vida. Senti aquele frio no espinha, o mesmo que senti quando fiz o meu primeiro programa ou quando fumei o meu primeiro baseado. Eu precisava mudar de vida, minha fase junkie durou muito tempo, eu cheguei muito longe com isso, senti pena de mim mesma por muito tempo, acreditei que não era capaz de ser feliz. E, no fim, o que eu disse à Foxxy sobre termos tantas chances o quanto precisarmos servia mais para mim do que para ela. Hoje eu lamento só ter percebido isso quando cheguei ao fundo do poço... Mas, se eu não tivesse chegado a tal ponto, talvez eu nunca visse onde estava, porque, até então, eu apenas me via em um buraco negro, caindo, caindo e caindo, perdida em meio aos meus gritos. Enterrada em minha própria tristeza.
Agora eu voltava para Harrow, eu queria começar tudo de novo e me parecia muito óbvio recomeçar no mesmo lugar onde me perdi. Chegava a ser poético. Eu precisava do conhecido, cansei-me do desconhecido... Eu me perdia dentro dele, nunca tive medo de me arriscar e, bem, o desconhecido é o lugar perfeito para correr riscos. Mas agora, encarando o conhecido, eu já sabia o que esperar, já sabia como me armar. Eu ia conseguir sair dessa e vencer. Há algum tempo eu usava drogas, mas agora elas me usam, mas não por muito tempo! Logo isso seria uma parte triste e esquecida, propositalmente, da minha vida.
Eu estava decidida, confiante, quando parei o carro em frente à Dolores, a árvore, e caminhei em direção à casa 155. Nem ao menos olhei para os lados, não queria saber se minha mãe continuava ali naquela casa ou se minha avó me observava pela janela se perguntando se era eu mesmo. Toquei a campainha e, inquieta, esperei.
- Olá. – uma mulher ruiva disse, abrindo a porta.
- Boa Tarde. – eu mal conseguia falar de nervosismo e cansaço por ter dirigido a manhã toda. – O Kevin está?
- Kevin? – ela sorriu torto. – Entre.
Então, aquela era Lílian, a mãe de Kevin. Uma jornalista investigativa, viciada em trabalho. Fiquei surpresa de encontrá-la em casa... Morei com Kevin quase, ou mais, de um ano e nunca a tinha visto! E, segundo o próprio Kev, isso era normal... Ela sempre estava cobrindo alguma guerra civil no Oriente Médio ou algum escândalo da Wall Street nos Estados Unidos.
Entrei naquela casa que eu tanto conhecia, ela estava diferente, menos... Viva. Meu coração deu um pulo, sentei-me no sofá. Será que Kev está bem? Lágrimas quentes encheram meus olhos.
- Ele. – eu comecei. – Ele está bem?
- Oh, sim. – ela encarou o chão. – O Kevin está preso.
Arregalei os olhos, incrédula, como preso? Por quê? Quando? Meu peito agora parecia um ensaio de escola de samba, meu coração parecia explodir dentro de mim.
- Faz... - ela disse, pensativa. – Um ano. Foi preso por tráfico de drogas. – olhou-me nos olhos. – De onde você o conhece?
- Eu morei com ele por um tempo quando eu era mais nova. – eu sorri com as lembranças. – Aqui mesmo, nessa casa.
- Você é a famosa , então? – ela sorriu. – Suspeitei.
- Famosa? – arqueei a sobrancelha, estranhando.
- Ele falava muito de você, sempre me dizia: “mamãe, você precisava conhecê-la! Ela gostava de mim e não como você que é legalmente obrigada a isso”. – ela bufou. – Certa vez, ele chegou a discutir com a nossa vizinha, dizendo que ela era a culpada de você ter ido embora, ele chegou a brigar com um tal de também... Pelo que sei, foi no dia que você foi embora, eles destruíram a minha casa com essa briga. – encarou-me.
- Me-me desculpe. – gaguejei. – Por toda confusão que armei mesmo estando longe e ainda mais por voltar sem aviso prévio e fazê-la relembrar tudo isso. Eu apenas queria saber como o Kev estava.
- Não se preocupe, menina, nada disso é culpa sua. E... - ela parou por um segundo. – Fico de certa maneira feliz que ele esteja preso, pelo menos isso o mantém longe das drogas.
Eu não sabia o que dizer, eu simplesmente não queria mais estar ali. Senti pena dela, iludida achando que na prisão ele ficaria limpo...
- Bom, eu, eu já vou. – disse.
- Não, por favor, espere um momento. – ela se levantou e subiu as escadas, voltando rapidamente com um papel nas mãos.
O papel logo se transformou em uma foto, era uma foto minha com Kevin e , estávamos sentados embaixo da Dolores e rindo com uma inocência infantil, como se fôssemos adolescentes normais. Quem visse aquela foto jamais diria que um dos rapazes estava preso pro tráfico e que a menina havia se tornado uma prostituta viciada, sorri e derramei algumas lágrimas sem nem ao menos perceber.
Minha vida deu mais uma reviravolta, incrível o modo como isso sempre aconteceu! Quando eu achava que estava entendendo tudo a minha volta, quando eu achava ter feito um bom plano de ação, ter arrumado uma maneira de viver a minha vida de forma saudável... Tudo mudava e eu tinha que me encontrar novamente e planejar o que fazer. Com o tempo, percebi que isso não era apenas comigo, mas com todas as pessoas, a vida é assim! Ela é mutável, transforma-se com facilidade e devemos acompanhá-la para não estagnarmos. Estamos sempre evoluindo, o ser humano busca isso de maneira inconsciente. A que conheceu o Kevin e dividia alguns cigarros de maconha e algumas carreiras de cocaína com ele, não é a mesma que saiu da casa dele e ligou o carro indo em direção à Clínica Harmony, no interior de Londres.
Na última vez que entrei nesse carro com um destino em mente, o meu coração estava completamente quebrado, ele doía e sangrava, mas agora eu sentia que ele estava se unindo, prestes a se consertar. Eu estava mais confiante que antes, dessa vez nada podia dar errado! A única coisa que poderia me sabotar seria eu mesma e eu sabia que eu não permitiria isso, de maneira alguma. Pensei em , em o quanto mais fácil seria se ele estivesse comigo dentro do carro, segurando minha mão, e o quanto melhor, com mais dignidade, eu me sentiria se ele entrasse dentro da Harmony comigo. Mas, pela primeira vez, eu faria algo por mim e faria sozinha.
- Olá, boa noite. – disse, aproximando-me do balcão. – Por favor, onde posso encontrar a Ruby?
- É preciso ter hora marcada, senhora. – a menina, que devia ter a minha idade, disse.
- Hora marcada para largar as drogas? – sorri amarga. – Meu bem, quero me internar.


A sexta fase da minha vida

O café da manhã era terrível. O pão era duro e os ovos estavam meio crus! Deus, eu pensei que isso seria... Hm, diferente. Não sei, eu tinha a impressão de que aqui seria uma espécie de paraíso, cada um por si, achei que eu só teria que ficar aqui e me manter longe das drogas. Mas não. Ah, não! Eu tinha tarefas, deveria manter meu quarto limpo e ajudar na limpeza de toda clínica, teria que frequentar reuniões semanais, passar por um psicólogo/orientador e assistir a algumas palestras. Eu tinha direito a horários de visita, mas ninguém me visitaria e, quando me sentisse forte o suficiente, deveria convidar algum conhecido para participar de uma reunião, onde falaríamos sobre a minha vida, mas eu não tinha ninguém para chamar.
A verdade é que eu fazia uma ideia completamente diferente de como era uma clínica de reabilitação e, quando me vi cercada de regras e deveres, eu pirei. Eu nunca tive disciplina, sempre vivi pelas minhas regras e vontades. Isso seria muito mais complicado do que pensei.
- Hey, menina nova. – uma mulher disse, aproximando-se. – Você não limpou o banheiro do quarto andar. Procure pelo Ethan e deposite as vinte pratas da multa, ok?
- E por que eu faria isso? – eu disse, irritando-me com o modo que ela falou comigo.
- Meu bem, quando você se internou aqui, você estava consciente das regras, ok? – ela sorriu irônica. – Não limpa o banheiro, paga multa.
- Na realidade... – eu disse mais calma. – Eu não fazia ideia.
- Como?
- Bom... - eu desabei. – Quando me internei, eu não sabia de nada, simplesmente cheguei ao balcão e disse que queria me internar. Quando aquela senhora me levou até o quarto e começou a dizer todas aquelas coisas... Oh, Deus. Só não digo que me arrependi na hora, porque tive a noite inteira para isso.
- Garota. - ela sorriu e se sentou ao meu lado. – Não é fácil. Ah, não é mesmo! É horrível! Você acha que eu gosto de limpar o banheiro? Cara, algumas garotas por aqui não tem a menor higiene.
- Então, por que você faz?
- Porque eu preciso. – ela disse simplesmente. – Para ficar aqui eu tenho que cumprir com as regras, senão vou embora, eu tenho que me manter limpa, menina nova! Pelos meus filhos. - com um sorriso, ela se levantou. – Vou deixar passar essa, mas, semana que vem, você limpa o banheiro do quarto andar.
Fiquei sentada por um bom tempo no refeitório, apenas pensando... Senti-me tão ridícula! Gostaria que estivesse aqui... Eu queria desesperadamente um cigarro ou algumas pílulas... Eu sabia que não seria fácil, mas um baseado iria tão bem agora! Comecei a me sentir um pouco zonza, fraca, não sei... Uma hora virou um minuto e um minuto virou uma hora. O mundo pareceu parar de girar. Apenas acordei quando, Michael, um cara de uns trinta anos, viciado em sexo e anfetaminas, aproximou-se.
- ? – ele se sentou ao meu lado. – Tudo bem?
- Sim. Por quê?
- Você está verde, querida. – ele sorriu.
- Não se preocupe. – falei seria, não estava a fim de conversas sem sentido. – Estou perfeitamente bem.
- Eu conheço essa cara. – ele disse e se levantou. – Por que não vai ver o seu orientador?
E ele se foi, deixando-me lá sentada, xingando-o mentalmente. Levantei-me da cadeira lentamente e caminhei em direção ao meu quarto. No meio do caminho, esbarrei com Ethan, ele tinha a minha idade e era usuário de cocaína. Ele sorriu cabisbaixo e eu senti certa empatia por ele.
- Ethan. – chamei. – O que houve?
- Nada. – ele voltou a andar.
- Hm. - eu andei até ele e toquei em seu ombro. – Vamos comigo ao meu quarto? Não me sinto muito bem, se importaria de conversarmos um pouco?
Ele não disse nada, apenas concordou com a cabeça e começou a andar ao meu lado.
Abri a porta do quarto e senti a tristeza dele, os tons neutros tiravam toda a vida do cômodo.
- Odeio a sensação de ser a única coisa viva dentro desse quarto, é tudo tão deprimente! – eu disse, largando-me na cama.
- Com o tempo, você se acostuma. – falou, em pé ao lado da cama.
- Por que todos insistem em dizer isso, hã? – fiz sinal para que se sentasse e ele não sentou, caminhou até a janela.
- Talvez... Porque isso seja verdade. – encarou-me, pude ver uma pequena cicatriz em seu queixo.
- Acho que vou acabar enlouquecendo, sabe? – eu me deitei. – Quando decidi vir, eu não tinha muito entendimento de como seria... Nem pensei direito.
- Se arrepende?
- Não. – disse confiante. – Não é arrependimento, é apenas... Um sentimento esquisito, uma sensação de...
- Solidão. – ele disse, cortando-me. Concordei com a cabeça e ele continuou. – Você pode não acreditar, mas isso passa, você se acostuma. E, no momento em que ela sumir, bem, você estará pronta para sair da clínica. – observou-me por um momento, meu rosto obviamente mostrava a minha perplexidade. – Quantas vezes você não se drogou porque se achava sozinha? Fumou um baseado porque estava cansada do descaso do mundo? Ou cheirou uma carreira de cocaína porque queria se sentir a melhor pessoa do mundo, mesmo se sentindo vazia por dentro? Estou na clinica faz nove meses e esse sentimento ainda vem me tirar o sono, já vi vários aqui dentro perderem o controle e vi outros o superarem com maestria. Você pode ter sido pega de surpresa em relação de como a vida era aqui, mas isso não pode tirar a sua confiança! Foi preciso muita força de vontade para que você se fizesse vir até aqui, então, não se deixe desistir com menos de duas semanas.
Parei por alguns segundos, digerindo tudo isso. Fechei os olhos e vi sorrindo para mim.
- Tenho certeza, pelo pouco que sei sobre você e pela minha experiência, que você teve um bom motivo para decidir vir para cá. Se apegue a isso, ! Não deixe escapar pelos seus dedos, isso pode ser mais fácil do que parece.
Abri os olhos, sentei na cama e sorri, emocionei-me com a pessoa parada à minha frente, senti aquele conhecido calorzinho no peito, aquele calor que vem junto com a sensação de que algo novo e esperado está a caminho.
- Obrigada. – eu disse apenas isso. – Obrigada.
- Sabe, o mal do mundo é a solidão... – ele disse, virando-se para a janela. – As pessoas temem serem sozinhas e invejam quem elas julgam não ser, ninguém ajuda ninguém, não porque não é boa a sensação de distribuir palavras e gestos amigos, mas sabe por quê? – ele nem esperou a minha resposta. – Porque se elas ajudarem aos outros, eles deixarão de ser um pouco sozinhos e as pessoas invejam isso, mas o que ninguém percebe é que, ajudando ao próximo, você também deixa de ser sozinho. E o primeiro passo para pessoas como nós é se deixar ser ajudado e ajudar, por isso as regras, por isso e também para aprender a ter disciplina, que uma vez por semana você precisa limpar o banheiro e três vezes por semana participar das reuniões. Principalmente das reuniões, , porque nelas você ouve alguém que precisa desabafar e tem a certeza que nelas você também encontrará pessoas que estarão dispostas a te ouvir.
Eu estava atordoada, impressionada com as palavras dele. Ethan tinha a minha idade e sabia muito mais que eu. Perguntei-me o que ele já teria passado, o que ele já havia visto na vida, mas senti que isso era um assunto para outra conversa.
- Você é o filósofo da Harmony. – eu ri. – Obrigada pelas suas palavras. Prometo praticar mais isso.
- Não me prometa nada. – ele se virou e sorriu. – Prometa a si mesma. Faça tudo por você e mais ninguém. Afinal, a única pessoa que está ao seu lado desde o dia que você nasceu até o que você morrer é você mesma. Largue as drogas porque você resolveu dar um basta nessa vida desgostosa e ajude os outros porque você não quer mais se sentir sozinha, vivendo dentro do seu próprio mundo, sofrendo as suas dores e rindo as suas alegrias.
Meus olhos brilhavam de lágrimas, funguei baixo e o encarei. Ethan, pelo que percebi, era um cavalheiro e, percebendo o meu momento de fraqueza, julgou que era melhor ir embora. Eu não protestei, agradeci mais uma vez e o abracei, um abraço meio frouxo, mas que me deu paz. Deitei-me e dormi. Naquela noite, eu dormi um sono pesado, tranquilo e, até mesmo, cheguei a sonhar. Fazia tempo que não dormia assim. Sonhei com , coisa que já estava virando costume. Como doía a falta dele.

- Muito bem, quem quer falar hoje? – Rose, a coordenadora das nossas reuniões, disse, sorrindo exageradamente. Ela correu o olhar por todos nós, afundei-me na cadeira. Não estava pronta para falar. Éramos seis: Ethan, Samantha, Michael, eu e mais dois homens que eu não sabia os nomes. Um deles levantou a mão.
- Eu. – ele pigarreou. – Quero falar hoje. – Rose sorriu e se sentou. – Bom... Hm, meu nome é Derick, tenho trinta e seis anos e já usei tudo o que vocês podem imaginar, entrei nesse mundo muito cedo, às vezes acho que foi tão cedo que praticamente nasci nele. Destruí tudo o que tinha, minha família me odeia, minha mãe morreu depois do meu terceiro princípio de overdose, minha irmã mais velha se mudou para França para poder ficar o mais longe possível de mim, a mais nova me internou na Harmony e disse que essa era a última ajuda dela que eu receberia e que, quando eu saísse daqui, que não a procurasse. Tenho uma filha de três anos, a mãe dela não deixa que eu a veja, eu nunca a vi, mas... Prefiro assim, não quero que ela tenha uma figura paterna de um homem fracassado. – ele parou por um momento, respirou fundo e fechou os olhos. Fiquei espantada com tudo, nunca tinha ouvido um desabafo desses. No fundo, eu sabia que se tivesse prestado a atenção nos outros depoimentos, ao invés de ficar remoendo o fato de estar na clinica, eu teria ouvido depoimentos ainda mais impressionantes.
- Você não é um fracasso. – Ethan disse. Derick levantou o olhar na direção dele e sorriu amargo. – Se você fosse um fracasso, você não estaria aqui. – Ethan sorriu. – Você é um lutador, assim como nós. Estar aqui é um grande e fácil passo! Sair daqui e viver o mundo por conta que é complicado... Tenha calma, meu amigo, os dias de confiança virão! Quem sabe em um ano você não estará com sua filha nos braços, comemorando o seu quarto aniversário?
Todos nós encaramos Ethan. Eu sorri para ele, Rose pigarreou e o olhou séria.
- Continue, Derick – ela disse, arrumando os óculos na ponta de nariz.
- Já fiz coisas horríveis! Já roubei pais de família, roubei a minha própria família! Matei pessoas! Matei! Sim, eu fiz isso! Fiz pela droga... Inacreditável a linha de raciocínio de um viciado, não é? Por alguma sensação de prazer que a droga nos trás por umas horinhas, nós fazemos coisas que nos causam angústia pela vida inteira. Só queremos nos sentir bem, por mínimo que seja o tempo, e dane-se o resto! Somos todos uns egoístas. – ele estava vermelho, o suor fazia com que seus cabelos grudassem em seu pescoço. – Comecei isso tudo de uma maneira tão inocente, se é que há maneira inocente nisso... Como muitos que entraram nessa e que ainda entrarão, comecei pela maconha, mas na época – diferente de hoje em dia - ela não era tão banalizada... Apenas as pessoas mais “cool” fumavam e, quem fazia, era visto com admiração, quem fumava um baseado era o rei, aí chegou a cocaína... Nossa Lady C. Vi muitos amigos se afundarem, antes mesmo que eu afundasse. Tentei descobrir coisas novas antes de chegar até a Lady, mas não existe maconha, valium ou qualquer outra porcaria dessas que te faça sentir como a cocaína! Quando dei o meu primeiro tiro, senti-me... Não sei como dizer, acredito que vocês saibam o que quero dizer! Parecia que eu era o dono do mundo. Por muito tempo, fiquei apenas na Lady, nem álcool eu bebia. Eu estava feliz ou, pelo menos, achava que estava. Até que um amigo meu apareceu com outra Lady... Uma Lady que vinha de outras terras, outro país. Lady H. Ou heroína. Pelo que lembro, ele viajou com os pais para a Alemanha e lá conheceu uma tal de Stella e ela o levou até onde os jovens gostavam de se divertir, um lugar chamado “Sound”, e lá ele se picou pela primeira vez. Exatamente um mês depois da volta dele à Londres, eu tive a minha primeira picada. Não tive frescuras e me piquei logo. Alguns de nós cheiravam primeiro, pois isso retarda a dependência física. Quando dei por mim, eu só pensava na heroína, eu era heroína. Coçava o meu corpo inteiro, como todos os usuários fazem, graças ao uso de cândida em sua fabricação. – ele parou por um momento, olhou em volta e, de olhos fechados, continuou. – Depois disso, minha vida só fez descer. Minha mãe nem suspeitava de mim, até o dia que eu tive um cold turkey (n.a.: espécie de gíria usada para crise de abstinência – principalmente de heroína – a pessoa treme, sente frio, vomita, tem espasmos musculares e sente dores horríveis) em casa. Imaginem seu espanto ao ver seu filho gemer de dor, vomitar, transpirar um suor fétido, arder em febre e tremer de frio ao mesmo tempo! Acabei com a sua vida nesse dia. – ele abriu os olhos e juro ter visto essa imagem refletida em seu olhar, esse homem sofria. – Tentei milhares de vezes me manter limpo, cada vez que algum amigo meu tomava o pico de ouro, (n.a.: a última picada, com quantidade suficiente para matar um cavalo e a heroína usada é cem por cento pura) eu tentava colocar na cabeça que eu largaria essa vida! Em algumas dessas vezes, eu conseguia ficar algum tempo. O máximo que consegui foi seis meses. Mas... – sua voz embargou. – Foi preciso que a única pessoa importante para mim morresse para que eu tomasse consciência. Larguei a H sozinho, acreditem se quiserem! Um dia, acordei suando, com cólicas e senti que era um belo cold turkey chegando. Deixei que chegasse! Esse e vários outros, até que acabassem, até que meu corpo estivesse limpo. O mais difícil foi a dependência psicológica, mas eu consegui. Porém, voltei para a cocaína. Chegou um momento em que eu precisava de algo agindo perversamente em meu organismo! Nem que fosse um simples valium, eu precisava ter algo no meu corpo para que eu não me lembrasse da H. Há dois meses, minha irmã, Clarisse, me encontrou na rua, me ofereceu ajuda. Eu deveria morar com ela, ajudar em casa e, o mais importante, me manter limpo! Nem mesmo remédio para dor de cabeça ela tinha em casa. Isso não deu certo... Obviamente. – ele sorriu sarcástico. – Então, uma amiga dela sugeriu a Harmony e aqui estou.
Quando ele terminou de falar, meus olhos estavam imóveis, eu não era capaz de falar. Eu estava absurdamente humilhada! Senti-me uma criança que chora porque não gostou de um presente, no meio de tantas crianças que nem presentes ganharam.
- Obrigada, Derick! – Rose sorriu e se levantou. – Tenho certeza que seu depoimento iluminou muito a todos nós. Obrigada.
Ethan sorriu para ele e começou uma salva de palmas. A senhora Rose o encarou e continuou:
- Bom, hoje temos a visita de... - ela parou para ler os nomes em sua agenda. – Catarina e Edgar. – Samantha estremeceu. Rose foi até a porta e a abriu, chamou-os pelos nomes e logo pudemos ver duas lindas crianças, de cabelos muito negros, olhos grandes e expressivos. – Olá! Sentem-se, crianças!
Os dois se sentaram em cadeiras de frente para Samantha, que mal pôde encará-los.
- Você gostaria de apresentá-los a nós, querida? – Rose disse, pousando a mão em seu ombro trêmulo.
- Esses são Edgar e Catarina, meus filhos. – quase sorri, não conseguia imaginá-la como uma mãe. – Edgar tem doze anos e Catarina quinze.
- Você sente falta deles, Samantha? – Rose perguntou.
- Sim. – lágrimas começaram a escapar-lhe dos olhos. – Todos os dias. Acreditem em mim. - ela virou-se para eles. – A mamãe sente muito a falta de vocês!
Catarina ia dizer algo, mas logo fechou a boca e encarou o chão.
- Catarina? – Rose disse baixo. – Quer dizer algo? Pode falar! Aqui você pode falar o que quiser.
- Mesmo que machuque? – perguntou, corando. – Mesmo que faça com que minha mãe me odeie ainda mais?
- Nunca te odiarei.
- Eu nunca senti sua falta, Samantha. – a menina disse, espantei-me, quase soltei um suspiro de indignação. – Você já me amou? – perguntou em tom adulto. – Já me amou mais do que você amou as drogas?
Rose suspirou fundo e encarou Samantha, encorajando-a a responder a pergunta.
- Eu sempre te amei, filha! – ela tentou sorrir. - Só sei amar você e o seu irmão. Nunca amei droga nenhuma! Sempre as odiei por me fazer ficar tão distante de vocês e de todas as pessoas que me apeguei na vida. Tornei-me escrava delas, menina... Acredite em mim.
A garota ia dizer algo, mas foi cortada por seu irmão.
- Catarina, deixe-a em paz! – ele falou calmamente. – Você não sabe que mamãe é doente?
- Doente? – Catarina disse, áspera. – Por favor, Edgar!
- Não estou doente, filho. – Samantha tentou tocar-lhe a mão, mas ele a puxou junto ao corpo. – Deixe que sua irmã fale o que pensa.
- E você, Edgar, diga como você se sente em relação à sua mãe. - Rose se aproximou dele, o menino, encarando-a, começou.
- Eu gostava muito da mamãe. - ele olhou Samantha rapidamente. – Muito mesmo! Era tão divertido ficar ao lado dela... Lembro-me de várias aventuras, todos os dias antes de dormir. E quando eu sonho, sonho que estamos vivendo uma nova... Sinto falta desses tempos. – Samantha agora chorava. – Não sei o que houve! Mamãe deixou de ser a mesma! Começou a não querer brincar mais, ela só dormia! Trancava-se no banheiro por horas, ficou rabugenta! Parecia uma tia velha. – fez uma careta. – Brigava muito com a minha irmã, às vezes, brigava comigo também, mas era a Catarina que sempre apanhava. Lembro-me de uma vez que ela estava conversando com a gente, fazendo cócegas em mim quando, de repente, ela desmaiou! Me pus a chorar, achando que ela havia morrido, Catarina deu-lhe tapas no rosto e começou a gritar. Esse foi o último dia que brinquei com mamãe... No dia seguinte, tia Rachel apareceu em casa e levou a mim e a minha irmã embora. Chorei por semanas, esperando minha mãe, me perguntando por que ela havia nos deixado. - os olhos do menino estavam úmidos, ele encarou a mãe e, chorando, disse. - Eu teria me comportado, mamãe! Eu jurei a mim mesmo que comeria todos os vegetais, não andaria de meias no chão, não gritaria quando você estivesse dormindo e não iria te responder mal. Eu... —
- Edgar! – Catarina gritou. – Você não entende? Você poderia ter feito todas essas coisas, que a Samantha continuaria sem te querer.
- Eu nunca pedi à Rachel que fosse buscar vocês! – Samantha disse, vermelha. – Aquela... Aquela... Ela os levou sem me avisar! Quando acordei naquele dia, eu os procurei como louca! Fui à casa de todos os vizinhos, até que a senhora Flowers me disse que havia visto vocês saírem com uma moça de cabelos longos e pretos. Eu sabia que era a Rachel, ela já havia me avisado antes que faria isso um dia, nunca acreditei que ela fosse fazer, de fato.
- E por que você não foi nos buscar? – Catarina perguntou.
- Porque eu estava muito ocupada, sentindo pena de mim mesma. – Samantha disse, derrotada. Eu não conseguia nem ao menos raciocinar, eram tantas emoções de uma só vez, que me senti em explosão.
- Por que você não ligou? – foi a vez de Edgar perguntar.
- Não sei. – ela disse, abaixando a cabeça. – Eu nunca me esqueci de vocês! Nunca deixei de amá-los, mas...
- Mas? – Catarina tinha fogo nos olhos.
- Mas eu não conseguia largar as drogas, largar as pílulas, o álcool... Era melhor que vocês ficassem longe de mim enquanto eu não tomasse jeito. Sei que não tenho direito de pedir perdão, que talvez vocês até digam sim, mas, no fundo, continuariam com mágoa. Não posso voltar no tempo, crianças, mas quero mudar o nosso futuro! Eu estou melhorando, me sentindo mais confiante! Acho que em pouco tempo poderei sair da clínica e aí poderemos morar juntos, só nós três!
Edgar sorriu e tocou a perna de Catarina:.
- Esta vendo, Cathy? - ele não cabia dentro de si. – Eu disse que a mamãe ainda nos queria! Ela está melhor, você não vê?
- Não, não vejo. – ela cruzou os braços. – Você pode fazer o que quiser, Edgar Braxton, mas saiba que eu ficarei com a tia Rachel.
Samantha encarou Catarina com tremendo pesar, vi em seu rosto o quanto ela se sentia incapaz. Naquele momento, ela teve certeza de algo que já pressentia: perdera sua filha e, com isso, uma parte de si.
- Catarina, por que você não diz à sua mãe porque sente tanta mágoa dela? – Rose disse, cautelosa.
- Por quê? – ela riu. – Faria alguma diferença? Só basta que ela saiba que não a suporto. Se eu disser o porquê, ela tentará se consertar, tentará arrumar seus erros e, então, irá me iludir. Prefiro que tudo continue como está. Edgar é pequeno, não se lembra de tudo tão vivamente como eu e, não se preocupe, Samantha, eu não contarei a ele tudo o que sei, deixarei que ele se iluda com essa imagem de mamãezinha e se frustre sozinho.
Todos nós estávamos espantados, era incrível como essas duas crianças falavam como adultos, Catarina tinha um ar superior, um jeito inquisitor no olhar, Samantha parecia afundar-se cada vez mais na cadeira.
- Pare, Catarina! – ela gritou. – Chega!
A menina a olhou assustada. Pela primeira vez, ela se parecia com uma verdadeira criança, seu irmão a encarou, assustado, e murmurou:
- Eu disse que ela estava doente, Cathy... – Edgar murmurou, indeciso.
- Eu errei, certo? – Samantha começou. – Errei grandão! Não há um dia que eu não me arrependa de tudo que fiz! Fui uma péssima mãe, descontava em você todas as minhas bebedeiras, você foi a mãe de Edgar, foi a sua própria mãe. Me dói muito ter te tirado a infância, ter te roubado a inocência por puro capricho meu, mas eu estou tentando mudar! E tudo o que mais preciso é da ajuda dos meus filhos. Te peço de todo coração, Catarina, se não é de seu desejo me ajudar, então não me atrapalhe!
A garota deixou escapar um suspiro e algumas lágrimas, cruzou os braços e, encarando o chão, disse.
- Não me meterei mais na sua vida, faça o que achar que deve, viva como bem entender. Não quero ter mais nada com a senhora. Por isso, vim aqui hoje, para dizer-lhe isso. – e, então, olhando Rose de soslaio, perguntou se já poderia ir embora. Após ouvir um sim, levantou-se e se foi pela porta, sem olhar para trás. Edgar, sentado à cadeira, chamou-me a atenção, o menino olhava a mãe chorar com um olhar assustado, às vezes esticava os braços para a sua direção, mas logo os puxava para perto do corpo, ficava observando e ensaiando modos de acarinhar a própria mãe, mas não sei se o que sentia era medo ou vergonha, ele sempre desistia antes mesmo de tocar-lhe a pele. Vi o menino começar a ficar vermelho, seus olhos logo encheram de lágrimas e, exatamente como a irmã fez, perguntou a Rose se poderia ir embora. Antes de ouvir a resposta, ele já estava abrindo a porta, correu os perspicazes olhos pela sala e demorou-se um pouco mais na mãe desolada, com uma tristeza terrivelmente forte para uma simples criança de doze anos, ele saiu.
- Alguém quer dizer algo? – Rose perguntou. – Samantha? – a mesma não moveu um músculo. – Ethan? – nem ao menos Ethan sabia o que dizer, várias frases de consolo me vinham à cabeça... Mas sentia vergonha de dizê-las, eram tão clichês.
Fiquei me sentindo miserável o resto do dia e não fui apenas eu. Ethan, Michael, Derick e François também levavam consigo uma áurea pesada. A reunião mexeu com todos nós, às oito horas da noite, horário do jantar, podia-se ver cada um dos meninos em um canto do refeitório, pensando. Eu estava sentada na sala de vídeo. Sem fome. Eu só conseguia pensar em , imaginava o que eu faria se um dia ele me dissesse que nunca mais queria ter nada a ver comigo, se me falasse tudo o que Catarina disse à Samantha. Eu não iria suportar saber que perdi o , que perdi o seu amor! E, nesses momentos, eu esquecia que se eu perdesse o amor dele, seria porque eu procurei isso, eu o afastei.
Não dormi aquela noite. Nem na outra, ou na outra, ou qualquer outro dia, durante uma semana. Quando fechava os olhos, via na minha frente, com um sorriso, mas quando eu chegava perto dele, o sorriso se transformava em desprezo e eu o via ir embora, sem ao menos olhar para trás. E toda vez que eu acordava, parecia que o sonho ainda não havia terminado, pela manhã, eu tinha a sensação que aquilo havia de fato acontecido, que eu havia lembrado e não sonhado. Comecei a enlouquecer! Rose me forçava sempre a dar um depoimento ou passar o telefone de algum parente próximo, para que ela marcasse uma visita, e eu sempre respondia: não tenho ninguém.
Um dia, lembro-me de estar irritada por não conseguir dormir, eu tremia e suava, o suor frio me incomodava ao ponto de, no meio da madrugada, me fazer ligar o chuveiro e passar a noite inteira debaixo da água quente. Às vezes, ouvia a voz de . Chorava. Lamentava. E imaginava o que eu faria se encontrasse um baseado largado no chão do meu banheiro. E foi no meio desses devaneios que acreditei ter visto um frasco de Valium. Meus olhos brilharam... Senti um sorriso insano brotar dos meus lábios. Mas havia um problema: chovia torrencialmente e o frasco estava no galho da árvore do lado de fora do meu quarto. Fiquei horas sentada na cama, olhando pela janela, observando o pote de remédios, fazia planos de como pegá-lo e depois me arrependia. Pedia para que alguém ou algo me desse força suficiente para que conseguisse dormir e me esquecer do Valium me esperando do lado de fora. Mas não fui forte. Quando vi, as gotas geladas de chuva cobriam todo o meu corpo. Eu precisava de um ou dois comprimidos! Precisava relaxar, Valium era tudo o que eu precisava! Apoiei-me no parapeito e me inclinei, não foi o suficiente. Fui mais para frente, ainda sem resultados. Eu podia sentir meus dedos tocando o frasco, mas não podia agarrá-lo. Parei por uns instantes, observando tudo à minha volta. Subi no parapeito e me estiquei. Caí. Caí tão rápido que nem percebi... Só me lembro da dor, a dor lacerante que senti pelo corpo inteiro, eu queria gritar, mas não conseguia, nem abrir os olhos era fácil, a chuva me cobriu como um manto. Não sei quanto tempo fiquei deitada ali, esperando para morrer.
Foi com grande surpresa que encarei Doutora Ruby quando abri os olhos e a vi. Ela me encarava triste, um olhar de fracasso.
- O que aconteceu? – eu disse, rouca.
- Por que você fez isso, ? – ela perguntou, sentando-se ao meu lado.
- Eu não sei... – comecei. – Calma, onde estou?
- Na enfermaria. – Ruby olhou em volta. – , estava apenas esperando que você acordasse para comunicá-la que ligarei para o essa tarde.
- O QUÊ? – gritei, tentando me sentar. – Não. Você não pode, doutora!
- Por que não? – encarou-me. – Ele não é um bom amigo seu? Entenda, quando esse tipo de coisa ocorre, é preciso que alguém próximo seja comunicado.
- Esse tipo de coisa? Mas... – deixei-me cair na cama. – Não foi nada de mais... Eu apenas tive uma alucinação! Eu estava muito cansada, sem conseguir dormir há dias. Achei ter visto, hm... - não quis dizer a ela sobre o Valium. – Minha irmã mais nova do lado de fora da clínica.
- Não... – Ruby pareceu perplexa por um instante, pensativa. – Não foi uma tentativa de suicídio?
- Não! Claro que não. – neguei, mas ao mesmo tempo me indaguei porque não havia pensado nisso antes. – Doutora, você não pode chamar o ! Por favor! – ela me encarava curiosa, havia falado de mim para ela, Ruby sabia que nós éramos muito mais que bons amigos. – Escute, ele não sabe que estou aqui... Digo, estou fazendo uma surpresa para ele! Isso, uma surpresa. – sorri. – E você não vai querer estragar tudo, certo? Imagine a felicidade dele quando me ver saindo daqui, hã? Eu só quero poupá-lo de toda a angústia desse processo. – Ruby sorriu.
- Bom, se é assim... – ela se levantou, meio sem jeito. – Acho que tudo bem. A enfermeira disse que, se você quiser, pode ir para o seu quarto, ok? – com um aceno de cabeça, ela saiu rapidamente.
Olhei em volta e me apoiei na cama para me levantar, mas algo estava errado... Algo estava mais pesado do que o normal. Levantei o cobertor fino que me cobria e olhei minha perna. Engessada. Ótimo, quebrei a perna. Corri os olhos pelo quarto e vi um par de muletas. Ótimo, muletas. E a minha vida só faz melhorar...
Caminhei, ou me arrastei, lentamente para o meu quarto. Olhava todos os cantos daquele lugar deprimente com atenção. Esbarrei em Ethan quando entrei no elevador, ele sorriu para mim, cúmplice.
- Você nunca está sozinha, . – ele disse baixo, quase um murmúrio.
- Ahn? – indaguei. – Olhe, antes que você me venha dizer algo sobre suicídio, saiba que não foi isso.
- Eu sei que não. – olhou-me duro, a porta se abriu e ele saiu.
Entrei no meu quarto, irritada, fracassada e querendo ir embora. Eu tinha dentro de mim uma angústia e uma revolta que eu não era capaz de explicar. Eu estava inquieta, queria adiantar o tempo para o dia que eu saísse da clínica. Naquele momento, eu estava me sentindo muito pior do que quando tive o meu primeiro cold turkey. Eu preferiria mil vezes ficar jogada no chão do banheiro, vomitando em mim mesma, tremendo, tendo espasmos e tendo pesadelos, do que me sentir vazia do modo como eu estava me sentindo. Deitei na cama e não conseguia fechar os olhos, mas ironia à parte, depois que os fechei, foi um sacrifício abri-los. Adrian, o rapazinho da recepção, balançava-me de todos os lados, chamava o meu nome e dava leves tapas no meu ombro.
- Senhora, por favor. – ele dizia. Eu ouvia sua voz ecoando em minha mente, dentro dos meus sonhos, aos poucos fui despertando, abri os olhos devagar e o encarei. Seus grandes olhos verdes piscavam para mim, beirando o desespero. Mas pude ver um pequeno sorriso em seus lábios quando me sentei na cama.
- A doutora Ruby gostaria de vê-la. – ele disse e já ia saindo do quarto, quando o impedi.
- Por quê? – levantei-me. – Quando, agora?
- Não sei por que, senhora. E sim, agora. – e com uma última olhadela em mim, saiu do quarto, fechando a porta devagar.
Eu apenas prendi os cabelos em um coque frouxo e saí do quarto, nem ao menos me olhei no espelho ou manifestei a menor vontade de trocar de roupa. Eu simplesmente não tinha mais cabeça para a vaidade.
Bati na porta com o dorso da mão e esperei. O “entre, por favor” veio logo em seguida.
- Se sente melhor? – ela sorriu.
- Hm, doutora... – sentei-me, desajeitada. – Não faz nem uma hora que nos vimos, eu... -
- , a última vez que nos vimos foi ontem às dez horas da manhã!
Arregalei os olhos de susto, eu não poderia ter dormido por tanto tempo!
- Que horas são? – quase gritei.
- São... – ela olhou rapidamente o relógio em seu pulso. – Cinco e meia da tarde.
- Oh, meu Deus! – olhei por todo o ambiente, perdida, confusa.
- Calma! – ela ajeitou os cabelos despreocupadamente. – Você mesma me disse que não dormia há dias, certo? , você está passando por um processo de esgotamento emocional muito grande, muito stress... A maioria dos nossos pacientes passa por isso, é algo esperado. Principalmente de pacientes como você, que não contam com o apoio de algum familiar, por isso acho que seria ótimo se você contatasse ao ... – vendo minha cara de “nem pensar”, ela continuou. – Outra maneira de aliviar a pressão é fazendo parte dos grupos de ocupação aqui da clínica. Você sabe que temos curso de teatro, pintura, música, artesanato e escrita, não sabe? – neguei com a cabeça. – Oh, nossa! , você não sabe o que está perdendo! Te imagino perfeitamente no curso de teatro ou de escrita! Por que não se inscreve?
- Eu, hm... - olhei para os meus pés, sempre pensei em ser escritora. –Talvez... Escrita.
- Aproveite! – ela sorriu. – Você tem ficado muito tempo trancada no seu quarto! Não posso reclamar dos seus deveres, você cumpre com todos. Mas sobra muito tempo livre! Use-o. A solidão não é a melhor maneira para sair dessa...
- Já me disseram isso. – lembrei-me de Ethan.
- Outra coisa que eu acho fantástica aqui... - Ruby não cabia dentro de si, era visível o amor dela pela Harmony. – Uma vez por mês, trazemos um palestrante para conversar com vocês! Geralmente é alguém que já largou as drogas ou alguém próximo de um usuário. Um psicólogo, médico... E hoje... - ela se aproximou de mim. – A sua história é bem parecida com a do palestrante, talvez você devesse dar uma passada, o que acha?
- Bom... - eu não tinha como dizer não, admito que estava curiosa, mas sem vontade alguma de deixar o meu quarto por mais de meia hora. – Ok. – sorri meio derrotada.
Entrei no meu quarto praticamente me arrastando, sem força alguma. Olhei pela janela e vi o sol se pondo, observei a árvore, onde o frasco de Valium supostamente estivera, e sorri. Eu sentia tanta dor, tanto desprezo por mim mesma, tanta agonia, eu tinha tanto medo... Comecei a rir. Um riso insano, desesperado. Fazia tempo que não ria daquela forma, ria alto e com vontade. Ainda rindo, entrei no banheiro e liguei o chuveiro, encostei-me ao batente da porta e, parando de rir, passei a olhar, pensativa, o vapor que saía do box. Lentamente, tirei as roupas e, antes de entrar no box, olhei-me no espelho. Não consegui encarar-me por muito tempo, assustei-me com o meu corpo... Eu estava pálida, os cabelos desarrumados, os olhos meio perdidos e também não pude deixar de notar que havia ganhado alguns quilos. Ao menos isso de bom.
Samantha passou por mim e me cumprimentou com um aceno de cabeça, entrei no auditório e logo senti uma mão em meu ombro.
- Não pretende sentar aqui no fundo, certo? – Ethan sorriu. – Vamos lá para frente.
Contrariada, sentei-me na terceira fileira do auditório, junto com Ethan. Derick e François estavam atrás de nós.
- Estou ansioso pela palestra de hoje. – Ethan disse, observando o palco.
- Eu, hm, preciso ser sincera. – eu não conseguia mentir para Ethan e, mesmo que tentasse, ele descobriria. – Só vim porque a Doutora Ruby pediu, ela disse que a história do palestrante de hoje se parece muito com a minha.
Ethan me olhou de canto de olho e sorriu, um sorriso que eu nunca vira em seus lábios, um sorriso jocoso. Parecia até que ele estava rindo de mim.
- O que foi? – perguntei, arqueando a sobrancelha. – Disse algo engraçado?
Ele negou com a cabeça e olhou para frente, ainda com aquele sorriso irritante nos lábios.
- Boa noite! – Valerie, uma das psicólogas da clínica, disse ao microfone. – Como vocês sabem, todos os dias cinco do mês, convidamos todos vocês a participar desse encontro maravilhoso, que sempre conta com a participação de um palestrante com uma boa história para compartilhar com vocês. E hoje, como alguns de vocês sabem, o palestrante é daqui mesmo! É um funcionário, ou melhor, uma funcionária da Harmony. Fico muito feliz em anunciá-la e preciso dizer que estou bastante ansiosa para ouvir sua história, por favor, uma salva de palmas para a Doutora Ruby Matteis!
Paralisei. Senti os olhos de Ethan em mim, olhei de soslaio e percebi que ele segurava o riso. Sorri tímida e o encarei. Ruby parou no centro do palco, sorriu e, olhando para mim, disse.
- Boa noite! Sei que alguns de vocês estão surpresos, mas, sim, eu, Ruby, psicóloga de vários de vocês, sou uma ex-usuária de drogas. – ela sorriu. – E tenho a história muito parecida com a de muitos de vocês. – arrumei-me na cadeira, como se num toque de mágica, eu ficara extremamente interessada. – Acho que como boa parte dos usuários de drogas, eu comecei pela maconha. Em alguns casos, ela não é a droga de “abertura para o mundo das drogas”, mas no meu foi. Sempre pude conversar com os meus pais, o assunto que fosse, até mesmo sobre maconha! Uma vez, minha mãe me viu fumando, eu achei que levaria a maior bronca... No fim das contas, ela me ensinou a bolar um baseado como uma profissional. – ela sorriu. – A minha primeira carreira de cocaína eu cheirei com o meu pai. Minha irmã, antes dos quinze anos, já injetava heroína. Minha casa era um eterno Woodstock. Às vezes, minha avó, Lucy, nos visitava, lembro o quanto eu odiava essas visitas! Quando ela estava em casa, nós tínhamos que bancar “os caretas”, minha avó sempre soube de tudo que se passava em casa. Suas visitas começaram a ficar frequentes quando ela percebeu mudanças físicas em minha irmã, Charlie. Ela não crescia, não desenvolvia os seios, emagrecia a olhos vistos e se afastava, cada vez mais, do convívio social. Eu, por outro lado, me mantive na maconha por um bom tempo, experimentei cocaína, mas não gostei. – eu fiz uma careta, descrente. – Isso mesmo, não gostei! Deixava-me muito agitada e eu não suportava os efeitos colaterais! Sentia-me um lixo no dia seguinte. Eu morria de vontade de experimentar heroína, mas cada vez que olhava para a Charlie, eu estremecia. Bom... – ela olhou a todos. – Um dia, minha avó resolveu levar Charlie embora, disse que cuidaria dela e que faria com que ela melhorasse. Minha mãe surtou, disse que Charlie não tinha nada, que nunca deixaria que minha avó a levasse. Eu não disse nada e nem meu pai. Pelo menos, até que Charlie se pronunciou e disse que precisava urgentemente sair daquela casa. Então, meu pai a apoiou e convenceu minha mãe. Depois da mudança de Charlie, minha casa virou de cabeça para baixo, meu pai pareceu querer mudar, mas minha mãe só fazia piorar... Eu continuava na maconha, às vezes tomava ácido, mas nada frequente. Até que... Conheci um rapaz, Christopher, ele era da “turma cool”, se picava e se parecia com um astro do rock. Apaixonei-me perdidamente por ele e ele por mim... Christopher morava sozinho, era carente, dependente, ele não era nada do que tentava mostrar para o grupo. Não demorou muito para que eu começasse a me picar com ele, com o tempo, até cheirar eu comecei. Tudo piorou quando eu decidi que iria morar com ele, pois as visitas de vovó me irritavam demasiadamente, morei com ele por três anos, os piores anos da minha vida! Eu parei tudo o que fazia, eu e ele chegávamos a ficar semanas sem ver a luz do sol, ficávamos dentro do quarto apenas nos drogando e fazendo sexo. No fim desses três anos, eu era apenas um fiapo, meus cabelos estavam podres, e eu quase já não os tinha, minha pele era cheia de marcas e arranhões feitos por mim, estava branca como um fantasma e sem contar com as marcas roxas/pretas de agulhas nos meus braços, pés e outras partes do corpo. Um dia, minha irmã me ligou, minha avó havia morrido. Eu nunca mais havia visto Lucy e Charlie, a última vez que vira, foi no dia que ela foi embora. Ela me perguntou onde eu estava e foi me visitar... Nunca vou esquecer seu rosto quando viu a mim, o apartamento e Christopher! Sua expressão de horror me assustou tanto que foi como se eu estivesse sendo trazida de volta à realidade. Pela primeira vez, corri os olhos pelo apartamento e vi o estado deplorável que eu me encontrava. Antes de cumprimentá-la, caí em seus braços e chorei. E antes que eu pudesse ver, eu estava na antiga casa da vovó! Charlie me levou para lá e tentou cuidar de mim, ela me olhava com medo, com receio. Às vezes, dizia que não acreditava no que havia acontecido! Que não era para ter sido assim, ela, às vezes, se culpava, algo que eu não entendia. Às vezes, eu ficava irritada, me afastava dela, brigávamos, muitas vezes eu bati nela. Meu primeiro cold turkey com ela foi horrível! Vomitei pela casa, quebrei diversos objetos, eu gritava e chorava. Meu corpo tinha espasmos tão violentos que até mesmo ela se assustava! E sem contar com o famoso odor do suor... Nunca me esquecerei desse suor frio, grudento e mal cheiroso. Mas Charlie esteve sempre ao meu lado. Não me deixava sozinha nem mesmo para ir até a padaria. Mas... Christopher apareceu! Ele estava pior do que um morto vivo. Ambos nos assustamos quando nos vimos, eu pela sua aparência medonha e ele por me ver mais corada, gordinha e com os cabelos menos opacos. Aquele dia, ele veio implorar para que eu fosse com ele, eu disse a ele que só iria se ele se mantivesse limpo, que era preciso que ele ficasse sóbrio, que nós dois ficássemos sóbrios. E ele me respondeu rapidamente, olhando em meus olhos: se as pessoas soubessem o quanto dói estar sóbrio, jamais me pediriam isso. Essas palavras me cortaram, me fizeram chorar por semanas, eu morria por ele... Sentia sua dor, eu era o Christopher, fazia parte dele e me torturava saber que ele estava se sentindo miserável e eu não estava ao seu lado. Charlie quase enlouqueceu, tentando me convencer que eu deveria esquecê-lo. E quase morreu quando eu fui embora para encontrá-lo. Hoje eu sei que foi algo pelo qual precisei passar, se eu não fizesse isso, nunca teria paz em meu coração. Voltei a morar com ele, voltei a me drogar, voltei a viver a mesma vida de merda de antes. Até que... – ela parou por um momento, respirou fundo e disse, curta e grossa. – Christopher se suicidou. Ele deixou uma carta explicando sua atitude, disse que não aturava mais viver daquela maneira, mas que sabia que nunca seria capaz de deixar as drogas, me pediu desculpas, jurou amor eterno e tomou o pico de ouro. Sua morte saiu nos jornais e foi assim que Charlie percebeu que deveria me procurar, ela procurou-me por semanas, desesperada, ela tinha certeza que me encontraria quase morta. Até que liguei para ela. Eu estava internada aqui fazia uma semana quando liguei. No dia que Chris morreu, eu me sentei no sofá imundo da sala e me pus a pensar, eu poderia continuar daquele jeito, poderia tomar o pico de ouro ou poderia tentar consertar minha vida. Eu já havia conseguido uma vez, talvez conseguisse de novo. Prometi a mim mesma que se não tivesse conseguido largar as drogas e me manter limpa por um ano, eu me mataria. E foi com esse pensamento que eu entrei na Harmony. Lembro-me de olhar nos olhos de Pollyana, antiga psicóloga daqui, e dizer: “Hey, cara, eu provavelmente tenho mais um ano de vida, mas se você quiser me fazer viver mais, bom, me dê uma força, sacou?” E ela riu. Não foi fácil no começo, nunca é... Mas no final de um ano, eu estava limpa, estava feliz, mas não estava pronta para sair daqui, eu morria de medo de viver no mundo lá fora! Tinha medo de não saber conviver com as pessoas... Charlie me levou para morar com ela. Na primeira semana, comprei um vaso de flores e fiz de tudo para mantê-lo vivo por pelo menos três meses. Eu devo ter matado pelo menos dez mudas de violetas... Mas um ano depois, consegui. Depois, eu comprei um peixe e tentei fazer com que ele vivesse por um ano e lá se vai outra quantidade de peixes mortos por mim. Mas, no fim, consegui também. E foi nesse momento que eu percebi que estava pronta para morar sozinha. Comecei a faculdade de Psicologia e, como eu nunca saía daqui, acabei sendo contratada para ser recepcionista. Quando me formei, passei a trabalhar como auxiliar da Pollyana e agora, nos últimos dois anos, sou psicóloga fixa da clinica. – ela parou de falar e observou a todos nós, senti seus olhos em mim por um momento, olhei para Ethan de soslaio e sorri.
- Você sabia? – sussurrei.
- Sim. – disse, simplesmente. – Ruby foi minha psicóloga quando entrei aqui e eu... – ele me encarou. – Sempre ia às consultas.
- Eu vou às consultas. – disse, rígida. – Quando posso. – sorri.
- Hm... - Ruby começou. – Alguém gostaria de dizer algo? Fazer alguma pergunta? Sintam-se à vontade.
Meia dúzia de pessoas levantaram as mãos, Ruby encarou-me. Seu olhar era quase decepcionado, acho que ela esperava que eu fosse dizer algo. Pobrezinha.
- Eu gostaria de agradecer, doutora! – uma mulher lá no fundo disse. – Às vezes, é difícil acreditar que uma pessoa como a senhora pode ter sido uma dependente como nós.
- Oh, claro! – Ruby disse, sorrindo torto e observando algumas pessoas, concordando com a cabeça. – É muito comum nós acharmos que pessoas com emprego, família, pessoas com status, nunca usariam drogas... Isso está errado! Qualquer um pode se tornar um dependente químico! A droga não vê se você tem dinheiro, filhos, marido, esposa, se você tem pais compreensíveis ou se você é jovem ou velho; a única coisa que ela vê é a sua vida. Para a droga, a única coisa que importa é destruir a sua vida. – precisei rir, achei engraçada a maneira como ela disse. Imaginei-me correndo dentro de um quadrado preto com um come-come correndo atrás de mim. Ri sozinha.
A palestra durou mais uma hora, algumas pessoas perguntaram coisas interessantes, mas nada que prendesse totalmente a minha atenção. Fiquei imaginando Ruby usando drogas, parecia tão impossível! Mas depois de todo esse tempo, seria hipócrita da minha parte dizer que algumas coisas são impossíveis. Impossível é só questão de opinião.


A sétima fase da minha vida

Talvez aquela palestra tenha me interessado muito mais do que eu imaginei, talvez ela tenha mesmo mudado a minha vida. Talvez ela tenha sido a razão de eu ter acordado no dia seguinte com uma ideia fixa na cabeça. E nem o Papa a tiraria de mim.
- Alô? – eu ouvi a voz dele do outro lado da linha – Alô? – eu não conseguia dizer nada – Oi? Ah, por favor. – ele desligou.
Olhei em volta, só para ter certeza que ninguém viu o quanto fui covarde. Disquei novamente.
- Sim. – ele disse áspero, minha voz travou – Alôôôô! – pelo o que eu conhecia do eu sabia que isso estava tirando-o do sério, e foi aí que eu desliguei.
Mais uma vez corri os olhos pela sala de convivência da clínica e dessa vez vi Ethan me encarando, de súbito peguei o telefone e, pela terceira vez, disquei.
- Qual é a sua? – ele gritou. Eu não conseguia dizer nada, minha respiração estava ofegante – Eu posso te ouvir respirando, cara! – Olhei para Ethan novamente e ele sorriu, me encorajando, como se ele soubesse o que eu estava fazendo. E eu acho que sabia mesmo...
- . – eu disse baixo.
- O quê? – ele disse um pouco mais calmo.
- . – falei mais alto – Sou eu, .
Silêncio. Achei que fosse morrer, esses foram os segundos mais longos da minha vida.
- ? – sua voz parecia mais macia, eu me arrisco a dizer que ele sorria, mas não de alegria, talvez, certa alegria descontente. – Onde você está?
- Hm, - respirei fundo – estou na Harmony. Faz quase seis meses.
- Você se internou?! – ele se espantou.
- Sim. – sorri.
- Fico feliz por você.
- , hm. - eu não sabia como pedir isso - Bem, aqui na clínica nos temos umas, hm, reuniões, sabe? – eu estava tão insegura! Gaguejava a cada duas palavras, meu corpo tremia inteiro, e o silêncio dele do outro lado só me assustava mais. – E... Nessas reuniões, bom, a gente tem que convidar alguém para vir falar sobre como a gente era antes das drogas e no que nós nos tornamos, e... Eu não tenho ninguém, a não ser você, .
Silêncio. Eu o ouvia respirar, sua respiração acelerou, e eu sabia que ele respirava fundo, abria a boca para dizer algo, mas não dizia, eu sabia que ele estava indeciso. Esse é o bom e o ruim de conhecer alguém por tanto tempo, apenas a maneira dele respirar me diz o que ele sente, então eu estava preparada, na medida do possível, quando ele me disse:
- Eu não poderei ir. – ambos ficamos quietos. – Eu... Eu poderia mentir, mas não vou, você sabe que eu não sou assim. – eu sorri fraco – , eu não posso mais. Desculpe. Acho que sou um covarde... Mas, a ultima vez que você me deixou... Cara, você realmente me partiu em pedaços! Eu... ... Oh, cara. – ele parou por um instante – Eu te amo, certo? Vou te amar para sempre, mas... Sei lá, talvez a gente nunca, bom, talvez isso não seja o plano de Deus. – eu ri – Eu nunca vou deixar de me importar, mas eu preciso me cuidar também, entende? E me destrói, isso tudo me aniquila. Sinto muito, mas eu não poderei ir.
- Ok. – eu disse rapidamente, antes que ele tomasse fôlego e me dissesse mais mil palavras confusas e torturantes – Eu entendo, .
- , eu... – ele parou – Queria que você me entendesse... Boa sorte.
- Obrigada. – desliguei.
Antes que eu corresse o olho pela sala de convivência, para mais uma vez checar se alguém havia assistido ao meu fracasso, Ethan me achou. Ele estava à minha frente, um sorriso nos lábios. Sorri, como pude, e ia começar o meu caminho para o meu quarto, naquele momento decidi que não sairia de lá nunca mais.
- A primeira ligação nunca é fácil, pequena. – Ethan disse quando eu me afastava.
- Nada nunca é fácil. – disse sem olhar para trás, subindo as escadas e desejando ficar invisível.
Na manha seguinte eu estava tão frustrada que não tinha nem coragem de abrir os olhos. Eu finalmente perdi o , ele finalmente desistiu de mim, abriu mão. Chorei. Chorei ali deitada na minha cama, de olhos fechados e sentindo os raios do sol queimando a minha pele. Entrei em alfa, como diria uma hippie da clínica, não me lembro exatamente o que eu pensei, e nem por quanto tempo fiquei ali. Só me lembro que em determinado momento eu abri os olhos e me levantei da cama, olhei no espelho e sorri, logo meu sorriso se transformou de um gesto doce em um sorriso feroz.
- É mesmo, ?! – eu disse em voz alta me levantando – Você diz que me ama e depois me dá as costas quando eu mais preciso de você? Que diabos de alma gêmea você é, ? – comecei a trocar de roupa – Pois eu vou te provar que sei viver sem você, seu imbecil! Eu sairei dessa sozinha e sem me deixar abalar pela sua falta de lealdade! – arrumei os cabelos com pressa, quase os arrancando – Não se preocupe comigo. Em alguns anos, eu estarei ainda melhor do que você.
Bati a porta e desci correndo, do melhor jeito possível com uma perna quebrada para a reunião, eu estava muito atrasada. Quando entrei Rose havia acabado de perguntar quem gostaria de dar um depoimento, antes mesmo de me sentar eu disse:
- Eu. – corri os olhos pela sala e vi Ethan me olhando desinteressado, me sentei ao seu lado e nem esperei que Rose dissesse algo mais, comecei a contar tudo. – Meus pais eram grandes babacas, quando nasci minha mãe me deixou com meu pai e esse nunca me tratou ou me amou como filha. Dos meus doze anos até os meus quinze anos, o filho da minha madrasta abusava sexualmente de mim, e eu nunca tive com quem contar... Meu pai tinha esse cretino como filho, ele o amava mais do que tudo, eu simplesmente não existia! Um dia sai de casa, fui procurar a minha mãe... Bom. Descobri que ela dizia para todos, inclusive minha avó, irmãos e padrasto, que eu havia morrido, ela nem ao menos me olhou, ficou furiosa e... Tanto faz. Ela nunca se importou comigo, mesmo sabendo do meu vicio e do modo como eu vivia, ela não se dignava a tocar a campainha do vizinho para me ajudar, – segurei algumas lagrimas – eu não tinha para onde ir, e acabei indo morar com um menino, vizinho da minha mãe, e foi com ele que fumei meu primeiro baseado, dei o meu primeiro tiro, tomei acido pela primeira vez... Ele me apresentou a tudo isso. Vivi com ele, como colegas de quarto, por quase dois anos, quando eu percebi que estava me metendo em problemas... Fiz o que sempre faço: corri. Me mudei para Londres e conheci uma prostituta, apenas a ideia de me prostituir me arrepiava, mas com o tempo acabei me interessando. Eu ficava completamente idiota ouvindo as historias das ruas, me interessava muito em como eram os programas, e principalmente eu ficava admirada com o dinheiro que elas ganhavam e com a quantidade de drogas que elas podiam comprar. Não demorou muito e eu comecei a me prostituir... Essa foi a pior fase da minha vida, eu me tornei um farrapo, meus cabelos caiam à toneladas, meu corpo ficou liso, sem curvas, minha saúde ficava cada vez pior e sem contar com a minha pele. Mesmo pálida, eu tinha um tom amarelado, tinha roxos por todo corpo... Eu parecia um zumbi. Não sei como eu ainda conseguia fazer programa! – senti um pouco de vergonha, antes eu me sentia confortável dizendo que era prostituta, mas dessa vez me envergonhei, acho que porque antes eu não era capaz de me ver fazendo outra coisa e agora eu sei que posso ter um emprego “normal” – Eu... – lembrei de – Bom, a prostituta que morava comigo se matou, tomou o pico de ouro e morreu nos meus braços. – senti o peito disparar, e o estomago embrulhar, porque eu não consegui falar do ? – Esse foi o meu primeiro choque. – comecei a chorar – Foxxy, disse que... que... queria que eu me tratasse, disse que ela era um caso sem volta e que sabia que eu nunca iria deixá-la, não enquanto ela estivesse no fundo do poço. Ela se sentiu um peso na minha vida. – minha voz sumiu, eu não conseguia falar mais, me espantei quando percebi que eu nunca mais havia pensado nela... Eu fiquei todo o tempo sentindo pena de mim mesma que nem percebi que eu devia isso à ela. – Depois, - funguei – fui procurar o Kevin, o menino com o qual morei, descobri que ele estava preso. – sorri amarga – E esse foi o meu segundo choque, percebi que quem sempre esteve comigo nessa correria insana estava indo embora, cai em mim e percebi que estavam todos morrendo, ou sumindo, ou... Eu temi pela minha vida. Tive medo de verdade, o que foi muito novo para mim... Eu nunca pensei direito nas coisas, sabe, dizem que algumas pessoas pensam muito antes de fazer algo e que outras fazem e depois pensam, bom, eu não faço nada disso. Eu simplesmente nunca penso. Gosto da adrenalina, de tomar decisões importantes e nem me importar com nada. Gosto de esperar “no que vai dar”. E foi mais ou menos assim que cheguei aqui... – eu ri – Entrei no carro e me lembro de dirigir com raiva, eu apertava o volante com toda a minha força e quando entrei na clínica quase gritei para a Anne – recepcionista – “me deixe ver a Ruby, sua vadia engomada!” E... Aqui estou.
Todos me encaravam, Samantha sorria, Ethan estava de olhos arregalados.
- Me desculpem pela ausência de detalhes, ok? – falei baixo – Eu tenho um pouco de dificuldade em—
Ethan tocou minha perna de leve e disse em voz alta:
- Tudo bem. – ele sorriu – Cada um conta o que quer e o que pode.
Rose começou a dizer algo, na certa algum tipo de reflexão sobre o que eu havia dito, mas eu não ouvia nada. Estava me sentindo mais leve, e até mesmo mais feliz, mas... Atormentou-me um pouco não ter dito nada sobre o , não consegui se quer dizer seu nome!
O resto da reunião correu tranqüila, digo, na medida do possível... A irmã mais velha de Michael foi convidada a participar, eu não prestei muita atenção ao o que ambos diziam. Minha cabeça estava em outro lugar. . Eu ainda não acreditava que ele havia desistido de mim! Algo bem lá no fundo continuava a dizer-me que ele voltaria atrás, que ele nunca faria isso comigo, e outra coisinha, bem pequena, lá no fundo dizia em resposta: “Levante-se, você não precisa importar-se com isso, viva a sua vida por você, e só por você! Mostre a ele que você é capaz.” Meu ego se inflava nesses momentos, e era nesses momentos que eu fazia mil planos sobre a minha vida, foi em um desses momentos que eu decidi que iria viajar o mundo, fazer teatro, escrever um livro e me casar com alguém que me amasse e me respeitasse. Eu estava feliz! Sentia-me livre. Sabe, eu vivia apenas pelas pessoas à minha volta, sempre foi assim, antes eu dizia que não era feliz porque não era amada pelo meu pai e eu fazia de tudo para agradá-lo, depois corri atrás de minha mãe e, bom, digamos que ela correu na direção contraria; e então as drogas... A vida com o Kevin e com Foxxy, eu vivia por eles, principalmente pela Foxxy. E teve o ... Por muito tempo eu o coloquei como razão da minha alegria e como tudo o que eu tinha. E só depois de ter perdido todas essas pessoas eu vi quem realmente importava: eu. Apenas eu tenho o poder de infernizar a minha existência! E apenas eu posso suavizar as minhas dores. Eu preciso aprender a viver por mim, porque eu mereço isso. EU. EU. EU. EU. É tão bom dizer “eu”! Foi em um desses momentos em que meu ego se inflou que eu me tornei vaidosa e passei a me amar. E eu estava tão feliz que todos percebiam! Ethan cansou de dizer-me o quanto eu estava mais bonita do que quando cheguei; claro que dizia com todo o respeito, era o Ethan.
Fazia pelo menos dois meses desde que eu havia telefonado ao . Dois meses que tudo havia mudado. Dois meses recebendo elogios e encarando a vida de maneira diferente, e foi por isso que não estranhei quando Ruby mandou chamar-me em seu escritório.
Pensei que Ruby estava interessada na minha súbita mudança de atitude sobre a vida e seus pormenores.
Sai correndo da enfermaria, pois graças a Deus estava tirando o gesso da perna, e fui encontrar com Ruby, eu estava nervosa, mas não de maneira ruim, era um nervoso bom, tipo aqueles que sentimos em uma montanha russa ou quando algo muito bom esta prestes a acontecer.
- . – ela disse sorrindo quando entrei em seu escritório. – Tudo bem? – fiz que sim com a cabeça e me sentei sorrindo – Você está diferente, minha querida! O que aconteceu?
- Eu, hm, - me ajeitei na cadeira – não sei explicar! Simplesmente percebi que existe apenas uma pessoa que está comigo desde o dia que nasci até o dia que morrerei: eu. Decidi que eu vou tomar as decisões da minha vida. Vou viver por mim, vou ser feliz, porque eu mereço. Construirei uma vida longe das drogas, porque preciso disso.
Ruby me encarava com um olhar surpreso e orgulhoso.
- Fico muito feliz em ouvir isso, . – seu sorriso mal cabia em seu rosto – Sempre é uma enorme satisfação quando escuto algo assim de um interno. – ela sorriu e mexeu em alguns papeis em sua mesa – Você já se acha preparada para o “mundo lá fora”?
- Não. – disse direta.
- Ok. – Ruby correu os olhos por mim e pelas folhas – , o relatório da Rose diz que você deu um depoimento, um dos bons por sinal, mas, que ninguém veio falar sobre você. – antes que ela tomasse fôlego para dizer algo mais eu disse:
- E ninguém irá vir, Ruby. – encarei meus pés e sorri amarga – Sou sozinha, só tenho a mim.
- Isso não é verdade. – disse abaixando os papeis – Você tem o , não é mesmo? Talvez essa seja a hora de chamá-lo e de deixá-lo saber sobre a bela surpresa que você planejou para ele.
- Não. – eu disse ríspida.
- Hm, – Ruby tirou os óculos e encarou-me – há algo que você gostaria de conversar comigo? – fiz que não com a cabeça – , - ela levantou-se e se sentou ao meu lado – sejamos sinceras, certo? Nunca houve surpresa alguma, eu sei disso. Por que você não me conta tudo o que aconteceu? – fiquei calada – Sabe, quando alguém se interna é de praxe que a pessoa passe por uma entrevista, que ela nos diga como veio parar aqui, se tem família, e porque quer estar aqui. No seu caso, eu pulei esse passo porque percebi que você estava bastante perturbada e por saber que você é amiga de , resolvi esperar até que você estivesse pronta para termos essa conversa. – me mantive quieta por mais alguns minutos e disse:
- Ainda não estou pronta. – Ruby sorriu com ar de fracasso e voltou a sentar-se em seu lugar.
- Acredito que por hoje seja só isso. – sorriu.
Quando eu estava saindo do escritório, quando estava fechando a porta, ela pigarreou e disse baixo:
- Sabe que essa conversa acontecerá mais cedo ou mais tarde, . Talvez antes do que você planeja.
Não olhei para trás, sai, fechei a porta e fui para o pátio. Eu olhava em volta com olhos infantis, tudo parecia novo, nada fazia apologia a algo ruim, quando dei por mim eu estava em frente ao telefone publico da clinica, disquei o numero de e ouvi chamar. Senti como se estivesse ali a uma eternidade, só chamava e ninguém atendia. E eu nem ao menos sabia por que estava ligando para ele... Eu só queria ouvir a sua voz e agradecer por ter me deixado. Essa foi definitivamente a melhor coisa que havia feito, até então, para me ajudar. Eu queria dizer o quanto eu estava bem, o quanto eu amadurecera, e o quanto eu o amava. Liguei mais de três vezes e sempre a mesma coisa: chamava, chamava e ninguém atendia. Olhei para o relógio e vi que a reunião já iria começar, eu estava atrasada para falar a verdade, mas eu não queria de jeito algum sair de perto daquele telefone, eu queria continuar tentando ligar para o . Mas... Eu não podia fazer isso, eu precisava ir para a reunião. Com o peito em agonia segui para a sala 23C, no segundo andar de terceiro prédio.
- Bom Dia! – Rose disse sorrindo, havia algo de estranho naquele sorriso – Como estão todos vocês? Passaram bem desde a ultima vez que nos vimos?
Alguns de nós sorriram, outros apenas balançaram a cabeça, eu nem me movi.
- Quem gostaria de contar um pouco de sua historia hoje? – Ethan levantou a mão – Ethan? Oh, que ótimo. – Rose sorriu falso.
- Olá, - ele começou – bom, não sei como começar isso. – ele riu – Eu estou sempre tentando ajudar, sempre de olho se todos estão bem, mas acho que isso é apenas uma maneira de tentar fazer com que eu não me preocupe comigo... – ele riu fraco - Eu era um pintor, um artista! Minha mãe não entendia nada do que eu pintava, mas sentia enorme orgulho de mim, meu pai faleceu quando eu tinha apenas cinco anos, desde sempre foi eu e mamãe, até que conheci a Ephedrine, sim, esse era o seu nome de verdade, - ele riu – nós nos tornamos amigos inseparáveis, tínhamos dezenove anos, e eu estava indo muito bem com a pintura, alguns quadros sendo expostos em grandes e renomadas exposições... Ephedrine tinha um amigo, Anthony, nós... Anthony e eu... – Ethan ficou quieto, olhava para todos os lados, observou o chão dizendo – Nós nos apaixonamos aos poucos, no começo foi bastante confuso e quando nos demos conta estávamos vivendo um típico romance teen. – olhou em volta, encarando a todos, o incentivei a continuar – Ephedrine, com o tempo, começou a se distanciar, ficou estranha. Tinha ciúmes tanto de mim como dele, e logo tudo ficou uma merda. Nós namorávamos escondido de absolutamente tudo, da sociedade, dos nossos pais, dos nossos amigos, só éramos quem queríamos ser quando estávamos sozinhos, e foi assim por muito tempo. Minha carreira estava dando dinheiro, finalmente, então comprei um apartamento no centro de Londres e Anthony foi morar comigo, nossa vida se transformou em festas e em conhecer pessoas fúteis... As drogas, claro, vieram como brinde! – riu – No começo era só um “tirinho”, ah só uma “carreirinha, brother! Não vai fazer ma!”, “Você se sente o super homem!” A cocaína é uma merda. – disse simplesmente – Te faz sentir o super homem, mas acaba com a sua vida. Acaba com a sua mente. Acaba com tudo o que você conhece. Anthony cheirava para tudo, qualquer coisa que ele fosse fazer ele precisava dar um tiro antes, e eu acompanhava... Eu sempre acompanhei Anthony em tudo. Absolutamente tudo. Até o dia em que ele me deixou... – Ethan serrou os punhos – É, aquele desgraçado me deixou! O cretino me trocou por um... Um... Sei lá como eu posso explicar! Me trocou por um maldito medico viciado em anfetamina. Eu fiquei aniquilado! Não conseguia mais pintar, eu não conseguia mais viver... E acho ‘ciar, quando dei por mim eu estava... – Ethan olhou em volta e parou o olhar em mim – me prostituindo. No começo eu não cobrava, mas depois de um tempo sem pintar o dinheiro sumiu, e eu precisava de grana pras drogas e para comer... Minha mãe entrou em depressão, me ligava todos os dias apenas para saber se eu continuava vivo, às vezes aparecia em casa de madrugada e apenas chorava na porta do meu apartamento. Eu encostava a cabeça na porta e chorava junto com ela. Eu não tinha coragem de abrir a porta ou de pronunciar nada, mas um dia eu a chamei, ela não respondeu de imediato, a chamei três vezes até que respondesse, não precisei dizer nada, ela parou de chorar e disse: “conheço um lugar, Ethan, vão te tratar bem lá”. E eu vim para cá. Dois meses depois minha mãe morreu... Eu devo isso a ela. Eu preciso ficar bem. Preciso largar as drogas. Por ela. – seus olhos estavam cheios de lágrimas, e aos poucos uma a uma foram descendo pelo seu rosto, me segurei para não correr até Ethan e abraçá-lo.
- Ethan, - eu disse – você precisa fazer isso por você! É você que precisa largar as drogas, que precisa se manter limpo e saudável, sua mãe não usava cocaína. Tudo o que você tiver que fazer nessa vida faça com que seja por você e mais ninguém, se não poucas vezes irá valer à pena, e se doer... Ai é porque realmente valeu à pena.
Ele me encarou, algumas lágrimas rolando pelo rosto, Ethan sorriu, eu havia acabado de dizer a ele exatamente o que ele me disse quando eu cheguei. Às vezes dizemos às pessoas o que queremos ouvir sobre nós e não temos coragem de dizer em frente ao espelho, se a pessoa for realmente nossa amiga e nós conhecer de verdade, um dia nós dirá as mesmas palavras quando necessário.
Rose começou uma pequena reflexão sobre a historia de Ethan, fazia algumas perguntas a ele, e a todos nós, e eu não prestava atenção. Como sempre. Estava pensando em como a vida é estranha, como tudo é meio bagunçado, quanto mais às coisas parecem mudar mais elas continuam a mesma coisa. E ngraçado não? Eu vivi praticamente um ano junto com uma pessoa com uma historia praticamente igual a minha e nem ao menos percebi, eu precisei perder a única coisa que me fazia querer viver para que eu começasse a viver! Entende que louco isso? Eu não via outro motivo a não ser o para continuar viva, e quando eu o perdi eu descobri que na realidade eu já estava morta... Foi sem ele, sem ter nada a perder, que eu me entreguei de cabeça nesse lance de deixar as drogas, de auto-conhecimento, de autocontrole, foi sem ele que passei a viver por mim, e agora eu posso pensar nele, posso deixar que ele participe da minha vida. Estava pensando em tudo isso e ao mesmo tempo ouvindo, com alguma parte minúscula do meu cérebro, o que Rose dizia:
- Hoje teremos uma visita bastante especial. – ela pigarreou – Você mentiu quando disse não ter ninguém, não é mesmo ? – riu – Temos uma visita para você.
Entrei em choque. Cai da minha nuvem de pensamentos com uma rapidez inexplicável, endureci na cadeira e com olhos assustados observei todos ao meu redor, parando o olhar na porta que se abria lentamente.
- Seja bem vindo, .
Ok. Eu preferia que o próprio Rei das Trevas estivesse parado na minha frente do que cabisbaixo e vermelho.
- pode se sentar, - Rose disse sorrindo – isso, nessa cadeira em frente à .
Eu não conseguia olhar pra outro lugar sem ser os olhos de , tudo a minha volta sumiu, tornaram-se borrões os meu amigos, não conseguia olhar pra mim e eu ficava insistentemente procurando seu olhar com o meu. Ele se sentou e aos poucos levantou o olhar e me encarou, eu sorri tranqüila, ele parecia um pouco assustado e envergonhado.
- Por... – começou devagar – Por onde posso começar? – levantou o olhar olhou para mim e rapidamente virou-se para Rose.
- Comece como você achar melhor, . – ela sorriu.
- Eu. – ele parou, encarou o chão e aos poucos subiu o olhar para mim – Conheci a quando éramos adolescentes, foi por acaso em um mercadinho de bairro. Na época ela morava com o Kevin, um viciado, - ele parou e olhou para Rose – desculpe, um usuário de drogas. Eu não cheguei a conhecê-la sem as drogas, a conheci quando ela começava a usá-las. Mas mesmo assim, as diferenças foram obvias... Com o tempo a menina tímida e um pouco fechada que eu conheci se tornou em uma predadora. Ela passava noites em claro, usando drogas, ou passando mal, dormia o dia inteiro, ela foi se apagando... O sorriso amarelou, o cabelo se tornou opaco, seu corpo empalideceu. Eu em pouco tempo já não a reconhecia. Mas eu... – ele mais uma vez parou, ficou me observado por um tempo e disse – Eu a amava. E me matava vê-la como estava, eu não suportava carregá-la bêbada para casa, ou simplesmente assistir sentado em quanto ela “bolava um baseado”, e ela sabia disso... Você sempre soube, . E isso é o que mais me faz mal! Me sinto um idiota... Duas vezes, , duas vezes eu fui até você, eu te pedi que me deixasse te ajudar, pedi que me desse uma chance para provar o quanto você merecia ser feliz e nessas duas vezes você me deu as costas... Me deixou sozinho. Sabe quantas noites não dormi pensando que você estivesse morta? Perguntando-me, caso existisse vida após a morte, se você viria se despedir de mim? No dia em que fui te buscar naquele pulgueiro que você morava com a Foxxy para te levar ao hospital, lembra? O dia que você teve um principio de overdose, eu entrei em estado de choque, eu pensei que morreria junto com você, a única coisa que eu pedia a Deus era: “por favor, Deus, ela não”. Quando te vi naquela cama de hospital... – sua voz sumiu – eu não sabia o que fazer... Você estava tão frágil... Tão pequena em relação ao mundo... Pela primeira vez eu pensei em, de fato, desistir e não apenas ficar pensando nisso. Eu tive certeza que você não viveria mais um ano. E eu ia embora, eu ia voltar para casa e apenas ficar esperando ver no jornal das nove uma reportagem sobre uma prostituta usuária de cocaína encontrada morta em algum beco de Londres... Mas eu quis, eu precisava tentar mais uma vez, e pela segunda vez eu tentei te oferecer a mão e você fugiu. E dessa vez mais cruel ainda, você me deu esperanças, , e depois sumiu de madrugada. Eu acordei com você fechando a porta do quarto aquela noite, pensei em ir atrás, tentar te acalmar, te abraçar, mas... Naquele momento eu percebi que já não sabia se o seu amor me machucava mais quando te tinha comigo ou quando você não estava por perto. Na mesma noite eu voltei para casa. E há dois meses quando você me ligou eu fiquei sem reação, eu achava que você havia morrido, ou saído do país... Eu – ele parou de novo de falar, parecia envergonhado – Fui atrás de você no antigo apartamento, descobri que Foxxy tinha morrido e então tive certeza que você também. E quando você ligou me senti envergonhado, patético... Eu queria te dizer palavras de conforto, queria dizer que sentia saudades e que ainda te amava, mas eu não consegui, me senti tão mal por ter desistido de você que achei melhor que você achasse que eu havia desistido mesmo... Eu. – eu conhecia muito bem, e eu já sabia o que estava por vir, por isso antes que uma única lagrima rolasse me atirei aos seus pés e o abracei – Oh, cara. – ele murmurou quando sentiu meus braços em seu pescoço, ele estava gelado, suando frio, e tremia um pouco, eu nunca o tinha visto tão vulnerável, exceto aquele dia na casa de Kevin, quando acordei com ele chorando.
- Desculpe, me desculpe, por favor, oh ... – eu dizia o apertando cada vez mais forte contra o meu corpo – Eu não sabia o que fazia, não sabia quem eu era, ou o que eu poderia ser... Eu não sabia nada! Estava tão perdida... Ah, ... – eu comecei a chorar – Me perdoe! Por favor! – segurei seu rosto entre as mãos e olhando em seus olhos pedi desculpas mais uma vez.
Ele não dizia nada, apenas chorava junto comigo, e apertava suas mãos em minha cintura, olhava cada detalhe do meu rosto.
- Aquele dia eu fui embora porque a Foxxy precisava de mim, - eu o encarei – eu não poderia ir embora e deixá-la! Eu fui conversar com ela, tentar convencê-la de se tratar comigo, mas quando cheguei era tarde de mais... – soltei meus braços de seu pescoço e me sentei no chão – , eu precisava disso, sabe, passar por isso sozinha. Eu tinha que entrar aqui sozinha, e finalmente, aprender que só eu poderia me forçar a largar as drogas, eu precisava fazer isso por mim. Não por você, ou pela Foxxy, só por mim, porque só eu posso me cobrar isso até o fim da minha vida. Eu precisei perder tudo o que tinha para perceber que EU sou tudo o que tenho. – sorri – , você me ajudou mais do que qualquer outra pessoa! Você fez com que eu me visse! – e num misto de choro e riso me ajoelhei e toquei suas mãos – , eu quero viajar o mundo! Escrever um livro, fazer teatro, ter filhos e quem sabe morar em uma casinha azul de cerca branca e ter um cachorro labrador chamado Bob. Hoje em dia eu sonho, . – gargalhei. – E eu, bom, eu queria poder te incluir nos meus sonhos... – me afastei um pouco dele e esperei sua resposta.
- Seria injusto você não me incluir nos seus sonhos se eu sempre te incluo nos meus.
Ouvi um suspiro, olhei para trás e vi Samantha sorrindo, com um olhar materno, corri os olhos por toda a sala, percebi que não estava sozinha com , me senti corar, eu havia esquecido completamente que não estávamos a sós. Olhei para e vi que ele havia percebido a mesma coisa que eu, rimos um para o outro, igualmente corados.
- Bom. – Rose estava sem jeito, acho que aquela foi a primeira vez que deu certo trazer alguém de fora para as reuniões, digo, a primeira vez que houve de fato uma reconciliação – acho que... Se ninguém tiver mais alguma coisa para dizer, podemos dar essa reunião por encerrada. – ela estava tão sem graça, que nem ao menos quis fazer a reflexão que fazia ao fim de cada reunião.
Mais que depressa todos saíram da sala, inclusive eu e . Eu e de mãos dadas. Sorrindo. Felizes. Juntos.
Eu não podia acreditar que estava ao lado dele, que eu estava vendo seu rosto.
- , porque você veio aqui hoje? – eu perguntei quando saímos do hall da clinica, indo para o pátio aberto.
- Ruby. – eu o encarei – Ela me ligou, disse que você estava diferente, que achava que em pouco tempo você sairia daqui, ela achou que eu gostaria de saber disso, e eu por impulso perguntei a ela sobre essas reuniões e ela acabou me convencendo...
Eu não disse nada. Sorri para ele, e me sentei na grama ao seu lado, sentindo os raios de sol queimando minha pele. Me lembrei dos nossos dias sentados sob a sombra da Dolores.
- Fico feliz que ela tenha te convencido.
- Eu também. – ele passou o braço pelo meu ombro, me abraçando, e me puxando para mais perto. – Senti tanto a sua falta, pequena. – estremeci, era tão bom ouvir ele me chamando de pequena.
- Fala que eu sou a sua menina? – eu ri, gostava tanto quando ele falava assim, até seu tom de voz era mais doce.
- Não. – disse olhando em meus olhos – Você já não é a minha menina, você é a minha mulher. Hoje você não precisa mais de mim para te proteger, para cuidar de você, hoje você pode fazer isso sozinha, você é uma mulher, a dona da sua vida. , você esta, finalmente, livre! Você percebe isso, pequena? Mais, o que, dois meses? E você pode sair daqui! Levar uma vida normal... Nossa. Se eu pudesse te levava pra casa agora.
- Easy tiger! – eu ri – Não é assim. – ri mais ainda com a sua cara de frustração – Preciso ir com calma, , quando eu sair daqui vou primeiro arrumar um emprego, e um vaso de violetas. – sua cara de interrogação foi tão doce que não me contive e o abracei encerrando o assunto. – Gosto do seu cheiro.
- Gosto de você. – ele disse beijando o topo da minha cabeça.
A vida nunca pareceu tão justa. Tudo estava perfeito, ou melhor, nada é perfeito, então, tudo estava como eu queria que estivesse. Eu tinha certeza que me manteria limpa, tinha certeza que iria me amar mais, me conhecer mais, me respeitar mais, e tinha certeza que teria comigo.
Foi difícil quando foi embora aquele dia, o peito doeu como já não doía, parecia que eu nunca mais o veria.
- Semana que vem eu volto, pequena. – ele segurou meu rosto entre as mãos e me beijou, incrível como só ele tinha aquele beijo, ninguém nunca me fez tão feliz e satisfeita com apenas um beijo. – Eu te amo.
- Eu te amo, . – eu disse quando ele passou pela porta de vidro, saindo da clinica.


Epílogo

Quando tranquei a porta do quarto 12B senti que estava deixando uma parte de mim para trás, coisas ruins e boas, me lembrei do dia que tive a idéia de escrever minha historia...
Quem diria, ahn? Eu, , cem por cento limpa, feliz, e escrevendo o epílogo de um livro sobre mim!
O dia que sai da clinica foi um dos dias mais reconfortantes de minha vida, me senti tão... Mulher. Senhora de mim. E o fato de estar ao meu lado, carregando minhas coisas, só fez com que o dia fosse mais gratificante ainda.
- Não sei como faria isso sem você. – eu sorri, colocando o cinto de segurança, quando entramos no carro. – Obrigada.
- Há muito tempo te prometi que te provaria que você pode ser feliz, e, você sabe como eu sou, não? – ele riu – Um homem muito compromissado com as promessas. Eu quero estar presente em todos os momentos, e sempre te mostrando de onde você pode achar a alegria.
Oh, meu namorado era um poeta. Músicos... Sempre falam bonito e com paixão, não sou a primeira nem a ultima a se apaixonar por isso. Selei meus lábios com os dele e sorri, a cada segundo perto dele eu tinha mais certeza que o amava.
- Música. – eu disse já ligando o rádio, sorri. Estava tocando uma música que me acompanhou por esse um ano que fiquei na clinica, eu estava sempre a cantarolando, sempre cantando e escrevendo sua letra em qualquer pedaço de papel, não pude evitar sorrir e deixar algumas lágrimas escaparem, aquela musica já não fazia mais parte da minha vida, eu já não estava estagnada em um momento, eu havia conseguido me reerguer.
- I never thought you were a fool, but, darling look at you. (Eu nunca pensei que você fosse idiota, mas, querida, se dê uma olhada) – cantou ligando o carro. – You gotta stand up straight... (Você precisa se reerguer) – ele parou de cantar e passou a mão em meu rosto, limpando minhas lágrimas -…these tears are going nowhere, baby… (essas lágrimas não vão a lugar algum baby).
- You’ve got to get yourself together, you’ve got stuck in a moment and now you can’t get out of it… (Você precisa se reerguer, você está presa em um momento e agora não consegue sair dele.)- eu cantei, sorrindo, e tentando, sem sucesso, parar de chorar.
- Don’t say that later will be better, now you’re stuck in a moment and you can’t get out of it. (Não diga que mais tarde será melhor, você está presa em um momento e não consegue sair dele.) – Cantamos juntos.
Eu estava ansiosa para ver como estava o mundo, se as pessoas continuavam as mesmas, queria mostrar a todos que eu era uma nova pessoa, e que a musica: Stuck in a Moment do U2 não mais falava de mim.
Nunca estive tão confiante e sedenta para viver.

. Londres, 02 de Abril de 2010.




Fim!



Nota da autora: Hm, ok. Não sou muito boa nessas coisas... O que dizer de Drogada e Prostituida ahn? Foi uma delicia escrever essa fic! Lembro-me quando tive a idéia de escrevê-la: eu estava deitada quase dormindo e do nada a historia me veio à mente, na hora peguei um pedaço de papel e tracei toda a linha do tempo da historia. Demorei para escrever, porque nunca queria terminar... Eu realmente adorei escrevê-la! Haha.
Gostaria de esclarecer certas coisas! (:
Primeiro: sim, a Foxxy era apaixonada pela principal.
O Ethan foi baseado em um grande amigo meu que eu amo de paixão chamado Felipe.
A historia do Derick sofreu forte influencia de Christiane F, digo, não copia! Eu apenas encaixei uma historia na outra, ou seja, a tal e Stella e o tal Sound em Berlim realmente existiram.
E, bom, tem um pouco da minha historia na da principal.
Ah, eu sou Fletcher... Por isso às vezes o principal ficou meio bixa HAHAHAHAHAHAHA’ Brincadeira.
Ah, sei que o começo da fic ficou muito sem detalhes, mas isso é por causa da continuação, na parte dois eu vou esclarecer tudo o que não esclareci agora.
Eu adorei a Lilá, gostaria de poder explorar muito mais essa personagem... Talvez eu d~e um jeito de encaixá-la na parte dois (na realidade os personagens que mais gostei foram a Lilá e o Ethan).
A Penny, irmãzinha dela, ainda vai ter muito mais destaque.
O filme: 28 Dias com a Sandra Bullock me serviu de inspiração.
E escolhi terminar a fic com a música do U2 um dia que estava voltado do trabalho ouvindo a musica e comecei a chorar pensando na fic (emo? é, eu sei).
Acho que só.

Agora quero agradecer a todo mundo que leu, todo mundo que comentou, e que deu uma chance a essa fic. MUITO obrigada de coração!
Quero agradecer à minha Beta Isabela que, pacientemente, agüentou os meus e-mails surtados haha (:
Agradecer as minhas McGirls:
Ana - que leu a fic umas vinte vezes antes de eu mandar pro site, não sei o que seria de mim sem vc amiga, companheira de marido (mas o Tommy é mais meu) tchau.
Tati e a Ju - que não leram a minha fic, mas eu as amo.
Camys - ai amiga vc é tão linda que PRECISO de dar ao menos um oi aqui ‘-‘
Gabs - maconheira da USP, brincadeira sua linda, não me mate.
Deia - linda, que sempre leu as minhas fics desde o começo, sempre me apoiou.
E ao meu McBoy, (ou McBeesha): Bruno *-* Meu melhor amigo, meu Poynter, meu burrinho, meu Taio Cruz.
Agradecer ao McFly, agradecer a minha mãe por ter me colocado no mundo, agradecer a J.K. Rowlling por fazer da minha adolescência uma delícia, agradecer ao Ian Somerhalder por existir e fazer do mundo um lugar mais belo, agradecer ao dono do bar roxo na Augusta pela melhor pinga artesanal de Sampa. E ta, chega. Me empolguei.

Isso ficou enorme! Deus.
Qualquer coisa, se quiser falar comigo: twitter (@xxxraay) Facebook (Raay Morone) Tumblr (xxxraay) E-mail (rayane.morone@hotmail.com)




Outras Fanfics:
Last Wish, McFly - Finalizada.
Old Times, McFly - Finaizada.
Nascido Sob Um Signo Ruim, McFly – Finalizada.
O Brilho do meu Olhar Reflete do Seu, Cine – Finalizada.

Para deixar todo mundo curioso sobre a continuação:

Drogada e Prostituida – Parte II.

(...)
- , vai se arrumar! – disse calmamente, terminando de abotoar a camisa. – Anda, eu te dou uma carona. – vendo que eu nem me movi, abriu o armário e tirou de lá um vestido azul marinho de algodão molinho e que ficava na metade da minha coxa. – Vista isso. E... – correu os olhos pelo chão do quarto e chutou um par de sapatilhas pretas. – Isso aqui também. – encarei-o, quase sorrindo. – Vamos, amor! Se troca! Seus cinco minutos estão acabando. – olhei para o relógio, três minutos, pulei da cama e me vesti em meio minuto.
E exatamente no horário em que deveria estar me encontrando com Tyler, eu saí da garagem com . Eu era britânica, mas minha pontualidade não.
Tyler Singer era um homem alto, não muito mais velho que eu, o que, a princípio, deixou-me desconfiada, vinha de uma das famílias mais tradicionais de Londres, era conhecido pela sua perspicácia e inteligência. Tinha fama de Rei Midas, tudo o que tocava virava ouro. E não gostava dele, dizia que Tyler venderia a própria mãe se fosse conseguir um bom dinheiro com isso, eu negava, mas sabia que era verdade. Mas Tyler transformou o meu livro em um sucesso, conseguiu entrevistas em programas que eu nem imaginava que iria um dia participar da platéia, quem dirá ser entrevistada. E agora ele estava estudando a possibilidade de transformar meu livro em filme e peça de teatro. Eu achava que era demais! Ou filme, ou peça. Mas ele sempre respondia: “Filme para o povão, peça para o povão que se diz culto, !” E quando eu perguntava o que faríamos para as pessoas que não faziam parte do “povão”, ele dizia risonho: “Gata, eles nem vão querer saber da sua história!” E antes que eu pudesse me ofender, completava: “Eles já tem a própria história com drogas e sexo, não precisam de outra.”
(...)



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