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Capítulo Um.



Eu sempre mantive uma vida escolar normal, ou seja, sempre fui uma aluna normal. Estudava quando faltava uma semana para a prova, tinha certa amizade com os professores e minhas notas eram suficientes para que eu passasse de ano – às vezes com a ajuda de uma colinha esperta. Não era popular, mas tinha bastantes amigos, e vez ou outra um namoradinho, mas nada realmente sério, e meus pais sempre diziam como eu deveria dar mais atenção aos estudos e todas essas coisas e como gostariam que eu entrasse em uma universidade pública, o que gerava grande pressão em mim. Ou seja, eu era uma adolescente normal vivendo uma vida normal. Mas as coisas mudaram quando eu entrei no último ano do ensino médio. Ano novo, alunos novos, e boa parte deles não era exatamente o que se poderia chamar de boas companhias. Uma delas era Emma, típica garota rebelde cujo único objetivo na vida era eliminar tudo o que a fizesse infeliz, e a escola era uma dessas coisas. Ela frequentava as aulas, mas quando não estava tirando sarro ou batendo boca com alguém, estava dormindo. Suas notas eram inexistentes, assim como sua estrutura familiar. E eu... Bom, um belo dia ela puxou papo comigo e nós começamos a sentar juntas. Foi quando eu entrei na dela e me deixei influenciar, já que eu também nunca senti nenhum prazer em pegar nos livros. Emma tinha personalidade forte e nenhum medo, tudo o que queria fazer ela simplesmente ia e fazia. Eu admirava isso nela. O impossível, em seu ponto de vista, sempre fora mera questão de opinião. Eu passei a frequentar os mesmos lugares que ela e a deixar os estudos em segundo plano. O auge da minha irresponsabilidade veio um mês depois, quando ela me apresentou Chad, um garoto com os mesmos objetivos de vida dela. Nós nos envolvemos e, bem, eu me afundei. E só fui perceber o quão fodida eu estava quando Emma foi pega fumando maconha dentro da escola e, consequentemente, expulsa, me deixando com nada mais, nada menos que vários boletins vermelhos, uma imagem borrada e um pai e uma mãe – que não sabiam da missa o terço – inconformados com minha ruína.

Eu sabia que levaria o maior esporro da face da Terra assim que me sentasse àquela cadeira, mas não tinha como fugir, como adiar e muito menos como desfazer a cagada. Então, eu simplesmente me sentei e esperei pacientemente, de cabeça baixa, a voz de meu pai ecoar pela cozinha.
-Eu não sei mais o que fazer com você, – Mantive os olhos fixos em minhas mãos em cima da mesa de vidro enquanto ele começava, com uma voz decepcionada, um sermão infinito – Sinceramente, eu não sei... Tudo o que eu podia fazer por você eu fiz, tudo o que você quis eu dei, e você sabe com que sacrifício. Deus, quantas vezes nós já nos sentamos aqui para discutir esse mesmo assunto? Quantas, ? Quantas vezes eu te falei sobre a dificuldade de se arrumar um emprego sem um diploma universitário? Aliás, dificuldade não, da quase impossibilidade? O que você pensa da vida? – O tom dele sofreu uma leve alteração nas últimas frases, o que me fez comprimir os lábios.
-Você acha isso bonito, menina? – Minha mãe finalmente se pronunciou agressiva, pegando sem delicadeza o boletim que eu mostrara minutos antes – Isso é uma vergonha, , uma vergonha! É com isso que você quer passar de ano?
-Pensa um pouco, minha filha! – Meu pai interrompeu – Você é uma menina inteligente, eu não preciso te dizer o tipo de emprego que você arrumaria com essas notas. Olha para mim, – Só então pude ver a expressão cansada e os olhos fundos dele. Aquilo me fez sentir um aperto no peito, eu sempre estive mais do que consciente sobre as dificuldades que meu pai passava para me estudar, me proporcionar uma vida melhor do que a dele, mas, cara, como eu detestava um livro – Sabe, , eu sempre quis o melhor para você... Tanto eu quanto sua mãe, e você sabe muito bem disso. Eu sonho com que você tenha uma vida boa, onde possa comprar as coisas que gosta, viajar para os lugares que quer, enfim, meu sonho é te ver feliz... E olhando isso aqui – Ele tirou o boletim das mãos de minha mãe e colocou na minha frente, apontando para as várias notas vermelhas – Eu sei que não é isso o que você vai ter, porque, sejamos francos, dinheiro compra boa parte da nossa felicidade, sim. É muito bom ter com o que pagar as contas no final do mês, muito bom ter com o que sustentar uma família, comer em um bom restaurante, desfrutar da vida...
-Essas notas são ridículas, – Minha mãe o cortou ainda agressiva – Não foi para isso que eu e seu pai te colocamos na melhor escola dessa cidade, não foi! Escola a qual não foi nada fácil pagar, mas nós nos sacrificamos demais para poder mantê-la lá. Você não era assim, não era... Isso para mim é uma decepção – Ela balançou a cabeça negativamente com uma expressão fechada. Eu apenas ouvia e observava, evitando qualquer tipo de comentário.
-Eu vou te falar apenas uma coisa – Meu pai retomou a discussão – Cansei de me desdobrar como fiz até hoje para te formar. Cansei de trabalhar por nada, cansei de bancar o otário e, principalmente, cansei muito de ter essa mesma conversa com você. Não faz muito tempo que nós a tivemos, está lembrada? Eu acho que não. Então, eu vou ser muito sincero contigo porque eu e sua mãe sacrificamos demais por você para ganharmos isso como resposta. – Ele fez uma pausa que me fez engolir em seco. Ele nunca tinha usado essas palavras comigo – Você tem dois meses até o ano letivo terminar, ou seja, sessenta dias para tentar não repetir o terceiro ano. Se você repetir, , você vai para uma escola pública – Eu senti meus olhos abrirem-se levemente enquanto minha respiração diminuía – E não conte comigo para mais nada, está me ouvindo? Se quiser fazer faculdade, vai arrumar um empregozinho qualquer para poder pagar, e aí você vai viver uma vida medíocre. Estou exausto de fazer tudo por você e não receber nem um quatro em matemática. – Eu olhava fixamente para ele com os lábios entreabertos e um desespero crescente dentro de mim.
-E não adianta olhar para seu pai com essa cara, você ouviu muito bem. Acabou a vida boa, sua vida quem faz agora é você – Eu nem consegui encarar minha mãe.
-E vai escolher agora.
-C-como assim? – Minha voz saíra extremamente baixa e rouca. Na verdade, eu nem sabia como consegui pronunciar aquelas palavras. -É a última chance que eu vou te dar, , a última, então escute bem. Se você não quiser nada com nada, diga agora e acabamos com isso de uma vez. Mas se você quiser tentar ser alguém na vida, eu estou disposto a te pagar quantos professores particulares você precisar para passar de ano. É a minha última oferta, então pense com carinho. Você vai escolher como sua vida será daqui para frente agora mesmo.
As palavras dele entraram como uma faca em meu estômago. Esse não era o primeiro sermão que ele me dava, mas com certeza era a primeira vez que ele ia tão fundo. Eu sabia que não tinha sido justa com eles e que estava estragando minha vida, mas meu ódio pelos estudos era uma coisa a ser estudada. Irônico, não? Merda, merda, merda, eu estava completamente f***.
-Er... – Comecei. Ou pelo menos tentei, pois minha voz parecia estar presa à garganta – Pai, eu... – Respirei fundo, sem saber o que dizer.
-Fala, , e seja sincera. Ninguém aqui ficará bravo com você, acredite. Você já está grandinha para decidir as coisas por si.
-Eu... Eu não quero perder o ano – Senti um nó fechar minha garganta e instantaneamente meus olhos marejaram.
-Isso é bom. E o que pretende fazer para isso?
-Aceitar a sua oferta. Eu... Vou estudar.
-Tem certeza disso, ?
-S-sim – Não, mas era minha única opção. Eu não iria para uma escola pública.
-Certo. Espero que não se esqueça tão cedo dessa conversa, e que a partir de segunda você mude sua atitude – Ele disse firmemente e eu apenas assenti – Era isso o que tinha a te dizer. E reze para que não seja tarde. Boa noite, filha – Eu o vi levantar e sair da cozinha, sendo seguido por minha mãe. As informações ainda rodavam em minha cabeça e o fato da bronca ter sido extremamente rápida e direta fez com que um alarme soasse freneticamente em meus ouvidos. Era como se alguém tivesse me puxado pelos pulsos e me jogado em outra realidade, uma que não era a minha. Olhei para o boletim à minha frente e algumas lágrimas escaparam de meus olhos. As notas baixas agora pareciam zombar de mim e eu senti desespero ao perceber que passar de ano a essa altura seria praticamente impossível.
Maldita Emma.

Capítulo Dois.



A segunda amanheceu nublada. Não para o resto da população, pois o sol brilhava no céu, mas minha cabeça carregava uma nuvem cinza que estava deixando meu dia quase mórbido. Eu não havia conseguido dormir na noite de sexta e meu final de semana tinha sido deprimente. Minha mãe mal estava falando comigo e meu pai era o desapontamento em pessoa. Nenhum dos dois havia tocado mais no assunto comigo, mas eu tinha escutado-o se lamentar por mim com ela no quarto, na noite de sábado. Eu devia ser o desespero em pessoa, pois o pensamento de ir para uma escola pública e ter de trabalhar para pagar minha própria faculdade me assustava mais do que ir para o inferno. Se isso já não fosse o inferno.
Eu saí do carro e entrei na escola. Sentia meus pés tocando o chão, mas a sensação que eu tinha era a de estar flutuando. As pessoas ao meu redor eram apenas figuras e coisas que costumavam me interessar pareciam insignificantes agora. Os meus amigos já estavam lá, sentados em seus lugares, e Lisa sorriu a me ver. Forcei um sorriso e me aproximei, sentando ao seu lado. Normalmente, eu chegava chegando: cumprimentava a todos, xingava alguns e falava mais do que patricinha mimada, mas hoje... Bom, hoje não. Lisa obviamente percebeu e veio logo com o questionário. Eu resumi os fatos, deixando-a tão descrente quanto eu. Alguns dos meninos tentaram me animar, mas não comentei nada e pedi para que Lisa também não o fizesse. Hoje nós começaríamos o último bimestre do ano e eu tinha apenas ele para conseguir o impossível. Isso me fazia tremer na base. Talvez isso fosse os que as pessoas chamam de choque de realidade.

Erick Fitz, dezoito anos e um cérebro privilegiado. Os olhos dele brilhavam enquanto o Sr. Cooper discursava animadamente sobre o código genético. O primeiro da turma, vencedor da feira de ciências por cinco anos consecutivos, bolsa integral e o melhor aluno de toda a escola. Eu me perguntava como uma pessoa conseguia ter tanto interesse por tudo que lhe era apresentado. As informações não precisavam entrar mais de uma vez na cabeça dele, era dizer e pronto, estava armazenada. Como alguém consegue gostar de tudo? Como alguém consegue saber de tudo? Como alguém consegue ser bom em tudo? Como? Eu comecei a me sentir mal pensando nisso e o ignorei, tentando prestar atenção nas palavras do Sr. Cooper. Deus, esse seria o desafio mais ferrado de toda a minha vida.

Dessa vez as aulas demoraram mais a passar. Eu mal havia aberto minha boca durante a manhã e ignorei ao máximo as piadinhas dos garotos para que elas não me atrapalhassem. Quem me visse diria que eu era uma aluna extremamente centrada. Estava dividida entre a força de vontade e o desespero, pois eu não conseguia entender, falando no bom e velho português, porra nenhuma. Equações matemáticas eram uma eterna incógnita e a física não passava de uma aula de mandarim. Química? Prefiro não comentar. Mas, pela primeira vez em minha vida, eu estava assistindo as aulas sem conversar. Já era um avanço.
Quando cheguei em casa, a primeira coisa que fiz depois de largar meu material no quarto foi me sentar à mesa para almoçar. Minha mãe havia me recebido com um beijo frio e eu optei por manter a boca fechada. Eles trocavam algumas palavras sobre o trabalho de meu pai e tudo o que eu queria era sair dali o mais rápido possível. Eu tinha muito trabalho a fazer e nenhuma ideia de por onde começar.
Depois de descansar um pouco, eu sentei na cadeira da escrivaninha e abri o livro de biologia. Ler era fácil, difícil era entender o que todas aquelas palavras significavam. Peguei um marca texto e comecei a grifar o que achava ser importante. Dez minutos depois, uma inquietação me invadiu. Já não aguentava ficar mais na mesma posição e aquele assunto estava me irritando. Não me importava com nada do que estava escrito e, de repente, me peguei escrevendo a letra de uma música qualquer em meu caderno. Droga, eu tinha de me concentrar! Concentração, , concentração. Larga a caneta e leia sobre códons, transcrição e cadeias de aminoácidos. Transcrição é o processo de formação de RNA mensageiro a partir da cadeia molde de DNA. Isso, muito bem... Está indo bem... O que é RNA mensageiro? Droga. Procuremos... Hm, é isso... Hm... Ok, certo... Ai... Será que o novo episódio de House já está disponível para baixar?
É, isso iria demorar.

Capítulo Três



Eu terminei de assistir a um filme qualquer e passei na cozinha para tomar um copo de água antes de subir para meu quarto. Eram nove horas da noite e eu ainda tinha de terminar uns exercícios de química. E falar em química, essa semana havia sido a pior da minha vida. O terror psicológico ao qual meu pai me submetia indiretamente através de sua expressão sempre sem vida estava me deixando neurótica. Estava estudando cerca de seis horas por dia, não contando com as aulas de manhã e as duas ou três horas extras nas madrugadas. Me sentia exausta, tinha dificuldade de concentração e o desespero era uma constante em mim, pois só agora eu percebera a quantidade de informação que ignorara durante sabe-se lá quantos anos. Por causa disso, esse seria meu primeiro final de semana com a cara nos livros.
-Entra – Disse com uma voz cansada ao ouvir alguém bater à porta. Meu pai lançou-me um sorriso ao entrar e caminhou até mim, sentando-se na beira da cama.
-Cansada?
-Muito...
-E como está indo? – Indagou jogando brevemente o olhar sobre os livros em minha escrivaninha.
-Devagar... Tem sido difícil – Ele soltou uma leve risada, o que me fez estranhar um pouco não apenas a reação, mas também a visita.
-Tudo na vida é difícil, , tudo, mas a gente tem que saber lidar com isso. Como vai a matemática? – Eu abri a boca, mas não consegui dizer nada, então apenas fiz uma careta, que se refletiu no rosto dele – Tudo bem. Precisa de alguma coisa?
-Se alguma coisa for um professor, então eu diria que sim – Dei um meio sorriso e ele assentiu.
-Vou atrás disso.
Nós ficamos em silêncio por algum tempo e durante esse tempo eu me senti mal por fazer meu pai gastar mais dinheiro comigo do que ele já gastava. Não podia negar, eu havia sido extremamente estúpida e egoísta. Ele finalmente segurou uma de minhas mãos e olhou em meus olhos.
-É entediante, não é? – Fiquei um pouco confusa, então ele prosseguiu – Ficar trancada dentro de um quarto sendo obrigada a fazer o que não gosta.
-É... É sim – Sussurrei.
-E é gostoso, não é? – Ele riu quando uma expressão de deboche passou pelo meu rosto – Quando você está por aí traduzindo as coisas para quem não sabe uma palavra de inglês, ou falando com seus amigos da conversação como se fosse uma nativa.
-Sim – Um sorriso largo formou-se em meu rosto quando entendi e me lembrei das aulas de inglês. As únicas no mundo capazes de me transformar em uma aluna nota dez.
-Aí, olha esse sorriso! Essa é a diferença entre fazer o que não gosta hoje e o que gosta amanhã, e não fazer o que não gosta hoje e continuar a não gostar do que faz amanhã. Entende o que quero dizer, ? – Eu apenas o encarei enquanto as palavras dele ecoavam em minha mente. A ideia de passar o resto da vida trabalhando por pura obrigação me assustou, pois era o que eu estava fazendo exatamente agora, e não era nada bom. De repente as coisas começaram a ficar mais claras para mim e senti como se minha ficha estivesse finalmente caindo.
-Sim.
-Ótimo. Boa noite, filha. – Ele me deu um leve beijo na testa e se levantou, saindo do quarto. Eu me voltei para o livro à minha frente, lendo pela quinta vez o enunciado, sem entender muita coisa.

Tive séria dificuldade em sair da cama. Se o cheiro da comida não tivesse invadido minhas narinas, eu provavelmente não o teria feito. Saí do banheiro com passos preguiçosos e coloquei uma roupa qualquer, descendo a escada e entrando na cozinha. O almoço já estava sendo servido e só então tive a curiosidade de olhar em meu relógio de pulso: uma da tarde. Não me surpreendeu, já que se passavam das três quando fui dormir noite passada. Minha mãe estava um pouco mais carinhosa comigo e me cumprimentou com um beijo e um sorriso. Papai fez o mesmo. Eu então me sentei e coloquei um pouco de comida no prato, sem muitas forças para pronunciar alguma palavra.
-Dormiu bem, filha? – Minha mãe começou.
-Sim.
-Você está com olheiras. – Meu pai reparou.
-Ah... Estou? – Eu mal havia prestado atenção em meu reflexo no espelho. – Fui dormir tarde.
-Como andam os estudos?
-Indo, mãe...
-Seu pai me falou que você pediu um professor. – Eu a olhei, assentindo. – Bom, acho que já resolvemos isso.
-Já? – Cessei o movimento de meu braço, deixando o garfo frente à boca enquanto minha expressão se tornava confusa.
-O filho de uma amiga minha. É um rapaz muito inteligente e estudioso.
-Ah, tudo bem, então. Ligue para ele e veja se ele tem um horário – Disse normalmente. Percebi uma troca de olhar entre meus pais e isso me fez encará-los com o cenho levemente franzido. Meu pai sorriu e se pronunciou.
-Nós já fizemos isso, filha. Ele marcou uma aula hoje, às três e meia.
-Ok... – Foi a única coisa que consegui falar. Para ser bem sincera, essa disposição toda deles me dava um frio na barriga e só fazia o peso da responsabilidade em passar de ano aumentar. Muito.
Depois de terminar de almoçar, dei um tempinho para fazer a digestão e me tranquei no quarto novamente. Essa nova vida não estava sendo nada fácil e Deus sabia muito bem disso. Minha atenção se desviava com facilidade e eu adotara o método de ler em voz alta para ver se isso ajudava, e realmente ajudou. Tentava ao máximo fingir interesse onde não tinha nenhum e controlar minha vontade louca de jogar tudo pela janela. A inquietação, pelo menos, se tornara menor, pois eu sentia culpa toda vez que me levantava para fazer qualquer outra coisa que não fosse um exercício. Às vezes eu sentia como se fosse ficar louca, ou como se não fosse conseguir – era quando o desespero vinha à tona e as lágrimas rolavam -, mas aí eu me lembrava da conversa com meu pai sobre o inglês e as coisas se acalmavam. Aquilo me dava certa força para tentar, porque a coisa que eu menos queria no mundo era passar o resto da vida trabalhando com algo que não me proporcionasse satisfação pessoal, mesmo que eu ainda não tivesse ideia de que curso prestar.

Eram quinze para as duas quando peguei meu livro de história. Resolvi fazer uma revisão do que tinha visto durante a semana para fixar melhor o conteúdo. Fixar o conteúdo, já estou até falando bonito. A matéria era a Segunda Guerra e confesso que somente agora fui descobrir verdadeiramente por que Hitler invadiu a Polônia. Li o resumo que havia feito em meu caderno e fechei os olhos, repassando-o mentalmente. Não me dei por satisfeita enquanto não me lembrei de todos os fatos importantes. Reescrevi-os e procurei por alguns exercícios na internet, sempre dando uma olhadinha discreta em meu Facebook. Ninguém é de ferro.
Quando meu relógio marcou três horas, fechei os livros e fui colocar uma roupa melhor. Eu teria aula de exatas e achei que um descanso para meus neurônios seria bem vindo. Comi alguma coisa e voltei para o quarto, colocando os fones de ouvido enquanto esperava pacientemente pelo meu mais novo teacher. E pouco tempo depois ele estava lá, à minha frente, com um sorriso tímido no rosto. Ele estendeu a mão e, depois de hesitar, eu a apertei. Então aqueles olhos me encararam antes da sua voz rouca ser absorvida por meus ouvidos.
-Muito prazer, . Meu nome é .

Capítulo Quatro.



. Seria muito bom se minha mãe tivesse dito que ele tinha mais ou menos minha idade, um fato que com certeza deveria ter sido ressaltado, pois a pessoa que vos fala esperava no mínimo um cara de cerca de trinta anos, barriga saliente e dentes amarelados. Mas não, o que me apareceu foi um garoto de cabelos cuidadosamente penteados e óculos de armação preta – que combinavam bastante com seu tipo de rosto – usando uma camiseta branca por baixo de uma camisa social xadrez, jeans escuro e All Star. Minha mãe disse alguma coisa a qual não prestei atenção e saiu de casa. permaneceu parado e só quando seus olhos desviaram-se dos meus é que eu pareci voltar a funcionar.
-Er... Prazer, ... É... Sente-se...
-Obrigado – Ele sorriu em agradecimento e eu indiquei a mesa da sala de jantar, que nós mal usávamos para esse fim – Sua mãe disse que você está com dificuldades em exatas – Ele ajeitou os óculos, colocando sobre a mesa um livro que havia trazido.
-É, nós não nos damos muito bem – Optei por uma piadinha para quebrar um pouco o gelo, e pareceu dar certo, pois ele riu.
-E prefere começar por que matéria?
-Pergunta difícil... – Cocei a nuca enquanto pensava um pouco.
-Que tal matemática? É o requisito básico para a física e a química, ficará mais fácil para você entendê-las – sugeriu com o que deduzi ser entusiasmo e eu arqueei levemente as sobrancelhas.
-Ok, tudo bem. Me dê apenas um minuto para pegar um caderno e essas coisas.
-Claro – Ele deu um sorriso bastante charmoso e eu saí da sala, subindo até meu quarto e reunindo as coisas de que precisava. E confesso que não consegui pensar direito nesse meio tempo, pois a imagem que ocupava minha mente nesse momento bloqueava qualquer outra coisa.
-Pronto – Sentei-me na ponta da mesa, ao lado dele.
-Qual o assunto?
-Função afim.
-Ah, é fácil – Ele respondeu com a maior naturalidade, pegando meu caderno já aberto em uma folha branca, e um lápis – Bom, função afim é toda função f dada por essa forma – a escreveu –, onde a é o coeficiente e b, a constante. Certo? – Ele me olhou e eu assenti – O gráfico dessa função é sempre uma reta. Vou dar um exemplo.
O garoto dos olhos escreveu uma equação e começou a me explicar como resolvê-la. Ele o fazia de forma natural, sem ter que pensar nas palavras que usaria para me fazer compreender. Essa matéria para mim sempre fora o pior dos tédios, mas o jeitinho singular de em explicá-la me fez admitir que ela não era tão difícil quanto parecia. Ele passou alguns minutos desenhando gráficos e me perguntando pacientemente se eu o estava acompanhando, e, por milagre, eu até estava. Então ele abriu meu livro e selecionou alguns exercícios para que eu fizesse. Logicamente eu tivera muitas dúvidas, as quais ele solucionou com um brilho ardente no olhar. Aquele menino era um baita de um nerd.
Nós passamos uma hora e meia trancados naquela sala. Eu tinha conseguido absorver muito mais coisa com ele me explicando do que eu havia conseguido tentando sozinha. Isso fez com que eu me sentisse bem, pois mostrava para mim mesma que eu ainda tinha alguma esperança.
-Bom, espero que você tenha entendido. Eu costumo me empolgar um pouco, então... – fez uma careta engraçada, deixando a frase incompleta. Eu ri com isso.
-Eu percebi, mas entendi sim. Muito obrigada, .
-Que isso. Quando quer ter aula de novo?
-Quando você estiver disponível.
-Pode ser amanhã, no mesmo horário? – Perguntou depois de pensar rapidamente.
-Claro, tudo bem. Te vejo amanhã – Dei um sorriso um pouco tímido, vendo-o fazer o mesmo e concordar uma vez com a cabeça antes de ir embora. Corri para meu quarto e revisei tudo o que ele havia escrito em meu caderno, não podendo deixar de reparar em sua letra de forma quase que perfeitamente alinhada e bem desenhada. E ali eu passei o resto do finalzinho da tarde, solucionando os exercícios que ele havia me passado.

Eram oito e meia quando entrei na sala e vi meus pais sentados no sofá, conversando. Minha mãe abriu um sorriso a me ver e me indicou a poltrona com a cabeça. Praticamente joguei-me nela, de tão cansada que estava.
-O que achou do ? – Meu pai perguntou.
-Ele é bom, gostei da aula dele. E você – olhei para minha mãe – poderia ter me avisado que ele tinha minha idade.
-Eu me esqueci, querida, desculpe. Mas isso é um problema?
-Não, é que eu assustei. Digo, esperava algo mais... Velho – Concluí sem ter muita certeza da palavra, fazendo-os rir.
-Já marcaram a próxima aula?
-Sim, pai, ele volta amanhã.
-Bom – Soltou com satisfação.
-Ele faz o quê, faculdade? – Dirigi-me à minha mãe.
-Não, ele está no terceiro, como você.
Hã? ainda não tinha terminado o colegial? Mas ele parecia tão... tão... nerd. Não que nerds não cursassem o colegial, mas sei lá, o jeito dele me fez supor que já tivesse passado dessa fase.
-Ah...
-Vá dormir, filha, você parece cansada.
-Vou sim, mãe. Bom, boa noite – Levantei-me e dei um beijo em cada um. Praticamente arrastei-me pelos degraus e, quando finalmente me deitei na cama, o desânimo tomou conta de mim. Não estava mais suportando essa vida.

Capítulo Cinco



Geografia, que nojo de matéria. Não foi a toa que amanheci domingo tendo enjôo. Não tinha outra palavra que definisse melhor meu sentimento em relação ao clima, às rochas, à vegetação, à política e ao meu professor do que desprezo. Sim, muito desprezo. Mas teria de saber dessas porcarias todas se quisesse continuar tendo casa, comida e roupa lavada. Mas não vou ficar divagando sobre como foi minha manhã, pois acho que já dei uma boa prévia, então farei um fast-forward até onde me interessa.
Eu havia acabado de me trocar quando tocou a campainha. Meus pais já haviam saído para trabalhar, então estávamos apenas nós dois na sala. Hoje ele vestia uma camiseta vermelha onde se lia Bazzinga em amarelo, o que me fez rir, All Star e jeans preto. O cabelo continuava perfeitamente penteado. E eu... Bom, eu observava o modo como ele empurrava os óculos enquanto conferia os exercícios que me passara. Eu sabia que teria erros, mas havia adquirido certa facilidade com eles, facilidade essa que me levara a entender muito melhor as equações de segundo grau quando as estudei sozinha.
-Hm... Aqui teve um errinho – colocou a folha à minha frente, indicando-o com o lápis, e me explicou com gosto a resolução correta. E depois de corrigir os trezentos erros, nós entramos nas de segundo grau.
-O que eu faço quando o delta der negativo? – Perguntei olhando para minha resolução.
-Nada, isso significa que não existe raiz real.
-Ah, sim. Então, vê se está certo – Empurrei o caderno para ele, que começou a corrigir.
-Está sim, perfeito.
-Está? – Indaguei com certo espanto. me olhou rindo.
-Você está pegando o jeito.
Eu sorri. Ficamos resolvendo exercícios por mais um tempo e eu sempre dava um jeito de lançar uma olhadinha discreta para seu rosto. Ele era lindo. Não o tipo de garoto que arrancava suspiros por onde passava, ele estava mais para normal, na verdade, mas tinha alguma coisa nele que o deixava atraente. Talvez fosse aquele par de olhos , ou a boca rosada e bem desenhada, ou até mesmo o jeito que ele pronunciava as palavras... É, existia algo interessante e sedutor no modo como seus lábios se mexiam quando ele falava. Senhor, de um jeito em mim.
-Então, qual o próximo assunto? – Ele perguntou com animação assim que fechei o livro. Eu o olhei com a testa levemente franzida.
-Er... Eu pensei em começar física na –
-Ah, física – Fui cortada sem dó nem piedade por um par de olhos quase ofuscantes – Qual matéria?
-É... eletrodinâmica...
-Tá, vamos começar pela corrente elétrica – pegou meu caderno e uma caneta e começou a desenhar algumas coisas – Ela é causada pela diferença de potencial elétrico, representado por d.d.p. Se você considerar uma carga A positiva e outra B, negativa, então há um campo orientado de A para B...
Depois disso, ele começou a falar sem parar. Está certo que ele era calmo, não cuspia as palavras, mas mesmo assim eu não estava conseguindo o acompanhar. Era muita informação para uma pessoa só e eu conseguia sentir meu cérebro dando um nó. Deus, não estava entendendo porra nenhuma, e a confirmação disso veio quando ele me pediu para resolver um exercício. Ele teve que me explicar quase tudo de novo e, assim mesmo, ainda estava confuso. Sabe, a única resposta que eu queria agora era a de como uma pessoa pode ter tanta facilidade em uma cabeça só. E só pra constar: que tédio.
-Entendeu? – Ele me perguntou novamente. Eu puxei um pouco de ar pelo nariz, arqueando um pouco as sobrancelhas. E agora, o que eu respondia? Se eu dissesse não, ele começaria tudo de novo, e eu já estava morrendo de tédio; se dissesse sim, estaria mentindo e me ferraria bonito na prova. Sim ou não, eis a questão. Foi quando eu o ouvi rir baixo. Olhei para seu rosto e aquelas íris fizeram-me corar.
-Não... – Confessei em um sussurro como se ele tivesse me pegado em um flagra – Ai, desculpa, eu não consigo entender nada disso. Digo, a teoria não é difícil, mas os exercícios parecem não usá-la... – Ele riu de novo.
-Não se desculpe, cada um tem um ritmo de aprendizado. É questão de interpretação, saber o que ele está pedindo que você use. Eu abri a boca para responder, mas alguém bateu à porta.
-? – Meu pai chamou por mim colocando a cabeça para dentro.
-Oi, pai.
-Oi, senhor o cumprimentou.
-Olá, rap... – Ele se interrompeu parecendo estranhar a presença dele. E, na verdade, eu sabia exatamente o porquê – Oi, rapaz. Desculpe interromper, pensei que já tivessem terminado. Bom, só vim avisar que eu e sua mãe vamos ao supermercado e traremos alguma coisa para a janta.
-Ah, tudo bem – Sorri.
-Até daqui a pouco. Tchau, .
-Tchau, senhor – Ele respondeu com os olhos quase arregalados.
-Tudo bem, ? – Ele me olhou assustado, ajeitando os óculos em seu rosto com constrangimento.
-Sim, estou bem, é... Hm... Que horas são? – Eu reprimi um sorriso, olhando em meu relógio.
-Seis e dez.
-Seis? – Aí que ele arregalou os olhos mesmo – Seis? Nossa, , me desculpa – Ele se levantou com pressa, juntando suas coisas desajeitadamente – Desculpa, eu não vi a hora passar, pensei que fosse cedo ainda, eu –
-, está tudo bem – Eu o cortei, rindo do modo como ele disparava as palavras.
-Por que não me avisou que já tinha dado nossa hora?
-Não sei, você estava tão... empolgado... – Ele deu um sorrisinho tímido, passando os dedos por trás da orelha.
-É, eu faço isso mesmo... Foi mal, você deveria ter me brecado.
-Tudo bem, eu precisava tentar aprender mesmo. E você é um bom professor, então eu aproveitei.
-Sério? – indagou parecendo relaxar um pouco, e eu apenas assenti – Que bom. Bom, já vou indo, abusei demais de você.
-Imagina, obrigada pela hora extra, eu jamais conseguiria entender alguma coisa estudando sozinha – Confessei vendo-o dar um sorriso fofo.
-Fico feliz, então. Quando quer que eu volte? Isso é, se depois de hoje você ainda quer que eu volte... – Ele disse a última parte mais para ele do que pra mim, me fazendo quase gargalhar.
-Quero sim. Minha mãe disse que você também está no terceiro colegial, então não quero atrapalhar seus estudos... Pode vir quando estiver livre – Terminei com um sorriso simpático, vendo-o responder com a maior naturalidade do mundo.
-Eu estou livre sempre, na verdade; já fechei minhas notas.
-Ah... Claro... – Eu deveria estar com a maior cara de pastel do mundo. Nem sei por que isso me surpreendeu.
-Que tal dia sim, dia não? Assim eu não te canso tanto – Nós rimos com seu último comentário.
-Parece ótimo.
-Certo, então te vejo depois de amanhã.
-Combinado. Até, .
-Até!

Depois que ele foi embora, eu fui tomar um banho demorado. Decidi que não leria nem mesmo a capa de um livro por hoje, de tão cansada e entediada que estava. Estava estudando pra valer fazia uma semana e já queria desesperadamente entrar em férias. Tantas pessoas nascidas com cérebros brilhantes nesse mundo, por que me privaram de um?
Eu nem percebi quando o sono me venceu enquanto esperava deitada em minha cama pelos meus pais, mas a imagem de um garoto usando óculos pretos percorreu minha mente antes disso. E eu soube que ela iria fazer parte de meus sonhos essa noite, nem que fosse por um brevíssimo momento.

Capítulo Seis



Fazia três semanas que estava me dando aula. E era impossível olhar para seu rosto sem desejar que ele se aproximasse.
-Inacreditável como você passa apertado em matemática e comete pouquíssimos erros em cálculo estequiométrico... – Ele dizia com a voz rouca, analisando meus exercícios.
-Por incrível que pareça, eu não tive tanta dificuldade assim com isso. Talvez seja meu novo professor – Soltei com naturalidade vendo-o rir enquanto olhava para mim.
-Que isso, seu raciocínio não é tão lento quanto você diz.
-Mas seu jeito de explicar ajuda demais... Sei lá, você tem uma empolgação que contagia, prende a gente... E olha que eu nunca escondi meu desprezo por isso aqui – Apontei para os livros em cima da mesa olhando-os com um desprezo teatral e fazendo soltar uma risada gostosa.
-Eu fico feliz que você esteja entendendo e gostando do meu... Método – Ele concluiu depois de pensar, e eu sorri. – Mas e as provas, como foram?
-Boas, para falar a verdade. Consegui uma nota boa nas de função e a de química também não foi nada ruim... Só física que foi tenso – Fiz uma expressão conformada e deu um sorriso de lado que me fez perder a linha de raciocínio por um momento – Hã... Hm... E o resto foi bom também, acho que estou conseguindo me recuperar.
-Isso é muito bom, – Ele exclamou, arqueando as sobrancelhas em sinal de empolgação – Você vai conseguir passar de ano – brincou na maior inocência, mal sabendo que eu realmente estava correndo esse risco. Minha mãe não havia entrado nesse assunto com a mãe dele, e muito menos eu com ele. Senti um pouco de vergonha e tratei logo de rir, fazendo de conta que isso tudo era apenas uma dificuldadezinha, como ele pensava. Mas no segundo seguinte eu estava rindo do barulho razoavelmente alto que o estômago dele fizera.
-Ops... – disse meio constrangido, passando os dedos por trás da orelha.
-Vem, vou fazer alguma coisa pra gente comer. – Fechei os livros e ele protestou.
-Não se incomode, , eu como quando chegar em casa. – Eu terminei de arrumar minhas coisas, já que tínhamos terminado mesmo, e o olhei, levantando levemente os ombros.
-Eu vou comer, de qualquer jeito, então você não estará incomodando. Na verdade, seria até agradável ter alguém para me fazer companhia. Sempre como sozinha. – Terminei com um pequeno sorriso, vendo-o fazer o mesmo e hesitar um pouco antes de responder.
-Bom, sendo assim, acho que um pedaço de qualquer coisa cairia bem agora – Ele soltou pensativamente e nós rimos. Levei-o até a cozinha e indiquei-lhe uma cadeira enquanto abria a geladeira.
-Gosta de panqueca? – Me virei para ele, que assentiu com uma expressão satisfeita. Eu sempre deixava um pouco de massa guardada dentro de um recipiente por motivo de praticidade, então o tirei de lá e peguei uma frigideira, deixando-a esquentar.
-No que eu posso te ajudar? – A voz dele soou próxima a mim. Senti um pequeno choque percorrer meu corpo ao deparar-me com seus olhos olhando nos meus. Tratei logo de baixá-los para o fogão quando o sangue começou a esquentar minhas bochechas, soltando uma risadinha sem graça.
-Imagina, pode deixar que eu faço tudo.
-Por favor, quero me sentir útil. – Meu rosto virou-se automaticamente para o dele, o que não foi nada bom, pois seu sorriso torto levou minha respiração embora. Meu cérebro procurava o mais rápido que podia por uma resposta, mas ele parecia ter congelado. Meu Deus, e agora?
-É... Não sei... Pegue... Pegue...
-Pegue... - Ele imitou meu jeito pensativo de falar, me fazendo rir.
-Pegue um prato ali na pia, então. - Apontei e ele logo o fez.
-O quê mais?
-O quê mais? Vejamos... Pegue... - Comecei a pensar novamente.
-Colher? - Ele sugeriu e eu o olhei - Copos? Garfo? Morango? Chocolate? - dizia rapidamente, deixando minha cabeça ainda mais confusa do que já estava. Por que ele tinha de usar um perfume tão bom?
-AAAI! – Gritei ao sentir minha mão encostar o aço quente. E bota quente nisso. Agitei-a freneticamente no ar como se aquilo fosse parar a dor, sentindo meus olhos darem uma leve marejada. a pegou, abrindo a torneira da pia e colocando-a debaixo da água fria. A sensação de alívio foi imediata.
-Está melhor? – Ele indagou com um ar preocupado.
-Está sim, obrigada – Sorri, respirando fundo. – Nossa, como fui fazer isso?
-Foi minha culpa, eu te distraí. Me desculpe – tinha uma expressão arrependida e seus olhos continham culpa.
-Não foi culpa sua, , foi desastre meu. Não se preocupe. – Soltei uma leve risada na tentativa de relaxá-lo, embora ele realmente tivesse me distraído. O vi fechar a torneira e só então percebi que sua mão ainda segurava a minha. Tirei-a delicadamente, pegando um pano para enxugá-la. Oh, céus.
-Teria sido mais útil se tivesse ficado quieto – Ele passou novamente os dedos por trás da orelha e eu comecei a rir.
-Pare de se torturar, acidentes acontecem – Peguei o recipiente com a massa, mas ele o tirou de minhas mãos.
-Não, não, deixe que eu termino.
-Qual é, senta lá, vai – Fiz menção em pegar de volta, mas ele desviou.
-Não, você está em processo de recuperação. – Ele disse em tom sério, apontando a cadeira com a cabeça. Olhei bem para a cara dele e gargalhei.
-Ok, doutor, quem sou eu para saber mais de medicina que o senhor... – Tirei sarro e ele riu. Como ele roubou meu posto, coloquei pratos, talheres, leite, copos e chocolate derretido à mesa. Sentei-me e esperei que ele terminasse com as panquecas. E estaria mentindo se dissesse que não escorreguei o olhar vez ou outra para sua bunda.
-Prontinho – disse depois de certo tempo, tirando minha concentração de meu machucado – Como está?
-Vermelho, mas talvez nem forme bolha. – Ele sorriu, servindo primeiro a mim, o que eu achei muito fofo. – Obrigada.
-Já sabe o que quer cursar?
-Ainda não, estou meio perdida. E você?
-Engenharia aeronáutica.
-Uau – Soltei com espanto, fazendo-o rir – É mega concorrido, não é?
-Infelizmente, é.
-E... – Eu olhei para ele, fazendo uma pequena pausa – Eu não te atrapalho com os estudos, não? Esse curso é o mais procurado e eu tiro uma hora e meia do seu tempo quase todos os dias... Digo, o vestibular está quase aí...
-Se atrapalhasse, não teria aceitado te dar aulas, concorda? – Ele riu – Eu estudo durante a manhã, na escola, e à tarde. À noite eu também tenho estudado bastante. E você não tira meu tempo, eu acabo o aproveitando para fazer uma revisão.
-É, concordo – Disse pensativamente – Bom, boa sorte – Desejei antes de despejar mais chocolate.
-Vou precisar. Nossa, que panqueca gostosa. – falou mais para si do que para mim.
-Receita da mamãe – Disse rindo.
-Guarde-a o resto da sua vida – Ele franziu a testa e soltou as palavras como se estivesse me pedindo uma coisa de extrema importância, o que me fez rir alto – Mas então, não faz nem ideia do que quer? – Eu havia acabado de colocar um pedaço na boca e dei graças a Deus por isso quando percebi que nunca tinha pensado sobre faculdade. Não gostava de matéria nenhuma e nenhuma profissão realmente me interessava. Desviei o olhar do dele por um momento, fingindo pensar, e só parei de mastigar quando não tinha mais nada a ser mastigado.
-Na verdade, não – Optei pela sinceridade.
-É difícil mesmo ter que decidir agora o que a gente vai fazer pelo resto da vida. Gosta de qual matéria?
-Inglês.
-Você faz curso?
-Fiz, me formei ano passado. Mas ainda continuo com a conversação.
-Legal – Ele exclamou – Por que não faz alguma coisa voltada para isso? – Eu o olhei com interesse, sentindo certa empolgação ou algo parecido nascer dentro de mim.
-Não é má ideia, na verdade... Nunca tinha pensado nisso...
-Pense, as oportunidades são muitas. Muita gente fala o inglês meia boca, mas pouquíssimas são fluentes.
-Isso é verdade... Obrigada, – Abri um sorriso sincero, apreciando a sugestão. Ele sorriu de volta, ajeitando os óculos.
Depois disso, nós terminamos de comer e continuamos conversando por um bom tempo. Ele realmente era aquele típico nerd que colecionava história em quadrinhos, adorava Star Wars, lia revistas científicas, falava o português correto durante a maior parte do tempo – o que me fazia rir discretamente de vez em quando –, e tinha The Big Bang Theory como seriado favorito. Se tivesse de compará-lo a algum dos personagens, seria a Leonard: demasiadamente inteligente, porém sociável. Eu, obviamente, seria a Penny: uma porta. Às vezes ele se tornava científico demais. Era quando eu o encarava com a maior cara de interrogação, o que o fazia se tocar e pedir desculpas consecutivas por explicar tanto. Mas confesso que gostava quando isso acontecia, porque não tinha nada mais encantador do que seu rostinho concentrado enquanto ele discursava animadamente, e envergonhado quando ele percebia minha completa alienação. Eu nunca havia conhecido alguém como ele. E, nossa, como eu desejava conhecê-lo melhor.

Capítulo Sete.



Eu batia a ponta do lápis impacientemente contra a madeira da escrivaninha. Meus pensamentos haviam-se perdido por inúmeras vezes e eu já nem sabia mais o que tinha pegado para estudar. Eu não estava mais aguentando essa situação e não sabia o que fazer para acabar com ela. Larguei o lápis de qualquer jeito e passei as mãos fortemente em meu rosto, suspirando antes de encostar-me novamente à cadeira.
-Filha? – Minha mãe me chamou abrindo lentamente a porta do quarto.
-Oi, mãe.
-Tudo bem? Parece triste. – Ela se aproximou, beijando o topo de minha cabeça.
-Estou sim, é só cansaço. O que foi?
-Você sabe que eu e minhas amigas do trabalho fazemos uma reuniãozinha de vez em quando, e hoje marcamos uma. Mas seu pai teve que viajar – -Papai viajou? – A interrompi, arqueando levemente as sobrancelhas.
-Sim, tem uma reunião em outra cidade, mas volta amanhã. Enfim, como eu não gosto de te deixar sozinha em casa, queria que você fosse comigo.
-Ah, mãe... – Fiz uma careta em oposição. Já tinha ido a algumas dessas reuniões, e sempre sobrava. A não ser quando era na casa da Maggie, porque eu tinha amizade com a filha dela. – É na Maggie?
-Não, dessa vez vai ser na casa da Aria, mas eu liguei para a Maggie e ela disse que a Jhessy vai.
-Vai? – Aquilo com certeza me animou – Então, tudo bem, eu vou.
-Se troque, daqui a pouco nós já vamos. – Minha mãe saiu do quarto e eu fechei os livros. Tirei um short jeans do armário, uma sandália preta de salto, uma camiseta branca e um colete preto, apenas para dar um charme. Passei uma maquiagem leve e prendi os cabelos em um rabo de cavalo frouxo. Nem peguei bolsa, não tinha necessidade. Espirrei um pouco de perfume e desci a escada, sentando no sofá e esperando por minha mãe.

-Aria é aquela loira bonitona? – Perguntei assim que saímos do carro.
-Sim, ela mesma – Minha mãe respondeu rindo. Tocou a campainha e, em alguns segundos, ela nos atendeu.
-Minha querida! – Elas se cumprimentaram com um abraço caloroso – Entre, as meninas já estão quase todas aqui – Aria nos deu espaço e eu me segurei para não rir ao ouvir a palavra meninas - Como vai, meu amor?
-Bem, e a senhora? – Sorri.
-Bem também, mas senhora está no céu – Ela fez uma cara de pavor que me fez rir. Nós entramos e cumprimentamos cada uma das mais de dez mulheres que estavam na sala. E nem sinal da Jhessy, ótimo. Quando os elogios dirigidos a mim finalmente terminaram, o telefone tocou. Minha mãe me puxou para que eu me sentasse ao seu lado no sofá, e ela e as amigas começaram um papo animado. Alguns segundos depois, Aria desligou.
-E a Maggie? – Uma delas perguntou.
-Era ela no telefone, não vem mais. – Eu olhei para Aria com os olhos arregalados e uma séria esperança em ter entendido errado.
-Não? Como assim? – Várias delas indagaram ao mesmo tempo.
-Parece que a filha dela começou a se sentir mal de repente e ela vai levá-la ao médico.
Depois disso, não escutei mais nada. Um desespero quase profundo bateu em mim e me visualizei inúmeras vezes roubando a chave do carro de minha mãe, correndo para a porta e voltando para casa. Acho que nem expressão eu tinha mais. Agora seria apenas eu entre um bando de mulheres que não tinham o mesmo assunto que eu, nem os mesmos interesses que eu, nem a mesma cabeça que a minha e que muito menos estavam sentindo o mesmo tédio que eu.
-Sinto muito, filha – Minha mãe sussurrou com uma expressão triste. Eu apenas sorri fraco.
-Como estão as aulas, querida? – Aria me perguntou.
-Bem, estão bem – Dei o mesmo sorriso, respondendo sem muito humor.
-Que bom, me disse que você é uma boa aluna – Ela soltou com entusiasmo, me fazendo franzir o cenho. Aquela informação não fez nenhum sentido para mim. E, quando eu abri a boca para questioná-la, um arrepio percorreu meu corpo ao mesmo tempo em que eu senti meu estômago revirar.
-?
Virei a cabeça em direção àquela voz que eu já bem conhecia. Ele estava parado a poucos metros à minha frente, vestindo um jeans escuro mais colado ao corpo, camisa verde claro e meias brancas. Por detrás dos óculos os olhos dele demonstravam a mesma confusão que os meus, mas sua boca estava contorcida em um leve sorriso. E o mesmo cabelo perfeitamente arrumado. Eu não consegui mais respirar direito e, sem que eu realmente quisesse, minha voz se libertou quase que em um sussurro.
-?

Uma semana havia se passado desde aquela tarde com e as panquecas. Durante essa semana eu havia pensado nele pelo menos doze horas por dia. Tudo o que ele fazia me atingia diretamente: o modo como falava, como seus olhos brilhavam de excitação enquanto ele me explicava física, o jeitinho como arrumava os óculos, o tom macio de sua voz, o sorriso espontaneamente torto e até mesmo o modo como suas sobrancelhas se juntavam quando ele franzia a testa. E agora eu estava na varanda, sentada ao lado dele em um banco de madeira enquanto sentia meu estômago revirar, meu coração bater forte, minha respiração falhar e minhas bochechas arderem toda vez que ele falava comigo. Me sentia incomodada e não estava gostando nada disso. Não sabia ao certo o que estava acontecendo dentro de mim e nem como e quando isso havia começado, mas sabia que esse era o pior momento para ter alguém morando em minha cabeça.
-Não sabia que a Aria era sua mãe.
-Não? – Ele questionou confuso.
-Minha mãe não comentou comigo, fiquei surpresa em saber que você mora aqui.
-Eu percebi mesmo sua confusão quando me viu – Ele soltou uma risada. Precisava me lembrar de perguntar à minha mãe sobre isso.
-Você também ficou surpreso em me ver.
-Não sabia que você vinha. Aliás, não sabia nem que essa reunião seria aqui em casa, ando tão alienado ultimamente.
-O que está te alienando? – Uma ponta de esperança surgiu dentro de mim sem eu saber exatamente o motivo, mas sumiu tão rápido quanto apareceu.
-Os estudos! Mal tenho saído do quarto.
-Ah, claro... – Minha voz saíra fraca e eu virei o rosto, fitando a rua à nossa frente. Que diabos foi isso?
-Você sai bastante?
-Não muito, sou bem caseira.
-É, sei como é – Olhei-o rapidamente, rindo junto a ele – Eu ia sair hoje com uns amigos, mas eu ando tão cansado...
-Dá pra perceber só em te olhar.
-Sério? – A voz dele soou espantada, o que me fez encará-lo.
-Seus olhos estão fundos e sua voz, arrastada. Sem falar na sua postura – me olhou sem uma expressão definida por alguns segundos. Os olhos dele continham um leve brilho que estavam prendendo os meus aos dele. Ele deu um sorriso sem graça, desviando o olhar e passando os dedos por trás da orelha. Eu logo virei meu rosto, voltando a encarar a rua enquanto sentia meu sangue esquentar minhas veias – Você não tem irmãos, tem? – Fiz a primeira pergunta que me veio à mente.
-Tenho sim, um irmão mais velho.
-Jura? – Perguntei com espanto, aquilo realmente havia me surpreendido. Não sei por quê. – E ele faz o quê?
-Ele está no segundo ano de medicina.
-Nossa, que bacana... Acho uma profissão bonita. Ele faz faculdade aqui mesmo?
-Não, não, ele mora com meus tios maternos nos Estados Unidos há alguns anos já. Faz Harvard. – Eu encarei com a testa bem franzida, ficando sem palavras. Mordi o lábio inferior involuntariamente apenas assentindo, pois foi a única coisa que consegui fazer. – Não se preocupe, não é a primeira a ficar me olhando assim. – Senti minhas bochechas esquentarem um pouco e ri.
-Imagino, afinal de contas não são todos os dias que a gente ouve a palavra Harvard. – Foi a vez dele rir.
-Ele sempre foi extremamente inteligente.
-Ele? - Indaguei enfaticamente. sorriu com timidez, arrumando os óculos – E você não foi para lá por quê?
-Bom – Ele começou, respirando fundo –, meu irmão sempre teve essa vontade louca de sair do país e essa obsessão inexplicável com Harvard. Quando meus tios se mudaram para lá por causa do emprego de minha tia, ele não pensou duas vezes em se infiltrar para terminar o colegial lá. Mas meus pais são separados e eu não quis deixar minha mãe aqui sozinha, principalmente quando vi o quão triste ela ficou quando meu irmão se mudou.
-Mas ela achou ruim?
-Não, de jeito nenhum, mas ela sempre fora muito protetora. Coisa de mãe.
-Entendo – Soltei uma leve risada. – Legal de sua parte. Poucas pessoas deixariam de ter essa experiência por causa dos pais.
-Você é uma delas? – Ele perguntou com diversão.
-Talvez... – Semicerrei os olhos em uma expressão pensativa e nós rimos alto.
-Você é filha única, não é?
-Não, tenho uma irmã. – Respondi naturalmente vendo-o arquear as sobrancelhas em uma expressão surpresa, exatamente como a minha minutos atrás.
-Jurava que você era... Mas ela não mora com vocês, mora?
-Não, ela tem a casa dela já.
-Que legal. E o que ela faz? – perguntou com real interesse.
-Ela é agente secreta do FBI – A expressão dele tornou-se neutra e eu aproveitei o momento para colocar o indicador nos lábios como se pedisse a ele para guardar segredo. Ele me encarou com a maior cara de deboche e eu comecei a rir.
-Babaca.
-Posso ser, mas sua cara foi impagável!
-Isso não se faz, sabia?
-Own, desculpa, zinho – Apertei de leve uma de suas bochechas como se ele fosse uma criança.
-Isso também não se faz – Ele me olhou com uma falsa seriedade, rindo em seguida. Eu meio que me arrependi em tê-lo tocado, pois um pequeno arrepio percorreu meu corpo fazendo com que uma sensação estranha me dominasse. A pele dele era tão macia...
-Mas então, o que você faz de interessante? – Perguntei, tentando ignorar o que se passava dentro de mim. Ele riu.
-Eu sei cozinhar. Só.
-Sabe cozinhar? Sério? – Minha voz saíra em tom de aprovação.
-Sério, tive de aprender quando minha mãe estava no antigo emprego. Ela quase nunca almoçava em casa, aí tinha que me virar. Digo, ela me ensinava, às vezes até deixava alguma coisa já pronta, mas com o tempo eu passei a fazer tudo.
-Que bonitinho – Dei um sorriso largo e ele, aquele torto que eu adorava.
-E você?
-Ah... Nada.
-Nada? – me lançou um olhar indignado.
-É... Ah, não sei, faço as mesmas coisas que você, exceto pela parte da cozinha.
-Nada de diferente? – Ele perguntou com uma expressão teatralmente esperançosa que me fez rir.
-Cozinhar não é diferente!
-Mas eu faço e você, não – Eu abri a boca com a intenção de dizer algo, mas não consegui. O olhei com falso descaso e ele riu alto.
-Vou parar de falar com você agora. Adeus, . – Fiz menção em levantar, mas ele segurou meu braço por alguns segundos. Novamente aquele choque percorreu meu corpo e pude sentir meus membros enrijecerem. Meu coração bateu mais rápido quando eu caí na besteira de olhar em seus olhos.
-Eu estava brincando, não faça isso. Gosto da sua companhia. – Mordi o lábio inferior discretamente ao ouvir suas últimas palavras. tinha um sorriso divertido no rosto e a única coisa que consegui fazer de imediato foi sorrir de volta. Encostei-me novamente ao banco, encarando o céu, que já começava a escurecer.
-Eu também estava, era só um drama.
-Vocês são sempre assim – Ele soltou com uma espécie de certeza na voz. O olhei com interesse.
-Pelo visto você tem experiência no ramo. – Falei com deboche, ouvindo-o rir.
-Alguma. Pouca, na verdade.
-Fala sério – O comentário escapou incrédulo de minha boca e senti minhas bochechas corarem quando percebi o que havia dito. me encarou com o cenho levemente franzido enquanto eu não sabia onde enfiar minha cara – Q-quer dizer, você é um garoto bacana, imagino que esteja sendo modesto... – Eu praticamente cuspi as palavras e, graças a Deus, ele achou graça.
-Hm, não... Não tive muitas namoradas... – Ele desviou os olhos dos meus ao responder, soltando as palavras com timidez e passando os dedos por trás da orelha em seguida. Reprimi um sorriso. Nós ficamos em silêncio por alguns minutos – Ainda não acredito que não faça nada interessante – A retomada do assunto surgiu em voz baixa. Mordi meu lábio novamente, considerando a ideia de dizer algo que, na verdade, nunca havia dito a ninguém.
-Eu escrevo. – me olhou com um misto de surpresa e interesse e seus olhos adquiriram brilho.
-Escreve?
-É, eu gosto de inventar histórias... É idiota, mas eu simplesmente gosto – Abaixei o rosto, olhando para minhas mãos e sentindo meu rosto esquentar. Sempre tivera vergonha de dizer isso às pessoas e não sabia exatamente o porquê.
-Não é nada idiota, é interessante. – O olhei com um pequeno sorriso nos lábios, vendo-o ajeitar os óculos.
-Acha mesmo?
-Tá brincando, eu invejo quem tem habilidade para isso. Grandes autores não fizeram seus nomes apenas sonhando com as histórias, sabia? – Ele disse com um ar intelectual e eu ri, o que me fez sentir mais à vontade para falar.
-É uma coisa que me relaxa, sabe? Dar características diferentes das minhas a um personagem e imaginar o que ele faria em certa situação, colocá-lo em situações diferentes, criar conflitos diferentes... É construir outro mundo, só seu, e ter o poder de fazer o que quiser com ele... É quase mágico.
-Uau... – A voz dele saíra baixa e eu apenas o encarei, segundos depois. O sorriso quase bobo no rosto dele fez com que eu me perdesse, só voltando à realidade quando ele se pronunciou – Você fala com paixão. Foi bonito de ouvir – Um riso baixo escapou de minha garganta – O que gosta de ler?
-Quase tudo. Romance, suspense, terror, comédia... Só não gosto muito de drama.
-Hm... – tombou levemente a cabeça, parecendo pensar – Vem comigo.
Nós nos levantamos e entramos na casa. Eu estava, claro, um pouco confusa, mas ansiosa para saber o que ele faria. Atravessamos a sala rapidamente, onde as meninas continuavam a conversar com empolgação, e andamos por um corredor relativamente comprido. abriu uma porta, e então estávamos em seu quarto.
-Fique à vontade – Ele disse com um sorriso, fechando a porta atrás de si. Dei uma olhada geral e a primeira coisa que notei foi a organização em que as coisas dele se encontravam. Olhando mais atentamente, vi livros empilhados em cima da escrivaninha perfeitamente arrumada, prateleiras anexadas à parede logo acima dela contendo mais livros e alguns CDs, um notebook vermelho bem moderno com o desenho de um raio amarelo na tampa, e muitas, mas muitas revistas de história em quadrinhos na prateleira oposta.
-Nunca vi um quarto tão organizado em toda a minha vida... – Confessei boquiaberta, ouvindo-o rir.
-Eu tenho certa paranoia com bagunça. – Foi a vez dele confessar fazendo uma careta triste, mas conformada, que me fez rir. – Sente, tenho uma coisa que você vai gostar – Ele me indicou a cama e só então reparei no edredom preto com um desenho bem no centro do Pacman em branco, que comia um ponto vermelho. Achei graça naquilo e me sentei na beirada. começou a procurar por algo dentro das gavetas e percebi que meus olhos não conseguiam ficar sem enxergá-lo por muito tempo. As caras e os gestos que fazia enquanto procurava me prendiam a ele e, de repente, eu desejei profundamente poder abraçá-lo.
- - Alguém o chamou lá da sala, tirando minha atenção do rosto dele. Ele se virou para mim e levantou o indicador, pedindo para que eu esperasse, e eu assenti. Respirei fundo quando ele saiu, passando os dedos pelos olhos e chacoalhando a cabeça como se aquilo fosse arrancar a imagem dele de lá. Mas que droga, o que estava acontecendo comigo? Por que eu ficava tão nervosa na presença dele? O que diabos ele tinha de tão especial para me atrair? E o que eram aqueles vários quadros retangulares na parede dele? Fixei o olhar em um deles e me levantei, caminhando até ficar bem de frente. Certificado de Participação da XV Feira de Ciências – 1° Lugar. Por que isso não me surpreendeu? XX Maratona de Matemática – 1° Lugar, Certificado de Premiação Física Aplicada: Segundo Lugar, Concurso Químicos Aprendizes - Primeiro Lugar, XXV Programa Jovens Cientistas - Primeiro Lugar Estadual, Terceiro Lugar Nacional, VI Feira Estadual de Aeromodelos – 1° Lugar... Aeromodelos?
-Foi com ele que eu ganhei – A voz de me assustou, fazendo-me olhar para trás e vê-lo parado junto à porta. Ele fez um sinal com a cabeça e eu olhei para o lado, vendo um mini-avião dentro de uma caixa média de vidro transparente. Cheguei mais perto e analisei o modelo cuidadosamente.
-Você quem fez isso? – Indaguei bastante espantada.
-Sim, ano passado.
-Meu Deus, é incrível... – O aviãozinho não era tão inho assim e tinha um acabamento perfeito. Não que eu entendesse dessas coisas, mas parecia ter sido construído por um profissional mesmo – Nossa, é... Lindo... – Um pequeno sorriso se formou em meus lábios.
-Obrigado, deu bastante trabalho.
-Eu posso imaginar – Franzi a testa, balançando a cabeça em concordância – Você tem talento. – O olhei, vendo-o sorrir timidamente enquanto ajeitava os óculos. Ele se aproximou observando com orgulho seu pequeno grande feito.
-Sempre gostei de aeroplanos, desde pequeno. Tenho um monte de miniaturas dentro do armário.
-E esse foi o primeiro que fez?
-Não exatamente... Já tinha construído alguns, mas muito mais simples do que esse. Esse foi o primeiro completo, e sou totalmente apaixonado por ele.
-Da pra ver, seus olhos estão brilhando - Ele sorriu e a vontade de abraçá-lo só fez aumentar em meu peito. Malditos olhos .
-Ah, minha mãe colocou a mesa para nós. Mas antes eu quero te dar isso – Ele revirou uma gaveta que ainda não tinha aberto e tirou de lá um livro grosso, estendendo-o para mim – Acho que vai gostar.
-Orgulho e Preconceito! – Exclamei quase que com a felicidade de uma criança – Nossa, faz tempo que estou para comprar esse livro. Adoro o filme! – Folheei as páginas sentindo o cheirinho de livro novo que eu adorava – Mas, nossa, nossa, nossa, não posso aceitar...
-É um presente – disse com a voz doce e eu sorri abertamente. -Um presente? -Sim. -Um presente pra mim? -Tem mais alguém aqui? - Ele perguntou com um ar divertido e eu soquei minha cara mentalmente ao ouvir a imbecilidade que havia perguntado. -Caramba, eu amei! - Minha surpresa e felicidade foram tantas que eu simplesmente o abracei.
O choque provocado pela proximidade repentina dos nossos corpos foi o suficiente para me fazer sentir tudo ao mesmo tempo. Um calor instantâneo me invadiu e meus olhos se fecharam quando o perfume dele atingiu com tudo meus pulmões. Eu podia sentir as mãos dele segurando levemente minha cintura e só fui me dar conta do que tinha feito quando uma batida do meu coração falhou. Me afastei rapidamente, já sentindo minhas bochechas arderem bastante e mal consegui olhá-lo.
-Desculpa, , me desculpa, eu... – Passei uma das mãos pelo meu rosto, com certeza, muito vermelho.
-Está se desculpando por um abraço? – A confusão na voz dele me fez olhá-lo. Ele tinha um sorriso divertido e eu sorri de volta, sem graça.
-Sim? – Minha pergunta-resposta o fez rir. – É que eu me empolguei, aí... – Tentei continuar a frase, mas nada vinha à mente.
-Não se preocupe, eu gostei do gesto. – Ele me olhou com certo carinho e eu abracei o livro, assentindo de leve. – Vamos comer? – O sorriso cativante nos lábios dele se refletiu nos meus e eu apenas afirmei, seguindo-o para fora do quarto. Aquele turbilhão de sentimentos ainda percorria meu corpo e eu tive dificuldade para dar o primeiro passo. A sensação de tê-lo tão perto fora absurdamente maravilhosa, e eu sabia que não conseguiria colocar nada no estômago sem querer devolver em seguida. Uma coisa agora ficara muito clara em minha cabeça e isso me fez tremer de medo. Eu estava, sim, apaixonada por ele.

Capítulo Oito



A altura média do tronco de certa espécie de árvore, que se destina à produção de madeira, evolui, desde que é plantada, segundo o seguinte modelo matemático:
h(t) = 1,5 + log3(t + 1),
com h(t) em metros e t em anos. Se uma dessas árvores foi cortada quando seu tronco atingiu 3,5 m de altura, o tempo (em anos) transcorrido do momento da plantação até o do corte foi de:


Ok, não sei. Quer dizer, eu sei. Eu sei, eu sei, eu sei, eu sei, eu sei.
Merda, não sei.
Faltavam dez minutos para eu entregar essa maldita prova e seria um milagre se eu tivesse conseguido resolver dois exercícios. e eu havíamos feito dezenas iguais a esse e esse era exatamente o problema. tinha me ensinado. tinha-os feito. . Não conseguia prestar atenção em absolutamente nada quando ele estava por perto porque o movimento dos seus lábios era mais interessante do que o que eles pronunciavam, o som de sua voz era mais envolvente do que o que ela dizia, o brilho e a cor de seus olhos eram mais fascinantes do que demonstravam, e seu sorriso... Nada no mundo era capaz de tirar meu fôlego como aquele sorriso. E mesmo longe, ele continuava perto de mim. Dentro de mim, o que era pior. E eu estava aqui, sentada em uma carteira com uma prova de matemática à minha frente cujo resultado eu já sabia antes mesmo de entregá-la. Essa não era a primeira na qual eu me ferrava por não conseguir tirá-lo da cabeça. Se antes eu me sentia desesperada por conta das palavras de meus pais, agora então eu nem sabia mais que nome dar.
-Passem as provas para frente, pessoal. – A voz grossa do Sr. Martins ecoou pela sala, me dando um leve susto. Respirei fundo e fiz o que ele pediu sem me importar com o espaço totalmente em branco do último exercício. O sinal do nosso intervalo de dez minutos tocou e eu me levantei, caminhando até o banheiro.
-E aí, como foi? – Lisa perguntou ao meu lado assim que terminei de lavar o rosto.
-Uma catástrofe. E você?
-Sinceramente, não sei. Acho que não fui tão mal assim.
-Bom pra você – Disse sem humor, fazendo-a arquear as sobrancelhas.
-Pensei que as aulas estivessem te ajudando.
-Estão – Sentei-me à pia, vendo-a fazer a maior cara de confusão – Digo, até pouco tempo estavam. Agora, parece que não... – Fitei o chão. Senti-a sentar-se ao meu lado.
-Tem alguma coisa errada com você – Olhei para ela, que me encarava com o cenho franzido em preocupação – E não é de hoje, faz dias que você está assim. O que está acontecendo?
-Não é nada, só est –
- – Lisa me cortou com seriedade na voz, o que me fez morder o lábio. Eu não sabia por que ainda tentava esconder algo dela, ela me conhecia melhor do que eu. Enchi os pulmões de ar para começar a falar, mas duas garotas entraram. Lisa segurou uma de minhas mãos e me puxou, me guiando de volta à sala, que não tinha quase ninguém. Sentamos em nossas carteiras e eu resolvi ser direta.
-Eu estou apaixonada. – Lisa arregalou os olhos e abriu a boca, permanecendo assim por alguns segundos. Um choque percorreu meu corpo muito rapidamente e uma sensação estranha me tomou. Era a primeira vez que eu dizia aquilo em voz alta.
-Você o quê? – Ela indagou bem baixo.
-Eu nunca senti o que eu to sentindo antes, Lisa, e eu to desesperada.
-Meu Deus, , como assim? Apaixonada por quem? – Ela me fitou com aflição. Eu suspirei, mordendo meu lábio novamente enquanto desviava o olhar por um segundo. Arqueei levemente as sobrancelhas na esperança de que ela me entendesse. Não sabia o motivo, mas alguma coisa dentro de mim não queria que eu pronunciasse o nome dele em voz alta – Pelo ? – Ela perguntou depois de algum tempo me analisando. Eu simplesmente assenti, sentindo um aperto no peito ao ouvir o nome dele – Como?
-Eu não sei, só aconteceu. Ele é tão diferente dos garotos que eu já conheci, Lisa, tão diferente...
-Ele sabe?
-Não! – Exclamei de imediato – Claro que não. – Nós ficamos em silêncio por um instante.
-Como você pretende lidar com isso?
-Não sei. Tá muito difícil, eu não consigo me concentrar, não consigo pensar, não consigo comer, e quando ele tá perto eu não consigo nem respirar direito. Que porcaria toda é essa, Lisa, que porra é essa? – Eu aumentei um pouco meu tom de voz, ficando nervosa. Lisa afastou uma mecha do meu cabelo, me olhando com uma mistura de tristeza e carinho.
-Isso é um problema, .
-O que eu fiz com a minha vida? Me fala, por que eu fui fazer aquelas coisas todas? Por que eu me desviei assim, por que eu deixei aquele desgraçado entrar na minha vida? – Eu senti uma raiva crescer abruptamente dentro de mim ao me lembrar de Chad e de repente eu estava me descontrolando – Nada disso estaria acontecendo! Eu não estaria quase reprovando e não teria conhecido esse menino! Por que eu fui conhecer esse menino, por quê? O que ele tem, Lisa, o quê? – Meus olhos marejaram e algumas lágrimas escorreram em meu rosto, o que fez Lisa me olhar um pouco assustada.
-Calma, , fica calma. Vem cá – Ela me abraçou – Vamos aproveitar que a próxima aula é de inglês e matá-la lá embaixo. Você precisa desabafar.
Eu olhei para ela e assenti. Faltavam apenas alguns minutos para o sinal bater e nós saímos com pressa, procurando um lugar seguro para nos esconder.
Que tipo de surto foi esse?

vestia uma calça jeans preta, um Adidas de mesma cor com as listras laterais vermelhas e uma Pólo branca com o desenho de um leão em prateado no peito. Ele estava sem óculos e seus cabelos encontravam-se completamente... bagunçados. Ele me olhou com um sorriso torto nos lábios, o que quase me fez desmaiar ali mesmo, e então passou por mim. Não pude deixar de notar que seu perfume também havia mudado. Eu permaneci em pé ao lado da porta, o observando até que ele parasse junto à escada. me encarou com as sobrancelhas levemente erguidas como se perguntasse se eu não iria. Eu então pisquei por algumas vezes e fechei a porta, caminhando em sua direção, ainda bastante confusa com a imagem que acabara de ver.
-Eu... Vou... Eu vou... Pegar... – Seus olhos grudaram-se aos meus com certa intensidade e seus lábios curvaram-se num meio sorriso. Eu poderia jurar ter visto uma pitada de malícia ali. Foi quando pigarreei – Eu vou pegar meus livros lá em cima e já volto, fique à vontade – Disparei, virando-me para subir o primeiro degrau.
-Hm... – O ruído saíra em tom de dúvida, então me virei novamente para encará-lo.
-Algum problema?
-Na verdade, eu estava pensando em te dar essa aula em seu quarto.
Foi difícil ler a expressão dele. Seu sorriso era gentil, mas seus olhos continham um brilho anormal, e algo mais que não consegui identificar. Eu senti meu queixo cair e subir por duas vezes seguidas, mas não fui capaz de emitir qualquer som. Meu cenho franziu-se por vontade própria, e umedeci os lábios antes de finalmente falar.
-Em meu q-quarto?
-É. Só para mudar o ambiente, sabe – Ele subiu a escada e desapareceu no corredor, me deixando para trás pela segunda vez no dia. Definitivamente, havia algo muito errado acontecendo. – E então, o que vai ser hoje? – Indagou da forma mais despojada o possível, já sentado na cadeira da escrivaninha.
-Química... – Respondi baixo sem conseguir tirar os olhos dele. Mas dessa vez meu interesse era estritamente investigativo.
-Não vai se sentar?
-Claro – Dei um passo à frente, mas notei a falta de cadeira, então voltei – Vou pegar uma cadeira e –
-Não, tem espaço aqui – me cortou rapidamente, deslizando-se para uma das pontas do assento onde estava. Eu ergui as sobrancelhas em espanto e confusão ao ver o lugar que ele estava me oferecendo. Um sorriso cômico surgiu em meu rosto e eu comecei a vasculhar meu próprio quarto com os olhos, à procura de alguma câmera escondida, ou algo assim.
-Como?
-Sente-se aqui – Ele indicou o pequeno espaço vazio em sua cadeira com a cabeça. Eu não aguentei e soltei uma leve risada. O que mais iria fazer? – Está com medo de mim?
-Um pouco – Soltei de imediato sem perceber.
- Qual é, deixa de ser boba. – então se levantou e me puxou pela mão, fazendo-me sentar. Mas ele foi mais rápido e o fez antes, fazendo com que minha perna esquerda caísse sobre a dele devido à proximidade de nossos corpos pela falta de espaço. Aquilo gerou uma corrente elétrica instantânea em meu corpo, e pude sentir meus pelos eriçarem-se. Agora eu parecia um robô, completamente desprovida de ação. Ele, por outro lado, parecia estar muito confortável com a situação. What the hell era aquilo?
-O que é isso? – Perguntei sentindo meu coração quase sair pela boca. Ele me olhou com confusão.
-Isso o quê?
-Isso – Apontei para nós.
-O que tem? – Ele parecia realmente não entender meu espanto.
-O que tem? Você está completamente diferente, .
-E isso é ruim? – Ele me perguntou em um tom baixo e levemente sedutor. Eu franzi a testa, encarando-o sem saber o que responder. Ele aproximou o rosto do meu, tocando brevemente nossos narizes e, quando falou, pude sentir seu hálito quente bater em meus lábios – Você estar sentada quase que em meu colo é uma coisa ruim?
As palavras dele fecharam meus olhos e arrepiaram minha espinha. Meu coração passou a bater mais forte ainda, tão forte que até doía. Minha respiração era inexistente e o calor do corpo dele estava prejudicando demasiadamente minha sanidade. E eu não consegui agir, pensar e nem sentir mais nada quando os lábios macios dele tocaram os meus em um beijo calmo.
Mas, de uma hora para a outra, sem nenhuma explicação, eu estava em pé do outro lado do quarto, longe dele. agora estava encostado à minha escrivaninha, com as mãos nos bolsos, e me encarava de um modo doce. Seu cabelo estava penteado, os óculos em seu rosto, e suas roupas já não eram as mesmas. Ele começou a falar, mas eu não o escutava. Eu não escutava absolutamente nada. Aos poucos sua imagem foi ficando distorcida, e não importava o quanto eu piscasse ou gritasse, não conseguia enxergar perfeitamente e nem ouvir minha própria voz. Tentei caminhar até ele, mas quanto mais eu andava, mais ele se distanciava. A parede era puxada com ele como se alguém estivesse a alongando. Então eu comecei a correr. E corri, corri, corri, até que um buraco se abriu sob meus pés, fazendo-me cair em uma escuridão profunda. O baque do meu corpo chocando-se contra algo duro me assustou, e então eu abri os olhos.
-, acorda!
A primeira coisa que vi foram os olhos arregalados de Lisa olhando diretamente para os meus em uma expressão preocupada. Automaticamente, eu me sentei à cama, inspirando uma quantidade alta de ar, que expeli fortemente em seguida. Levei uma das mãos à cabeça, colocando-a depois em meu peito, tentando absorver a realidade enquanto observava as paredes ao meu redor.
-Calma, foi só um pesadelo... – Ouvi a voz de Lisa e virei meu rosto, encontrando o dela próximo. Assenti fracamente, já mais calma por perceber que nada daquilo fora real.
-Por quanto tempo eu dormi?
-Uma meia hora, eu acho.
-Nossa, eu nem percebi...
-Eu também não, só quando você começou a murmurar algumas palavras que eu não entendi e a se mexer na cama. Me assustou, sabia? – Lisa bateu de leve em meu braço, me arrancando uma risada.
-Desculpe, eu tive um sonho muito estranho...
-Estranho tipo 'eu estava fora do meu corpo e me via caindo de um penhasco' ou estranho tipo 'estava brincando de Jogos Mortais'? – Eu a encarei com as sobrancelhas erguidas, franzindo o cenho em seguida.
-Quem brinca de Jogos Mortais, Lisa? – Fiz a pergunta cuja resposta era óbvia.
-Jigsaw. – Ela me respondeu dando de ombros e eu não sabia se ria ou se chorava. Oh, céus, não era essa resposta óbvia que eu esperava. Preferi nem responder.
-Enfim... Vou lavar meu rosto. – Disse me levantando e caminhando até o banheiro.
-Espera, não vai me contar que pesadelo foi esse? – Ela parou junto à porta, me olhando curiosa. Eu devolvi o olhar, suspirando antes de falar.
-Sonhei com o . – A expressão de Lisa passou de curiosa para confusa.
-Mas não era um pesadelo?
-Não exatamente. Eu sonhei que... – Minha voz ficou presa à garganta quando me dei conta de que não fazia ideia de por onde começar.
-Que o quê, mulher? – Os olhos dela agora brilhavam de ansiedade e eu suspirei novamente antes de continuar.
-Que ele me beijava.
-Ok... Certo... – Foi a vez de Lisa respirar fundo e parar para pensar por longos segundos – Não entendi.
-Ele estava estranho, todo atiradinho, nada usual, e me beijou. – Expliquei enquanto fazia um coque.
-Quantos significados a palavra pesadelo tem? – Lisa questionou com a testa franzida, o que me fez rolar os olhos.
-Essa não é a parte estranha. A parte estranha é que, do nada, a imagem dele foi se distanciando, e eu comecei a cair. Como se tivessem tirado meu chão, sabe? E aí eu bati com tudo em algo duro. Foi quando acordei.
-Ah, entendi! – Ela exclamou como quem diz 'agora, sim' – Sonhos são sempre estranhos. – Eu apenas concordei com a cabeça enquanto jogava um pouco de água fria no rosto. – Quem diria, toda apaixonadinha por um nerdzinho... – Lisa começou a rir e eu joguei um pouco de água nela.
-Pena que aquele beijo não foi real... – Disse mais para mim. Ela me estendeu uma toalha enquanto sorria com certa malícia.
-Investe, vai que rola.
-Não começa – Voltei ao quarto com ela atrás de mim.
-É sério, ele pode gostar, ué.
-E eu diria o quê a um garoto como ele? A coisa mais cientificamente inteligente que sairia da minha boca seria 'você é a razão da minha PG'.
-Ai, que brega – Lisa fez cara de nojo e eu ri. Meus olhos passaram rapidamente pela escrivaninha e voltaram a ela.
-Estava estudando história?
-Sim, por quê?
-Agora eu entendi o motivo de você não ter me visto dormir.
-Só pode, eu viajo nos tempos medievais – Ela fechou os olhos e deu um pequeno sorriso, suspirando, como se estivesse voltando à época. Eu ri e ouvi alguém bater à porta.
-Oi, meninas – Meu pai apareceu sorridente.
-Olá, senhor .
-Está na hora da sua aula com o , filha. Ele está te esperando lá embaixo.
. Suspirei. Ótimo, exatamente quem eu precisava agora.
-Diga a ele que já estou descendo, ok?
-Certo – Meu pai fez menção em fechar a porta, mas voltou atrás – Ah, filha, eu e sua mãe fizemos uma limpeza naquele quarto do fundo hoje e tivemos que colocar algumas caixas na sala de jantar, já que não a usamos muito mesmo, então ela está um pouco bagunçada. Quer ter sua aula aqui mesmo em seu quarto hoje?
-Não! – Exclamei na mesma hora, vendo meu pai quase arregalar os olhos – Digo, não, lá é melhor, mais f-fresco, a g-gente da um jeito. – É claro que eu gaguejei, mas ele não pareceu se importar muito com meu jeito.
-Tudo bem, então. Desça rapidinho.
Eu apenas assenti antes dele fechar a porta. E, assim que ele o fez, Lisa cuspiu a pergunta.
-O que eu perdi?
-No meu sonho, ele sugeria o quarto para me dar aula – Soltei sem rodeios.
-Hmm... – A voz dela continha quilos e quilos de malícia e eu joguei com tudo um travesseiro na cara dela – Nossa, pessoa delicada – Ela reclamou enquanto massageava o nariz.
-Bom, eu vou lá. Vai continuar estudando ou vai pra casa?
-Depois dessa, vou pra casa.
-Ai, larga de drama. – Rolei os olhos e uma ideia me veio à mente – Ei, por que não dorme aqui?
-Porque não me convidaram – Lisa disse com a maior cara de cachorro sem dono e eu só não lhe joguei o travesseiro na cara novamente porque tinha apenas um.
-Lisa, dá-me a honra em tê-la como minha hóspede essa noite? – Ela se levantou e segurou seu vestido imaginário com a ponta dos dedos, respondendo com gestos finos.
-Certamente, mademoiselle.
-Ok, agora para com isso. Vou descer.
-Eu vou com você.
-Vai? – Estranhei.
-Lógico, ainda não vi esse tal de .
-Nossa, verdade!
-Venha, quero tirar a prova – Lisa me pegou pela mão e nós descemos a escada, mas ele não estava lá. – Cadê a pessoa?
-Deve estar na sala de jantar – Puxei-a até lá e, bingo, lá estava ele, sentado em uma das cadeiras. Nós ficamos o observando pela fresta da porta de madeira enquanto ele analisava um papel.
-Hm... – Lisa soltou baixinho, colocando uma das mãos na cintura e a outra no queixo. Eu apenas a olhei, esperando por uma resposta. – Hm... Hm... Ele é... Hm... – Ela mexia a cabeça de um lado para o outro, abrindo e fechando a boca.
-Ele é o quê? – Sussurrei com certa impaciência.
-Não sei... Não gosto de pessoas com óculos, eles sempre escondem a beleza.
-Imagine-o sem.
-Hm... Vejamos... Hm...
-Ai, para com tanto hm!
-Hm... – Lisa soltou com reprovação, propositalmente. – Ok, ele é bonito.
-Ele é lindo – Disse baixinho, observando-o passar os dedos pela nuca.
-Não é pra tanto... Digo, não nessas condições.
-Que condições? – Indaguei confusa.
-Todo assim, certinho. Imagine-o sem esses óculos e com outras roupas... Uma camisa social com os primeiros botões abertos, talvez... Pode manter o jeans e All Star preto... E os cabelos levemente bagunçados, como se tivesse acabado de acordar... Ok, bem bagunçados – Lisa gesticulava e fazia caras e bocas como quem visualiza mentalmente o homem perfeito – Talvez ele use um cinto... E o perfume másculo, daqueles que te faz imaginar coisas nada bonitas, mas muito boas... – Eu a olhei com os olhos ligeiramente arregalados enquanto ela discursava com desejo no olhar – E aí, quando ele se vira, você consegue ver o lenço branco, talvez vermelho, propositalmente colocado com descaso em um dos bolsos do jeans... Aí ele tira a camisa...
-Ei! – Exclamei indignada. Ela me lançou um sorriso desconcertado e limpou a garganta.
-Desculpe, não acontecerá de novo.
-Assim espero. – Nesse momento, suspirou alto. Ele havia terminado com o papel e agora olhava para as paredes, um tanto quanto perdido.
-Coitadinho, tá ficando no tédio. Vá entretê-lo, vá. – Lisa deu dois tapinhas em meu ombro e sorriu com malícia, voltando para meu quarto. Resolvi não enrolar mais e entrar de uma vez.
-Oi... – Disse um pouco baixo ao vê-lo, e sabia exatamente qual sorriso ele me daria antes mesmo que ele o fizesse – Desculpe a demora, eu caí no sono e ainda estou meio mole.
-Sem problemas – Ele pareceu se divertir com meu modo de falar, já que eu realmente estava falando mole – Tem estudado muito?
-Nem imagina – Puxei uma cadeira, ficando de frente para ele.
-E como foram os testes?
-Minhas notas estão aumentando – Menti um pouquinho e sorri levemente. deu um sorriso aberto.
-Isso é muito bom, ! Fico feliz.
-Eu também. Mas então, o que será hoje?
-Pensei em energia de ativação, uma parte da físico-química, o que acha?
-Ótimo, vi essa parada na escola hoje – Franzi a testa olhando para um resumo que ele havia deslizado pela mesa.
-Perfeito. Então vamos lá, essa parada é assim – Ele deu ênfase, me imitando, e eu ri.
começou a explicar um monte de coisas, mas a minha atenção estava completamente voltada para sua aparência, graças a Deus, de sempre. Os óculos estavam no lugar, o cabelo estava perfeitamente arrumado e suas roupas já eram até previsíveis. Ao contrário do que eu imaginei, estar com ele aqui, agora, não estava sendo desconfortável ou coisa assim, estava sendo simplesmente como sempre fora. Exceto pela minha concentração, que, mais do que nunca, era inexistente, graças à descrição bem detalhada de Lisa. E eu já não poderia mais dizer que tentava, porque meu cérebro bloqueava todas as minhas tentativas em absorver alguma coisa do que ele falava, e eu não tinha mais vontade e nem condições em enfrentá-lo. Eu apenas me rendi às minhas vontades e me deixei ausentar, focando-me àquilo que fazia meu coração disparar e minhas mãos suarem toda vez que colocava os pés em minha casa.
-... por exemplo, quando o sódio metálico entra em contato com a água, ele reage violentamente, porque o conteúdo de energia desses reagentes já é suficiente para que a reação aconteça. Então, esse gráfico mostra... – E aí eu parei de prestar atenção novamente, pois ele voltara o olhar para o papel. Não que eu tivesse entendido alguma coisa do que ele havia dito, já que antes ele estava olhando diretamente para mim, mas agora que seus olhos estavam longe dos meus eu poderia admirá-lo melhor. Por exemplo, eu podia ver sua testa franzindo-se quando ele tinha que pensar, eu podia vê-lo ajeitar os óculos sempre que eles deslizavam em seu nariz – o qual eu também pude notar melhor o quão retinho era -, podia ver sua pele branquinha e uniforme, e podia olhar também sua boca tão... Eu mordi involuntariamente meu lábio inferior quando meus olhos desceram até ela. Fina, desenhada, rosada. Convidativa. A boca dele na minha fora um sonho, mas a sensação fora quase real. E isso era tão verdade que eu conseguia sentir meus lábios latejando levemente apenas com sua lembrança. E quando umedeceu-os com a língua, um calor subiu rapidamente pelo meu corpo, alojando-se em meu rosto e fazendo minhas bochechas arderem. Eu desviei o olhar para o papel em suas mãos na mesma hora, perguntando-me por quanto tempo eu havia ficado em transe e se ele tinha percebido. Esse pensamento me fez congelar e eu queria tanto não ser notada naquele momento, que diminuí drasticamente minha respiração para que nem ela fosse ouvida.
-? – Ouvi-o chamar e o olhei – Está tudo bem? – me encarava com certa preocupação, mas eu não pude fazer muita coisa para mudar minha expressão.
-S-sim, está...
-Tem certeza? Você está meio... Estranha. – Ele apertou os olhos e o silêncio reinou. Porcaria, o que eu diria agora? Eu tentava desesperadamente achar alguma coisa em minha cabeça para falar, mas nada vinha à mente. Minhas mãos começaram a suar e eu abri a boca, mas nada saiu. Aquilo gerou uma pressão em mim, e de repente meu corpo inteiro estava quente, o que me fez sentir um mal estar. ainda me olhava com preocupação, e ela ficou ainda mais nítida quando sua voz ecoou – , fala comigo, o que está acontecendo?
-Nada, nada... Não sei...
-O que está sentindo?
-Só um mal estar, eu... Eu não comi muito hoje, acho que é isso...
-Espere aqui. – se levantou e andou rapidamente até a porta, saindo do cômodo. Eu não tive tempo de tentar impedi-lo, mas isso acabou sendo uma coisa boa. Levei uma das mãos à barriga assim que a porta se fechou e relaxei meu corpo, soltando a pequena quantidade de ar que havia em meus pulmões e inspirando profundamente em seguida, enquanto sentia meu coração quase arrombar meu peito. A outra encontrou levemente minha testa, e eu apertei os olhos assim que minha cabeça encostou-se à cadeira. Sinceramente, eu já não sabia mais o que estava acontecendo comigo. Não sabia por que tinha justamente esse tipo de reação na presença dele e nem o que fazer para tentar controlá-las. A única coisa que sabia era que tinha de dar um jeito nisso o mais rápido o possível. – Coma isso, vai se sentir melhor. – Nem o notei entrar. colocou um prato com algumas torradas cobertas de geleia e um copo de suco à minha frente. Eu o olhei e dei um pequeno sorriso.
-Não precisava, .
-Claro que precisava! Você não pode ficar sem comer. – Eu apenas dei mais um sorriso. Peguei uma torrada e dei uma mordida. – Está se sentindo melhor? – Assenti. Ele me sorriu carinhosamente e me tocou na bochecha com as costas dos dedos. Meu estômago prontamente se manifestou, revirando-se e espantando qualquer resquício de fome que eu tinha. – Não está quentinha, pelo menos.
-É-é... – Foi a única coisa que consegui dizer; ainda assim, mal dita.
-Quer se deitar?
-Não, n-não precisa, estou melhor. Obrigada. – Contra minha vontade, e de meu corpo, tomei um gole de suco e mordi mais um pedaço da torrada. – Pode continuar.
-Tem certeza? Se você quiser, nós podemos marcar outro dia... – Os olhos dele transbordavam preocupação e carinho. Aquilo me derreteu por dentro e não pude deixar de dar um sorriso bobo.
-Não, sem problemas, eu... – Meu estômago deu sinal de vida mais uma vez e levei uma das mãos instintivamente à boca, tendo uma leve ânsia. se afastou um pouco, levantando-se e virando gentilmente meu corpo para o lado, afim de que eu não vomitasse bem em cima da mesa.
-Tem certeza de que é apenas um mal estar, ?
-Sim. – Respondi rapidamente. Ele se agachou ao meu lado, pousando suavemente uma das mãos em meu braço. Será que ele não percebe que só está piorando a situação?
-Venha, vamos ao banheiro.
-Não precisa, já passou... – Afastei uma mecha de meu cabelo, colocando-a atrás de minha orelha, livrando-me assim do toque dele. O cheiro daquela maldita torrada invadiu minhas narinas. Eu poderia dizer que meu estômago revirou, deu cambalhotas, despertou, e expressões parecidas, mas a verdade verdadeira é que aquilo quase fudeu com tudo de vez. Senti aquela massa horrível subir por minha garganta e tive uma segunda ânsia, mas ela desceu ao invés de sair. Nojento.
-Vamos, antes que você vomite aqui mesmo – me ajudou a levantar e me guiou até o banheiro, segurando sempre em meu braço. Me ajoelhei frente ao vaso assim que chegamos e fiquei lá, esperando por algo que eu sabia que não viria. Ele se agachou ao meu lado, acariciando bem de leve meu ombro.
-Já passou, , não vai sair nada – Disse após alguns minutos naquela posição.
-Tem certeza?
-Tenho sim.
-Está sentindo mais alguma coisa?
-Não, eu estou bem.
-Certo, vamos te sentar, então. – Ele me ajudou novamente e caminhamos até a sala. Sentei-me ao sofá com ele logo ao lado e respirei fundo, tentando encontrar algum sentido em tudo o que estava acontecendo. – Quer algum remédio?
-Não, eu estou melhor mesmo.
-? – A voz de Lisa soou preocupada do outro lado da sala – O que aconteceu? Você está bem?
-Sim, estou – ela se ajoelhou ao meu lado no chão, pousando uma das mãos em minha perna.
-Ah, oi... – cumprimentou com um sorriso.
-Essa é a Lisa, minha amiga. Lisa, .
-Muito prazer, Lisa.
-Finalmente, o famoso ... – ela deu um sorrisinho maroto e eu a chutei discretamente com o calcanhar.
-Famoso?
-Sim, fala bastante sobre você.
me olhou surpreso e eu apenas dei um sorriso sem graça. Lisa estava tão morta.
-Espero que ela diga coisas boas sobre mim.
-Acredite, é só o que ela diz.
-, pode me trazer um copo de água, por favor? – interrompi.
-Claro.
-O que você pensa que está fazendo? – sussurrei entre os dentes assim que ele sumiu de vista.
-Te dando uma ajudinha, oras – Lisa respondeu como se fosse óbvio.
-Você está é me fazendo passar vergonha, isso sim.
- Deixa de ser boba, . E o que foi que aconteceu?
-Eu me senti mal.
-Isso eu percebo, mas por quê?
-Não sei. De repente eu me senti quente e passei mal.
-Aqui está – voltou com um copo na mão e me entregou, sentando-se novamente.
-Muito obrigada.
-Está bem? - ele me perguntou pela centésima vez.
-Sim, já passou.
-Bom, acho melhor nós deixarmos essa aula para outro dia. Descanse um pouco. – ele abriu um sorriso amigável.
-É, acho que é o melhor a fazer.
-Ah, desculpe por abrir sua geladeira – passou os dedos pela nuca, visivelmente desconcertado. Eu ri.
-Não se preocupe com isso, você já é de casa.
-Pode apostar – Lisa disse de modo descontraído, mas eu sabia qual era sua verdadeira intenção.
-Eu vou indo, então. Se precisar de alguma coisa, é só me ligar, ok?
-Obrigada, . – ele se levantou e eu fiz menção em fazer o mesmo, mas ele me impediu.
-Fique aí, não se preocupe.
-Eu o acompanho – Lisa se ofereceu. Eu me encostei e abracei uma almofada enquanto os dois andavam até a porta. Um suspiro pesado escapou de meus pulmões e comecei a me sentir a pessoa mais patética do mundo. Aquilo tinha sido a gota d'água e eu sabia exatamente o que deveria fazer.

***


-Pai? – chamei baixinho ao vê-lo sentado no sofá, lendo seu jornal.
-Oi, filha – ele sorriu, colocando o jornal na mesa. Ajeitei-me ao lado dele. – Como estão as coisas com o ?
-Na verdade, é sobre isso mesmo que eu quero falar. Eu quero trocar de professor.
-Aconteceu alguma coisa, ? – ele me olhou confuso.
-Não, não aconteceu nada, é só que... O é um garoto muito avançado... Às vezes eu me perco no que ele fala, sabe...
-E por que não falou isso antes?
-Porque antes eu até entendia, mas ele se empolga demais – o que não era mentira. Meu pai soltou uma risada.
-Não prefere conversar com ele, ver o que ele pode fazer?
-Não, eu queria alguém mais experiente mesmo... E outra, o vestibular está chegando e o ainda estuda também... Não sei se essas aulas não acabam o atrapalhando. – meu pai franziu a testa, parecendo pensar por um momento.
-É, você tem razão, ele não pode se prejudicar também... Vou falar com sua mãe e nós desmarcamos com ele, está bem?
-Eu mesma falo com ele.
-Tudo bem, então. Vou achar um novo professor pra você.
-Obrigada, pai. – dei um beijo no rosto dele e subi para meu quarto. Lisa havia ido embora depois do almoço e eu aproveitei meu início da tarde de sábado para estudar. Meu tempo estava se esgotando e, com ele, minhas esperanças em passar de ano. Talvez fosse tarde demais para tirar da cabeça, mas eu necessitava tirá-lo de perto de mim.

Capítulo Nove



-Tem certeza de que não quer ir ao mercado com a gente, filha? – minha mãe perguntou pela milésima vez.
-Tenho, mãe.
-Tudo bem. Nós não demoraremos, ok?
-Sim, mãe.
-Quer alguma coisa de lá? – meu pai apareceu por trás de mim.
-Hm, chocolate.
-Alguma coisa menos saudável? – ele ironizou.
-Banana.
-Melhorou – ele beijou meu rosto antes de sair, sendo seguido por minha mãe.
-Mas ainda vai trazer meu chocolate, certo? – gritei antes que ele fechasse a porta, vendo-o assentir com um suspiro teatral. Ri.

Domingo, duas da tarde. Pessoas despreocupadas com o colégio estariam agora assistindo algum filme ou saindo para algum lugar com os amigos. Mas eu fazia parte da categoria de alunos preocupados em repetir o ano, e não poderia me dar esse luxo. Ao invés de baixar o mais recente episódio de Pretty Little Liars, baixei uma lista de exercícios de física de um site qualquer. Quase a mesma coisa, não?
Eu tinha um lápis em mãos e uma lista à minha frente, mas não sabia por onde começar. Que fórmula eu deveria usar? Sorvete? Sorvetão? Torricelli? Baskara? Mágica? Nenhuma das anteriores? Que ótimo. Quando busquei auxílio em um de meus livros, a campainha tocou.
Desci a escada e abri a porta.
Meus pelos eriçaram.
Meu estômago revirou.
Minha respiração cessou.
O sangue congelou em minhas veias.
.
De repente eu me lembrei da conversa que tivera com meu pai na noite anterior. Eu o dispensaria.
Meu Deus, eu ainda não estava pronta para isso.
Os olhos dele olhavam fixos nos meus enquanto minha mente rodava em busca das palavras. Ele deu um meio sorriso tímido e ajeitou os óculos, e apenas quando sua voz entrou em meus ouvidos foi que saí do meu pequeno transe.
-Oi, .
Eu não respondi. Quer dizer, eu sorri, e isso foi um tipo de resposta. Quando eu finalmente percebi que o estava encarando por mais tempo do que deveria, falei.
-Oi...
E, no momento seguinte, uma dúvida cruzou meus pensamentos.
O que ele fazia aqui?
-Hm, bom, eu só vim ver como você está...
me olhava com um misto de suavidade e preocupação. Senti que minhas pernas falhariam a qualquer momento. Com um sorriso bobo no rosto eu me afastei, dando espaço para que ele entrasse. Assim que fechei a porta, minha ficha caiu. Ele estava aqui para me ver?
-Sério? – ouvi as palavras deixarem surpresas minha boca. Ele assentiu.
-Eu fiquei preocupado e resolvi passar aqui. Desculpe não ter ligado, espero não estar incomodando.
Me responda, em que mundo um ser desse incomoda? Em que mundo?
-E-eu... Não, imagine, você não incomoda... Claro que não... Eu estou bem... – minhas mãos suavam frias enquanto me engasgava com as palavras. Houve um momento de silêncio e um consequente constrangimento. Os olhos grudados aos meus fazia meu corpo esquentar, e eu sabia que estava corada. Eu até me preocuparia com isso se não tivesse visto as bochechas dele ficarem, talvez, tão rosadas quanto às minhas.
Ele estava corado.
Ele estava com vergonha.
Ele estava desconfortável.
Um pensamento esperançoso passou como um furacão em minha cabeça e senti meu peito ser tomado por uma onda de euforia. Mas, tão rápido quanto esse pensamento, uma voz sussurrou em meu ouvido.
Não se precipite.
mantinha-se parado à minha frente, com as mãos atrás do corpo e os olhos perdidos por entre os móveis.
-Sente-se, vou buscar alguma coisa para nós bebermos.
-Não, não precisa – ele interrompeu meu passo – Obrigado. Eu só vim lhe trazer isso.
tirou as mãos de trás do corpo, revelando uma caixa dourada envolvida por um laço branco. Franzi o cenho. Ele estendeu o braço e eu a peguei, abrindo um sorriso largo ao ler as letras que pareciam dançar no papel grosso.
Bombons finos com recheio de avelã.
Eu o olhei. Ele me devolvia o olhar com certa intensidade. Eu queria agradecer, dizer qualquer coisa, mas minha boca não me obedecia. Desci o olhar novamente para a caixa, apertando-a entre os dedos e respirando fundo.
-Obrigada.
Ele não disse nada, apenas sorriu seu sorriso mais lindo.
-Você não precisava ter feito isso...
-Eu sei, mas quis te agradar.
Minhas pernas amoleceram. Senti meu rosto esquentar novamente e meus músculos se contraírem involuntariamente. Eu estava tremendo.
-B-bem, você conseguiu... – minha voz não passou de um sussurro. Outro momento de silêncio.
-Eu só vim ver isso... – fechou os olhos e balançou a cabeça rapidamente, fazendo gestos descoordenados com as mãos – Digo, te dar isso, e... E ver como você estava... Está...
Eu dei uma risada nervosa. Ele acabou rindo também, passando os dedos repetidamente por trás da orelha.
-Eu estou bem, obrigada por se preocupar. – Ele assentiu com um leve sorriso tímido nos lábios – E obrigada pelos bombons, eu adorei.
-Que bom... Então, eu já vou indo.
Nesse momento, uma onda de pânico tomou conta de mim. Senti meu corpo enrijecer e meus lábios entreabrirem-se. Rapidamente, ele foi substituído por uma tristeza profunda, e as palavras saíram engasgadas mais uma vez.
-Eu queria falar com você.
me encarou. Ter aquele rostinho meigo e todo desenhado parado bem à minha frente e não poder tocá-lo como eu gostaria era uma espécie de tortura. Mas tortura maior era o que eu estava prestes a fazer comigo mesma.
-Parece sério. – Ele agora tinha uma expressão mais dura.
-Não é, relaxe – Tentei eu relaxar um pouco dando um sorriso, mas não adiantou. Indiquei o sofá com uma das mãos, sentando-me à poltrona bem à frente. Pousei a caixa nas pernas, brincando com a fita branca enquanto minha mente procurava pelas palavras, que demoraram a se organizar em uma frase.
-O semestre está acabando, e minhas provas também. Vou ter uma última na sexta, mas é de inglês, então... – deixei a frase morrer de morte natural, ele entenderia.
-Você está me dispensando? – A pergunta direta e dita com espanto de me pegou de surpresa, e percebi que a ele também. Seus olhos ficaram mais abertos, o que ele corrigiu com rapidez, e o pigarreio veio depois. Eu abri a boca, mas não soube o que falar. – Quer dizer, e então você não precisa mais das aulas... Eu entendo, tudo bem, sem problemas... – As palavras saíram da boca dele como uma bala saindo de um revólver.
-É... E-eu... Eu não terei mais provas, e consegui recuperar o que tinha perdido... Mas eu agradeço de coração todo o tempo que você gastou comigo. Eu não teria conseguido sem sua ajuda.
E veio o terceiro momento de silêncio. Eu não consegui decifrar a expressão dele, nem ler seu olhar, coisa que eu havia aprendido a fazer com certa rapidez – e muito gosto. Ele esboçou um sorriso torto que me derreteu por dentro e ajeitou os óculos.
-Não foi tempo gasto, te dar aulas foi um prazer. Eu fico muito feliz em ter ajudado.
-Você foi um ótimo professor.
-Obrigado – Ele disse baixinho. Então se levantou, colocou as mãos nos bolsos e me olhou. Eu andei com ele até a porta e a abri. me sorriu uma última vez, mas havia algo diferente naquele sorriso. Seus olhos não tinham brilho. Uma pontada de culpa surgiu em meu coração e ela se espalhou quando as palavras finais foram ditas.
-Se precisar de qualquer coisa, você tem meu número. É só ligar que eu venho te ajudar.
Não tive coragem de dizer mais nada. Não tive coragem nem de olhá-lo nos olhos direito. Mas tive a coragem de colocar suavemente os lábios no rosto dele em um beijo transbordando desejo.
O contato não fez bem algum para mim, mas eu não me importei. E o êxtase que isso me provocou me impediu de ver qualquer tipo de reação dele. apenas atravessou a porta e foi embora, esquecendo-se de levar com ele o maldito perfume e o maldito buraco em meu peito.
Minhas costas deslizaram pela madeira da porta até que eu encontrasse o chão. Eu respirei fundo, fechando os olhos com força, escutando nada além das batidas pesadas do meu coração, que esmurravam meu peito. Eu desejei que ele esmurrasse minha cara. A pele macia ainda estava encostada em meus lábios e eu sabia que ela não sairia de lá de uma hora para a outra. Tentei colocar meus pensamentos em ordem. Por mais que eu quisesse continuar a vê-lo, eu sabia que tinha feito a coisa certa. Deveria pensar primeiramente em meus estudos e a presença de tirava meu foco. Eu só gostaria de não precisar ter mentido tão descaradamente.

***


Dois dias depois de ter dispensado eu lia sobre História Geral sentada em minha cama. Depois que ele partiu, disse a mim mesma que estava tudo acabado e que não pensaria mais nele de agora em diante. Eu estava colocando uma pedra em cima dos últimos meses como se eles nunca tivessem acontecido. Já havia me prejudicado demais por causa de garotos. Não me prejudicaria de novo.
Estava lendo a questão de número trinta e cinco quando ouvi alguém bater à porta.
-Entre.
-Está muito ocupada, filha? – minha mãe colocou apenas a cabeça pela fresta, sentando-se ao meu lado depois de me ver negar. – Seu novo professor virá daqui uma hora. O nome dele é Ryan, e da aula de física e matemática.
-Tudo bem.
-Eu liguei para Aria ontem, para agradecer o que fez.
-Ah, claro... – Tentei ao máximo não deixar que o nome dele provocasse alguma reação em mim. Foi inútil.
-Dê um tempinho dos livros, daqui a pouco Ryan estará aqui e é bom que você esteja com a cabeça tranquila.
Assenti. Minha mãe saiu do quarto e eu voltei à questão trinta e cinco. Seguir o conselho dela após ter a memória refrescada sobre certa pessoa não era uma opção segura. Eu respirei fundo, esvaziei a cabeça e deixei que a era das Cruzadas tomasse conta de mim.

Algum tempo depois eu descia a escada vestindo um jeans claro, regata vermelha e um chinelo. Meu pai estava trabalhando e minha mãe havia aproveitado o dia de folga para ir às compras. A campainha soou às exatas quatro horas. Um homem de meia idade, baixo e barrigudo estava parado do outro lado da porta. Seus cabelos grisalhos eram despenteados e ele parecia ter tirado as roupas aleatoriamente do armário. Segurava um livro grosso em uma das mãos, junto ao peito. Um sorriso amigável habitava seus lábios enquanto os olhos castanhos olhavam nos meus.
-?
-Sim.
-Sou o novo professor, Ryan. Muito prazer.
Sorri.
-Eu estava esperando pelo senhor.
Abri espaço para que ele entrasse. Preferi usar a mesa da cozinha dessa vez. Uma única palavra ecoava em minha mente.
Excelente.


Capítulo Dez



- , ABRA ESSA PORTA AGORA! EU SEI QUE VOCÊ ESTÁ AÍ, POSSO TE VER ESCONDIDA ATRÁS DO SOFÁ!
Eu estava parada no meio da calçada observando atônita Lisa esmurrar a porta de minha casa. O som das batidas ecoava pela pequena varanda e a madeira gritava por socorro. Eu assistia a cena com os olhos quase arregalados e os lábios entreabertos. Lisa socava minha porta com as mãos fechadas em punho enquanto gritava com toda a força existente em seus pulmões.
Agora era sério, eu precisava entrar em contato com o hospício mais próximo urgentemente.
-, DESÇA E ABRA ESSA PORTA, OU EU NÃO RESPONDO POR MIM. EU POSSO OUVIR SEUS PASSOS ENQUANTO VOCÊ ATRAVESSA A SALA, EU POSSO TE VER, !
-Como? – Perguntei com naturalidade. Instantaneamente, Lisa congelou.
Esperei pacientemente que ela ficasse de frente para mim. Ao contrário do que imaginei, ela apenas suspirou e deu de ombros.
-Pareceu apropriado.
-Pareceu um problema mental.
-Eu estou furiosa.
-Não da pra perceber. – Ironizei.
-Precisava descontar em alguma coisa.
-Por favor, continue. – Girei a chave na fechadura e entrei em casa, fechando a porta na cara dela. Cinco segundos depois, a campainha tocou.
-Quem é? – Perguntei segurando o riso.
- .
Minha vontade de rir acabou no mesmo instante. Abri a porta sem delicadeza, vendo Lisa entrar como um furacão.
-Isso não teve graça.
-Não era pra ter.
Silêncio.
-Eu o encontrei no supermercado enquanto fazia compras com meus pais.
-Eu não quero saber.
-Por que você o dispensou?
-Sério, Lisa? – Eu a olhei, incrédula. Lisa suspirou e se aproximou de mim, soltando as palavras com um misto de doçura e repreensão.
-Você não deveria ter feito isso.
-E o que você queria que eu fizesse? – Respondi no mesmo tom – Convidasse-o para o chá da tarde?
-Ele perguntou de você.
Estremeci. Esperei que ela continuasse.
-Quis saber como você está e se tinha gostado do chocolate.
Engoli em seco. A caixa de chocolate estava muito bem escondida na última gaveta do meu armário, debaixo de algumas roupas que não mais me serviam. Perfeitamente embalada.
-Eu disse que você está bem e que tinha adorado o chocolate, mesmo não fazendo ideia do que ele estava falando – Ela me lançou um olhar sugestivo e eu desviei o meu, fitando meus pés por um instante.
-Desculpe, Lisa, eu não queria mais falar sobre ele, por isso não te contei.
-Eu acho que ele gosta de você.
Senti meus olhos abrirem-se. Meu coração acelerou. Olhei novamente para ela e uma sensação estranha me percorreu.
-O quê?
-Como eu não sabia que você o tinha dispensado, perguntei como estavam as aulas. Ele ficou estranho, desanimado, e me disse o que você disse a ele. E te fez um elogio.
-Elogio? – Meu coração agora batia mais forte e um calor subiu pelo meu pescoço.
-Ele disse que tinha ficado muito feliz em te ajudar, porque você...
Lisa parou. Ela me olhava com um meio sorriso nos lábios, o que só aumentava minha curiosidade.
-Porque eu o quê, mulher, pelo amor de Deus!
-Porque você é uma garota incrível.

Você é uma garota incrível.
Cinco palavras que não saiam da minha cabeça.
Eu estava sentada no banco da varanda dele e ele olhava fundo em meus olhos, segurando delicadamente minha mão.
Você é uma garota incrível, ele me dizia.
Depois, me beijava.
Mas isso não passava de minha imaginação.
Lisa estava sentada no chão enquanto eu me encontrava esparramada no sofá. Os últimos quinze minutos foram um palco para meus devaneios. Ao final de cada cena, uma palavra me consumia.
Idiota.
-Vai ficar se martirizando por quanto tempo? – O tom de Lisa era impaciente.
-Como eu poderia saber, Lisa?
-Ah... – Ela soltou com tristeza – Se ao menos existisse algum meio para que as pessoas pudessem se comunicar...
Eu lancei a ela um olhar atravessado.
-As coisas são tão perfeitas no seu mundo, não é?
-Se você tivesse seguido meu conselho e jogado charme para o menino, não estaria nessa situação.
Bufei.
-Quer saber de uma coisa, foi melhor assim.
-Como? – Ela perguntou com espanto.
-Eu não tenho tempo para isso agora, Lisa, não tenho tempo para ficar sonhando com ninguém. Eu preciso passar de ano, preciso aprender aquela porra de Física, preciso me concentrar nas minhas notas. Eu preciso dar um jeito na minha vida, e aquele menino estava atrapalhando tudo isso. Mesmo que nós ficássemos juntos agora, mesmo que ele realmente goste de mim como eu gosto dele, isso me tomaria muito tempo, entende? Se eu já passo quase o dia todo pensando em como seria tê-lo, imagina o tempo que eu gastaria se eu realmente o tivesse! Eu ficaria nas nuvens, pensando no beijo dele, no cheiro dele, na voz dele, na unha do pé dele. Ou você acha que tudo isso acabaria? Bom, agora nós namoramos, não preciso mais pensar nele. Seria ainda mais desastroso – Lisa tinha um ar confuso, mas sua expressão parecia consentir com o que eu dizia. – Você não deveria ter me dito essas coisas.
-Você tem razão.
Eu me sentei no sofá e a encarei.
-Ai, me desculpe... Me desculpa, , eu só queria que desse certo, sabe? – Ela inclinou a cabeça ligeiramente e franziu o cenho, me olhando com carinho. Eu fui até ela e a abracei.
-Eu sei, Lisa, eu sei.
-Você está certa. Se o estava te desconcentrando tanto assim, fez bem em afastá-lo. Eu quero que você consiga se recuperar na escola e que tudo dê certo.
-Obrigada, gatinha. – Sorri com as palavras dela, dando um beijo em seu rosto. Ela riu.
-Já arrumou outra pessoa pra te dar aula?
-Já sim, e o cara é bom.
-Velho?
Eu dei um sorriso satisfeito.
-Pode apostar.

***


-Josh.
-Josh?
-É, Josh.
Lisa pensou por um momento.
-É um nome esquisito.
-O nome não importa, o que importa é o dono.
-Ele é bonitão, é? – O sorriso malicioso nos lábios dela me fez rir.
-Ele é a oitava maravilha do mundo.
-Quantos anos?
-Trinta.
-Tá na faixa – Ela arqueou uma das sobrancelhas em uma expressão mais do que pervertida e eu tive que me segurar para não gargalhar.
-Você é terrível.
-Eu adoraria que ele dissesse o mesmo.
-Lisa! – Arregalei os olhos – Você nem o viu.
-Quando é sua próxima aula de química?
-Na segunda.
-Eu estarei lá, querida.
Estava prestes a fazer um comentário quando o Sr. Cooper entrou. Era o último dia de aula e todos os nerds se encontravam em seus respectivos lares, gozando a alegria de ser um. Ou seja, a sala estava lotada.
-Muito bem, estou com os resultados das provas. – Todos nós congelamos – E vou dizê-las em voz alta.
-Pô, fessor, sacanagem! – Um dos meninos gritou, sendo apoiado pelo resto da classe.
-Sacanagem foi o que eu tive de ler na sua prova, Senhor Oliver.
Eu disfarcei um sorriso.
-Vamos lá.
E então ele começou. Nós estávamos todos apreensivos com os resultados e mal respirávamos. Alguns sorriram satisfeitos com o 5.2, outros ficaram indignados com o 3.1 e, quando eu menos esperei, ouvi meu nome ser citado.
- .
O Sr. Cooper me olhou. Eu congelei na carteira. Senti meu peito subir e descer com mais rapidez e minhas mãos suarem. Era agora. Ele deu um sorriso surpreso e andou até o meio da sala.
-Meus parabéns. Nove e meio.
Os olhares se dirigiram a mim, mas eu nem me importei. Meu queixo caiu e o alívio percorreu meu corpo com a velocidade de um feixe de luz.
Escorreguei na cadeira e Lisa me sorriu radiante.
Biologia: Aprovada.

Eu poderia descrever o resto da minha manhã aula por aula, mas seria entediante demais. No lugar disso, farei uma breve lista com os acontecimentos mais importantes.
História: Aprovada.
Literatura: Aprovada.
Inglês: Aprovada.
Geografia: Reprovada.
Matemática, Física e Química: Reprovada.
Ok, sem pânico. Eu precisava conseguir um sete nas provas de recuperação e estaria oficialmente livre do colegial. Teria mais duas semanas para estudar – e bem estudado – essas quatro matérias. E nada melhor do que apresentar-lhes Josh para começarmos bem.
Olhos azuis oceano, cabelos loiros, um e oitenta e um porte atlético de dar inveja a qualquer homem. Se eu me considerava ferrada antes, imagine só agora.
-Podemos começar? – Ele me perguntou com aquela voz máscula que me causava arrepios. Limitei-me a sorrir.
Apesar da surpresa que tive ao vê-lo, Josh estava sendo de grande utilidade. Era excelente professor, tinha uma facilidade absurda em explicar e estava sempre fazendo piadinhas. Eu não me sentia realmente atraída por ele, já que a idade era um fator importante pra mim e a aliança gigante em seu dedo afastava qualquer tipo de paixonite ridícula adolescente que eu pudesse ter. Mas tê-lo ali me fazia bem pelo simples motivo de não enxergar nele qualquer coisa que remetesse a . Eu estava, finalmente, o deixando de lado.

Duas semanas se passaram. Eu não tinha respirado nada além de livros. A ansiedade crescia cada minuto mais e eu estava a ponto de explodir. Apesar de todo o meu esforço, eu não me sentia tão confiante assim.
Subi cada degrau daquela escada com um frio desconfortante na barriga. Caminhei pelo corredor largo como alguém prestes a receber sua sentença. Entrei na sala com o medo exalando por cada minúsculo poro de minha pele. Havia um papel branco fixado à lousa. Era isso. Dei um passo à frente. Não consegui continuar. Uma única palavra faria toda a diferença em minha vida. Uma única palavra. Eu tremia, mas não podia passar o dia todo ali. Respirei fundo e caminhei até ele de uma só vez. A lista não estava em ordem alfabética e meu nome era o penúltimo. Em uma fração de segundo, meu mundo teve um céu azul outra vez.

Situação do aluno: Aprovado.

-Eu passei, eu passei, eu passei! – Saí da escola aos berros, pulando no colo de meu pai parado junto ao carro. Ele abriu um sorriso e me deu um abraço forte, tirando meus pés do chão enquanto me rodava no ar. Eu não saberia como explicar a sensação que me tomava, mas era a melhor do mundo. E sabia que meu pai a sentia também. Nós entramos no carro com o alívio e a felicidade estampados na cara e fomos dar a boa notícia à minha mãe.
Depois de ter contado tudo a ela e a Lisa, eu me joguei na cama. Uma série de pensamentos começou a rodar minha cabeça, todos começando com e se eu tivesse reprovado. Minha vida estaria um caos, óbvio. Eu teria de começar tudo de novo e perderia um ano da minha vida por ignorância. Pura ignorância. Estaria às lágrimas, me sentindo a pessoa mais idiota da face da Terra, me culpando por desapontar meus pais e por jogar o esforço de uma vida no lixo. É, as coisas estavam bem melhores assim. E depois de parar para pensar no que eu havia passado até aqui, percebi que, se eu tivesse reprovado, eu pediria para estudar em uma escola pública. A vergonha em voltar para meu antigo colégio seria grande, mas a culpa por fazer meu pai gastar ainda mais comigo seria maior. Afinal de contas, eu havia aprendido algo muito importante.
Independente de onde você esteja, as coisas só mudam se você mudar.

***


À noite, depois de um jantar de comemoração, eu pensei em . Eu tinha o telefone à minha frente e estava morrendo para dar a ele a boa notícia. Queria dizer que havia me recuperado e agradecer, mais uma vez, a sua ajuda. Eu queria, mas tinha receio.
As palavras de Lisa agora ecoavam em minha mente e eu me encontrava dividida entre o desejo e a apreensão. E se ele estivesse magoado comigo? Besteira, meu argumento fora racional, não tinha motivo para isso. E ele gostaria de saber sobre mim, não gostaria?
Peguei o telefone e disquei os números. Ele atendeu na terceira chamada.
-Alô?
Um arrepio percorreu minha espinha. Meu estômago deu sinal de vida. Até por telefone ele era capaz de mexer comigo.
-? – Tentei conter a empolgação em minha voz.
-? – Ele soou confuso.
-Sim, sou eu... Como você está?
Silêncio.
-Hã... Surpreso.
Soltei uma risada baixa e nervosa. Ele não tinha muita emoção na voz.
-Bom, eu só queria te dar uma notícia.
-Pode falar.
Eu apertei os dedos ao redor do telefone. A voz dele estava estranha, eu mal a reconhecia. De repente me senti estúpida por ter ligado.
-É que... eu... a gente pode se encontrar? Queria falar contigo pessoalmente.
-Pode ser amanhã? Hoje não dá.
-Claro... Posso passar na sua casa?
Mais um momento de silêncio. Desejei profundamente ter ficado quieta.
-Pode sim, sem problemas. Até amanhã.
-Até amanhã.
Eu fiquei encarando o aparelho em minha mão por um bom tempo antes de colocá-lo no lugar. Alguma coisa naquela conversa não estava certa, não estava mesmo. Tentei não deixar que a pulga se acomodasse atrás de minha orelha, afinal eu não sabia o que estava acontecendo na casa dele. Poderia ser algum problema pessoal ou coisa do tipo. E eu estava a apenas algumas horas de descobrir.

O reflexo no espelho sorria. Um sorriso leve, espontâneo e esperançoso. Havia um sussurro em meu ouvido direito me dizendo que, finalmente, algo aconteceria, mas havia também um sussurro do lado esquerdo que mantinha meus pés no chão. Eu queria dar ouvidos ao primeiro, mas, por algum motivo, o segundo falava mais alto.
Passei um pouco de rímel, um batom leve e meu melhor perfume. Hoje eu havia acordado com o desejo de ser mais, digamos, feminina. Não precisava me perguntar o porquê. Quando meu relógio marcou duas horas da tarde, eu saí de casa.
Não muito tempo depois eu estava parada em frente à porta de . A ideia de vê-lo novamente fazia meu estômago revirar e minhas pernas tremerem, mas eu já havia me acostumado com isso. Sem mais demora, apertei a campainha, e descobri que era possível sim um ser humano derreter.
Os olhos , os cabelos cuidadosamente repartidos de lado, a calça escura, meias e o suéter de algodão branco. E, claro, os óculos. Eu o olhei de cima a baixo. Precisei me lembrar de como se respirava.
-O-oi... – Sussurrei. Ele sorriu com o canto da boca e eu senti meu coração acelerar.
-Olá. Entre.
Entrei. O perfume dele entrou em minhas narinas como uma droga. Me segurei para não beijá-lo.
-Quer beber alguma coisa?
-Não, obrigada. – Dei um leve sorriso.
-Então, sobre o que queria falar comigo? – A voz dele não continha nenhum tipo de emoção. Esfriei por dentro.
-Eu... É apenas uma coisa que eu queria compartilhar com você, na verdade... – Eu o olhei com esperança de que a expressão dele me dissesse o que ele estava sentindo, mas ela não mudou. Aquilo me deixou desconfortável – Eu consegui me recuperar, minhas notas em exatas foram muito boas... Eu consegui...
-Essa é uma notícia boa, arqueou de leve as sobrancelhas e esboçou um sorriso, que me pareceu forçado. Sua voz e seu rosto continuavam sem expressão.
-É... É sim... – Afirmei com desanimo – Eu só vim porque achei que você gostaria de saber.
-Fez bem, eu fico feliz que tenha conseguido.
Eu duvidei. E me perguntei o que teria acontecido para que ele me tratasse assim. Estava acostumada com o olhar caloroso, e o sorriso sincero, doce, um menino cativante, e agora tudo o que eu tinha era uma versão séria e quase seca. Como um gêmeo ao avesso.
-Está tudo bem? – Resolvi arriscar.
-Sim, eu estou ótimo – passou os dedos por trás da orelha ao responder. Estranhei.
-Tem certeza? Você parece meio... sério.
Ele desviou o olhar por um momento, negando com a cabeça antes de cravar os olhos nos meus novamente.
-Só estou um pouco cansado, cheguei tarde em casa ontem.
-Ora, ora, então nós resolvemos ter uma vida social agora? – Fiz uma brincadeira para tentar quebrar aquele clima estranho. Ele de uma risada rápida e não falou nada. Senti uma pontada no peito e meu sorriso se desmanchou aos poucos. O que estava acontecendo?
-Encontrei sua amiga no supermercado há algum tempo – Ele ajeitou os óculos. Senti uma pontinha de felicidade novamente – Lisa, certo?
-Sim, certo.
-Ela me disse que você gostou dos bombons.
-Eu adorei, são deliciosos – Menti. Não havia comido nem um. Ele sorriu. De repente eu me senti corajosa. Eu o queria mais do que tudo e essa era uma boa oportunidade para deixar isso claro. – Eu quero confessar uma coisa a você.
Ele me olhou com curiosidade. A mudança quase drástica em sua expressão me deu ainda mais coragem para fazer o que eu queria fazer.
-Confessar?
Assenti.
-Eu não sei bem como começar, nunca tive esse tipo de conversa com ninguém, e... – Deixei a frase no ar. Não queria falar, queria agir. Eu queria mostrar a ele tudo o que estava sentindo de uma maneira bem direta e, surpreendentemente, eu não me importava com as consequências. Apenas precisava disso como nunca havia antes.
Mas, quando eu fui beijá-lo, a campainha tocou. Não tive tempo sequer de dar um passo. caminhou até a porta e a abriu. Eu não consegui pensar em mais nada quando a figura de uma garota baixinha entrou em meu campo de visão. Ela usava uma saia bege abaixo dos joelhos, um moletom xadrez, sapatos pretos e um óculos vermelho. Seus cabelos eram extremamente e e se encontravam perfeitamente repartidos ao meio. No rosto, uma expressão séria. Aparentava ter minha idade. Eu pisquei várias vezes antes de acreditar no que estava vendo. Com voz firme e pronuncia impecável, ela falou.
-Olá, . A presença de um ser humano do sexo oposto em sua residência me intriga.
Eu fiquei sem ação. Meus olhos não conseguiam desgrudar-se da figura bizarra à minha frente e eu me perguntava o que ela estaria fazendo na casa de . Tudo bem que ele era um nerd de mão cheia, mas aquilo simplesmente não encaixava.
-, essa é disse em um tom baixo. Só percebi que minha boca estava aberta quando tentei sorrir.
Mas meu sorriso duraria pouco. As palavras que saíram da boca de logo após transformaram meu céu recentemente pintado de azul em uma tempestade desastrosa. Foi como se alguém tivesse espremido meu coração dentro do peito antes de arrancá-lo.
-, essa é . Minha namorada.


Capítulo Onze




-? – ouvi a voz de me chamar e o encarei. Foi então que percebi que havia passado tempo demais olhando para a garota parada à porta.
-O quê? – perguntei por impulso. Ele arqueou levemente as sobrancelhas e abriu a boca, mas só conseguiu falar depois de algum tempo olhando de mim para... aquilo.
-Ah... é... é uma amiga... – ele acabou falando por fim, voltando sua atenção repentinamente à menina.
-Eu não entendo, você alegou não possuir amigos.
Deixei meu queixo cair. olhou para o outro lado, ficando corado, e percebi que ele estava sem graça. Umedeci lentamente os lábios com a língua e me vi completamente perdida. Eu não sabia o que pensar, o que fazer, o que falar, e a informação que acabara de receber sobre o repentino status de ainda rodava em minha cabeça como uma piada difícil de ser entendida. De repente me deu vontade de esfolar a cara dela no asfalto e sair correndo. Ou talvez a dele.
-Eu a conheci recentemente. – ele explicou aparentemente de má vontade.
-Naturalmente. Nesse caso, é um prazer conhecê-la, . Espero que sejamos grandes amigas. Você também fará parte da turma de xadrez?
Franzi o cenho, levemente atordoada.
- é da minha turma de xadrez. – explicou passando os dedos por trás da orelha.
-Ah, sim... bem, não... não jogo xadrez... mas o prazer é meu, ... – sussurrei – E eu já estou de saída.
-É uma pena, exercitar a fala com outro ser humano é um deleite. Espero que nos encontremos em breve. – ela me deu um sorriso simpático e eu fiz um esforço sobrenatural para retribuir.
-Bom, vou deixá-los a sós – olhei rapidamente para , que se mantinha inexpressivo – Obrigada mais uma vez.
E, dizendo isso, andei como um furacão até a porta.
É óbvio que minha intenção era sair dali o mais rápido possível, mas há dias na vida da gente em que alguém lá em cima parece realmente gostar de brincar com a nossa cara. Não coincidentemente, hoje era um deles. Eu levei um pequeno susto ao abrir a porta e dar de cara com uma Aria toda sorridente.
-, que surpresa!
-Olá, senhora . E até logo, eu já estou de saída – disse com a voz levemente trêmula. Aria abriu a boca em reprovação.
-Ah, mas então não está mais – franzi o cenho, observando-a entrar com algumas embalagens em mãos – Acabo de voltar da minha aula de culinária, e adivinhem só? Fiz bolinhos! – ela nos olhou com um leve brilho orgulhoso nos olhos que quase me fez sorrir.
-Você fez bolinhos? – perguntou desconfiado.
-, meu amor, sua mãe não é nenhuma chefe, mas sabe cozinhar. – Aria devolveu confiante. – Não tive tempo de experimentá-los, então queria que vocês o fizessem por mim.
-Eu não vou servir de cobaia para ninguém – negou com a cabeça. Aria suspirou.
-Bem, então eu só posso contar com vocês, meninas. O que me diz, ? Posso ouvir sua opinião sincera?
Aquilo me deixou em uma posição delicada. Eu poderia muito bem dizer não, mas não sabia como fazê-lo sem parecer rude. Meu cérebro rodava atrás de uma desculpa plausível, mas não encontrava nenhuma. Aria era uma das amigas mais chegadas de mamãe, talvez não ficasse bem recusar seu pedido. E também havia aquele par de olhos brilhantes olhando diretamente para mim... agora eu sabia de quem havia os herdado. Engoli em seco. Merda.
-Claro, senhora , eu acho que tenho alguns minutos.
-Ótimo! Venham, vou preparar a mesa. – Aria fechou a porta e dirigiu a palavra a mim antes de andarmos até a cozinha – E me chame de Aria, querida, me sinto muito velha quando me chamam de senhora. Creio que não estou lá ainda – ela deu uma risada baixa e eu assenti. Não era a primeira vez que ela me dizia isso, mas eu ainda achava estranho chamá-la pelo primeiro nome.
Eu me sentei de frente para e ao lado da... bom, você sabe de quem. O que foi um erro, porque agora eu tinha de me controlar para não olhar para frente. Sabe como é difícil não poder olhar para frente?
-Fiz bolinhos com recheio de morango, chocolate, doce de leite e amora. – Aria sentou-se ao meu lado, de frente para... ela.
-Que culinária avançada – tirou sarro. Soltei um riso leve.
-Adoro guloseimas. Gostaria de provar o de doce de leite, por favor.
-Claro, – a mãe de pegou um dos bolinhos da forminha de papel verde e a entregou. – E você, ?
-Eu quero um de amora. – uma forminha cor de rosa me foi entregue. Aria olhou para , que devolveu com deboche, e nos encarou em seguida.
-Caramba, que delícia! – exclamei com a boca cheia, fazendo Aria rir. Algumas mastigadas depois, voltei a falar – Sério, está muito gostoso. Você tem talento.
-Ah, obrigada, meu amor! Não sabe como fico contente com seu elogio, já que não posso ganhar um do meu próprio filho.
-Não se empolgue, ela só está sendo educada. – retrucou.
-Alguém aqui tem que ser, não é? – Aria o olhou atravessado.
-Posso pegar mais um? – Perguntei. A senhora me sorriu de orelha a orelha.
-Pode pegar quantos quiser, fique à vontade.
Agradeci e peguei um de chocolate. Eles não eram grandes.
-Devo concordar, suas habilidades culinárias são realmente magníficas. – disse a coisa.
-Ouviu isso, ? – Aria perguntou e ele fez uma careta – Bom, agora que sei que não estou jogando dinheiro fora com essas aulas, eu vou tomar um banho e deitar um pouco. Mande um beijo à sua mãe, .
-Claro, mando sim. – sorri. Aria se levantou e saiu.
Nós ficamos em silêncio por alguns segundos. Eu já estava pegando meu terceiro bolinho sem saber se era porque eles realmente estavam deliciosos ou se eu queria me manter, de certa forma, ocupada. Procurei observar meus dedos brincando com o papel enquanto mastigava.
-Quais são suas ambições, ?
A pergunta me pegou de surpresa. Eu virei o rosto automaticamente na direção do dela, vendo seus olhos me olharem fixamente por trás dos óculos vermelhos. A massa do bolinho ficou parada em minha boca imóvel durante algum tempo enquanto a dela se movimentava calmamente. Notei sua postura totalmente ereta e quase tive vergonha da minha. Quais são minhas ambições, que merda de pergunta era aquela? Desviei o olhar por um segundo, voltando a mastigar devagar enquanto tentava processar uma resposta. Péssima ideia, também me olhava fixamente. Senti minhas bochechas esquentarem. Respirei fundo e, depois de constatar que não havia mais nenhum dente para limpar com a língua, falei.
-Minhas ambições?
-Exato.
-Bem... eu... eu não sei ao certo... digo, ainda não decidi o que quero cursar, estou um pouco perdida...
-Entendo. É natural não conseguir se decidir por uma carreira na nossa idade, as possibilidades são infinitas e nós ainda somos imaturos para tanta responsabilidade.
-Pois é... também está nessa?
-Não, escolhi meu curso aos sete anos de idade.
Parei de mastigar mais uma vez. Ela continuou comendo seu bolinho com naturalidade. Senti minhas sobrancelhas arquearem-se levemente e um comentário atravessar meus lábios com uma sutil ironia.
-Claro...
-Os pais da são astrofísicos, então ela teve influência. – pareceu querer explicar a fala da garota.
-Poxa, deve ser legal – comentei sem nenhuma empolgação.
-Sempre me interessei pelos corpos celestes. Soube que era o que queria ao ler o trabalho de doutorado do meu pai sobre o efeito da gravidade distorcer o espaço e desviar a luz.
-Mas você não escolheu o curso aos sete anos? – perguntei confusa.
-Sim, foi quando li.
Eu enfiei o resto do bolinho de uma só vez na boca, mastigando com dificuldade. Se Deus quisesse, eu morreria engasgada.
-Com licença, preciso usar o toalete.
se levantou e atravessou a porta no andar mais duro que eu já tinha visto. Evitei olhar para , mas foi impossível.
-Você realmente gostou dos bolinhos, não é?
-Você deveria dar mais crédito à sua mãe – falei, amassando a forminha em meus dedos. Ele esboçou um leve sorriso e pegou um, dando uma mordida.
-É... nada mau... nada mau mesmo...
O silêncio reinou por mais alguns longos segundos, até que eu o quebrei.
-E então, faz tempo que vocês estão... namorando? – perguntei como quem não quer nada.
-Uns três dias.
-Três?
-Talvez quatro.
-Hm... e há quanto tempo se conhecem?
-Há uns cinco meses, mais ou menos.
-Legal... – disse sem emoção. Claramente, já se engraçava para o lado daquela coisa quando eu o conheci. Me senti estúpida. Meus olhos se abriram levemente em seguida. Deus, e se eu o tivesse beijado mais cedo? Meu estômago revirou. De repente eu não era a única a querer usar o toalete. - , eu preciso ir. Agradeça sua mãe por mim, por favor.
-Aqui, leve alguns bolinhos para sua mãe. – ele se levantou, procurando por algum recipiente, provavelmente.
-Não precisa, obrigada. – recusei prontamente, soando mais seca do que deveria. Ele me olhou estranho – Até mais.
E sem esperar resposta corri para fora.

Eu recusei a chamada de Lisa em meu celular pela terceira vez. Não estava em condições de falar com ninguém naquele momento. Precisava ficar de molho em minha cama por algum tempo, precisava respirar, ajeitar as ideias e esperar até que a porra da ficha caísse. Não conseguia entender o que estava fazendo com aquela garota. Ela era surreal demais até mesmo para ele. E eu, o que eu tinha na cabeça para querer beijá-lo do nada? Não conseguia nem imaginar meu estado se isso tivesse de fato acontecido.
Meu celular vibrou em cima da cama.

Da pra atender a porcaria do seu celular? Tenho uma coisa importante pra te falar!

Suspirei. Quando Lisa dizia 'porcaria', eu já sabia que ela não desistiria. Pensei por um momento e, por fim, respondi.

Eu também. Me encontra na sorveteria.

Pulei da cama e troquei a camiseta velha por uma melhor. Calcei um chinelo, peguei minha bolsa e, antes de sair, coloquei dentro dela algo que antes era especial.

Minha casa não ficava longe da de Lisa. A sorveteria era nosso ponto de encontro oficial, já que ficava a meio caminho de cada casa. Ela ainda não tinha chegado, e escolhi uma mesa mais afastada. Não que o lugar estivesse cheio, pelo contrário, mas quanto menos gente visse minha cara de fossa ao passar pela calçada, melhor. Lisa apareceu alguns minutos depois.
-Já pediu?
-Não.
-Ótimo. Moço! Moço! Por favor – Lisa abanou a mão no ar, chamando a atenção do garçom.
-Pois não.
-Uma banana split com calda de chocolate e cerejas extras.
-Quais os sabores do sorvete?
-Morango e creme.
-Mais alguma coisa?
-Se puder colocar farofa de castanha, eu agradeço.
-Anotado.
-E um pouco de chantilly também.
-Claro.
-E aqueles palitinhos, sabe? – eu arregalei levemente os olhos, olhando de Lisa para o atendente, que riu baixinho.
-Mais alguma coisa?
-Ah, duas bananas. – Ele ficou olhando para Lisa como se esperasse por mais coisas. – Isso é tudo, obrigada.
-Ok... e para a senhorita? – ele ainda tinha a sombra de um sorriso nos lábios. Ergui as sobrancelhas.
-Ah... hm... uma bola de sorvete de pistache, por favor.
-Só isso?
-Sim, obrigada.
-Com licença.
-Uma bola de sorvete de pistache? – Lisa indagou surpresa assim que ele se afastou.
-Uma banana split com a sorveteria inteira dentro? – devolvi. Ela coçou a nuca teatralmente, suspirando.
-Não sei do que você está falando. Enfim, por que não atendeu minhas ligações?
Suspirei. Meus olhos desviaram-se dos dela focando a rua lá fora, descendo para minhas mãos em cima da mesa em seguida. Lisa colocou uma das suas por cima delas, o que me fez voltar a encará-la.
-Nossa, , o que aconteceu? – ela perguntou visivelmente preocupada.
-Eu fui até à casa do .
Ela juntou as sobrancelhas.
-E o que ele fez pra te deixar assim?
-Nada, nada... ele não fez nada... – Lisa abriu a boca para dizer alguma coisa, mas nada saiu. Suspirei novamente. – Ele está namorando.
-O quê? – ela questionou surpresa, arregalando os olhos e deixando a boca ligeiramente aberta. Eu não soube o que dizer, então apenas mordi o lábio inferior e esperei. – Não, espera, como assim? Namorando? Sério? É sério?
Balancei a cabeça. Lisa permaneceu com a mesma expressão por alguns segundos.
-Sério? Um nerd daqueles namorando? – ela franziu a testa e contorceu a boca em um misto de confusão e incredulidade.
-Um nerd lindo... – disse baixinho.
-Com quem?
Ergui as sobrancelhas. A imagem de cruzou minha mente e tive vontade rir.
-Você não acreditaria.
Os olhos dela se arregalaram novamente.
-Meu Deus, é alguém que eu conheço? É aquela loira gostosa que tem na nossa escola? Oh, espera, ele está namorando alguém com o porte da Jennifer Aniston? – Lisa levou uma das mãos ao peito, aumentando consideravelmente seu tom de voz.
-Ei, ele tem condições para isso, ok? Mas não, não é nada disso. Muito pelo contrário, aliás...
-Da pra me contar logo, ? – ela pediu impaciente.
-Não é ninguém que a gente conheça... – Eu tentei continuar, mas meu cérebro não conseguia encontrar palavras para descrever aquele tipo de garota. Eu diria o quê, que ela era bizarra? – Bom... você já assistiu The Big Bang Theory?
-Algumas vezes, mas o que isso tem a ver?
O atendente se aproximou. Nós nos calamos até que ele terminasse de colocar os pedidos na mesa.
-Amy Farrah Fowler.
-Amy Farroquê? – Lisa indagou com a boca já cheia de banana.
-Farrah Fowler, aquela que faz par com o Sheldon Cooper.
Ela parou de mastigar, unindo as sobrancelhas para pensar.
-Hm, aquela loirinha?
-Não, não! A morena esquisita, que usa uma saia comprida e...
-E tem uma queda pela Penny! – ela me cortou abruptamente, arregalando os olhos. Eu apenas assenti. – Puta que pariu, você tá de sacanagem com a minha cara, não é?
-Não.
-Para com isso, , fala sério – Lisa me olhava com um misto de diversão e choque.
-É sério, Lisa, eu nunca falei tão sério em toda a minha vida.
Houve um minuto de silêncio. Ela encarou o nada atrás de mim em um transe profundo. Esperei calmamente até que ela absorvesse a informação. De uma hora para outra, Lisa explodiu uma gargalhada.
E eu fiquei lá, entre gargalhar com ela e chorar rios. Ela tinha uma mão na altura do estômago enquanto a outra a abanava com o cardápio. Seus olhos brilhavam, lubrificados pelas lágrimas que começavam a surgir. Não consegui evitar rir junto. Quando ela finalmente se acalmou – o que levou algum tempo –, nós voltamos a estabelecer uma conversa.
-Cara, eu não acredito nisso... não acredito... é... oh, meu Deus... é muita coisa pra minha cabeça!
-Isso tudo só porque você ouviu... imagine se tivesse visto o que eu vi... – disse distante, colocando um pouco de sorvete na boca.
-Mas, , é sério mesmo? Isso existe?
-Acredite.
-Amy Farrah Fowler existe?
-Em carne, osso e esquisitice.
-Céus... Eu preciso ver isso.
-Não precisa não, acredite nisso também.
-Ah, mas é claro que preciso! É surreal demais, e... Gente, espera aí – Lisa foi atingida por um momento de seriedade. – Eu sempre achei o um tanto quanto estranho e tal, mas isso? Nem mesmo ele combina com isso.
-Obrigada! – exclamei levantando as mãos para o céu. – Eu também não entendi. E parece que foi tudo tão rápido...
-Onde ele a conheceu?
-Na turma de xadrez.
-É, não me surpreende. Mas como foi isso? Quando?
-Ai, eu nem sei direito... Meu choque foi tanto que eu nem consegui absorver mais nada.
-Eu estou rindo, mas isso é triste. – Ela entortou a boca. Fiz o mesmo.
-Eu sei.
-O que pretende fazer?
Arqueei as sobrancelhas.
-Nada, oras. O que eu poderia fazer? Inscrevê-la em uma bolsa de estudos no Japão? – perguntei com ironia. Depois tombei a cabeça, considerando a ideia. – Sim, eu poderia inscrevê-la para uma bolsa no Japão...
-Vamos chamar isso de Plano D.
-Plano D?
-B já é muito clichê. – Lisa levou um pouco de sorvete à boca. Revirei os olhos. – Enfim, eu acho que você deveria dar algumas indiretas para ele.
-Você ouviu o que eu acabei de dizer, Lisa? – A encarei.
-Sim, não poderia ser mais perfeito.
-O quê?
-Pense bem, . Ele é inteligente e, sim, muito bonito. Ela é inteligente e... bem, é a Bete, a feia. Obviamente ele está com ela apenas por comodismo. Sabe, aquela coisa de 'nossa, eu sou um nerd, ninguém nunca vai querer nada comigo, ninguém nunca vai me amar, vou ficar com a Bete, minha única chance de não morrer virgem.'
Lisa concluiu com naturalidade. Eu estava entre rir da comparação e questionar o que ela havia dito.
-Cara, você ouviu o que acabou de dizer? – perguntei com os olhos quase arregalados. Ela lambeu a colher de plástico e me olhou.
-Ele não conseguiria chegar tão longe com ela, não é?
-Lisa! Isso não faz o menor sentido. Além do mais, você não pode concluir isso sobre ele. Ele pode realmente achá-la bonita. Ele pode realmente... – deixei a frase morrer no ar com a possibilidade que havia cruzado minha mente. Senti meus lábios se contraírem e minha cabeça baixar. O sorvete revirou em meu estômago.
-Ah, , não fique assim. – Ela falou com doçura na voz – O jeito que ele ficou quando eu o encontrei não nega que ele sente alguma coisa por você, eu sei disso. Não sei por que ele resolveu namorar a Bete agora, mas pode apostar que aí tem.
-O nome dela é .
-Vou chamá-la de Bete.
Soltei uma risada baixa.
-Acho que não quero mais falar sobre isso por hoje, já tive emoções demais.
-Faz bem.
-Enfim, você disse que tinha uma novidade.
-Adivinhe só quem irá passar o ano novo na cidade das luzes?
Foi a minha vez de arregalar os olhos e ficar imóvel por uma fração de segundo.
-Você vai para Paris? – minha voz saiu mais alta do que imaginei.
-Daqui a duas semanas, dois dias antes do natal. Não é demais?
-Demais? Lisa, isso é incrível! – abri um sorriso sincero – Oh, minha amiga vai arrumar um francês perfumado e me deixar aqui, na eterna solidão.
-Eu vou é arrumar um francês gostosão que tenha um amigo gostosão pra você. – nós rimos.
-Um mês, quero aperfeiçoar meu francês. Não é muito tempo, mas tá valendo.
-E como está! Não se esqueça do meu perfume, ok? – dei uma piscadinha.
-Um francês e um perfume? Céus, como você abusa. – Lisa balançou negativamente a cabeça, colocando um pedaço de banana na boca. Senti o celular vibrar no bolso da calça.
-Alô? Oi, mãe... estou na sorveteria com a Lisa... ok... está bem.
-Precisa ir? – ela perguntou assim que desliguei.
-Sim, minha mãe quer que eu vá com ela e meu pai ao teatro.
-Parece entediante.
-Espero que não. Preciso me distrair.
-O que vão ver?
-Não faço ideia, mas temos que ir. O filho do chefe do meu pai vai se apresentar, ou algo assim.
-Ah, entendo. Bom, na medida do possível, divirta-se! – Lisa deu um sorriso sincero.
-Obrigada, gatinha.
-Vamos pagar a conta, então.
Nós nos levantamos e seguimos para o caixa. Senti minha respiração diminuir assim que abri minha bolsa. Esperei até que saíssemos da sorveteria para fazer aquilo que eu não sabia ao certo se deveria fazer.
-Tome, Lisa, isso é para você.
Ela franziu o cenho, olhando de mim para minha mão estendida como quem não estivesse entendendo.
-Pra mim?
-Sim, é um presente. Achei que iria gostar. – o rosto dela relaxou, e então ela abriu um sorriso infantil.
-Ai, , que delícia! Não precisava disso.
-É, mas eu sou uma amiga muito legal e quis te agradar. – Lisa rolou os olhos enquanto ria divertida.
-Vou comer todos vocês essa noite.
Ela então pegou a caixa dourada enfeitada com um laço branco de minha mão, beijou minha bochecha e foi embora.

***


-De quem é essa apresentação mesmo, pai? – perguntei enquanto ele dirigia, enrolando meu cabelo com o indicador.
-Do filho do meu chefe. Ele acabou de se formar em Artes Cênicas e está com essa peça.
-Ah, sim. – disse desinteressada.
-Parece ser interessante – minha mãe comentou lendo o folheto – Gosto dessas coisas de época.
Ela e meu pai começaram uma conversa, na qual não prestei a mínima atenção. Tudo o que eu queria naquele momento era uma excelente noite de sono, o que significava dormir feito uma pedra até às cinco da tarde do dia seguinte. Em vez disso, estava pensando em Lisa e no quanto ela me faria falta quando fosse para Paris. Que vaca sortuda. Ela era a única pessoa com quem podia conversar sobre meu amor platônico, e agora iria me abandonar. Mas talvez isso fosse bom. Sem ela por perto eu seria obrigada a me manter calada quanto ao e tudo o que o rodeava. É, isso talvez fosse muito bom.

Aquela era a primeira vez em que eu colocava os pés em um teatro. Claro, eu já tinha ido ao teatro da escola assistir a algumas peças idiotas, mas isso nem se comparava. Eu estava em um teatro de verdade dessa vez. E até que gostei da atmosfera do ambiente. Eu e minha mãe seguimos meu pai até nossos lugares, na ponta de uma das fileiras do meio do conjunto que ocupava o centro do local. Havia outro conjunto de fileiras dos dois lados opostos, separados do conjunto onde estávamos por um longo e largo corredor. Eram nove horas e o teatro estava cheio, apenas duas ou três fileiras vazias. O palco era enorme, e por um momento me imaginei fazendo uma cena qualquer em cima dele. Meu coração bateu mais rápido só de pensar.
Cinco minutos se passaram desde que nós chegamos e eu já estava me perguntando se aquilo demoraria muito a acabar. Sei que é errado julgar um folheto pela impressão, mas aquela foto do elenco não me passou um bom sentimento. Desejei estar errada. E minha espera estava indo razoavelmente bem até minha cabeça resolver se virar e meus olhos focalizarem as duas únicas pessoas no mundo as quais eu não gostaria de ver.
-Quem é aquela garota com o ? – ouvi a voz de meu pai indagar com uma pitada generosa de maldade. Eu não consegui desviar o olhar, muito menos respondê-lo.
-Meu Deus, coitadinha... – minha mãe soou nitidamente chocada. Ouvi meu pai soltar uma risada.
E aí, quando eles se sentaram duas fileira abaixo da que pareava com a nossa, no conjunto que ficava ao meu lado esquerdo, as luzes diminuíram.

Capítulo Doze



Eu não sabia quanto tempo de peça havia se passado, eu só sabia que ela já havia começado. E também não tinha muita certeza de que eu estava sentada, porque minha cabeça de repente pareceu tonta e eu sentia como se estivesse flutuando. Sentia como se as pessoas ao meu redor não existissem, como se minha mente estivesse me enganando. E me sentia enjoada. Estava tentando ao máximo não olhar para ele, mas meus olhos idiotas insistiam em rolar nas órbitas, me dando o desprazer de vê-los lado a lado, e também de ver aquele cabelo perfeitamente penteado e a gravata escura segurando firme a gola da sua camisa xadrez vermelha enquanto o nariz delicadamente desenhado segurava os óculos acima dele. Alguém deu um grito em cima do palco e eu me assustei. Minha atenção voltou-se inteiramente ao cara com o falso cavanhaque, e minha mente disse palavras nada bonitas para ele. Me afundei na cadeira, agora o agradecendo por mudar meu foco. Alguns minutos depois, eu estava olhando para de novo.
Isso se repetiu por várias e várias vezes durante o espetáculo, que de espetacular não tinha nada. Não tinha entendido até agora sobre o que se tratava a peça, e nem sabia quem era o filho do chefe do meu pai. Que, aliás, estava quase dormindo ao meu lado, ao contrário de minha mãe, que realmente parecia entretida. Passei as mãos com força sobre meus olhos. Já tinha visto sorrir, dizer alguma coisa a ela, escutar alguma coisa dela, coçar os olhos, coçar o nariz, limpar os óculos na camisa, cruzar as pernas, descruzar as pernas, respirar, piscar, umedecer os lábios com a língua exatamente do jeito que ele estava fazendo agora... Oh, céus... Pisquei com força e apoiei o cotovelo esquerdo no braço da cadeira, descansando a cabeça na mão de forma com que meus dedos bloqueassem minha visão lateral. Isso, assim estava melhor. E ficou melhor até me dar vontade fazer xixi. Ou 'usar o toalete', já que hoje eu estava em um ambiente culto.
- Pai, vou ao banheiro – sussurrei para ele, que fingiu não ter acabado de acordar com meu toque em seu braço.
- Tá, vá comer...
Ergui as sobrancelhas e contraí os lábios, segurando o riso. Então, de cabeça baixa, levantei da cadeira e caminhei para fora do teatro.
Eu estava lavando minhas mãos quando uma simples frase congelou o sangue em minhas veias.
- Olá, .
Meus olhos levantaram-se lentamente, vendo a imagem não exatamente agradável dela refletida no espelho.
- Olá, . – disse após engolir em seco. Ela se aproximou, abrindo a torneira da pia ao meu lado.
- Que prazer em revê-la. – sorriu carismática, o que dizia nitidamente que ela não estava sendo falsa. Ao contrário de mim.
- Claro.
- Não sabia que era entusiasta de peças teatrais.
- Não sou, na verdade – respondi sem olhá-la, fechando a torneira e pegando dois pedaços de papel.
- Não entendo, o que faz aqui então? – fez a pergunta de modo suave, juntando-se a mim.
- Meus pais quiseram que eu viesse.
- Entendo. E o que está achando da peça?
Suspirei. Ótimo, tudo o que eu queria: bater um papo no banheiro com a namorada do cara pelo qual eu tinha um precipício.
- Interessante. – respondi sem emoção, mas tentando não ser rude.
- Certamente é. As obras de Molière são, sem dúvida, primas. Gosto dessa peça em particular. É uma crítica acirrada à relação médico-paciente, marcada pela frieza e pelo descaso. Gosto de como ele usa o humor para nos colocar frente a manifestações do espírito humano que atravessam os séculos. As questões sociais trabalhadas por ele sempre foram muito à frente de seu tempo.
Eu fiquei a encarando por um tempo que não saberia dizer se foi longo ou curto. Ela ajeitou os óculos em seu rosto, esperando por uma reação minha, e percebi que não sabia como reagir. Meus olhos desviaram-se dos dela por um momento, e então minha mente optou por apenas concordar.
- Com certeza.
Houve um momento de silêncio. O olhar dela no meu era fixo, o que estava me deixando terrivelmente desconfortável. Quando pensei em dizer algo, vi seus olhos analisarem minhas roupas. Só então eu reparei no que ela usava: uma saia bege na altura dos joelhos, um suéter amarelo leve, meias pretas grossas e um sapato no estilo dos que minha avó usava. Seus cabelos estavam presos em um rabo de cabalo baixo e ela ficou ligeiramente sem graça ao perceber que eu a estava observando. Seus dedos agarraram-se à saia e ela mordeu rapidamente o lábio inferior, suspirando.
- Bem, até depois. – eu disse dando um meio sorriso, pronta para sair correndo dali.
- Tudo bem. – ela sorriu de volta, abrindo espaço para que eu passasse. Quando meus dedos relaram a maçaneta, ouvi meu nome ser chamado.
- ?
- Sim? – virei o rosto para encará-la.
- Gostaria de dar um passeio ao shopping comigo qualquer dia desses?
Pelo que me pareceu ser a centésima vez no dia, eu não soube o que dizer. Cada célula do meu corpo gritava não, mas o jeito como ela me olhava levou meu cérebro a pensar duas vezes. Era um olhar inocente, quase infantil, que de alguma forma implorava para que eu dissesse sim. As íris castanhas brilhavam enquanto me observavam e de repente eu me vi com pena dela. A palavra saiu de minha boca antes que eu percebesse.
- Claro.

***


Eu estava sentada no primeiro degrau da escadaria que levava à porta de entrada do hall do teatro. Meus pais ainda estavam lá dentro dando seus cumprimentos ao chefe e ao filho. Minha cabeça parecia que iria explodir a qualquer momento e eu já nem conseguia manter os olhos abertos direito. De acordo com meu relógio, a peça havia durado cerca de uma hora e meia, mas a sensação que eu tinha era a de que uma semana havia se passado lentamente desde que colocara minha bunda naquela cadeira. Especialmente depois do encontro fatídico que tivera com no banheiro e, mais especialmente ainda, depois que tive o desprazer em ver de mãos dadas com ela. Meu dia não poderia estar sendo pior. Senti um vento gostoso bater em meu rosto e fechei os olhos. Estava muito cansada, ansiando pelo conforto de minha cama e, quem sabe, por um banho quentinho. Meu estômago estava dando sinais de vida e eu rezava para que meus pais encerrassem a ladainha logo.
- ?
Minha cabeça virou-se automaticamente, o que me fez sentir uma leve pontada de dor, mas parei de prestar atenção nela assim que meu cérebro se deu conta de quem se encontrava à minha frente.
- ?
- Oi... – ele disse baixinho, ajeitando os óculos.
- Oi... – devolvi no mesmo tom, um pouco tensa.
- Pensei que já tivesse ido embora.
- Só estou esperando meus pais.
Ele assentiu levemente enquanto sorria com o canto dos lábios. Nós ficamos em silêncio por um minuto, e então ele se sentou ao meu lado.
- A disse que te encontrou lá dentro.
- É, cruzei com ela no banheiro – respondi olhando para frente, sentindo meu corpo se contrair em resposta à proximidade dele. E ele cheirava tão bem...
- Gosta de teatro?
- Não tenho o costume de frequentar um, na verdade.
- Entendo. E o que achou da peça?
- Interessante. – dei a mesma resposta que tinha dado a mais cedo. Eu ainda não o tinha olhado. – E você?
Ele suspirou.
- Um saco.
E então eu o encarei.
- Um saco?
- Um porre, na verdade. No cartaz dizia comédia. Estou procurando a graça até agora.
Eu soltei uma leve risada, não sabendo exatamente se pelo comentário ou por ouvi-lo dizer porre.
- É, eu não prestei nenhuma atenção, pra ser sincera.
- Eu sei.
Minhas sobrancelhas se uniram.
- Como assim?
- Depois que a me disse sobre você, eu dei uma olhada para trás. Você estava muito ocupada cuidando das suas unhas. Quando olhei de novo, você estava dormindo.
Senti minhas bochechas esquentarem imediatamente. Mordi levemente o lábio inferior, dando uma risada envergonhada. Não soube o que responder.
- Não te culpo, eu mesmo fechei meus olhos por várias vezes.
Ainda não sabia o que dizer. Eu fiquei o olhando com um sorriso pequeno nos lábios enquanto ele me olhava de volta.
- Eu sei. – soltei as palavras sem querer, mas querendo. Meu estômago revirou quando senti o olhar dele queimar meu rosto. Um friozinho gostoso e ao mesmo tempo desconfortável percorreu minha espinha e atingiu minha nuca, me fazendo arrepiar. Consegui ver a linha de seu maxilar contraído e desviei meu olhar do dele quando me vi sem graça.
- Sabe? – ele perguntou dando uma leve engasgada. Eu apenas sorri e afirmei com a cabeça, olhando-o rapidamente.
- Eu estava sentada atrás de você, não estava?
- Você estava me olhando? – o ar fugiu de meus pulmões com a pergunta. Involuntariamente, mordi o lábio. Meu coração disparou. E minha boca também.
- Estava.
Houve um minuto de silêncio. Eu não me atrevi a mover um músculo.
- Onde está ? – questionei sem realmente querer saber, mas para lembrar a mim mesma de que ele tinha uma namorada e acabar com o clima estranho que havia se instalado.
- Conversando com o diretor da peça. – ele respondeu depois de um tempo.
- Ah, sim. – arqueei as sobrancelhas, imaginando a cara do diretor enquanto ouvia as palavras quase surreais dela. – Como vai o namoro? – me espantei com minha própria pergunta, não sabendo de onde diabos aquilo tinha vindo. Ele pareceu surpreso também.
- Bem, vai bem... Está tudo indo bem...
- Que bom...
- É...
Suspirei o mais profundamente que consegui. Que merda, onde estavam os meus pais?
- Olá, . – parou junto a .
- Oi. – respondi com um pequeno sorriso forçado.
- Vamos? – ela se dirigiu a , que pareceu meio relutante ao se levantar.
- Bom, nos vemos por aí.
- Claro, . Até.
- Pegarei seu número com o . Até o fim da semana nós nos falamos – afirmou com empolgação enquanto ele a olhava confuso e eu, desesperada. Eu e minha mania de fazer merda o tempo todo.
- O-ok...
- Vão a algum lugar?
- Eu tomei a liberdade de convidar sua amiga para um passeio ao shopping. Espero que não se importe.
a encarou com os lábios entreabertos por um instante.
- Não, claro que não.
- Ótimo. Até breve, . – se despediu com um sorriso aberto e se limitou a sorrir. Eu sorri de volta, vendo-os se afastar.
Por que um raio nunca cai na minha cabeça quando eu preciso?

***


Quase uma semana depois do dia mais infeliz da minha vida eu estava deitada em minha cama assistindo a nova temporada de Dexter. Eu daria qualquer coisa para ser pedida em casamento por ele. O fato de ele ser um serial killer era apenas um detalhe. Meu celular vibrou em cima da minha barriga, o que me obrigou a pausar o vídeo no notebook.
- Fala.
- A Bete já te ligou?
- Ainda não, e espero que continue assim.
- Em que situação você foi se meter, amiga.
- Nem me fale.
- Enfim, vamos ao shopping?
- Ao shopping? – perguntei com desânimo.
- Eu preciso comprar algumas coisas para levar à minha viagem fashion. Pensei que talvez você quisesse me ajudar.
- Que horas te encontro lá?
- Daqui a uma hora.
- Ok!
Desliguei o celular e fechei o notebook, correndo para o banheiro. O shopping não era exatamente meu lugar favorito, mas fazer compras com a Lisa era sempre muito divertido. Sorry, Dex, vejo você mais tarde. Entrei no box e tomei um banho morno. Quando voltei para o quarto, vesti um short jeans verde limão, uma camisete branca de cetim, que coloquei por dentro dele, e uma sapatilha creme. Resolvi deixar o cabelo solto, e então fiz uma maquiagem leve e passei um perfume suave. Peguei minha bolsa e desci a escada.
- Aonde vai toda produzida? – minha mãe perguntou quando cheguei à sala.
- Ao shopping com a Lisa.
- Você está linda. – papai tirou os olhos do jornal por um momento. Sorri.
- Uma menina chamada te ligou, meu amor.
Eu fiquei imóvel, sentindo meu corpo todo gelar.
- Quem é ela? – mamãe perguntou.
- Hã... ela é... é a namorada do . – disse sem olhá-los, sentando-me à poltrona.
- Aquela esquisita? – meu pai perguntou sem cerimônia. Mamãe o repreendeu com um olhar, mas riu. – Qual é, ela é esquisita mesmo.
- É ela sim.
- Não sabia que se conheciam.
- Falei com ela umas duas vezes, mãe.
- Ela deve ter gostado de você, então. – ela comentou e eu apenas sorri fraco. – O número dela está na agenda.
- Ok.
Levantei e fui para a cozinha. Tomei um copo de água absurdamente cheio na esperança de relaxar um pouco, mas minha garganta não tinha o poder de transformar água em vinho. Ponto para mim.
- Vai com a Lisa ou tenho que te levar? – meu pai gritou da sala.
- Tem que me levar!
- Ótimo! – ele devolveu com sarcasmo, me fazendo rir. O telefone tocou, e senti que toda a água que havia ingerido talvez quisesse sair por onde entrou. Apoiei as mãos na pia, esperando que aquela sensação passasse, e então o barulho cessou.
- , é para você. – foi a vez de minha mãe gritar, provavelmente do quarto. Havia um aparelho próximo ao micro-ondas e eu hesitei antes de pegá-lo.
- Alô? – perguntei depois de alguns segundos.
- Olá, . Como vai? – céus, a voz dela era ainda mais irritante por telefone.
- Hm, bem. E você?
- Estou bem também, obrigada. Como prometido, estou te ligando para darmos aquele passeio. Podemos nos encontrar em meia hora? – ela soltava as palavras com uma formalidade desnecessária, o que me fez querer dizer um não bem grande.
- Ah, claro, sem problemas.
- Certo, te vejo daqui a pouco.
- – a chamei antes que ela desligasse – Se importa se eu levar uma amiga? – houve um pequeno silêncio – É que ela, coincidentemente, acabou de me ligar para fazer o mesmo convite. Estou até pronta, na verdade.
- Absolutamente, não tenho objeção alguma. Será um prazer. Até breve, .
- Até mais.
Desliguei o telefone e o coloquei na base. A presença de Lisa me deixaria muito mais confortável, obviamente, então eu relaxei um pouco. Além do mais, se eu tinha que sofrer, Lisa sofreria comigo. Amigos são para isso.

Avistei Lisa sentada em um banco na parte térrea do shopping, próximo ao cinema. Ela abriu um sorriso a me ver e se levantou, esperando até que eu me aproximasse.
- A quem você quer impressionar? – Lisa perguntou marota observando minhas roupas. Soltei um risinho.
- Eu impressiono todos os dias, querida.
- Claro, me perdoe. – ela rolou os olhos – Bom, quero começar comprando algum jeans, os meus já estão gastos. Que tal se nós fossemos na por que você está sorrindo?
- Que raio de loja é essa? – perguntei confusa enquanto sentia minhas sobrancelhas unirem-se.
- Por que você está com esse sorrisinho no canto da boca? Eu conheço esse sorrisinho, é seu sorriso de quem está escondendo algo. O que está escondendo de mim, ? – Lisa disparou as palavras, me olhando com uma expressão séria. Umedeci os lábios, mordendo o inferior levemente em seguida para tentar conter meu sorriso, que aumentava.
- Não sei do que você está falando – disse dando de ombros e desviando o olhar.
- Não me venha com esse joguinho maldito, eu quero saber o que você está me escondendo!
- Não sei do que você está falando, já disse. – Lisa respirou fundo e cerrou os lábios, me olhando com fúria.
- , me ouça com muita atenção! – ela deu um passo em minha direção e apontou o indicador no meu rosto, me olhando como se estivesse me colocando de castigo. – Eu não te chamei até aqui para que você me fizesse de tonta. Eu sei que alguma coisa aconteceu, e isso é indiscutível. Você sabe que eu não gosto desses joguinhos, você sabe que eu fico brava, então me diga de uma vez por todas que porra é essa que santo Deus!
Os olhos dela arregalaram-se a tal ponto que pensei que fossem saltar às órbitas. Seu queixo estava praticamente no chão. Seu cenho agora estava levemente franzido e eu não sabia se o que ela sentia era espanto ou aversão. Talvez fosse uma mistura dos dois. E eu sabia exatamente o porquê.
- Ah, ela chegou...
Lisa pareceu não me escutar. Sua mão, que antes apontava um de seus dedos para mim, agora se encontrava espalmada em seu peito. Seus olhos desceram e subiram por duas vezes, e então ela começou a piscar. Eu me virei, levantei um dos braços e comecei a acenar para a única garota no país inteiro que usava uma camiseta alaranjada por baixo de um suéter listrado em branco e cinza, saia verde abaixo do joelho e sapatos pretos ortopédicos. tinha os cabelos repartidos ao meio. Carregava uma bolsa pequena cuja alça cruzava seu peito. As lentes de seus óculos reluziam enquanto ela andava desajeitadamente até nós.
- – ela me cumprimentou em tom formal.
- Oi, . Bom, essa daqui é minha amiga, Lisa.
- Como vai, Lisa?
- Céus... – me virei rapidamente para ela, repreendendo-a com o olhar. – Céus sapatos são lindos! – ela tentou apressadamente consertar. Forcei-me a engolir o riso.
- Lisa tem descendência baiana. – expliquei casualmente a , que pareceu acreditar. – Não é, Lisa? – sorri a ela sarcasticamente. Ela estava entre rir e me matar.
- Claro, tenho parentes distantes de lá...
- Nunca fui até a Bahia.
- Enfim, como você está, ? – Lisa mudou abruptamente o assunto.
- Como todo mundo: sujeita a entropia, decaindo e, eventualmente, chegando à morte. Obrigada por perguntar.
Não precisava olhar para Lisa para me certificar de que ela se encontrava no mesmo estado que eu: atônita.
- Bom, vamos dar uma volta? – perguntei com empolgação, tentando fingir que aquela havia sido uma resposta normal, já que Lisa ainda estava em processo de recuperação.

***


- O que você acha desses?
Lisa saiu do provador vestindo um jeans escuro com bolsos falsos.
- Não sei, parece que te deixou sem bunda.
- Sério? – ela questionou preocupada, olhando-se no espelho.
- Concordo com a . – deu sua opinião. Lisa bufou e voltou para o provador. Um minuto de silêncio se passou. – Não vai ver nada para você?
- Não, só estou ajudando a Lisa, ela vai viajar.
- Entendo. Para onde ela vai?
- Paris.
- Ótima escolha, ela irá adorar.
Eu a olhei surpresa.
- Já esteve lá?
- Sim, há alguns anos.
- Poxa, que legal – disse sincera. – Intercâmbio?
- Não, não, fui assistir a um congresso sobre a Teoria das Cordas com meus pais.
- Entendo. – respondi com um leve sorriso nos lábios. Eu já estava me acostumando com suas respostas.
- E você, já saiu do país?
- Não, nunca.
- Ok, o que acharam desse? – Lisa saiu vestindo agora um jeans claro e uma blusinha verde frente única.
- Um charme!
- Realmente, muito elegante.
- Finalmente! – ela levantou as mãos para os céus, entrando novamente no provador e me fazendo rir. Alguns minutos depois nós fomos ao caixa e saímos da loja.
- E agora, o que quer ver? – perguntei com os olhos grudados em um par de sapatos de uma vitrine qualquer.
- Preciso comprar uma bota.
- Que tipo de bota?
- Tipo montaria, de cano alto e sem salto.
- Como essa? – apontou para um par que estava exposto na vitrine a qual eu estava olhando.
- Exatamente como essa! – Lisa pareceu se empolgar. Nós entramos e ela logo foi atendida por uma ruiva muito bem vestida.
- Posso ajudar?
- Você tem aquelas botas no número 37?
- Vou dar uma olhada. Fiquem à vontade.
Eu me sentei em uma das cadeiras confortáveis com ao meu lado. Lisa sentou-se frente a ela. Vi-a analisar melhor cada detalhe da roupa de enquanto esta observava distraidamente alguns calçados em uma prateleira. Lisa então me olhou como quem diz estou morrendo de dó dela, o que me fez responder com um franzir de cenho.
- E então, , não vai dar uma olhadinha em nada para você? – Lisa questionou de repente.
- Creio que não.
- Ah, mas por quê? – ela insistiu. olhou de Lisa para mim, respirando fundo enquanto ajeitava a bolsa em seu colo com certo desconforto.
- Não tenho o costume de usar certos tipos de calçados. A maioria deles é prejudicial à coluna e interfere no modo como você pisa.
- Sei... – Lisa balançou levemente a cabeça, enrolando uma mecha de cabelo no dedo – E o que você gosta de usar, então?
- Calçados ortopédicos.
- Sempre?
- Sim.
- Ah, mas uma rasteirinha uma vez ou outra não é problema... Como aquela – Lisa apontou para uma sapatilha vermelha com detalhes dourados na ponta. Me perguntei aonde diabos ela queria chegar com aquilo.
- Bem, é uma peça muito bonita, mas eu raramente gasto minhas economias com roupas. Sempre as ganhei de minha avó.
Eu balancei positivamente a cabeça, como quem já esperasse por isso. Lisa, por outro lado, pareceu um tanto quanto surpresa.
- Você nunca saiu para fazer compras?
- Sim, em 24 de dezembro de 2005.
- Desculpe? – Lisa perguntou confusa. Eu optei por permanecer calada.
- Nós recebemos visitas, então minha mãe me levou ao shopping para comprarmos uma saia nova para mim.
Eu não soube dizer se Lisa gostou ou não quando a ruiva finalmente chegou com a bota, interrompendo o interrogatório quilométrico que eu sabia que ela havia construído em sua mente. A minha mente, por sua vez, não sabia se ria ou se chorava. Na verdade, eu não sabia mais o que pensar, muito menos o que sentir em relação à garota dos sapatos ortopédicos e seu namorado nerdzinho. E isso me matava.
- Você ficou ótima no meu pé – Lisa apreciava as botas pretas em frente ao espelho com o fascínio de uma criança. – Vou te levar para minha casa.
- Tenho certeza de que a bota está muito feliz com isso – debochei, mas Lisa ficava feliz demais quando comprava para assimilar minhas ironias e sarcasmos.
- Eu também! Vou levar, moça.

Alguns quilômetros rodados depois, meu estômago deu sinal de vida. Eu precisava comer alguma coisa o mais depressa possível. Lisa e gostaram da ideia, então nós compramos lanches e nos sentamos em uma mesa redonda da praça de alimentação.
- Lisa, se me permite a pergunta, quais são seus planos para a universidade? – perguntou com sua exagerada formalidade usual. Lisa terminou de lamber o ketchup do dedo, franzindo a testa.
- Bem, eu prestei alguns vestibulares nos meses passados, espero conseguir uma vaga em uma universidade pública.
- Excelente. E o que pretende cursar?
- Sempre fiquei entre jornalismo e moda. Fiz inscrição para os dois, então deixarei que o destino decida por mim – ela terminou em tom filosófico, me fazendo rir. – E você?
- Pretendo dar continuidade ao trabalho de meus pais, que são astrofísicos.
- Uau, parece interessante – Lisa disse antes de dar uma mordida em seu lanche e eu fiquei sem saber se aquilo havia sido sincero ou puro sarcasmo. – Mas e então, como vai o namoro?
Eu a encarei com um misto de espanto e indignação enquanto a mão que segurava o copo de refrigerante interrompia seu caminho até minha boca.
- Vai muito bem, obrigada. é um ótimo rapaz.
- Com certeza.
- Desculpe, você o conhece?
- Já o vi uma ou duas vezes na casa de .
parou de mastigar sua batata frita e olhou de Lisa para mim, confusa. - Não estava ciente de que frequentava sua casa, .
- Frequentava, no passado – apressei-me em dizer. – Ele me deu algumas aulas de exatas.
- Oh, entendo. Ele não comentou isso comigo.
- Sabe, eu acho que vocês dois formam um casal muito bonito – Lisa disse com naturalidade, me fazendo encará-la com a boca aberta.
- Obrigada.
- Vocês saem bastante juntos?
- Uma vez por semana, todos os sábados à noite.
- Apenas nos sábados? – Lisa perguntou com interesse. Eu sabia que ela queria chegar a algum lugar com aquilo, mas não sabia aonde. E isso não me atormentava tanto quanto ficar a par das coisas que fazia ou deixava de fazer com ela.
- Exato. Eu quis estabelecer algumas regras antes de começarmos a namorar, e essa foi uma delas. Devo dedicar o máximo de meu tempo aos estudos, assim como ele.
- Concordo, você não pode deixar que um garoto tire seu foco. – ouvi Lisa falar com a expressão séria.
- Absolutamente. Você namora, Lisa?
- Oh, não! Não tenho tempo para isso agora.
Eu ergui sutilmente as sobrancelhas, cerrando os lábios para não rir.
- Mas agora eu fiquei curiosa... – Lisa continuou. ajeitou os óculos, olhando-a pacientemente. – Quais são suas regras?
- As regras básicas para se ter um relacionamento saudável: passeios uma vez na semana, com no máximo duas horas de duração, direito a um selinho e andar de mãos dadas.
- Um selinho? – questionei com espanto.
- Exato.
- Quer dizer então que você e o nunca se beijaram? – eu senti uma onda de empolgação se espalhar pelo meu corpo e se refletir em minha voz, a qual Lisa cortou sem piedade com um chute em minha perna.
- Eu não entendo o motivo pelo qual as pessoas se beijam. Você sabe quantas bactérias diferentes existem em nossa microbiota? O que o desequilíbrio dela pode causar? Trocar saliva com outro ser humano não é uma opção.
Lisa e eu permanecemos caladas. Eu me senti mais leve com aquilo, mas ainda não entendia o motivo pelo qual havia aceitado se submeter àquilo. Ele era homem, e todos nós sabemos que homens gostam de muito mais do que um beijo na boca. Eu não acreditava que fazia parte de uma rara exceção.
- Então, se me permite a pergunta... – Lisa cortou o silêncio – por que você aceitou namorar com ele?
- Primeiro, porque eu não aguentava mais minha mãe discursar sobre minha vida social. Segundo, porque... – interrompeu-se abruptamente, como se de repente se desse conta do que estava prestes a falar.
- Porque... – Lisa encorajou. A menina olhou para o lanche em suas mãos, apertando-o levemente enquanto se ajeitava na cadeira, visivelmente incomodada. Suas bochechas coraram levemente e eu poderia jurar que ela havia engolido em seco.
- Porque, bem... eu nunca fui exatamente a menina mais bonita da escola... as outras pessoas sempre faziam comentários maldosos a meu respeito, incluindo o fato de que ninguém nunca se interessaria por mim... – ela parou de falar por um momento, bebendo um pouco de seu suco. Lisa me olhou com os olhos tristes e eu não pude evitar me sentir mal por . – foi o primeiro garoto a me fazer sentir bem.
- Sinto muito por isso – Lisa disse com sinceridade.
- Ele se declarou para você? – Perguntei com a voz firme. Não era uma coisa que eu queria saber, mas eu precisava. Lisa me olhou um pouco assustada.
- Depende do que você considera uma declaração. disse que me achava muito bonita e que talvez a pessoa certa para mim estivesse mais perto do que eu imaginava.
De repente eu me senti um pouco tonta e completamente desfocada, como se tudo ao meu redor não passasse de um borrão. Minha garganta ficou seca e eu me apressei em tomar um gole de suco. Repetir o ano teria sido melhor que ter três vezes por semana em minha casa.
- Bom, acho que já fiz compras suficientes por hoje. – Lisa disse depois de um tempo. Então nós três nos levantamos e fomos para casa.

***


Eu passei o resto da tarde deitada em minha cama com os fones de ouvido. A única coisa capaz de me fazer esquecer que havia um mundo girando lá fora era a voz inigualável e extremamente sexy de Billie Joe Armstrong cantando Good Riddance. Aliás, ele me levaria ao delírio até se cantasse Atirei o Pau no Gato. E eu estava tão entretida em meus pensamentos que me assustei ao sentir uma mão retirar um de meus fones.
- Desculpe, meu amor, não queria te assustar – minha mãe disse com a voz doce, sentando-se ao meu lado.
- Tudo bem, mãe.
- Você está bem? Parece que voltou tão tristonha do shopping...
- Estou sim, é apenas cansaço. – dei um sorriso forçado. Ela assentiu.
- Bem, vim te chamar para descer um pouco. A Loren quer te ver.
- Loren? – arqueei as sobrancelhas em total confusão.
- A que trabalhava comigo. Ela passou um tempo fora do país, na Alemanha, não se lembra? Ela sempre trazia...
- Doce de abóbora com chocolate! – cortei a frase de minha mãe ao me lembrar de Loren. Ela era uma das meninas e sempre estava nas reuniões que elas faziam.
- Exato – ela riu. – Ela voltou, está lá embaixo e quer te ver.
- Claro, vou colocar uma roupa melhor e já desço. Ela trouxe doce? – perguntei mordendo o lábio inferior. Mamãe riu e se levantou, caminhando até a porta.
- Trouxe sim, especialmente para você! Aliás, a nossa reunião será aqui em casa hoje. Espero que não se importe.
- Não, tudo bem.
- Certo. Te espero.
Ela fechou a porta e eu então procurei por algo mais apropriado que um short rasgado e uma blusa vermelha desbotada em meu armário. Eu tinha adoração pelo doce de abóbora da Loren e nem podia acreditar que o comeria de novo. Ela já estava fora do país por mais ou menos cinco anos. Minhas lombrigas estavam a ponto de sair pela boca. Assim que me arrumei, comecei a descer a escada. A porta do quarto de meus pais estava fechada, o que significava que meu pai estava, talvez, no trigésimo sono. Eu estranhei, afinal ainda eram... Oito horas da noite. Um novo recorde. Pude ver Loren sentada em uma poltrona assim que meus pés tocaram o último degrau. Ela me sorriu espantada, cobrindo a boca com as mãos e se levantando.
- Minha nossa Senhora, como essa menina cresceu! – ela disse me dando um abraço apertado.
- Olá, Loren.
- Oh, deixe-me olhar para você – ela me afastou gentilmente e segurou meu rosto entre as mãos, me analisando – Você está ainda mais linda do que eu me lembro!
- Obrigada. Fico feliz que tenha voltado – disse sorrindo – Como foi sua viagem?
- Melhor impossível. A Europa é linda! As pessoas não são lá grande coisa, mas você iria amar a Alemanha!
- Eu quero ver as fotos depois.
- Com certeza. Eu estava até comentando com as meninas... – Loren olhou para a direita e eu não pude evitar não olhar também. A sala estava cheia e eu nem ao menos havia notado. Todas as amigas de minha mãe agora ouviam, maravilhadas, o discurso de Loren, que eu, sem perceber, ignorava. Aria estava entre elas, e me sorriu carinhosamente quando me viu. Senti um friozinho percorrer minha barriga com a imagem que cruzou minha mente. Será que... Não, não achava provável. Ele devia ter coisas muito mais interessantes para fazer. Aproveitei o momento de distração coletivo e me afastei, andando até a cozinha. – Aonde você vai, menina? – o quase grito de Loren me interrompeu, voltando a atenção da sala para mim.
- Ah... eu... eu vou pegar um pouco de água...
- Não demore, o está lá fora no celular. Você viu como ele ficou maravilhoso? – ela piscou marota para mim, o que fez minhas bochechas arderem violentamente. Meu coração começou a bater mais forte e eu não sabia se saia correndo ou se abria um buraco no chão e enfiava minha cara. Meus olhos encontraram os de Aria sem querer, e ela me olhava com um misto de surpresa e alegria. Ele estava aqui. Na minha casa. Com o pouco de ar que ainda restava em meus pulmões, eu gaguejei.
- N-não sabia q-que ele estava aqui...
- Seu menino ficou um boneco, Aria. Se eu tivesse a idade da , ele não me escaparia. – Loren comentou com seu jeito extrovertido de sempre. Aria deu uma gargalhada gostosa, que foi acompanhada pelas outras. Loren se virou para mim novamente – Eu acho que vocês dois formariam um casal lindo.
- Você trouxe doce de abóbora? Eu estou morrendo de saudades disso! – mudei o assunto da água para o vinho. Minhas bochechas esquentaram-se ainda mais e tudo o que eu conseguia era desejar que um meteoro caísse na cabeça de Loren e a esmagasse por completo.
- Como não poderia? Sua mãe colocou na cozinha.
- Aliás, você nunca me deu a receita... – Maggie, a gordinha, acabou comentando, e eu dei o fora de lá o mais rápido que pude. Minhas mãos encontraram meu rosto assim que entrei na cozinha enquanto meus pés andavam para lá e para cá, incessantemente. Meu Deus, meu Deus, meu Deus! está lá fora, meu Deus, o que eu faço? Subo e me tranco no quarto? Finjo indiferença? Saio de casa? Bebo ácido? Obriguei-me a respirar fundo e me sentei em uma das cadeiras. Eu não queria vê-lo. Aliás, o que ele estava fazendo aqui? O que ele tinha para fazer aqui? As palavras de Loren ecoaram em minha mente, e então meu rosto esquentou novamente. Droga! Prendi os cabelos em um coque frouxo e andei até a pia. A água que saiu da torneira estava fria e eu a joguei três vezes pelo rosto.
- Você está bem? – A voz suave e gostosa já bem conhecida pelos meus ouvidos e vinda de trás de mim me deu um susto. Eu me virei por instinto, apoiando as mãos na pia – Desculpe...
- Não, tudo bem... – disse fechando os olhos e levando uma das mãos à testa.
- Aconteceu alguma coisa?
perguntou com certa preocupação. Só então meus olhos o focalizaram com clareza. Ele vestia uma camisa social preta de manga três quartos, um jeans azul escuro e o mesmo All Star preto. Seus cabelos estavam perfeitamente penteados. Os óculos estavam no lugar. E aquele par de olhos ainda faziam minhas pernas tremerem e o meu coração disparar. Eu conseguia, sim, pensar. Mas eu não conseguia fazer nada que não fosse o olhar.
- ? – meu nome saiu da boca dele com suavidade. Eu vi os movimentos que seus lábios fizeram. Ele estava lindo. Ele sempre estava lindo. E ele sempre me deixava completamente vulnerável quando aparecia em minha frente.
- Você está diferente...
- Diferente como? – ele perguntou um pouco confuso.
- Nunca te vi usando cinto antes. – comentei com um sorriso brincando nos lábios. Ele olhou para o cinto preto em sua calça e riu baixinho.
- Resolvi tentar uma coisa nova.
- Você está bonito... – disse em um sussurro. me encarou por um momento. Suas bochechas coraram um pouquinho, o que me fez erguer levemente o canto dos lábios em um meio sorriso. Eu sempre mudava quando ele estava por perto.
- Você também.
Foi a minha vez de corar, mas lutei contra a vontade de cortar o contato visual. Além do mais, eu já deveria estar vermelha quando ele entrou.
- Você está... – interrompeu sua própria frase, mordendo o lábio inferior discretamente. Ele então deu um passo à frente, caminhando em minha direção. Senti minha respiração diminuir e uma sensação estranha se instalar em meu estômago. Ele esticou o braço e pegou alguma coisa trás de mim. Seu perfume invadiu meus pulmões com certa agressividade e eu fiquei tonta. Com a delicadeza de uma pétala de rosas, ele deslizou um pedaço de papel toalha em minha pele – Seu rosto está molhado...
Meu sangue congelou nas veias. Não ouvia mais nada, não sentia mais nada, não movia mais nada. Eu tinha os olhos dele focados e inteiramente cravados nos meus. Seu polegar tocou minha pele e deslizou da minha bochecha até o canto da minha boca. Um choque percorreu rapidamente minha espinha, fazendo meu tronco se endireitar e, consequentemente, aproximando meu rosto do dele. Minhas pernas começaram a tremer e eu já não conseguia mais aguentar, eu queria desesperadamente que ele me beijasse. Mas seu rosto ficou pálido e sua expressão, séria. Ele então se distanciou e saiu apressado pela porta, me deixando completamente confusa, decepcionada e despedaçada.
E enraivecida.
Meu corpo todo foi tomado por uma onda gigante de raiva, algo que eu nunca havia sentido antes e que fez meus dedos apertarem o mármore duro da pia tão fortemente que eu já nem mais os sentia. O que esse moleque estava fazendo, afinal? Qual era a desse nerd idiota? Terminei de enxugar meu rosto, passando o papel por ele sem dó. Minha pele ardeu, mas e daí? Já havia sentido dor pior. Meus pés caminharam a passos firmes e pesados para fora da cozinha, socando os degraus da escada enquanto meus punhos só queriam socar o rosto perfeitinho dele. Idiota. E então, quando entrei em meu quarto, os sentimentos se esvaíram, e me senti vazia novamente.
Leve.
Perdida.
Confusa.
Porque ele estava lá.
Em pé, observando o quadro de um anjo em minha parede que eu havia feito quando criança.
Eu fechei a porta.
- Dizem que a noção de gravitação surgiu para Newton a partir de sua observação da queda de uma maçã, enquanto ele se encontrava sentado em estado contemplativo. – ele começou em voz baixa, sem me olhar. – As bases para isso foram as leis do movimento planetário de Kepler e as experiências de Galileu Galilei, que mostraram que um corpo em queda acelera a uma taxa uniforme e que um projétil descreve uma trajetória parabólica. Ao unir essas informações com o fenômeno que fazia a maçã cair no chão, ele percebeu que a mesma força que fazia isso também mantinha a Lua em órbita da Terra e os planetas em órbita do Sol. Nesse ínterim, ele aprimorou seus estudos e desenvolveu suas três famosas leis do movimento: a primeira, conhecida como teoria da inércia, diz que um corpo permanece em repouso ou em movimento uniforme ao longo de uma linha reta, a menos que sofra ação de uma força externa; a segunda lei do movimento, afirma que o efeito de uma força contínua sobre um corpo inicialmente em repouso ou em movimento uniforme é fazê-lo acelerar. A terceira...
- . - o interrompi, olhando-o com as sobrancelhas arqueadas. Ele, então, finalmente me encarou, entendendo que eu não entendia nada.
- Por que você me trocou?
O sangue congelou em minhas veias. As palavras flutuaram sobre minha cabeça por um espaço de tempo que eu não soube calcular. E a sensação estranha que tomava conta de minha barriga só piorava conforme o olhar dele penetrava mais intensamente no meu.
- E-eu... – mesma me cortei quando ele deu um passo à frente.
- Está tudo bem, pode me dizer a verdade. É claro que você tem o direito de não o fazer, assim como teve direito de me substituir, mas eu só queria entender o porquê. Pode parecer estranho e não convencional, mas isso está na minha cabeça já faz algum tempo. Nós estávamos nos dando bem, ou pelo menos eu estava, então, se você não se importar em me esclarecer, eu só gostaria de saber se eu fiz algo de errado ou se estava sendo muito confuso... Às vezes isso acontece, e, bem, são coisas que acontecem.
Houve um minuto de silêncio depois que as palavras deixaram, tão suave e docemente, a boca dele. Foi um minuto em que eu não fiz nada além de observá-lo. tinha as mãos dentro dos bolsos, mas pela primeira vez aquilo não era uma resposta inconsciente ao nervosismo. Pelo contrário, ele estava relaxado. Bastante relaxado. Como se aquilo estivesse sendo um alívio em vez de um desafio. Então eu notei que eu também estava relaxada. Minhas mãos enterraram-se nos bolsos do short e minhas sobrancelhas arquearam-se em uma expressão perdida.
- Uau... eu realmente não sei o que te dizer...
Foi o que consegui falar. deu um meio sorriso, aproximando-se um pouco mais.
- Eu vim te chamar para sair.
Meu coração parou.
- O quê?
- Depois que você me disse que não precisaria mais das aulas, eu vim te chamar para sair. Tomar um sorvete, comer alguma coisa, dar uma volta, sabe? Eu gostei de você... – as bochechas dele ficaram rosadas e um sorriso surgiu no meu rosto – Digo, você é uma garota legal, eu achei que talvez nós poderíamos ser amigos... Isso teria sido bom, já que eu não tenho muitos... – ele ajeitou os óculos, fazendo uma careta no fim da frase. Eu ri. – Mas aí eu vi o Ryan na porta da sua casa.
Meu cenho se franziu.
- Você conhece o Ryan?
- Ele foi meu professor por um tempo. Quando o vi... Bem, não foi exatamente agradável. Eu soube que o problema era comigo.
Eu senti um aperto no peito quando os olhos dele se tornaram tristonhos. Ele havia visto Ryan, e eu poderia muito bem imaginar como ele havia se sentido. Trocado no flagra.
- Não, o problema não foi com você. Foi comigo. Me desculpe por isso, .
- Não precisa se desculpar.
- É claro que eu preciso. – pude sentir meu rosto arder e o calor se espalhar pelo meu corpo. Eu estava extremamente envergonhada por aquilo. – Não deveria ter mentido pra você, mas eu não achei outra maneira...
- Qual foi o problema? – ele perguntou de forma suave. Eu engoli em seco. Seus olhos , o mesmo par de olhos tão que tinha o poder de fazer minhas pernas tremerem e meu coração disparar me encaravam como nunca antes haviam feito. Eu não sabia o que tinha de diferente neles, mas vi certeza. Vi uma certeza que me fez pensar que talvez ele... Talvez... Não disse nada. Fiquei lá, calada, completamente calada enquanto ele cravava o olhar no meu. Porque, de verdade, eu não sabia o que falar. Meus lábios estavam entreabertos, mas nada sairia por eles. E isso era tão verdade que nada saiu nem mesmo quando ele caminhou lentamente até mim. Eu os fechei, suspirando com dificuldade.
Subitamente, não senti mais nada.
Não enxerguei mais nada.
Éramos apenas eu e ele.
Cara a cara.
Eu conseguia sentir o perfume dele. Conseguia sentir o calor do corpo dele também. Ele ainda me olhava fixamente. Eu deveria ter ficado sem graça, mas não fiquei. Tê-lo tão perto e tão focado em mim me deixava leve, boba, encantada. Lisonjeada. Ligeiramente tonta. E meu êxtase teve seu auge quando os olhos dele desceram, calmamente, até meus lábios. Tive vontade mordê-los quando se demorou neles, como que fazendo questão disso, mas não o fiz. Mecanicamente, os meus olhos desceram até os lábios dele ao perceberem que ele os umedecia com a língua. Meu corpo tremeu e minhas mãos começaram a suar. Quando subi o olhar, ele me olhava. Cada célula do meu corpo gritava por uma aproximação completa, mas eu não queria dar o passo. Não, eu não queria beijar. Eu queria ser beijada.
- Sabe... – ele disse em um sussurro – Tem um doce estranho com uma cara muito boa na sua cozinha.
Não sei por que, mas aquilo me fez sorrir. E então, sem nenhuma cerimônia, ele segurou minha mão e me levou para fora do quarto.

***


Aquela onda de sentimentos que percorria meu corpo diminuiu quando nossas mãos se soltaram, no fim do corredor. Descemos a escada em silêncio, vendo minha mãe e as amigas conversarem animadamente. Nenhuma delas realmente percebeu nossa ligeira passagem.
- O que é isso? – perguntou depois de entrarmos na cozinha, analisando o doce.
- Doce de abóbora com chocolate.
- Parece gostoso.
- Acredite, é. – peguei dois pratos pequenos e duas colheres, colocando-os na mesa. Servi a mim e a ele, completamente tomada pela sensação mais maravilhosa que já havia sentido.
- Posso tomar a liberdade de te pedir para comermos lá fora? Gosto de olhar o céu à noite.
Eu ri.
- Posso tomar a liberdade de te pedir para ser menos formal? Não sei ser culta.
Ele pegou o prato e também riu, assentindo.
- Foi mal. Melhor assim?
- Pode apostar.
Nós então andamos até o quintal. Minha mãe adorava flores, por isso nós tínhamos um grande jardim colorido nos fundos de casa. Eu havia pedido a ela que colocasse uma rede em frente a ele, porque havia adquirido um gosto novo. a olhou fixamente por um tempo e então caminhou até ela.
- Fazia tempo que não via uma rede.
- Nós a colocamos recentemente. Gosto de passar os finais de tarde aqui.
- Eu também gostaria, vocês têm um jardim muito bonito. É um ambiente gostoso.
- Sinta-se em casa, então. – sorri, apontando para a rede. ajeitou os óculos e se afundou nela.
- Cara, já havia me esquecido como isso é gostoso.
Eu comecei a rir.
- Pois é, cara.
Ele franziu o cenho.
- Você pediu menos formalidade, gata. – minhas bochechas esquentaram. – Vai ficar em pé?
Neguei com a cabeça, sentando-me na rede ao lado dele com cuidado. Eu queria, mas não queria correr o risco de acabar em cima dele. Sabe como são as redes. Mesmo assim, tive parte do meu corpo colado ao dele.
- Nem acredito que estou comendo esse doce de novo. – comentei, levando a colher à boca. Ele fez o mesmo.
- Uau, é delicioso.
- Normalmente, eu não faria isso, mas você pode levar um pouco pra casa depois.
Ouvi-o soltar uma risada leve.
- Me senti especial agora.
Enchi os pulmões de ar em um suspiro curto, retirando a colher devagar da boca. Se existia uma hora boa para expor meus sentimentos, com certeza era aquela.
- Talvez você seja. – falei sem olhá-lo. O silêncio tomou conta do ambiente por alguns segundos.
- Por que eu seria especial para você?
- Bom... – comecei sem saber como terminar, brincando com o doce enquanto meus dentes mordiam meu lábio inferior – Bem, você me ensinou física, oras.
- E você aprendeu?
- Não. – eu o olhei, e então nós rimos. – Eu só te acho incrível.
Os olhos dele brilharam por trás dos óculos pretos. Vi um sorriso lindo se formar em seus lábios.
- Engraçado... eu tenho a mesma opinião sobre você.
- Por quê?
- Eu não sei. Isso é estranho.
Minhas sobrancelhas arquearam-se levemente.
- Estranho?
- Não te conheço direito. Não sei do que você gosta, do que odeia, não conheço seus medos, suas manias, não sei quase nada.
- Eu gosto de me sentar aqui nos finais de tarde pra ler o livro que você me deu.
Ele abriu um sorriso satisfeito.
- Isso me deixar feliz.
- Mas, alguma coisa você deve saber.
Sua expressão tornou-se pensativa.
- Bom, sei que é apaixonada pela escrita. E por livros e línguas. Sei que não é muito organizada, a julgar pelas roupas abandonadas em cima da sua cama, e que morde o interior da boca quando não entende alguma coisa.
Aquela última afirmação me fez encará-lo com confusão nos olhos. Ele riu, divertido.
- Desculpe?
- Eu sempre te explicava a mesma coisa de maneiras diferentes quando você mordia o interior da boca. E continuava a explicá-la até que você parasse. Só então eu sabia que você realmente havia entendido.
Meus olhos permaneceram grudados aos dele e nada saiu de minha boca durante algum tempo.
- Uau... digo... uau...
- Sei também que fica vermelha com facilidade. Acho isso uma graça.
E, merda, eu fiquei vermelha. Ele comeu mais do doce.
- Parece que você sabe bastante sobre mim, então.
- Tem uma coisa que eu não sei.
- O que seria?
baixou o olhar, inclinando levemente a cabeça. Seus lábios entreabriram-se, mas ele os umedeceu em seguida, fechando-os. Um pequeno sorriso tomou conta deles, e ele riu. Uma risada baixa e nervosa. Eu achei aquilo bonitinho. Então seus olhos focaram os meus novamente.
- Naquele dia em que vim te convidar para sair... Bom... Você teria dito sim?
Foi a vez dos meus lábios curvarem-se em um sorriso. Meu coração batia acelerado e parte de mim ainda não acreditava que estava tendo essa conversa com .
- Você é extremamente organizado. Adora histórias em quadrinhos e é apaixonado por aeromodelos. É habilidoso. Tem um vocabulário amplo e uma inteligência invejável. Você adora ajeitar os óculos quando fica tímido e passar os dedos por trás da orelha quando se sente desconfortável. Sempre usa o mesmo perfume. E adora usar All Star. Seus cabelos estão sempre perfeitamente penteados, embora eu ache que você ficaria melhor com eles bagunçados. – minha voz não passava de um sussurro. me olhava fixamente, mas não consegui decifrar sua expressão – Ah, e você sabe cozinhar.
Ele finalmente sorriu.
- Então, isso é um sim?
- É claro que é um sim.
- Ok... – ele disse reprimindo mais um sorriso, voltando sua atenção para o doce na colher – Ok...
Eu rolei os olhos, sorrindo.
- Mas também tem uma coisa que eu ainda não sei sobre você. – com o canto dos olhos, o vi me olhar, mas mantive a atenção nas rosas brancas do jardim. – Por que está com a , ?
Ele suspirou. Só então eu o olhei. E ele parecia bastante confuso.
- De verdade? Eu não sei. Foi tudo um mal entendido tão grande... – disse mais para si mesmo, ficando cabisbaixo.
- Como assim, um mal entendido?
Ele levantou a cabeça, olhando durante um tempo para o céu enquanto seu cérebro parecia procurar por um modo de dizer o que ele tinha a dizer. Eu esperei, paciente, até que ele estivesse pronto para olhar para mim.
- Quando eu vi o Ryan, achei que você não tivesse gostado de mim. Fosse pelo meu jeito de explicar, fosse por mim mesmo. E pensar que você não tivesse gostado de mim do jeito como eu havia gostado de você me magoou. Eu me senti estúpido, na verdade. Afinal, o que uma garota linda e descolada como você veria num nerd sem vida social como eu? Porque foi sempre assim, eu sempre me interessei por quem não tinha nada a ver comigo. E aí, certo dia, eu encontrei a chorando, ironicamente pelo mesmo motivo. Ela nunca teve amigos, sempre foi motivo de piada. Nós conversamos por algum tempo e eu fiz a besteira de dizer que talvez a pessoa certa para ela estaria bem ao lado. Ela interpretou isso de forma errada, como se eu estivesse me referindo a mim. Eu fiquei com dó de negar. Nem saberia como fazê-lo, para ser sincero. Ela estava sofrendo, eu estava me sentindo um idiota, e achei que talvez aquilo desse certo. Sei lá, ela tem a ver comigo. E depois ela veio com aquela coisa esquisita de não podermos nos beijar, o que, sinceramente, me foi um alívio muito grande. E então ela espalhou para todo mundo que nós estávamos namorando. Eu apenas não... apenas não neguei.
As palavras dele ficaram rodando em minha cabeça durante um período considerável de tempo. Nenhum de nós deu ao menos um suspiro mais alto depois daquilo. Eu me senti mal, terrivelmente mal por tê-lo feito achar que era um idiota. Porque a idiota era eu.
- Se existe alguém estúpido nessa história, esse alguém sou eu. Ela não tem nada a ver com você, . Eu tenho.
O calor que emanava do corpo dele pareceu atingir o meu com mais força, e então o mundo parou. Não existia mais nada e mais ninguém além de nós dois no mundo. Eu me perdi nos olhos dele e não queria ser encontrada, não queria ser interrompida, não queria ser acordada. Eu só queria que ele me aninhasse. Mas minha ideia de viver naquele transe me foi arrancada quando os olhos dele quebraram o contato com os meus. Ele passou os dedos por trás da orelha, arqueando as sobrancelhas, e isso me fez virar a cabeça. Aria estava parada a alguns metros da gente, sorrindo para . Meu estômago revirou, mas enfiei mais doce na boca mesmo assim, disfarçando o desapontamento em meu rosto.
- , meu amor, vamos? Já está ficando tarde.
- Claro...
- Não demore. Até logo, . – ela disse com simpatia, e eu apenas sorri.
- Bom, eu acho que... – começou, um pouco engasgado, sem certeza do que dizer.
- Tudo bem...
- A gente se vê depois...
- Claro...
- Certo...
Ele então se levantou e eu fiz o mesmo. Antes de chegarmos à porta da cozinha, a voz dele ecoou em meus ouvidos.
- ? – o olhei – Eu acho que você tem a ver comigo. E que eu tenho muito a ver com você.
Tudo o que senti depois disso foi a boca dele beijar demoradamente o canto da minha.

Capítulo Treze - Parte I



Vinte e dois de dezembro, dezoito horas e quarenta minutos. Lágrimas rolavam pelo meu rosto enquanto Lisa me abraçava no meio do aeroporto. O voo dela partiria em vinte minutos, me deixando dividida entre a tristeza, a alegria e a vergonha alheia de seu casaco vermelho de pluma e suas botas de cavalaria num ambiente onde os trinta graus me derretiam.
- Eu vou sentir muita saudade – disse com um aperto no peito. Ela se afastou e sorriu, deixando mais uma lágrima escapar.
- Eu também vou, minha amiga. Queria tanto que você estivesse indo comigo.
- Quem sabe não temos essa sorte um dia – eu sorri de volta. Ela então rolou os olhos e suspirou.
- Olha só para nós, até parece que eu estou indo morar lá.
- Eu sei! – disse rindo. – Somos duas palhaças. Você mais. Essa roupa e tal.
- Eu estou na última moda, ok?
- Se a última moda significar desmaiada, eu concordo – disse com as sobrancelhas erguidas. Ela me deu um sorriso sarcástico.
- Tenho uma coisa para você.
Eu franzi o cenho. Lisa abriu a bolsa cor de rosa, tirando dela algo embrulhado em um papel vermelho cheio de Papai Noel desenhado.
- Ah, Lisa, me desculpe, eu não posso aceitar...
- É claro que pode. – ela disse me estendendo o presente. Eu mordi o lábio, hesitando.
- Eu não comprei nada pra você...
- Nem eu.
Eu senti minha boca se abrir para protestar, mas então percebi um pequeno sorriso no canto dos lábios dela. Eu conhecia aquele sorriso. Meus olhos caíram sobre o embrulho nas mãos dela e eu o peguei. Abri-o com cuidado e, quando o papel o descobriu, meu queixo caiu.
- Mas o quê... – sussurrei, passando os dedos por cima da caixa.
- Você realmente achou que eu não sabia quem havia te dado essa caixa de chocolate, ? – Lisa perguntou com certa indignação. Mordi novamente meu lábio inferior, pressionando a caixa contra meu corpo.
- Achei. Como você sabia?
Ela rolou os olhos.
- O me contou que havia te dado chocolates, esqueceu? Naquele dia, na sorveteria, eu havia ficado tão empolgada com eles que não me toquei na hora. Mas depois acabei me lembrando disso. E, vamos combinar, você nunca me deu presentes espontaneamente. Não te culpo, eu também não. – ela fez uma careta e eu ri. – Aí, lembrei também de que fora naquele dia que você me disse que ele estava namorando. Eu só juntei as peças. Você estava chateada.
Eu a olhei por um momento. Devagar, um sorriso se formou em meu rosto.
- Obrigada, Lisa.
- Não agradeça ainda, eu roubei um bombom.
Afastei a caixa do corpo e a examinei. Havia dois buracos vazios. Olhei-a com os olhos semicerrados.
- Ok, dois... Qual é, eles estavam pedindo para serem comidos! Não sei até agora como você foi capaz de guardá-los.
Eu soltei uma risada. Lisa era a melhor amiga que alguém poderia ter, e eu passaria minhas férias sem ela. Paris tinha tanta sorte.
- Vou sentir muito a sua falta.
- Eu também. Prometo fazer compras por nós duas.
- Acho bom!
Uma chamada para o voo dela se fez escutar. Nós nos olhamos mais uma vez e ela então me abraçou forte.
- Boa viagem, Lisa. Me dê notícias assim que chegar.
- Pode deixar. Obrigada, .
Lisa pendurou sua bolsa no ombro, pegou sua mala de mão e começou a andar desajeitadamente devido à alta quantidade de pano sobre ela. Eu fiquei a observando até que ela estivesse a meio caminho andado, depois me virei e comecei a andar em direção à saída.
- ! – ouvi-a gritar e girei rapidamente nos calcanhares. – Não se esqueça de me contar sobre seu Natal com o . Quero saber se aquele nerd beija bem. Mete a língua, menina!
Algumas pessoas que escutavam o seu berro lançaram um olhar divertido para mim. Eu senti minhas bochechas arderem como nunca e desejei profundamente que Lisa estivesse perto o suficiente para que eu pudesse socá-la até sua cabeça abrir e pedaços do seu cérebro pervertido cobrirem o chão. Ela deu uma gargalhada gostosa, voltando a andar, e eu apressei os passos.
Precisava sair dali o mais rápido possível.

Voltei para casa com os pais da Lisa. Os meus, por sua vez, estavam na cozinha fazendo o jantar juntos. Aquela era uma cena tão rara que eu resolvi apenas dizer um oi de longe e subir para meu quarto para não atrapalhar. Além do mais, havia uma coisa que eu queria fazer agora mais do que nunca. Sem mais demoras, sentei em minha cama e abri a caixa de bombons. Peguei um deles com cuidado, como se fosse algo de valor inestimável, e talvez fosse. O chocolate derreteu em minha boca quando o mordi, me causando uma sensação maravilhosa. Prazer. Nunca algo tão comum me dera tanto prazer. Eu sorria idiota e ridiculamente comendo os bombons mais gostosos do mundo quando o celular vibrou em meu bolso. Uma mensagem de Lisa.

Acabei de embarcar. Logo terei de desligar o celular, então, pra começar meu diário de viagem: to cagando de medo. Talvez a aeromoça me arrume um calmante. Como se diz calmante em francês? Oh, céus, como se diz qualquer palavra em francês? Tanto faz, acho que vou pedir uma bebida alcoólica ou duas. Tem um japonês do meu lado. Tomara que ele não fale comigo. Beijos.

Eu balancei a cabeça negativamente, rindo alto do descontrole dela. Lisa sempre tagarelava quando se sentia assim.

Fique calma, Lisa, vai dar tudo certo. Não sei como se diz calmante em francês, mas você precisa ter em mente uma coisa muito importante: sua companhia aérea é a TAM. E não seja racista, o japa pode vir a ser o amor da sua vida. Beijos, fique bem.

Apertei enviar, imaginando como estaria a cara dela nesse momento. E quando o celular vibrou novamente em minhas mãos, segundos depois, imaginei como estaria a minha. Porque meu corpo todo mudou quando meus olhos leram o nome dele no visor.

Já chegou em casa?

Um suspiro repentino escapou de meus pulmões e eu coloquei ansiosamente mais um bombom na boca antes de responder.

Acabei de chegar. Lisa já embarcou.

E como vc está?

Um pouco triste, mas bem. E vc?

A resposta dele demorou um pouco.

Com vontade te ver.

Minhas bochechas arderam. Aquele nerd esquisito conseguia fazer minhas bochechas arderem sem ao menos estar por perto. E meu coração disparar, meu estômago revirar, meu corpo esfriar e esquentar. E me sentir leve, bem. Feliz. Pela primeira vez eu realmente estava sentindo como era ser feliz.

Então venha me ver.

Não posso, meus parentes chegaram pro Natal hj. To frustrado.

Aquilo me fez rir.

Pq?

Vai ter gente dormindo no meu quarto. Hj é 22, caramba! O dia certo de chegar é 24 à meia noite.

São só alguns dias, vc consegue! Seu irmão tá aqui?

Não, chega amanhã. Enfim, só queria ver como vc está e te desejar boa noite.

Eu sorri.

Vc é uma graça. Boa noite, .

Se eu sonhar com vc de novo, com certeza vai ser.

De novo. Se eu sonhar com você de novo. Com que direito esse menino faz isso com meu coração?
Guardei o celular, sorrindo ainda igual a uma besta. e eu vínhamos trocando mensagens desde a noite seguinte àquela em meu quintal e isso estava me fazendo um bem quase surreal. Não havia se passado nem uma noite sem que nos falássemos, mas apesar disso eu ainda não sabia como estavam as coisas entre ele e a . Será que ele havia falado com ela? Será que ainda eram namorados? Será que eles já tinham se encontrado? Essas perguntas rodavam em minha mente, mas eu não perguntaria. Algo dentro de mim dizia que ele me diria quando achasse o momento.
Deixando esse pensamento de lado eu peguei meu notebook na escrivaninha e voltei para a cama, ligando-o. Metade da caixa de bombons estava vazia e eu achei melhor guardar o resto. Uma coisa ia e vinha em minha cabeça há um bom tempo agora, desde uma conversa que tivera com na minha casa ou na dele, não lembro. Abri o Google e digitei guia de profissões. Cliquei no primeiro link que apareceu e passei os olhos pela página. Eu tinha inúmeras escolhas, mas nenhuma delas parecia me interessar. Eu não queria ser arquiteta, administradora, jornalista, diplomata, bióloga, historiadora, designer, agrônoma, dentista, farmacêutica ou médica. Também não seria engenheira; meus pais, professores e até mesmo Deus sabiam bem disso. Então, tirando tudo isso, o que eu seria? Não tinha beleza para ser modelo nem talento para ser atriz. Minha voz conseguiria estourar qualquer vidro. E com todas essas informações e fatos bem esclarecidos em minha mente eu cliquei no único curso no qual eu consegui me encaixar: Tradução e Interpretação.
Meus olhos percorreram várias páginas por várias horas, absorvendo todas as informações possíveis sobre o assunto. Mercado de trabalho, remuneração, áreas na qual poderia trabalhar e até mesmo a grade curricular. Eu gostei do que li. Toda profissão tem suas dificuldades e de repente me peguei dizendo para mim mesma que estava disposta a superar as da minha. Talvez eu procurasse um profissional mais para frente para conversar. E talvez aquele nerd esquisito tivesse me ajudado muito mais do que eu imaginaria.

***


Acordei naturalmente às sete horas da manhã no dia seguinte. Alguns feixes de luz já entravam pela minha janela coberta pela cortina branca. Espreguicei-me na cama, suspirando profundamente antes de me levantar para começar o dia. Como regra, usei o banheiro, mas nem me dei o trabalho de tirar o pijama. Desci até a cozinha e, não acostumados à minha presença matutina, meus pais me lançaram um olhar surpreso.
- Olhe só quem já acordou – minha mãe disse com um sorriso. Eu dei um beijo no rosto dela e depois no de meu pai, que não perdeu a chance de fazer uma piada.
- Deve ser o tal do Milagre de Natal.
- Nossa, que engraçado – disse sem humor, sentando-me à mesa.
- O que aconteceu? – ele perguntou me entregando uma fatia de pão.
- Nada, eu só acordei. Acho que fui dormir cedo demais ontem.
- Que bom que acordou agora – minha mãe começou. – Seu pai e eu estávamos pensando em ir àquela feira de Natal que estão anunciando na televisão.
Eu pensei sobre aquilo, colocando um pouco de suco no copo.
- É uma boa ideia, parece ter bastante coisa lá.
- E algumas degustações também – meu pai comentou todo contente. Eu rolei os olhos, rindo da felicidade que ele sentia toda vez que havia a possibilidade de petiscos grátis.
- Que horror, pai.
- Horror é não nos deixarem experimentar o produto antes de comprarmos!
- E você alguma vez compra? – minha mãe debochou. – Mas, enfim, você quer ir conosco, filha?
- Quero sim.
- Vá se trocar, então. Quanto mais tarde, mais cheio e menos comida na degustação – meu pai disse e eu dei um tapinha no braço dele, voltando para o quarto. Tomei um banho rápido e coloquei uma roupa fresquinha. Um pouco de perfume, celular no bolso e pouco tempo depois estávamos todos no carro.

A feira ficava a uns vinte minutos de casa e estava sendo realizada em um ambiente muito grande. Não tinha tanta gente andando pra lá e pra cá pelos corredores, o que me aliviou bastante. O interior estava todo decorado com motivos natalinos e era, sem dúvidas, uma das coisas mais lindas que eu já tinha visto. Pensei em Lisa, ela iria adorar ver isso também. E com esse pensamento em mente eu peguei meu celular e comecei a tirar algumas fotos dos enfeites mais bonitos.
- Olha só, uma loja de artesanatos – minha mãe exclamou e andou em direção à grande loja. Nós ficamos lá dentro por alguns minutos e começamos a explorar o lugar novamente.
A feira tinha de tudo: lojas de artesanatos, vinhos, tortas, comidas típicas da época e até mesmo vestuário. Meu pai logo avistou uma degustação de pães recheados e nos arrastou até lá. Depois, minha mãe quis ver a loja de enfeites.
- Olha, amor, cada coisa linda – ela disse ao meu pai com os olhos brilhando.
- Aquela sua prima doida que iria gostar disso. – ele comentou com um sorriso divertido.
- Nossa, é ver... – minha mãe se interrompeu de repente, arregalando os olhos e levando uma das mãos à boca – Amor, meu Deus, o presente do Nathan! Nos esquecemos do presente do Nathan!
- Bom, escolha alguma coisa aqui mesmo, as lojas no shopping e no centro ficarão lotadas.
Nós então começamos a procurar por algo que satisfizesse um garoto de quatro anos. E ao dizer nós estava me referindo a mim e minha mãe, porque meu pai havia parado em uma barraca de degustação de panetones.
- Veja se acha um carrinho ou qualquer coisa assim para dar de presente – ela pediu quando entramos numa loja de brinquedos, e comecei a procura pelo bendito presente.
O que eu não esperava era parar estática no meio de um corredor com os olhos quase saltando às órbitas quando o óbvio cruzou minha mente. Um desespero começou a me tomar. Mas que droga, como eu não havia pensando nisso antes? Como pude esquecer logo disso? Logo... dele? Eu precisava de um presente para o . Urgentemente. Sem pensar, peguei o primeiro boneco de super herói que vi pela frente e andei apressada até minha mãe.
- Aqui, serve? – perguntei tentando disfarçar a pressa em minha voz.
- Hm, é, acho que sim... Não sei, acho que aquele ali seria melhor... - ela disse andando até o fim do corredor, me fazendo respirar fundo.
- Bom, procurar o papai. – acabei gritando. E sem esperar uma resposta, saí da loja.
E aí veio meu grande desafio: o que comprar para um nerd? Do que nerds gostam? O que aquele nerd ainda não tinha? De repente me vi novamente parada no meio de um corredor grande, largo e cheio de gente, totalmente perdida, confusa e com um enorme ponto de interrogação na testa.
Pense, , pense.
E eu pensei.
Dinheiro, eu precisava de dinheiro! Mas onde eu arrumaria dinheiro?
Avistei meu pai. Ele agora estava degustando vinhos e queijos, e isso era muito bom. Ele não prestaria atenção em mim. Excelente.
Caminhei até ele e joguei a informação.
- Pai, posso comprar alguma coisa para mim? Não muito cara, mas é que tem tanta co...
- Claro, filha, claro – ele disse cheirando o vinho na taça em sua mão como se entendesse do assunto.
- Obrigada. Pode me dar algum dinheiro?
- Esse vinho tem quanto tempo? – ele perguntou a um atendente, me ignorando. Eu suspirei, esperando o cara responder.
- Pai, o dinheiro – insisti. Ele me olhou com as sobrancelhas erguidas, tirando a carteira do bolso.
- Ah, sim, toma, vai lá – disse apressado, me dando a carteira toda e voltando a atenção à bandeja de queijos. Eu ri daquilo e tirei algumas notas, colocando-a no bolso dele novamente, e recomecei minha caminhada pela grande feira a procura de um presente legal.
Eu mal sabia que acabaria por encontrar o presente perfeito.

***


Vinte e quatro de dezembro de dois mil e doze, dezenove horas e quinze minutos. O céu estava estrelado lá fora e a temperatura dentro do meu quarto era agradável. Eu estava sentada na cama com o notebook apoiado sobre as pernas, lendo o e-mail mais recente de Lisa, onde ela contava cada segundo dos seus dias e comentava as diferenças e semelhanças que estava encontrando por lá. Havia várias fotos anexadas, uma mais linda que a outra. Confesso que aquilo me deixava com uma ponta grande de inveja, mas eu estava super feliz por ela. Respondi com as novidades daqui, que não eram muitas, e mandei as fotos da feira de Natal. Não poderia ficar em meu quarto por mais muito tempo, pois meus familiares já haviam chegado e estavam lá embaixo, na sala. Mas, antes de descer, uma mensagem apitou em meu celular. Sorri ao ver o nome de no visor.

Sabia que a Estátua da Liberdade foi um presente de Natal doado pela França?

Eu arqueei as sobrancelhas, não sabendo exatamente como entender aquilo.

Isso é interessante... eu acho, haha.

Apertei enviar. A próxima mensagem demorou cerca de três minutos.

Ahhhh, tá legal, não sei o que dizer, só queria falar com vc.

Eu soltei uma leve risada, achando aquilo bastante bonitinho.

Ok, nerd, atualize o Natal pra mim. Qual é a da árvore?

Essa é legal, na verdade. A árvore foi criada na Alemanha e era um pinheiro enfeitado com maçãs, mas o primeiro registro sobre a montagem foi feito na Letônia, em 1510.

Maçãs, sério? Bastante apetitoso. Vou adicionar umas à minha.

demorou agora cerca de seis minutos para me responder, e nesse tempo meus olhos não focaram nada além do celular. Quando ele finalmente apitou, meu coração bateu mais rápido.

Eu terminei com a .

Um sorriso involuntário se formou em meus lábios e eu mordi o inferior em seguida.

É uma boa notícia... como foi?

Complicado, mas ela entendeu.

Isso é bom. Como vc está?

Livre para perguntar se você quer sair comigo amanhã.

É claro que naquele momento meu coração disparou e minha respiração diminuiu. É claro também que, mesmo sem vê-lo, minhas bochechas coraram. E eu já estava acostumada com tudo o que ele provocava em mim estando perto ou estando longe.

Eu, sair com um nerd? É... pode ser interessante.

Vou aceitar isso como um elogio. Sei que vai esperar pela minha ligação ansiosamente. Feliz Natal, .

Eu soltei uma risada leve, concordando mentalmente com ele.

E ainda é convencido. Feliz Natal, Nerd.

Ouvi a voz de minha mãe me chamando lá embaixo, então coloquei o celular no bolso, fechei o quarto e desci a escada. Um suspiro longo escapou de meus pulmões quando vi a mesa de jantar, raramente utilizada, lindamente enfeitada. Algumas vozes vinham da sala de estar, vozes que eu conhecia bem. Família. Então andei até eles e logo vi, ao lado do sofá, nossa grande árvore decorada com bolas prateadas.
- Oh, são todos meus? – perguntei ao ver os presentes embaixo dela.
- Nããão, é tudo meu! – Nathan, meu primo loirinho de quatro anos disse com os braços erguidos, nos fazendo rir.
- Ah, mas todos? Não vai deixar nenhum pra mim? – cruzei os braços, falsamente emburrada. Ele imitou o gesto e fechou a cara.
- Não!
- Não são todos seus não, mocinho. Nós compramos um presente para a , se lembra? – minha tia falou. Ele olhou para ela com cara de dúvida e entortou a cabeça.
- Só um é seu – eu comecei a rir do jeito enrolado de Nathan falar e acabei o pegando no colo para beijar sua bochecha fofa. – Quero desenhar – ele disse todo animado.
- Então vamos desenhar.
Eu coloquei Nathan no chão e procurei por folhas e lápis de cor. Nós nos sentamos em volta da mesa da cozinha e então ele pegou um lápis preto e começou a desenhar.
- Vai, , desenha também – disse ao perceber que eu apenas o observava. Torci a boca.
- Mas eu não sei o que desenhar, amor.
- Eu to desenhando a mamãe, depois o papai. Você pode desenhar você.
Eu soltei uma risada baixa.
- Já sei, vou fazer você.
- Tá! – ele exclamou com um sorriso. Peguei um lápis qualquer e comecei a rabiscar um bonequinho de palito, porque meu dom artístico era avançado.
Nós ficamos desenhando por vários e vários minutos. Nathan era um menino inteligente e sempre me mostrava tudo o que fazia. Eu ganhei dois desenhos meus feitos por ele, que em certo momento saiu correndo para distribuir o resto lá na sala. Quando voltou, começou a desenhar novamente.
- Quem é essa? – perguntei apontando para uma figura de cabelos cor de rosa no papel.
- É minha namorada. – ele respondeu com naturalidade. Eu senti minhas sobrancelhas erguerem-se e meus lábios entreabrirem-se em surpresa.
- Uau... você já tem namorada?
- Sim.
Meus olhos permaneceram fixos nele por alguns segundos e eu mordi meu lábio para não rir.
- Nossa, você já é um homem então... Como ela se chama?
- Aninha. Você tem namorado?
- Não. E de onde conhece a Aninha?
- Da escola. Por que não?
- Ah, porque eu não gosto de ninguém. – menti.
- E por que não?
Eu passei a língua entre os lábios e respirei fundo, tentando achar um jeito de mudar o rumo da conversa.
- Tá muito bonito seu desenho.
- Obrigado. O vovô gostou.
- Aposto que sim – disse sentindo certo alívio.
- Por que o vovô é gordo? – Nathan questionou, e dessa vez eu ri.
- Porque ele come muito.
- Você come muito?
- Mais ou menos.
Ele largou o lápis em cima da mesa e desceu da cadeira, parando no meio da cozinha.
- O que é aquilo? – apontou para um objeto de cristal em cima da pia.
- É uma taça.
- E aquilo?
- Um imã de geladeira.
- O que é um imã?
- É uma coisa que gruda.
- Gruda em mim?
Eu ri mais uma vez e me levantei. Desgrudei-o da geladeira e me agachei na frente dele.
- Vamos testar. – encostei o imã no braço dele e soltei, deixando-o cair. Ele me olhou confuso. – Acho que você está com defeito.
Nathan pegou o imã do chão e repetiu o gesto em mim.
- Você também.
Eu ia dizer qualquer coisa, mas ele saiu correndo com o imã na mão. O segui, e quando cheguei à sala pude vê-lo colar o objeto no braço de meu pai e dizer você tem defeito após ele cair, e em seguida fazer o mesmo com minha mãe e meus avós. Eu ri vendo aquilo, assim como eles.
- Onde arrumou isso, garoto? – meu tio perguntou.
- Com a . Ela disse que eu tenho defeito.
Todos os olhares dirigiram-se a mim. Eu franzi a testa sem saber o que dizer.
- E por que ela disse isso? – minha mãe perguntou.
- Porque não gruda em mim, e imã gruda, mas não em mim. E nem na mamãe.
- Ah, entendi – ela disse parecendo aliviada. Eu ri.
- O vovô é gordo porque come muito.
Meu avô arregalou os olhos e então todo mundo começou a rir. Minha tia o repreendeu de leve, mas logo Nathan estava no colo dele, que também ria do comentário inocente. Eu me sentei no braço de uma poltrona e fiquei lá por um tempo ouvindo as pérolas de Nate e as conversas repetitivas dos adultos, pois todo Natal eram as mesmas coisas. E depois de muito ouvir eu desejei profundamente que estivesse aqui.

***


Um suspiro longo e pesado escapou de meus pulmões, e então eu abri os olhos. A escuridão era cortada por um pequeno feixe de luz que atravessava a janela e me dava uma leve visão do quarto. Olhei em meu relógio de pulso, forçando as vistas para enxergar os ponteiros, que marcavam dez para às quatro. Eu estava deitada há quase duas horas e havia dormido por... bem, dez minutos. O que era estranho, pois repeti a ceia quatro vezes após Nate me dar o maior dos cansaços. E depois de rolar pela centésima vez, resolvi me levantar. Meus pés tocaram gentilmente o chão frio e me levaram até o corredor. Caminhei devagar, tomando cuidado para não fazer barulho ao descer a escada. Não sabia bem aonde queria ir e nem o que queria fazer, mas rolar já não era uma opção; talvez eu achasse algum filme bom na televisão. Mas meus olhos focaram primeiramente a árvore assim que cheguei à sala.
Luzes dançavam ao redor dos galhos artificiais, dando ainda mais brilho às bolas prateadas. Papeis coloridos enfeitavam o chão abaixo dela, todos rasgados. Aquela era uma visão que eu adorava, e ela me tirou a respiração por um momento. Sentei-me a uma poltrona ao lado da árvore, encostando a cabeça no estofado, e fiquei apenas a admirando enquanto os pensamentos puxavam lembranças em minha mente. E a primeira delas foi .
É estranha a influência que uma pessoa pode exercer em nossa vida. Há três meses eu era nada mais que uma garota irresponsável cujas más escolhas levaram ao desespero de repetir o último ano. Hoje, na Era Pós-Nerd, eu tenho planos e objetivos traçados para meu futuro. Eu deixei de ser motivo de decepção para virar motivo de orgulho, ainda que falte muito para recompensar verdadeiramente meus pais por todas as coisas que eu joguei no lixo. E mesmo que tudo isso tenha partido de mim, mesmo que essa reviravolta tenha sido fruto do meu empenho em ser algo mais que nada eu devo a meus resultados. Ele foi o gatilho que deu início à minha transformação e também o primeiro nerd pelo qual me apaixonei. E eu o odiava profundamente por ser um nerd lindo. E foi pensando em todas as nerdices que ele me disse que eu tive a mais nerd das ideias.
Levantei-me rapidamente e caminhei com cuidado até a cozinha. Abri a geladeira e comecei minha caça, mas não encontrei o que estava procurando. Aproveitei a luz dela para procurar no resto da cozinha, mas fiquei na mesma. Parei, coloquei as mãos na cintura e suspirei. Eu tinha certeza de que minha mãe havia comprado. Então uma luz – não a da geladeira, claro – invadiu minha mente. Lá, na sala de jantar, em cima de uma fruteira enfeitada eu a encontrei, pequena e vermelhinha. Um sorriso se formou no canto dos meus lábios, e de volta à sala tirei uma das bolas da árvore.

Capítulo Treze - Parte II



O vento fresco bateu em meu rosto assim que abri a porta do banheiro. Andei na ponta dos pés pelo quarto à procura dos meus chinelos, livrando-me do frio sob eles quando os calcei. Eu vestia um roupão branco e tinha os cabelos enrolados em uma toalha, e não fazia ideia pelo o quê os substituir. Abri o guarda roupas e dei uma olhada. Todas as peças me pareceram velhas e sem graça demais, mas eram as únicas coisas que eu tinha. Então comecei a montar alguns looks em minha mente.
Jeans escuro, blusa branca, sapatilha vermelha... Não.
Jeans escuro, frente única vermelha, sapatilha preta... Não.
Short branco, regata azul, sandália bege... Não.
Calça não, regata não, top não, cinza não, amarelo não, oh, céus, saia também não... Nada do que eu tinha ali dentro era suficientemente bom para um encontro com .
Comecei a andar de um lado para o outro, ficando a cada passo mais nervosa. Tudo nessa noite teria de ser perfeito, mas quanto mais eu pensava, mais as coisas me pareciam ser um desastre. Eu não tinha roupa, não tinha sapato, não tinha bolsa, não tinha créditos, meu perfume favorito havia acabado, meu presente de Natal foi um tênis, nascera uma espinha na minha bochecha e eu não sabia fazer maquiagem. Tudo estava ruindo. Sem opções, comecei a revirar o guarda roupa outra vez. E estava quase desistindo quando meus olhos focaram, bem lá no fundo, coberta por uma jaqueta velha, a minha salvação. Puxei-o com cuidado, sentindo o tecido fino deslizar suavemente pelo cabide. Ele estava limpo, mas um pouco amarrotado, então tirei o vaporizador de roupa que minha mãe havia me dado e o liguei. Passei as alças por um cabide e o coloquei no suporte, e esperei até que o vapor começasse a sair. Cinco minutos depois, o vestido branco que havia usado apenas uma vez na vida estava pronto.
Vesti-o com um sorriso quase besta no rosto. Vestidos não eram minha praia, mas esse tinha caído como uma luva essa noite. Pensei em colocar um scarpin, mas e eu éramos praticamente do mesmo tamanho, então optei por uma sapatilha vermelha. Para completar, uma jaqueta na mesma cor. De volta ao banheiro, fiz uma maquiagem básica – o único tipo que eu sabia –, prendi os cabelos em um coque, deixando apenas alguns fios da franja soltos e espirrei meu segundo perfume favorito. Abri a gaveta do armário e tirei dela o embrulho bem feito em papel azul, colocando-o na bolsa. Finalmente, eu estava pronta.
Desci a escada com um incômodo no estômago. Meu coração batia um pouco mais forte e eu poderia jurar que minhas pernas tremiam de leve. O sorriso quase sapeca no rosto de minha mãe só fez tudo isso piorar. Eu sentei na poltrona, deixando os minutos passarem em silêncio, e ela fez o mesmo, o que me causou certo alívio. E quando meu pai chegou à sala, cerca de dez minutos depois, a campainha tocou.
- Boa noite, Senhor . – Ouvi a voz de , o que me fez levantar em um pulo. Meu pai tinha uma pose durona, mas eu sabia que era pura fachada. Coisas de pais.
- Boa noite, . Por favor, entre.
- Com licença – ele disse com aquela cordialidade que só ele tinha e deu alguns passos à frente. Minhas mãos tremiam tanto que tive de segurá-las.
- Olá, Senhora , como vai?
- Bem, querido, obrigada. Você está muito elegante essa noite – minha mãe disse com um sorriso, analisando-o dos pés à cabeça. Foi quando meus olhos se desgrudaram do rosto rosado dele para passear pelo corpo. vestia uma camisa social branca coberta por um colete preto, gravata cinza escuro, jeans preto e seu velho e usual All Star. Senti meus lábios se entreabrirem, e por um momento minha respiração sumiu. Ele estava deslumbrante.
E então minha mente decidiu realmente reparar no enorme buquê de rosas que ele tinha nas mãos.
- Olá, . – Ele disse baixinho, o sorriso torto no canto dos lábios.
- Oi, ...
Ele se aproximou e eu pude sentir o cheiro almiscarado de seu perfume.
- Isso é para você. – estendeu as mãos, me entregando o buquê. Me senti tonta por um momento e, mesmo não sentindo, sabia que mantinha um sorriso extremamente idiota no meu rosto idiota.
Meus dedos relaram levemente nos dele quando o peguei.
- Uau, são lindas... Obrigada.
me sorriu timidamente, empurrando os óculos. Cheirei o buquê antes de entregá-lo à minha mãe, que parecia que iria chorar a qualquer momento.
- Vou colocá-lo em um vaso.
- Obrigada, mãe. Bom, vamos?
- Claro. – ele respondeu prontamente. Despedi-me dos meus pais e, segundos depois, nós estávamos no carro.
Não demorou até que chegássemos a um condomínio fechado. estacionou na garagem de uma casa pequena, mas toda bonitinha, o que me deixou completamente confusa.
- Hã... onde nós estamos? – perguntei com um ponto de interrogação na testa enquanto ele tirava a chave da ignição. deu um sorriso divertido.
- Na casa dos meus avós. Herança. Eles faleceram há alguns anos. – E é claro que aquilo também não foi muito esclarecedor, motivo pelo qual eu o fiquei encarando. – Eu tenho uma surpresa para você.
Aquilo, por outro lado, esclareceu alguma coisa. saiu do carro e deu a volta para abrir a porta para mim, então nós entramos na pequena, porém aconchegante sala de estar toda decorada com móveis antigos.
- Uau, que gracinha – eu disse olhando ao redor. Ouvi fechar a porta.
- Bonito, não? Tenho boas lembranças daqui... – ele disse em meio a uma nostalgia. – Mas não é essa a parte da casa que eu quero que você veja agora.
deu um sorriso torto, meio fofo, meio sapeca e entrelaçou levemente os dedos nos meus. Um calor se espalhou imediatamente pelo meu corpo, concentrando-se em minhas bochechas. Agradeci mentalmente a meia luz. Minha mão começou a suar enquanto nós atravessávamos a sala de jantar, mas eu fiz um esforço para mantê-la relaxada e não deixar meu nervosismo transparecer. E aí nós chegamos ao pequeno quintal e meu coração entorpeceu.
No centro da grama curta e fofa havia uma mesa redonda coberta por uma toalha branca. Em cima dela, um arranjo pequeno de flores, um balde, dois pratos e duas taças. Ao redor, duas cadeiras. Acima, um céu escuro enfeitado por estrelas. soltou gentilmente minha mão e caminhou até o gramado enquanto eu ainda observava, incrédula, a mesa de jantar. Ele puxou uma das cadeiras, me convidando a sentar com o olhar. Meus lábios curvaram-se em um sorriso bobo e extremamente feliz e andei, meio se jeito, até a cadeira. Só então notei que a garrafa dentro do balde era de vinho branco.
- Espero que goste. – Ele falou depois de se sentar, notando meu olhar. Mordi o lábio, assentindo levemente.
- Eu gosto... eu gosto muito. – As palavras saíram baixas de minha boca, entonadas para referirem-se não apenas ao vinho. entendeu isso e sorriu.
Depois de arrumar os óculos, ele tirou a garrafa do balde e encheu minha taça até a metade, fazendo o mesmo com a dele. Aquilo era muita coisa para mim, mas e daí? Dizem que álcool ajuda a relaxar, e eu precisava mesmo disso. Dei o primeiro gole, que desceu quase queimando – mas o líquido era docinho, então nem me importei.
- Você está linda – disse timidamente, brincando com os dedos de maneira nervosa. Ao contrário do esperado, meu rosto não ardeu, e eu apenas sorri olhando para aquele lindo par de olhos . Talvez o álcool já estivesse fazendo efeito.
- Você também. O colete lhe caiu muito bem.
- Verdade? Porque estou me sentindo um pinguim. – disse ele com humor, me fazendo rir.
- Bem, eu adoro pinguins.
sorriu novamente, coçando atrás da orelha.
- Hm, então, você está com fome?
- Estou sim.
Ele levantou o indicador pedindo para que eu esperasse por um minuto e se levantou, entrando na casa. Eu bebi mais um pouco do vinho enquanto esperava, o adorando profundamente por estar fazendo aquilo. Não demorou até que voltasse com uma travessa de prata nas mãos.
- Ravioli de camarão com molho branco. Espero que goste.
Senti a testa franzir.
- Você fez isso? – perguntei com espanto. riu e assentiu.
- Eu sei cozinhar, esqueceu?
Ele me serviu um dos rolinhos e o cheiro encheu minha boca de água.
- O cheiro está ótimo, . Eu adoro camarão.
- Bom, tomara que o gosto esteja tão bom quanto. É a primeira vez que eu faço isso.
se serviu e então eu peguei os talheres. Cortei cuidadosamente um pedaço do rolinho e o ajeitei no garfo, soprando antes de levá-lo à boca. Aquele menino tinha, com certeza, um talento nato para... Oh, meu Deus!
Meus olhos se arregalaram quando um calor forte se espalhou pela minha boca com a velocidade de um incêndio. Minha língua queimava e eu praticamente já não sentia o sabor de mais nada a não ser o da pimenta, que corroía cada minúscula célula das minhas bochechas enquanto meus olhos lacrimejavam. Eu não podia cuspir, então, num ato de bravura, engoli, sentindo a pimenta castigar o meu esôfago. e eu começamos a tossir quase que em sincronia.
- Puta merda... – ele xingou, bebendo o vinho com urgência como se fosse água.
- Uh, caramba... – soltei após terminar a taça em um só gole, sentindo o vinho aliviar e arder ao mesmo tempo. Era difícil manter a boca fechada, então eu respirava por ela enquanto a abanava como se isso fosse adiantar.
- , meu Deus, me desculpa, eu... – tinha alguma coisa a dizer, mas a boca dele também estava pegando fogo, então ele se interrompeu para encher a taça e virá-la novamente. Eu fiz o mesmo. O líquido desceu melhor dessa vez, mas senti que meus músculos ficavam relaxados demais. Uma sensação de formigamento se espalhou por eles e de repente tudo em mim ficou mole e quente. Senhor, como estava quente.
- Acho que eu estou suando – disse devagar em meio a uma tontura. Olhei para e vi que ele piscava forte como se os óculos não o ajudassem mais a enxergar enquanto enchia a boca com o gelo do balde como se sua vida dependesse disso. Um barulho esquisito escapou da minha garganta e apenas no segundo seguinte eu percebi que estava gargalhando.
- O quê? – ele perguntou com a boca cheia de gelo. Eu fiquei tonta.
- Ai, droga, eu estou tonta... – levei uma das mãos à testa com o cotovelo apoiado à mesa. Apesar disso, do calor e da sensação de não ter mais as pernas, eu ainda ria.
- Aqui, toma, pega gelo – enfio a mão no balde e tirou uma pedra, esticando-a para mim. Tirei a minha da testa para pegá-la, mas então ele ergueu o corpo da cadeira e bateu com o gelo no meu nariz antes de se desequilibrar e cair sentado novamente. Aquilo só serviu para que eu risse mais ainda, embora não estivéssemos bêbados.
- Você gelou meu nariz!
- Eu não sinto minhas pernas...
- Minha boca tá ardendo...
- Aqui, pega gelo!
enfiou a mão no balde de novo e repetiu o feito, mas dessa vez conseguiu colocá-lo em minha boca. Aí, sim, o alívio foi verdadeiro.
Nós ficamos em silêncio até que todas aquelas sensações passassem. Eu não estava acostumada a beber e duas taças de vinho foram demais para mim, ainda mais viradas em seguida.
- Você está bem? – perguntou com um ar de preocupação.
- Não sei, meu estômago ficou um pouco esquisito... Ainda não sinto meus músculos.
- Espere aqui, eu vou pegar alguma coisa doce para você.
Ele se levantou e andou apressado até a cozinha. Ri quando vi que ele andava meio desnorteado, deveria beber tanto quanto eu. A lembrança da pimenta estava me deixando levemente enjoada, então afastei o prato e encostei na cadeira, e fiquei sentindo o vento no rosto até que ele voltasse.
- Aqui, coma um pouco de chocolate. – ele me deu uma barra fechada, que abocanhei rapidamente. – Nossa, , por favor, me desculpa por isso. Eu acho que confundi os temperos, não era para colocar pimenta, com certeza eu...
- – o interrompi. – Está tudo bem, não precisa se desesperar.
- Como não? – ele indagou com as sobrancelhas erguidas, o desapontamento consigo estampado no rosto – Eu queria fazer o melhor para você e olha só o que eu fiz...
- Você fez aquilo que nenhum outro garoto nunca fez. – disse olhando diretamente nos olhos dele. – E não me refiro apenas a essa noite.
entreabriu os lábios lentamente e franziu o cenho em incerteza.
- Como assim?
Eu coloquei a barra de chocolate sobre a mesa e lambi os dedos antes de falar. Eles não estavam sujos, mas me deram um tempo para colocar as palavras em ordem em minha cabeça.
- Antes de você, eu não era ninguém. Eu passava os dias jogando fora a oportunidade de ser mais e melhor. Nunca levei os estudos a sério e isso quase me custou um ano inteirinho... – o final da minha frase saiu em um sussurro quase inaudível e eu já não olhava nos olhos, porque, pela primeira vez, eu estava confessando a minha vergonha. – Meus pais não pediram sua ajuda porque eu estava com dificuldade em exatas, e sim porque eu estava prestes a repetir o ano. Eu era uma completa inútil, – meus dedos brincavam desconsertadamente com a ponta do plástico da embalagem do chocolate, e eu não sabia se era apenas vergonha ou uma mistura dela com o álcool que eu ainda tinha no sangue que estava fazendo meu rosto queimar. Mesmo assim eu o olhei, e ele me encarava com surpresa e concentração. – E aí veio você. Quando te vi, pensei “Meu Deus, ele é um nerd”. E então você abriu a boca e eu pensei “Meu Deus, ele é um nerd”. Você era demais para ser verdade. Digo, seu cérebro consegue armazenar tanta coisa com tanta facilidade que, quando você estava lá em casa, eu pensava “Como ele faz isso? Como ele consegue saber tanto de tudo?” E foi aí que eu percebi que queria ser como você. Às vezes eu me pegava me imaginando como uma versão feminina sua, com esses óculos pretos e os cabelos perfeitamente arrumados em um rabo de cavalo... Soa patético, eu sei, mas eu queria mais do que qualquer outra coisa ser como você.
Eu conseguia ver, conforme falava, o brilho nos olhos dele crescer em uma velocidade acelerada. A única forma de expressão no rosto dele era o pequeno sorriso torto no canto da boca, o que me fazia acreditar que ele estava gostando daquilo. Ele estava gostando de me conhecer, pela primeira vez, por inteiro. E eu continuei.
- Eu gostava de você e queria que você também gostasse de mim, mas eu percebi que para que isso acontecesse eu precisaria, primeiramente, gostar de mim... E eu não gostava. Eu me odiava, , e tive medo de que se você me enxergasse como eu realmente era, então acharia que eu seria muito pouco para você. Foi quando eu decidi que faria em meses o que eu deveria ter feito em anos só pra poder ficar o mais próximo do mesmo nível em que você estava e, assim, ter uma chance com você. Só que eu já estava apaixonada, então te troquei pelo Ryan. Porque eu queria te impressionar, mas você tirava minha concentração com muita facilidade...
Eu mordi o lábio com certa força assim que terminei de falar, mas, por mais envergonhada que estivesse, meus olhos continuaram olhando nos dele por todo o silêncio que se seguiu para que pudesse digerir minhas palavras. Talvez ainda fosse efeito do vinho, mas eu nunca havia me sentido tão leve.
Ele não mudou a expressão para falar, apenas seus lábios se moveram quase imperceptivelmente.
- Você já estava no mesmo nível que eu, , mas ainda não sabia. Por mais que eu me sinta verdadeiramente honrado em receber todo o crédito, ele nunca foi meu. Se você é uma pessoa melhor hoje é porque você fez com que isso acontecesse, não eu. Sinceramente? O único crédito que eu me dou nessa história é o de ter feito uma garota tão incrível se apaixonar por mim. E eu não faço ideia de como fiz isso. – deu um sorriso aberto pela primeira vez em vários minutos e eu soltei uma risada baixa enquanto sentia um tipo de felicidade que nunca tinha sentido antes pular dentro de mim. Ele se levantou em um movimento repentino e andou firme até mim, estendendo a mão. – Dança comigo?
Eu franzi o cenho.
- Não tem música.
Ele deu de ombros.
- E daí?
Eu hesitei, olhando dele para a mão dele algumas vezes até finalmente ceder. Só tínhamos nós dois naquela varanda, de qualquer maneira. segurou gentilmente minha mão e me conduziu até uma parte do gramado afastada da mesa. Ficou de frente para mim e colocou a mão livre em minha cintura, enquanto eu pousava a minha em seu peito. Aquilo fez com que nos aproximássemos naturalmente. Devagar, ele guiou meu corpo no ritmo do dele, e começamos a dançar sob as estrelas.
- Como está sua boca? – ele perguntou baixinho, a bochecha quase encostada à minha.
- Se recuperando – disse no mesmo tom. Ele riu.
- Ainda não acredito que fiz isso...
- Se serve de consolo, eu estava gostando muito antes da minha língua pegar fogo. – riu mais uma vez e aquele som leve e rouco arrepiou a pele do meu pescoço. Então, ele colocou minha mão do outro lado de seu peito e deslizou a ponta dos dedos pelo meu braço até colocá-la em minha cintura, segurando-a, assim, com ambas as mãos. O arrepio que agora percorreu meu corpo fez com que meus olhos se fechassem automaticamente. Uma ideia percorreu minha mente. Ah, sim, uma ideia... Estava mais do que na hora de deixar excitado.
Com a ponta dos dedos tocando o tecido de seu colete, eu subi uma das mãos até o colarinho da camisa dele. Devagar, sem nenhuma pressa, deixei que eles tocassem a pele descoberta de seu pescoço, quase que timidamente no começo. Um suspiro audível escapou das narinas dele. Eu então continuei a subir os dedos, agora o acariciando, até que eles encontrassem as pontas dos cabelos dele na nuca. Aquilo fez com que apertasse de leve as mãos na minha cintura. Sorri com um misto de diversão e satisfação e virei o rosto, deixando minha boca próxima ao ouvido dele. E então o levei à loucura.
- Dizem que a noção de gravitação surgiu para Newton a partir de sua observação da queda de uma maçã, enquanto ele se encontrava sentado em estado contemplativo. – eu sussurrei. parou de se mexer na mesma hora. – As bases para isso foram as leis do movimento planetário de Kepler e as experiências de Galileu Galilei, que mostraram que um corpo em queda acelera a uma taxa uniforme e que um projétil descreve uma trajetória parabólica. Ao unir essas informações com o fenômeno que fazia a maçã cair no chão, ele percebeu que a mesma força que fazia isso também mantinha a Lua em órbita da Terra e os planetas em órbita do Sol. Nesse ínterim, ele aprimorou seus estudos e desenvolveu suas três famosas leis do movimento: a primeira, conhecida como teoria da inércia, diz que um corpo permanece em repouso ou em movimento uniforme ao longo de uma linha reta, a menos que sofra ação de uma força externa; a segunda lei do movimento afirma que o efeito de uma força contínua sobre um corpo inicialmente em repouso ou em movimento uniforme é fazê-lo acelerar. A terceira... – eu parei. Podia sentir a falta da respiração quente dele em meu rosto e seu corpo em um estado quase que irreversível de paralisia. Lentamente eu afastei meu rosto do dele, mas apenas o suficiente para conseguir olhá-lo. não estava muito diferente do que eu tinha imaginado: olhos arregalados e lábios entreabertos, me encarando como se eu tivesse voltado dos mortos. – Sabe de uma coisa? – perguntei em tom de dúvida. – Você nunca me disse qual era a terceira.
Eu esperei pacientemente até que ele absorvesse minha repentina genialidade adquirida pelo Google, me observando com olhos atentos e desejosos. Ele estava me desejando. Meu Deus, estava, sem sombra de dúvidas, me desejando.
- A terceira lei mostra que se um corpo exerce uma força sobre o outro o segundo exercerá ao mesmo tempo força oposta e da mesma intensidade sobre o primeiro. – As palavras saíram da boca dele cheias de velocidade, sem espaço para pausas, vírgulas ou ponto finais. Meus olhos permaneceram grudados aos dele.
- O que isso quer dizer?
Um sorriso malicioso cruzou rapidamente os lábios dele.
- Isso. – E antes que eu pudesse assimilar qualquer coisa, a boca dele estava na minha.
Sentir os lábios de nos meus foi o ponto alto do meu dia. Ele me beijava com vontade e intensidade, mas também com delicadeza e ternura. Sua língua às vezes acariciava a minha, e ele parecia fazer questão em diminuir a velocidade nesses momentos talvez para sentir o meu gosto tão bem quanto eu sentia o dele. E ele tinha gosto de felicidade. E a terceira lei não poderia estar mais certa: quanto mais ele forçava a boca na minha, mais eu forçava a minha na dele. Eu nunca tinha gostado tanto de física em toda a minha vida.
Permaneci com os olhos fechados por uns bons longos segundos depois que quebrou, lentamente, o beijo. A sensação de ter os lábios dele nos meus ainda me consumia e eu sentia como se fosse flutuar a qualquer momento. Ele tinha me beijado. Nós tínhamos, finalmente, nos beijado, e nenhum cenário em minha mente nunca fora tão perfeito quanto esse. Um sorriso bobo e deslumbrado surgiu em meu rosto assim que abri os olhos e vi os dele tão de perto, mais do que nunca aquela noite. Ele era lindo... Meu Deus, como ele era lindo. Mas então eu percebi que havia alguma coisa errada. O rosto dele estava congelado, nenhuma expressão, nenhum movimento. Meu cenho se franziu. Será que... Oh, céus, será que ele não tinha gostado? Será que eu tinha feito tudo errado? E novamente antes que eu pudesse entender o que estava acontecendo, respirou fundo e se afastou de mim com urgência. Eu fiquei confusa, mas então vi que suas mãos vasculhavam desesperadamente o interior do bolso direito de seu jeans. Seus olhos estavam bem abertos e ele parecia ter a cada segundo mais dificuldade em respirar. Quando meus pés finalmente conseguiram se mexer, ele finalmente conseguiu achar o que procurava. Um inalador. Apressadamente, o chacoalhou no ar e o levou à boca, inspirando o conteúdo como se sua vida dependesse daquilo. O que, na verdade, era verdade.
- , você está bem? – perguntei com preocupação, me aproximando e colocando uma das mãos em seu ombro. Ele limitou-se a afirmar com a cabeça, o tronco ligeiramente curvado, a respiração pesada. Eu o levei até uma poltrona dupla encostada à parede na parte coberta do quintal e o sentei. Não sabia exatamente o que fazer, então corri até a cozinha e peguei um copo de água. estava bem quando voltei, a respiração já quase normalizada, mas bebeu a água num só gole.
- Obrigado – ele disse. Sentei-me ao lado dele.
- Está se sentindo bem?
- Sim, estou sim, eu só... – ele parou, acanhado, e ajeitou os óculos por um tempo maior do que o suficiente antes de continuar. – Eu só fiquei muito excitado.
O sorriso que eu abri foi maior do que meu rosto.
- É... eu também.
entrelaçou os dedos nos meus com delicadeza.
- Você não faz ideia de quantas vezes eu imaginei isso. Mas sem a parte em que eu quase morro.
Aquilo me fez rir.
- Se for tanto quanto eu imaginei, então, sim, eu faço sim...
sorriu, deslizando os dedos da mão livre em meu rosto. Eu arrepiei.
- Você foi meu melhor presente de Natal, . – Eu ergui as sobrancelhas ao escutar aquilo. – O que foi?
- Nada, é só que... eu tenho um presente para você.
franziu a testa e sorriu de lado, então eu me levantei e peguei minha bolsa, pendurada na cadeira. O embrulho não era muito grande e os olhos dele se iluminaram ao vê-lo.
- , você não precisava... – ele disse ao pegá-lo.
- Eu sei, mas quis. Abra.
Ele começou a desembrulhar com cuidado, não querendo rasgar o papel. Era meticuloso demais para isso. Eu não havia comprado nenhum presente digno de um tratamento eterno de rainha, mas a expressão no rosto dele ao ver o avião simples feito em madeira me deu certeza de que ele tinha gostado.
- Uau, eu não acredito...
- Não é nada de mais, mas eu sei que você gosta.
- Nada de mais? – ele me encarou como se eu tivesse dito a maior das besteiras. – , é perfeito. Eu amei.
- Fico contente.
- Mas eu... eu não tenho nada para você... – ele disse com olhos tristes e a voz baixa. Eu dei um sorriso leve, rindo baixinho.
- Você me deu a melhor noite da minha vida, . Esse aviãozinho perto disso é absolutamente ridículo.
colocou o olhar no meu de um jeito que ele nunca havia feito antes e aquilo me fez estremecer. - Tem uma coisa que você não sabe sobre as leis da física - ele disse com seriedade. - Sabe, a Lei da Gravidade não é a responsável pelo fato de uma pessoa cair de amores pela outra.
Naquele momento, eu perdi o rumo, e tudo o que fiz foi aproximar o rosto para beijá-lo.
- Espere – disse ele pouco antes de ter os lábios selados pelos meus. Então, com mais calma dessa vez, ele tornou a agitar sua bombinha, inalando-a em seguida. – Vai.
Rindo, eu o beijei.
Fim.



Nota da Autora: Eu sei que comecei a escrever o final de Geek em um Natal e quase terminei no outro, mas muitas coisas aconteceram nesse tempo, mais ruins do que boas, então eu tive que dar um tempo. Mas aqui está, finalmente, a segunda parte do último capítulo. E só tenho a agradecer a todas vocês pelo carinho com a fic e pela paciência comigo, embora tenha recebido algumas ameaças também, haha. Muito obrigada mesmo por cada comentário, cada e-mail, cada elogio e cada comparação a J.K Roling e John Green. É muito lindo quando alguma de vocês se esquece de tomar os remédios e me escreve isso HAHAHA.
Enfim, espero que tenham gostado do final tanto quanto eu gostei de escrevê-lo.
E para quem ainda não estiver lá, entre no Grupo de Geek no Face.
xoxo.


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