If you do love, pull the trigger
Autora: Raíssa Assunção
Beta-Reader: Abby


15 de Novembro de 1985

Nós éramos dois. Alucinados pelo modo fácil de acabar com a dor; ou finalmente iniciá-la. Nós éramos um. Uma bala, um gatilho, uma única chance. Nós éramos nós, com um pouco mais de sangue circulando em nossas veias.
Antes, eu considerava haver só luz em seus olhos. Eu costumava ponderar que talvez fosse uma luz que nunca poderia ser apagada, ou talvez que nunca poderia ser substituída por algo absurdamente melhor, e era isso o que mais acendia minha fúria. Eu pensava que ela era imutável e completamente forte, e uma hora eu desistiria dele. Mas então, ele começou a se tornar mais igual a mim e menos ele, e eu comecei a pensar que, se ele estivesse escondendo suas partes obscuras de mim, eu acabaria com o seu jogo em menos de um segundo. Por que, se alguma mentira brilhante sua funcionasse comigo, esse era o tempo que ela durava: um segundo. No fundo, eu nunca quis salvá-lo, e sim o contrário. E, naquele momento, enquanto as batidas do meu coração ficavam tão altas que eu não podia nem pensar sobre quantas ele ainda me concederia, tudo o que minha cabeça deveria dizer era que eu precisava me salvar, me salvar dele.
Eu nunca imaginei que minha morte seria desse jeito. Talvez eu quisesse que fosse, se possível, bem lá no fundo do coração, onde ainda guardo seu amor, por mais falso que seja. Quero dizer, é completamente épico ensinar a alguém a matar sem precisar de muito e, após um tempo, em meio a uma madrugada tempestuosa, esse alguém dizer não saber viver sem você e então colocar o mesmo gatilho na garganta que sempre beijou e mais. Mas eu sempre esperei que ele estivesse lá nesse dia. E então eu tenho, pelo menos, um motivo pra rir, certo? Ele realmente estava lá. Ele sempre esteve.
E eu não vou dizer que eu não queria ser baleada, que não queria que meu sangue escorresse pelos seus braços em segundos. Porque agora que eu sabia o que ele sempre pretendera, este final não poderia ser mais irônico.

*

08 de Julho de 1980

Aquela era a sua primeira vez, e por isso era ainda mais engraçado de assistir. Lá estava ele, não sabendo ao certo como reagir depois de acabar com alguém. Não sabendo ao certo como reagir ao que ele sentia por dentro, como reagir ao meu olhar. Lá estávamos nós. Um ao lado do outro, meu pulso em contato com o dele, minha respiração ritmada a dele. Sua pele estava ficando mais quente a cada toque, seu olhar mais intenso a cada piscada. Nós ouvíamos as batidas rápidas do seu coração, e ele imaginava quantas batidas, de quantas pessoas, ele apagaria. Eu sabia que ele também estava pensando sobre quantas vozes escutaria quando fosse dormir, que estava pensando sobre a culpa que sobraria no final das contas. Mas ele nunca deixaria isso claro para mim, nunca.
Pelas suas mãos escorria o sangue mais escuro, e, em quatro segundos, eu vi o prazer mais conhecido matar sua culpa interior e começar a escorrer como brilho pelos seus olhos. Ele havia, finalmente, entendido porque eu fazia o que fazia; e eu havia entendido o que ele havia se tornado. Então eu ouvi sua risada cortar o ar, sua cabeça pender pra trás e seu corpo tremer com a diversão. Ele ainda era um novato, eu me lembrei, as coisas mais simples ainda lhe davam as melhores sensações, como chocolate e álcool em uma única dose. E enquanto eu observava seu sorriso malicioso transparecer seu medo, seu corpo se aproximou do meu e puxou brutalmente minha cintura em sua direção. Em um segundo eu estava envolta nele, imersa em um beijo intenso, rápido e tão quente quanto seu corpo. Os pensamentos foram embora e tudo o que me sobrou foi o gosto de sangue em sua boca, aquele que me descontrolava mais do que saber que, no final, ele se tornaria cinzas. Ele me jogou no chão de cimento frio, e o baque foi doloroso e excitante, eu não podia mais lidar com o controle e a piada que eu fazia por dentro. Tudo que ele não sabia sobre matar e confiar nas pessoas, sabia sobre a diversão mais provocante. Eu mordi seus lábios com uma intensidade assustadora até para mim e minha cabeça começou a rodar. Suas mãos também não tinham controle enquanto estava sobre meu corpo, nós dois juntos muito menos. Então, quando eu senti a dor deliciosa de seus lábios em brasas ficando mais profundos em meu pescoço, pensei que, se ele soubesse qual seria seu final, teria a oportunidade perfeita, e então, me mataria. Seus lábios desceram pelo meu corpo, me fazendo lembrar como era se sentir viva, e então ele chegou a minha cintura no que me pareceram segundos, mas era impossível dizer, já que eu não sabia nem como nós tínhamos chegado ali. Eu prendi seu corpo com as mãos na tentativa de segurá-lo lá para sempre, mas sua parte preferida era me provocar. E quando ele começou a intensificar suas mordidas e me explorou completamente, parecia mesmo que eu era viva. Ele desenhou um caminho por todo o meu corpo, brincando ferozmente com cada parte de mim na única oportunidade que tinha. Seus lábios quentes roçaram o caminho dos meus seios ao meu pescoço e a última coisa que me lembro foi de sentir um frio terrível e a mordida mais alucinante.

*

15 de Novembro de 1985

Aquelas imagens passavam em frente aos meus olhos como um borrão. Ele era tão ingênuo naquela época, tão vulnerável e comestível. E eu sou obrigada a concordar que, apesar de ele ainda ser ingênuo como antes, pelo menos agora sabe como usar a arma que tem. Ele havia tentado ser como eu, aprender a ser completo e deixar de ser um novato. Até a cor de seus olhos havia mudado, senhor, até a cor que eu amava, e em contra partida, aquela sobre a qual zombava secretamente. E ele via a mudança, mas considerava ter mudado por um motivo completamente errado. Ele não havia se tornado como eu. Era pra esses olhos tolos que eu olhava agora, eram eles que me negavam uma saída, uma nova oportunidade de vida. Mal sabia ele que a penúltima coisa que eu queria era ser salva, e a última era ser salva por ele. Mal sabia ele que eu já tinha previsto. A boca de estava aberta em um sorriso vingativo, como se seu plano houvesse sido muito superior a todas as minhas ações.
- Você achou que eu não fosse conseguir, não é? – seu tom era tão vil que eu poderia até tremer se fosse esse tipo de pessoa, se tivesse pelo que tremer.
- Desculpe, o quê? – eu não conseguia acreditar naquelas palavras.
- Você achou que eu nunca aprenderia a ser como você, que eu seria o mesmo garoto que tirava a vida das pessoas e depois lhe passava o sangue em minha boca. Mas quem é frágil agora?
- Eu acho que a pergunta seria melhor se fosse: “mas quem é tão cretino quanto você agora?”
Eu tive a coragem de dizer aquelas palavras somente porque não era isso o que eu achava. Ele não era cretino, só um idiota, completamente inapto de inteligência e bom senso. Mas nós vivíamos na mentira, e pensando bem sobre isso, fui eu quem ensinou a ele como viver nela. Então não posso culpá-lo, já que eu o induzi a isso, só aplaudi-lo em silêncio por ser um bom aluno. O revólver em minha garganta estava quente como brasa; vivo como eu e ele havíamos deixado de ser havia muito tempo. Sua pressão contra minha pele foi crescendo conforme o ódio de , conforme a distância entre nós ia diminuindo. O temporal que caía só deixava essa cena ainda mais sexy, eu tinha que admitir. Mas aquela não era uma noite comum. O assunto principal, pela primeira vez, não era morte e sexo, só morte. Seu corpo molhado grudou no meu, seus olhos mudados prenderam os meus. Porque ele estava fazendo isso? Tentativa de tortura. Ah, sim, ele está tentando me lembrar como éramos e o que viramos. Muito bom, .
- Você vai se arrepender, . Profundamente. Mas eu vou lhe dar três segundos pra dizer o que quer, e, então, eu calo sua boca pra sempre.
Ainda bem que a minha expressão era de pavor e ele nunca saberia o quanto eu estava rindo por dentro. Se eu dissesse o que eu queria, alguém morreria em menos de três segundos.

*

07 de Outubro de 1980

Eu estava caminhando pelos mesmos becos naquela noite, procurando mais um alvo. A noite estava tão profunda e populosa que eu já conseguia captar uma vitória. Mais um humano perdido na vida que se tornaria apenas um humano perdido na morte. E a segunda melhor parte era que eles não sabiam disso, nem sequer pensavam sobre isso. O frio se chocava contra a minha pele, realçando ainda o efeito delicioso. Eu sempre pensei sobre qual seria a sensação de morrer enganado por alguém. Sempre pensei sobre como seria amar uma pessoa e depois olhar em seus olhos sem nem saber que, em pouco tempo, sua vida juntos acabaria. Sua vida acabaria. Mas deve ser, no mínimo, frustrante e muito, muito emocionante.
Alguns pares de olhos me observavam enquanto eu caminhava pela avenida e ia em direção à parte escura, onde as pessoas mais fáceis de ser enganadas podiam ser encontradas. Para falar a verdade, eu estava um pouco entediada com a coleção de sangue em meu passado. Eu queria uma coisa nova, viva. Alguém que fosse completamente diferente. Converter pessoas totalmente boas era extremamente tedioso, eu precisava de alguém com algum tipo de maldade, mas com nenhuma chance de ser bom o bastante. Mas assim que eu adentrei a parte escura do bairro, quase não era possível ver as pessoas em meio a toda aquela fumaça com cheiro de erva. Idiotas.
Então eu me lembro de dar a volta e, enquanto eu me dirigia ao próximo bairro, coberto por neve desta vez, eu achei a pessoa certa. Seus olhos eram vivos e iluminados, mas não havia o mesmo sorriso cortês usual estampado em seus lábios grossos e deliciosos. Eles demoraram em mim assim que passei, como os olhos de todas as outras pessoas, mas ele parecia mais. E era disso que eu precisava. Mais, muito mais. Ele era alto e moreno, e seu corpo era exatamente um daqueles com o qual eu adorava jogar e, ao mesmo tempo, sentir o prazer de matar. Esse tipo de sangue era o melhor. Esse tipo de piada era o melhor. Era ele, oh; sim, era ele. Então fiz exatamente como havia aprendido, exatamente do jeito que eles nunca conseguiam escapar. Demorei meus olhos nos deles apenas três segundos e dei o sorriso malicioso com o canto da boca. Olhei pra frente e joguei meus cabelos pra trás e o vento fez o resto. Tudo conspirava a meu favor naquela noite, eu sabia. Assim que eu sentei em um beco, com os cabelos úmidos pelo orvalho e meu desejo explícito em meu olhar, ele sentou ao meu lado. E antes mesmo de ouvir seu nome, jurei pra mim mesma que jogaria o meu melhor jogo e o mataria. .

*

15 de Novembro de 1985

Eu havia prometido. E as minhas promessas são cumpridas, extremamente bem cumpridas. Os trovões ressoaram em concordância e isso sim me fez tremer. E claro, sorrir.
- Eu não sorriria nos meus últimos três segundos. Tem certeza de que quer mesmo desperdiçá-los?
- Quem falou em desperdiçá-los, ? Eu tenho sim uma coisa a dizer.
Ele caminhou ao meu redor, com o gatilho dançando e deslizando pela minha garganta. Seus olhos varriam meu corpo molhado e meu cabelo em cachos caindo pelas minhas costas. Eu gostava quando ele me olhava desse jeito, foi assim que ele me olhou naquela noite de sete de Outubro de 1980.Tenho que admitir também que eu realmente sentiria saudades dele. Quero dizer, as nossas noites de sexo foram absurdamente boas; ele era extremamente bom, pelo menos nisso. Então, uma hora, ele deve ter cansado de me rondar e parou bem atrás de mim, com seus braços apertando minha cintura e seus lábios prensados em meus ouvidos. Mas não de um jeito bom, não mesmo. O revólver estava gelado agora, já que tinha mudado de posição, e então ele começou com seu discurso preparado para o momento final antes de minha morte.
- Eu não queria ter feito isso, , de verdade. Você merecia muito mais, meu amor, mas não soube ser boazinha e jogar de igual pra igual. Cada dia que passava, você me olhava com mais desprezo, enquanto eu te olhava com todo o meu amor. Então, em suas últimas palavras, não venha se fazer de vítima. Não pra cima de mim. Eu conheço você muito bem para cair em seus jogos, por isso eu terei que matá-la. Mas me faça uma promessa, , prometa que não me odiará quando estiver queimando no inferno, sem alimento e pessoas boas para converter enquanto eu estarei aqui, seguindo seus passos e jogando seus jogos.
Eu não podia culpá-lo. Afinal, ele não sabia o quanto eu era boa, não tinha noção do quanto ainda teria que aprender pra ser melhor do que eu. Então eu só sorri novamente, esperando que ele parasse com toda aquela conversa sem sentido pra mim. Porque eu não acabaria com a graça antes do tempo, eu esperaria até o último segundo de sua felicidade e então, lhe não daria tempo para pensar que ela foi completamente em vão. Mas eu terei todo o tempo do mundo para rir da sua cara. Oh, eu terei.
- Então, querida, diga alguma coisa. Só não diga que sentirá falta de mim, porque, neste caso, sua morte será muito mais dolorosa.
- Eu não vou demorar muito. Só tenho um pedido. Será que você pode ficar na minha frente? Quero ver seus olhos antes de partir. Os mesmos pelos quais me apaixonei desde o primeiro dia.
Então ele veio. Como alguém que anda sobre a corda bamba sem ter sido treinado.
Nós éramos dois. Alucinados pelo modo fácil de acabar com a dor; ou finalmente iniciá-la. Mas agora só restava eu mesma, finalmente acabando com a minha dor e iniciando a sua. Nós éramos um. Uma bala, um gatilho, uma única chance. E agora eu era a bala e o gatilho, e ele era minha única chance. Nós éramos nós, com um pouco mais de sangue circulando em nossas veias. Aquela era eu, prestes a conseguir todo seu sangue circulando em minhas veias. Aquele era ele, prestes a perdê-lo completamente.
Antes, eu considerava haver só luz em seus olhos. Mas eu sei, há muito tempo, que ele mentiu pra mim sobre suas partes obscuras. Eu acabaria com ele de qualquer maneira, sob qualquer circunstância, mas neste caso, sua morte será muito mais dolorosa; e pra mim, muito mais prazerosa. Olhei em seus olhos uma última vez e vi que ele estava penalizado pela dor falsa que eu mostrava nos meus. Muito bem, , você está indo muito bem. Meus dedos tocaram sua face lentamente, mostrando tudo o que nós fomos um dia e o que viramos. Minhas lágrimas escorriam incessantemente e eu vi o mesmo de sempre surgir em minha frente. Fazia tanto tempo. Então após lhe conceder um período de comoção, arrancar sua arma era muito mais fácil do que aturá-lo todo aquele tempo, aturar todo o tédio pelo qual ele me fez passar. Em três segundos, ouvir o barulho único do gatilho sendo puxado foi a coisa mais deliciosa em anos. O sangue mais escuro começou a escorrer de seu corpo e pingar pelas minhas mãos. Mas aquela não era uma noite comum. O assunto principal, pela primeira vez, não era morte e sexo, só morte. Seu corpo molhado grudou no meu, seus olhos em choque pediram socorro a mim. Adeus, . Então eu beijei levemente seus lábios arroxeados pelo frio e pela morte e a minha recompensa foi sentir o sangue em minha boca e sua voz se calar pra sempre. Mas eu tenho que admitir, vou aplaudi-lo em silêncio por ter sido um bom aluno enquanto ele padece no inferno, sem alimento, sem pessoas más para lhe dar, pelo menos, três segundos de vitória.

Fim



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