Capítulo 1

— Você vai ficar bem, mãe.
— Não querida, eu não vou. Mas quero que você prometa que vai cuidar bem da sua irmã.
— Não vai ser preciso, você estará aqui pra cuidar dela. De mim.
— Prometa, meu bem. — Disse a mulher ofegante.
— Está bem, eu prometo. Eu vou cuidar dela. — Respondeu a jovem, com lágrimas no rosto.
— Eu te amo, minha filha. Vocês tem que ficar bem, por mim. Cuide bem da Georgia, certo? — Parou, tentando puxar algum ar para si. — Eu sinto muito por isso. Eu só queria que nós fossemos felizes, só isso.
— Tudo bem, mãe. Eu te amo.


recordava essa cena em seus sonhos dia após dia. Ver a mãe morrer em seus braços foi extremamente doloroso. Mas ela havia prometido, e ia continuar, por ela e por sua irmã.
— Bom dia, Gegê. — Disse sonolenta ao ver sua irmã pulando na cama.
— Vim te acordar. Vamos pro shopping, você prometeu. — Respondeu a garotinha, deitando-se ao lado dela.
— Está cedo, princesa.
— Não está não.
— OK, eu já vou.
Raios intensos de sol entraram pela janela quando abriu as cortinas. Não gostava de sábados ensolarados, lembravam sua mãe. As tardes felizes que passavam no parque, no começo só as duas, depois Georgia, ainda na barriga. Pensar que a irmã não tivera a chance de viver ao lado da mãe, que aquilo fora tirado dela tão brutalmente, fazia com que seu coração doesse. Fez o máximo para tirar esses pensamentos da cabeça, não queria que a irmã notasse sua tristeza. Entrou no chuveiro e sentiu o choque do contato da água gelada com sua pele.
— Georgia, não lave suas bonecas com água quente! — Gritou.
— Desculpa, elas precisavam de um banho. — Respondeu a menina inocentemente.
— Não, meu amor, elas não precisavam. Se continuar fazendo isso, vai acabar com elas.
— Nós temos um vizinho novo. — Mudou de assunto a garota. — Ele é legal.
— Como você sabe? — Perguntou enquanto se ensaboava.
— Ele falou comigo. Disse que eu pareço uma princesa.
— Não se deve falar com estranhos, Gegê.
— Ele me disse o nome dele, não é um estranho.
— E qual o nome dele?
.
— Ah. É um nome bonito. Mas você não o conhece, do mesmo jeito.
— Você é chata, .
— E você é uma garotinha insolente.
— Não sei o que é insolente.
— Tudo bem, vamos te arrumar para irmos ao shopping.
Após prontas, foram até a padaria vizinha ao prédio em que moravam, para que pudesse tomar café. Já estavam acostumadas a isso, não era capaz de fazer uma torrada sequer sem colocar fogo na casa.
— Olha, o vizinho — Apontou Georgia descaradamente.
— Gegê, é muito feio apontar para as pessoas. — Repreendeu a irmã.
— Bom dia, Georgia. — Disse o homem.
Ele aparentava uns vinte e cinco anos. Seus cabelos castanhos formavam fofos cachinhos, que davam a ele um ar infantil e à pessoa que o estivesse olhando a vontade de tocá-los. Não era lindo como um modelo, mas tinha um grande charme, principalmente quando se olhava em seus olhos. Porém não pode se dizer que era feio, tinha uma beleza unicamente estonteante e que não podia ser expressa em palavras.
— Oi. Essa é minha irmã, . — Disse a menininha sorrindo.
— Muito prazer. Sou . — Falou, estendendo a mão. Sua voz era tão única quanto ele, tinha uma rouquidão extremamente sexy.
— Olá, muito prazer. — Respondeu, tentando soar o mais natural possível. Não que tenha dado certo.
— Vamos tomar café, estou com fome. — Bufou a garotinha, alheia às trocas de olhares entre os dois.
— Ah, sim, vamos. — Tentou se recompor a irmã.
— Você poderia comer com a gente, . — Disse Georgia.
— Bom, se não for incômodo. — Respondeu olhando fixamente para .
— Por mim tudo bem. — Disse desviando o olhar.
Durante todo o café ela se perguntou o motivo de querer tanto olhar para o rosto daquele completo desconhecido. Não era só a beleza que a atraía, mas sim ele como um todo. Seu olhar, sua voz. Rapidamente tentou tirar esses pensamentos incômodos de sua cabeça.
— Vamos, Georgia.
— Não, eu quero ficar aqui com o .
— Gegê, meu amor, nós temos que ir ao shopping. — Tentou falar calmamente.
— Só se ele for junto.
— Ele não pode. — Disse rispidamente.
— Você não perguntou pra ele. Vamos, ?
— Hum, eu não posso, meu anjinho. — Disse percebendo a má vontade de com a sua presença. — Quem sabe outro dia. Mas agora vá, nos veremos por aí. E , eu pago.
— Não precisa. — Discordou ela.
— Eu insisto. Aproveitem o passeio por mim. Foi bom te conhecer. — Respondeu sorrindo.
Suas pernas vacilaram ao ver o sorriso, mas não ia se render tão facilmente. Sua mãe havia se rendido e o final que teve não foi dos melhores. Sorriu friamente, pegando a mão da irmã e ao sair dali sentiu um alívio extremo.
— Ele não é legal? Eu disse que ele era legal, eu disse. — Falou alegremente a garotinha.
— Sim, Gegê, ele é muito legal. — Respondeu já irritada com aquela conversa.
Sentada no sofá, enquanto sua irmã tentava fazer um penteado em seu cabelo, ela relembrava sobre a manhã, não conseguia tirá-lo da cabeça, nem por decreto. Ouviu a campainha tocar e seu coração palpitou involuntariamente ao ver a silhueta de pelo olho mágico.
— Ahn, só um minutinho. — Gritou pra ele.
Seu cabelo estava péssimo graças ao suposto dom de cabeleireira de sua doce irmãzinha. Tentou dar um jeito nele para estar ao menos apresentável quando abrisse a porta e após prendê-lo num coque foi atender .
— Oi. Desculpa a demora. — Cumprimentou ofegante.
— Oi. É, eu queria convidar vocês para comer uma pizza.
— Ah... É...
! — Gritou Georgia interrompendo a irmã.
— Olá, Gegê. Como vai?
— Muito bem.
— Então, aceita o convite? — Levantou a cabeça para encarar .
— Bom... Claro. — Gaguejou sorrindo.
— Vamos?
— Pra onde? — Perguntou a menininha.
— Comer pizza lá em casa.
— Eba!
— Georgia! — Exclamou a irmã envergonhada.
— Eu fico feliz que ela goste da minha companhia. Ou de pizza. — Disse sorrindo.
não pode deixar de sorrir. Além de lindo, é engraçado, pensou ela. Capítulo 2

— Sejam bem-vindas à minha casa. — Disse abrindo a porta. — Eu não costumo receber mulheres aqui, portanto tentem não se incomodar com a bagunça.
A questão era: ”Que bagunça?”. Em toda sua vida, ela não havia visto uma casa tão perfeitamente organizada.
— Queria que nosso apartamento fosse tão bagunçado quanto o seu. — Disse tirando um sorriso dele.
— Fiquem a vontade.
O apartamento era impecável. Na sala havia uma televisão grande, um espaçoso e visivelmente confortável sofá, um videogame com alguns jogos, uma prateleira de filmes, um aparelho de DVD. Uma estante cheia de livros chamou a atenção de , muitos deles ela já havia lido. A cozinha tinha um estilo americano e ao contrário do que ela esperava, mas combinando com o resto do apartamento, era incrivelmente limpa. Voltou sua atenção para e sua irmã, que jogavam videogame enquanto riam de algo que ela não sabia o que.
— Quer jogar, ? — Perguntou para ela.
— É, vem jogar, . — Concordou sua irmã.
— Eu não sei jogar.
— O te ensina, ela joga hiper bem. — Disse a irmã deslumbrada.
— OK.
— É simples, você só tem que apertar os botões coloridos da guitarra de acordo com a cor que aparecer na tela. — Disse entregando uma guitarra.
— Acho que não tenho coordenação pra isso.
— Não custa tentar. — Sorriu.
Depois de algumas tentativas frustradas, ela já estava dominando o jogo e se divertindo mais do que esperava.
— Acho que eu deveria pedir a pizza. Bom, continuem jogando, eu já volto. foi para um dos quartos, possivelmente o escritório, enquanto o seguia com o olhar. Era irresistível, por mais que quisesse ignorá-lo, não era possível.
— Não é divertido, ?
— Muito, Gegê.
— Será que você poderia comprar um desse pra mim?
— Quem sabe, meu amor.
Continuaram jogando até que a pizza chegou. Sentaram-se todos no sofá, com suas respectivas fatias e um copo de Coca-cola. Depois de algum tempo, Georgia já dormia no sofá.
— Ela é linda, você tem sorte de ter uma irmã assim.
— Você não tem irmãos?
— Não. Quer dizer, tenho por parte de pai, mas acho que eles não vão muito com a minha cara.
— Como não ir com a sua cara? — Sentiu suas bochechas queimarem ao dizer isso. — Quer dizer, você parece ser legal, sabe.
— Pergunte a eles. Talvez eles não gostem de mim pelo fato da minha mãe ter sido o único amor do meu pai.
— E por que eles não ficaram juntos.
— Quem se ama na maioria das vezes não fica junto.
— Não sei se concordo com isso.
— Eu não me importo se eles gostam ou não de mim, não mesmo. E seus pais?
— Eles morreram. Meu pai primeiro, mamãe ficou acabada com isso, mas depois se recompôs. Aí ela conheceu o pai da Gegê, o pior homem do mundo. E... — Parou de falar tentando segurar as lágrimas.
— Desculpa, eu não queria te fazer chorar. — Disse abraçando-a.
— Tudo bem. Eu só não consigo lidar muito bem com isso. Acho melhor eu ir pra casa.
— Desculpa, é sério. Eu sinto muito, por tudo.
— Eu estou bem. Vou pra casa.
— Eu levo a Georgia, vamos. — Disse pegando a garotinha.

Capítulo 3


Deitado em sua cama, se martirizava por ter destruído uma noite tão bela. Não lembrava qual a última vez que tivera momentos tão bons.
E ela. Ela era tão linda, tão forte, tão inocente, tão perfeita. Mesmo parecendo ter repúdio por ele às vezes.
Vê-la chorando foi como ter cravado em seu coração uma adaga. Já a observava por muito tempo, mais precisamente desde o dia em que chegara no condomínio. Pensou, primeiramente, que Georgia era sua filha. Uma mãe solteira talvez. Mas conversando com a garotinha descobriu que eram irmãs. Queria saber o motivo da morte da mãe delas, mas agora, havia percebido que não seria tão fácil assim.
O barulho estridente do toque de seu telefone fez com que ele saísse de seu transe momentâneo. Quem ousava tirá-lo de um momento tão íntimo?
— Alô. — Disse rispidamente.
— Oi . — Uma voz masculina respondeu num tom debochado.
— Tinha que ser. — Bufou . — O que você quer?
— Estou aqui na porta do seu condomínio, mas não lembro onde você mora.
— No 23.
— Estou subindo então.
— Tá.
Após alguns minutos o amigo estava em sua porta. e Luan eram amigos de longuíssima data, talvez desde sempre. Cresceram juntos, mas ostentava uma vida muito menos desregrada do que o amigo, podemos até dizer que ele tinha o papel da consciência de Luan, quase como o grilo falante do Pinóquio.
— E aí?
— Tá tudo ótimo.
— Não parece. — Disse Luan se jogando no sofá.
— Eu conheci a garota.
— A vizinha gostosa?
— Sim, a vizinha. Mas sem esse ‘gostosa’, ela é uma garota de respeito.
— Enfim, e aí?
— Eu fiz ela chorar.
— Não sabia que você era tão ruim assim. Mas já esperava.
— Não tem graça, Luan. Foi uma coisa séria. A mãe dela morreu, não sei como, mas deve ter sido de um jeito péssimo.
— Ah. Mas você pegou ela?
— Caralho, você só pensa em sexo.
— E tem algo mais interessante pra pensar?
— Acho melhor você ir embora antes que eu te encha de porrada.
— Relaxa. Eu já estou indo, tenho que buscar umas gatas. Aproveitar a noite de sábado. Quer ir junto?
— Não, muito obrigado.
— Você que sabe. Então fique chorando pela vizinha que não é gostosa.
— Vai logo, Luan.
Às vezes se perguntava o motivo de continuar sendo amigo de Luan. Eles nunca tiveram nada a ver, e talvez fosse amigos simplesmente pela conveniência de ser. Ou talvez gostasse dele de verdade. Não sabia dizer qual das duas hipóteses eram verdadeiras e com certeza nunca saberia.
Tomou um banho e esperou que o sono viesse o mais rápido possível. E que sua obsessão por aquela garota diminuísse.

Capítulo 4


Em todos os seus vinte anos de vida, ela nunca havia se sentido assim. Pela primeira vez seu coração estava se abrindo e sentia muito medo disso. Após o ocorrido com sua mãe, não havia mais confiado em nenhum ser do sexo masculino, até aparecer em sua vida.
Pode se dizer que esses últimos cinco anos a fizeram muito mal, apesar de ter sua irmã ao seu lado. Lembrava-se muito bem do choro incansável de Georgia quando a mãe morreu, ela nem tinha nem um mês de vida e a única coisa que restara foi . E assim seria para sempre, ou pelo menos enquanto ela vivesse. E sim, ela vivia para sua irmã.
Revirava-se na cama, tentando apagar de sua mente o olhar daquele ser tão extraordinário que ela havia conhecido. Ele era... Ela não tinha palavras para expressar o que sentia ao olhá-lo, talvez palavras não fossem suficientes. Ela só queria tê-lo em seus braços, entrelaçar suas mãos em cada cacho em seu cabelo e poder olhar em seus olhos pelo resto de sua vida. Não entendia esse sentimento e ele o torturava segundo após segundo. Resolveu assistir televisão, mesmo sabendo que não iria ter nada útil passando naquele horário. Após algum tempo, foi até a varanda do apartamento, munida de uma enorme xícara de café, que só auxiliaria na sua insônia. Parou, vislumbrando o horizonte, tinha uma bela vista, não podia negar.
— Também sem sono? — Ouviu a voz que ela tanto queria, e precisava, ouvir.
— É.
— Nós temos uma vista privilegiada, não acha.
— Sim. Acho que foi por isso que escolhi morar aqui. Só pela vista.
— Que bom que você escolheu.
— Desculpa pelo meu ataque na sua casa.
— Tudo bem. Eu não deveria ter tocado no assunto.
— Eu que perguntei sobre a sua família, nada mais justo você perguntar sobre a minha.
— A Georgia está dormindo?
— Sim. Como um anjo.
— Ela é um anjo.
— Concordo. Meu anjinho. Apesar de achar que ela gosta mais de você. — Disse rindo.
— E você? Também gosta de mim? — perguntou, fazendo com que as bochechas dela esquentassem.
não conseguia encontrar uma resposta plausível. ‘Sim’ daria muito na cara e ‘não’ faria parecer que ela não gostava dele. Teria que ser uma resposta enigmática, mas que ainda desse a entender que ela gostava dele.
— O que você acha?
— Eu quero achar que sim.
— Então continue achando. — Respondeu orgulhosa de si mesma. — Mas, e você? Gosta de mim?
— Sim.
Ela se surpreendeu com a resposta direta dela e seu coração quase foi à boca ao ouvi-la. Não pode se contar em abrir um sorriso e achou ter visto ele sorrir também.
— Somos companheiros de insônia agora.
— Isso é interessante.
— Completamente, daria um livro.
— Não sei se insônia é um bom assunto, mas tudo bem.
— É. Nós poderíamos ir ao parque amanhã, se fizer sol. Acho que a Georgia vai gostar.
— Um ótimo programa de domingo. Faz tempo que nós não vamos ao parque.
— Então está marcado?
— Sim. Ela vai ficar feliz. Principalmente porque você vai junto. Bom, acho que vou tentar dormir, não pretendo ter olheiras amanhã. Boa noite.
— Boa noite, companheira de insônia.

Capítulo 5

O amor é um sentimento totalmente sem sentido. Quem ama não sabe ao menos dizer o porquê de amar. Simplesmente o faz.
percebia isso a cada momento que passava com , ela procurava explicações e teorias, mas só o que achava era um vazio que involuntariamente era completado pela presença dele.
Levantou animada naquela manhã, tomou banho e esperou que Georgia acordasse para tomarem café. Ficou feliz ao pensar no sorriso da irmã ao saber que iriam ao parque.
A garotinha foi até o sofá onde ela estava sentada e aninhou-se em seu colo. Era em momentos como esse que via o quanto valia a pena continuar.
— Tenho uma ótima notícia pra você, Gegê.
— O que? — Questionou a menina sonolenta.
— Nós vamos ao parque com o .
— Que bom. — Respondeu com um grande sorriso.
— Então vamos nos arrumar?
— Sim, você tem que ficar bonita pra ele. Vocês vão namorar, ?
— Isso não é assunto pra você, minha princesinha enxerida.
As duas colocaram roupas propícias para um dia no parque e fizeram alguns lanches.
— Já ia chamar vocês. — Disse parado no corredor.
Despojado, ele vestia um jeans meio surrado, uma camisa xadrez com alguns botões abertos e uma sandália.
— Você está bonito, . — Suspirou Georgia.
— Obrigado, Gegê. Você também está linda. Ou melhor, vocês.
sentiu suas bochechas queimarem como toda vez que ouvia algum elogio dele.
— Bom, vamos?
— Quando quiserem.
Caminharam alguns quarteirões até chegar ao Parque Central que como em todo domingo, estava cheio. Escolheram um lugar perto do lago, onde o sol batia não tão forte.
— O dia está maravilhoso. — Disse sorrindo.
— Concordo. Então temos que aproveitar, não é sempre que temos essa chance.
— É, há muito tempo eu não tinha essa chance.
não conseguia lembrar um dia em sua vida que havia sido tão divertido depois da morte de sua mãe. Ficou feliz por perceber sua irmãzinha teria uma infância boa, sem tanto sofrimento.
— Eu quero que vocês jantem comigo. — Disse enquanto se preparavam para ir embora.
, estamos abusando demais de você.
— Não estão, eu estou convidando. Janto sozinho todos os dias, só queria ter alguém, você sabe.
— Depois de tudo isso não podemos recusar.
— Eu farei algo para comermos.
— Você sabe cozinhar? — Perguntou Georgia.
— Sim. Já fiz curso de Gastronomia.
— Sério? Parabéns, você é um homem prendado.
— Obrigado. — Respondeu, rindo. — Vamos? — Perguntou pegando Georgia no colo.
— Sim.
Caminharam calmamente até o condomínio, rindo de coisas banais e aproveitando a companhia um do outro. Chegaram ao apartamento de , Georgia havia dormido em seus braços.
— Acho que eu pareço uma cama.
— Talvez.
— Bom, fique a vontade, vou cozinhar algo para nós.
— Tudo bem.
Foi até a estante que tanto havia chamado sua atenção. Um homem que lê Jane Austen, pensou ao ver um exemplar de ‘Orgulho e Preconceito’ em uma das prateleiras. Continuou passando os olhos por elas e viu os livros da série Harry Potter, alguns da Anne Rice, Stephen King e mais Jane Austen.
— Neil Gaiman? — Perguntou encantada. — Eu sou fã dele.
— Um dos melhores escritores do mundo, na minha singela opinião.
— Qual o seu preferido?
— Neverwhere. Queria conhecer a Londres de baixo.
— Eu prefiro American Gods. Gosto do Shadow. E de toda aquela história de deuses modernos. Mas também adorei ler Anansi Boys.
— Nunca imaginei que alguém tão doce leria Neil Gaiman.
— Neil Gaiman é doce. Do jeito dele, é claro. E eu nunca imaginei que alguém não tão doce leria Jane Austen.
— Descobriu o meu maior segredo. Não consigo resistir aos romances dela.
— Tem uma paixão platônica pelo Sr. Darcy?
— Claro, ele é o único homem com o qual eu namoraria. — Respondeu rindo.
— É bom saber que você só é meio gay. Quando vi Jane Austen aqui fiquei com medo.
— Não é bom ter um amigo gay.
— Sim, quando ele é só amigo. — Respondeu sem pensar, se arrependendo logo depois.
— Então eu não sou somente seu amigo? — Questionou com um sorriso malicioso.
— É, mas... Enfim, não vou mais te atrapalhar. Pode cozinhar em paz.
fez uma macarronada divina, segundo as garotas. Comeram e conversaram por algumas horas, desfrutando de todo aquele momento.
— Bom, vou indo. Amanhã eu trabalho e a Georgia tem aula.
— Está bem. Boa noite. E obrigado pela companhia.
— Obrigada você. Por tudo.

Capítulo 6

acordou mais feliz do que normalmente, mesmo ouvindo o toque insistente do telefone. Tinha consulta médica essa manhã e já imaginava a notícia que teria. Ela é traiçoeira mesmo, pensava ele. Mas estava bem. Por mais incrível que se possa ser.
— Bom dia, . — Disse o jovem médico sentado à sua frente.
— Bom dia, Doutor Burke.
— Odeio quando me chama assim. Como se sente?
— Psicologicamente falando, estou muito bem. Mas não é isso que quer saber, não é?!
— Não. Fisicamente falando.
— Estou péssimo. Minha cabeça dói, tenho tontura. E eu poderia muito bem ganhar o campeonato de vômito. Ontem eu levei uma garotinha nos braços e agora quase não os sinto. Mas meu fim de semana foi bom, conheci uma garota. Ela me odiou no começo.
— Quebrando a regra de não se apaixonar?
— Acho que sim. Ela é tão... Perfeita.
— E você já contou a ela?
— Não. Ainda não descobri como se conta a alguém que você tem câncer no cérebro.
— Você não deveria esconder algo tão importante dela.
— Eu não deveria ter quebrado a regra. Mas o fiz, não foi?!
— Segundo a TC que você fez, os tumores voltaram. Quero que você faça uma PET antes de marcamos a cirurgia, certo?!
— Qual será a reação dela quando eu contar, Ricardo?
— Choque. Eu fiquei em choque quando fiz o seu diagnóstico.
— Acho que não tenho muito tempo. Antigamente eu não queria ter muito tempo, mas agora... Agora eu tenho um motivo pra viver e sinto que o fim está próximo.
— Não diga isso. Nós faremos o possível e o impossível para que você fique bem.
— Eu... Eu agradeço por isso. Tenho que ir, talvez eu ainda consiga encontrar e Georgia tomando café.
— Vou marcar os exames e ligo para avisar as datas. Não se preocupe, você ficará bem.
— Quero acreditar nisso.
caminhou o mais rapidamente até a padaria. Estava do outro lado da rua quando viu as duas garotas sentadas no mesmo lugar de sempre. Georgia apontou para ele sorrindo, fazendo com que o olhasse, sorrindo também. E tudo começou a ficar escuro. Agora não, pensou ele. Sentiu sua cabeça latejar e não conseguia mais comandar seus movimentos. Cogitou ter ouvido gritar se nome, mas chegou à conclusão de que era somente sua imaginação tentando confortá-lo. Não sentia mais dor. Desmaiou.

Capítulo 7

O cheiro de éter dominava o ambiente. Ele conhecia bem aquele lugar, já estivera ali inúmeras vezes. Podia ver alguns vultos. Ricardo está aqui, concluiu ele.
— Ricardo... — Balbuciou com dificuldade.
— Continue calmo, amigo. Tudo ficará bem.
, onde...
— Ela está aqui. Bela mulher, boa escolha, como sempre. — Disse o amigo, fazendo com ele esboçasse um sorriso.
— Mas agora você vai dormir um pouco. Seu cérebro está cansado. Te vejo mais tarde.
As unhas de estavam todas roídas, mas ela ainda tentava retirar algo dali.
, sussurrou. Não aguentava mais ficar sem notícia alguma, já haviam se passado vinte minutos desde que chegara ali.
?
— Sim.
— Sou o Doutor Ricardo.
— Como ele está, ele vai ficar bem?
— A situação dele é estável.
— E o que isso significa, realmente? Seja sincero.
— Ele não está bem, mas também não está mal.
— O que ele tem? Por que ele caiu daquele jeito?
, é um dos meus melhores amigos. Hoje ele teve uma consulta comigo e falou de você. Não era eu quem deveria lhe contar isso, mas você precisa saber. Ele tem câncer no cérebro. Já havia tirado um tumor, mas voltou.
Ela não sabia se falava algo, se chorava. Sentiu o mundo cair em suas costas, seu coração doía.
— Ele vai morrer. — Sussurrou.
— Não. Ele vai ser tratado e curado. Seja forte, o câncer é uma doença traiçoeira, é difícil e ele precisa de você. Ele te ama, eu pude ver nos olhos deles enquanto ele falava.
— É, eu tenho que ser forte. Eu tenho... Mas e a família dele? Não vão avisar pra ninguém que ele está aqui.
— Ele não fala com os pais e com os irmãos. E a mãe dele está em um hospital psiquiátrico, não aguentou ser deixada pelo pai dele há alguns anos e vive lá desde então.
— Eu sou tudo o que ele tem agora.
— Sim, você é.
— Não me deixe sem notícias, por favor.
— Pode deixar. Por favor, dê seu telefone para ser colocado na ficha dele.
— Está bem. — Respondeu, se dirigindo até a recepção.

Capítulo 8

Várias horas se passaram, sua impaciência crescia. Queria vê-lo, tocá-lo. Georgia dormia em seu colo, a menina tinha chegado da escola fazia algumas horas e fora trazida até ali.
A palavra força tomava conta de sua mente e ela tentava dizer a si mesma que tudo ficaria bem.
, ele acordou. — Disse Ricardo, tirando-a do transe. — Você pode vê-lo.
— Obrigada. — Respondeu sorrindo. — Gegê, vamos ver o ? — Dirigiu-se a irmã, que concordou com um aceno.
As duas foram levadas por Ricardo até um dos quartos do hospital. estava deitado na cama, ligado em alguns aparelhos. Foram recebidas com um belo sorriso dele.
— É bom ver vocês.
— Oi, . Me falaram que você está dodói. — Disse Georgia sonolenta.
— Eu vou ficar bem, anjinho.
tentava não chorar enquanto olhava o rosto apático do homem. Tenho que ser forte, tenho que ser forte, pensou.
— Como se sente, ? — Perguntou Ricardo.
— Já estive pior. — Respondeu rindo. — , eu quero ouvir sua voz.
— Ah, desculpe. Eu... Não sei o que dizer. É horrível te ver nesse estado. — Disse ela num tom baixo enquanto as lágrimas escorriam de seu rosto.
— Será que você pode levar a Georgia pra dar uma volta, Ricardo?
— Claro. Vamos? Vou te levar pra um lugar cheio de brinquedos. — O médico disse para a garotinha, fazendo com que ela estendesse a mão sorrindo.
Os dois ficaram em silêncio por alguns minutos. Talvez estivessem tentando pensar no que dizer em um momento como esse.
— Por que não me contou? — Questionou , quebrando o silêncio.
— Você me amaria menos se soubesse que tenho câncer?
— Não.
— Então não importa se eu não tenha contado.
— Você deveria ter confiado em mim.
— Eu confio. Só não queria que você sofresse.
— Já passei por coisas piores que isso. — Disse sem segurar as lágrimas. — Minha mãe morreu em meus braços, meu padrasto simplesmente atirou nela depois de uma briga. Ela morreu, nos meus braços, e eu aguentei. Você poderia ter me contado, não precisava passar por isso sozinho.
— Viu, você já sofreu o suficiente, não preciso que sofra por mim.
— Você precisa, se eu não fizer, ninguém vai.
— A minha família...
— Eu já sei de tudo, . Você não fala com seu pai e irmãos e sua mãe está num hospital psiquiátrico, eu sou tudo que você tem. Mas não vai dar certo se tiver segredos entre nós.
— Não foi por mal.
— Eu sei. — Respondeu passando a mão em seu cabelo. — E estou aqui por você, agora e sempre.
— Eu te amo, .
— Eu também te amo, .
Passaram mais algum tempo jogando conversa fora. Estava tarde, Georgia teria aula na manhã seguinte e , seu emprego. Mas ela prometeu que voltaria no dia seguinte e assim fez em todos os outros dias que ficou ali.

Capítulo 9

estava impaciente. Suas pernas chacoalhavam sem ritmo enquanto esperava sentado em uma das tantas cadeiras que havia na recepção. Tentava ler uma das revistas de alguns meses atrás que ali estavam, mas a concentração era nula. Hoje teria a resposta de seus exames e saberia o dia de sua cirurgia. havia insistido para vir junto, mas ele achou melhor vir só. Não era certo que ela deixasse a vida de lado pela doença dele. Isso cabia só a ele fazer.
. — Chamou o médico.
Ele se levantou, tentando continuar em pé. Sentira muita tontura nos dias após sua alta e não estava sendo diferente.
— Sente-se, por favor. — Disse Ricardo. — Como se sente?
— Péssimo. Que dia será a cirurgia?
— Os tumores estão um pouco avançados, temos que fazer o mais rápido possível.
— Quando?
— Segunda-feira.
— Está bem, daqui a três dias.
— O pré-operatório será feito amanhã. Você já sabe o procedimento.
— Sim.
— É isso. Não se preocupe, tudo ficará bem.
— Eu espero.
Após andar calmamente até a padaria, encontrou Georgia e o esperando. O céu estava claro, um típico dia de verão. Olhou bem para ele, talvez fosse o último dia em que o veria, assim como elas. Seu coração pesou ao pensar nisso.
— Bom dia, lindas senhoritas.
— Bom dia. — Disseram as duas sorrindo.
— Como foi? — Perguntou .
— Faço a cirurgia segunda, mas vou pro pré-operatório amanhã. — Respondeu com um sorriso triste ao ver a expressão da mulher.
— Então hoje temos que aproveitar, não é?! — Disse segurando o choro. — Eu pensei em irmos ao parque, como da primeira vez, lembra-se? Vai ser tão maravilhoso quanto antes.
— Ótima idéia.
Enquanto caminhavam até o parque, pensou que aquela poderia ser a última vez que faria aquele caminho, que iria até ali. Lembrou-se da outra cirurgia, do quanto ficou feliz ao sabe que estava curado. E agora tudo estava acontecendo novamente, como se ele acordasse de um pesadelo e percebesse que não era realmente um pesadelo, que tudo era real. Suspirou pesadamente, tentando tirar esses pensamentos ruins da cabeça e aproveitar ao máximo o momento.
— Então é isso, eu tenho que arrumar algumas coisas pra levar pro hospital. — Disse quando voltaram do parque.
— Eu te ajudo...
— Não, . Não tem necessidade. Só me dê um abraço. E reze por mim. — Retrucou abrindo os braços para ela.
Eles se abraçaram como se fosse a última vez, mas com a esperança de que ainda houvesse muitos.
— Eu amo vocês.
— Também te amamos. Nos veremos logo. Você não quer mesmo que eu te leve até o hospital? — Perguntou .
— Não, só vá na segunda. Luan virá me buscar. Mas obrigado, de qualquer modo. — Respondeu se afastando.
... — Sussurrou com lágrimas nos olhos.
— Sim?
— Venha até aqui.
Colocou seus braços ao redor do pescoço dele, selando seus lábios de um jeito terno. Apesar de tentar se manter otimista, não conseguia tirar de seu peito a sensação de que ia perdê-lo.
— Eu te amo, companheira de insônia.
— Eu também. Fique bem.
— Eu ficarei.

Capítulo 10

Segunda-feira, 9 horas da manhã. O céu está claro, a temperatura amena. Mas não vê o sol. Ainda bem que eu me despedi na sexta, pensa ele.
está sentada na recepção, desistiu de roer as unhas inexistentes e folheia uma revista insistentemente.
Alguns minutos até o início da cirurgia. Ricardo explicou o procedimento aos dois, mesmo já sabendo. Depois da cirurgia vinham as sessões de radioterapia, que durariam até que tudo ficasse bem novamente.
Vai dar tudo certo, era o que todos pensavam. Talvez se repetissem isso o suficiente tudo ficaria bem de verdade.
Início da cirurgia. sentia seu coração bater descompasadamente, mesmo estando anestesiado. Queria beijá-la mais uma vez, aqueles lábios doces e macios. Ouvia o barulho insistente do monitor cardíaco, estava vivo então. Não conseguia pensar direito, talvez pelo motivo de ser uma cirurgia no cérebro, mas não tinha certeza.
Metade da cirurgia. aninhava uma Georgia sonolenta em seus braços. Olhar para a face inocente da irmã tirava um pouco da tristeza e do medo que insistiam em torturá-la. Lembrou-se de sua mãe, daquela noite desgraçada, mas colocou em sua cabeça que não ia chorar. E essas lágrimas sairiam felizes quando recebesse a notícia de que estava tudo bem.
Fim da cirurgia. Horas já haviam se passado. viu um Ricardo sorridente atravessar a recepção até onde estava.
— E aí? — Perguntou ansiosamente.
— Deu tudo certo, a maior parte dos tumores foi retirada. E o que ficou será retirado com a radioterapia. — Respondeu sorrindo.
o abraçou, queria gritar pular, mas o cartaz com a enfermeira fazendo sinal para que houvesse silêncio realmente a silenciou.
ficaria bem, isso era tudo que queria ouvir desde quando descobriu o mal que o afligia.
— Quando eu poderei vê-lo?
— Se você não demorar muito, eu posso deixar que você o veja agora.
— Está bem.
Foram até o quarto e encontraram um acordado e sorridente.
— Pensei que você estaria dormindo. — Disse a garota.
— Eu deveria estar, mas esses sedativos não fazem muito efeito em mim. E eu queria te ver.
— Como se sente?
— Como alguém que acabou de ter a cabeça aberta. — Respondeu rindo.
— É bom saber que seu humor não foi alterado.
, casa comigo. — Disse repentinamente.
— Isso foi uma pergunta?
— Não.
— Eu deduzi. E acho que essa é a afirmativa mais perfeita que eu já ouvi em minha vida, depois de ‘Eu te amo’.
— Eu te amo.
— Eu também te amo. E aceito casar com você, mesmo aquela não tendo sido uma pergunta.
— Eu não aceitaria não como resposta, de qualquer jeito.
— E eu não responderia não.
Segunda-feira. 9 horas da noite. O céu está escuro, a temperatura amena. E não há sol para ver. Mas eu verei, assim que sair daqui, pensa ele. sorri sem motivo no outro canto da cidade, ele ficará bem, nós ficaremos bem. E a imagem de sua mãe vem até sua cabeça. Ela ficaria feliz em ver que ela havia conseguido continuar. Estaria orgulhosa e feliz. Como se sentia naquele momento.


Fim


n/a.²:: Bom, acabou. Era pequena mesmo e eu adorei postar aqui no site. Obrigada às pessoas que leram, e obrigada as de sempre, Carol, Thabata, Bia, Thatis e claro, à minha beta, Babi.
Espero que tenham gostado, Letícia.

n/b.: Obrigada, Letícia! Nem acredito que acabou! Se você amou postar, eu amei betar. Já sabe o que eu acho de sua fiction... Não preciso dizer mais nada!

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