“Bull, bull, bull...”

Coloquei a bolacha na boca, sentido o delicioso gosto do chocolate me relaxando e acalmando meu estômago. Ouvi uma risada e abri os olhos, encarando , que se contorcia de tanto rir da minha cara de prazer.
- O quê? – perguntei, com a boca cheia.
- Você é mesmo uma chocólatra, Lillard. – ela balançou a cabeça negativamente, limpando uma lágrima. Exagerada.
- Onde está o Sr. O’Collan? – ouvi perguntar, em um tom meio preocupado.
- Quem realmente se importa? – deu de ombros, revirando os olhos.
- Acho que na cozinha, por quê? – perguntei, engolindo a bolacha.
- Ele não vai ficar bravo por ainda não termos feito o que ele pediu? – olhei-o nos olhos e pude notar sua preocupação. Com .
Sr. O’Collan é o atual padrasto de , com seus 40 e poucos anos, meio careca e com os fios de cabelo existentes já meio grisalhos. Sem contar a pequena barriga de Chopp. Infelizmente, ele é folgado e faz de empregada. Mesmo estando na minha casa ele nos fazia de empregados e, quando não obedecia, apanhava. Onde estava a mãe dela? Gosto de pensar que em um lugar bonito, onde ela não possa mais sofrer.
Tia Frizz morreu havia um tempo, de insuficiência renal. Um problema tão bobo, mas que não tratado a levou embora. Levou a única que realmente podia tomar conta de e a proteger. Como não tinha mais nenhum parente próximo, ela ficou com o padrasto. Minha mãe lutava na justiça para conseguir a guarda dela, mas seu padrasto tinha um advogado realmente excelente.
- FRIZZ! – ouvimos um estrondoso berro que incrivelmente fez minha janela tremer, vindo da cozinha. Percebi que engoliu em seco e a olhou receoso.
- Eu vou. – murmurei, quase não podendo ouvir minha própria voz.
- Você está louca, ? Ele me chamou, eu vou! – ela me olhou em pânico.
- ! Ele está na minha casa. Na minha casa ele não me toca, porque se não ele sabe que vai perder sua guarda. – disse pacientemente, com um quê de ódio em minha voz.
tentou protestar, lancei apenas um olhar carregado a . Ele entendeu o recado e a segurou, me deixando ir.
- Onde está ela? – ele perguntou arrogante e senti meu corpo arrepiar de repugnância.
A voz dele me irritava e olhar para sua cara de barba mal feita e sua cicatriz de uma briga com Tia Frizz me trazia péssimas lembranças, fazendo-me odiá-lo apenas mais.
- Ocupada. Diga o que o senhor quer, porque na minha casa, eu mando. – disse educada, porém secamente.
- Ela não fez o que eu pedi. – ele respondeu diretamente. – Onde ela está?
- Eu já disse, ocupada. E se o senhor quer assistir filmes pornográficos, faça isso na sua casa, aqui não. – respondi mandona e virei de costas.
- Ora, sua... – ele levantou a mão e eu me virei, ficando de frente a ele novamente, encarando-o nos olhos, o que já o fez recuar um pouco.
- Sua o quê? O que você vai fazer? Me agredir em minha própria casa? Eu não tenho medo de você, Sr. O’Collan. Aproveite enquanto ainda não perdi a educação.
Ele apenas cerrou os dentes e bufou, indo até a geladeira pegar qualquer coisa. Cerveja, provavelmente. Uma voz dentro de mim gritou algo como “que ele morra de cirrose” e eu apenas dei um pequeno sorriso, concordando.
- O que você disse? – me perguntou, meio assustado pelo tom de voz que me ouviu usar.
- Digamos que está tudo bem por hora e que ele não irá nos encher tão cedo – sorri.
Peguei mais uma bolacha e voltei a mastigar suavemente, o que fez dar um pequeno sorriso, dando play no nosso filme da tarde.
Passamos a tarde assistindo ao filme que tinha alugado, que incrivelmente era um romance – o que realmente me surpreendeu, considerando que ele sempre diz que é um não romântico -, muito bom, por sinal. Sr. O’Collan realmente não deu mais sinal de vida, mas pude saber que ele estava vivo pelos barulhos – ou arrotos, como preferir – vindos da sala. Após o filme, ficamos comendo, conversando e ouvindo música. Minha mãe havia saído para trabalhar e só voltava de noite. Sr. O’Collan estava em casa pois, segundo ele, tinha medo de que sequestrássemos - então seu advogado entrou na justiça com um pedido desses e, incrivelmente, ganhou -, o que não é exatamente um medo bobo, já que eu já discuti essa louca possibilidade com minha mãe, mas mamãe disse que poderia ser pior para quando ela voltasse para casa.
Meu pai? Meu pai eu não sabia quem era, assim como nunca soube quem era seu pai e ficará eternamente com essa dúvida, já que a única que poderia saber, ou seja, sua mãe, havia levado as respostas para... O túmulo, literalmente.

“Bull of the black face...”

- Você está ouvindo isso? – perguntou em um tom sério de repente, o que fez parar de rir de qualquer bobeira que eu havia dito anteriormente.
- Ouvindo o quê, ? Você está pirando de vez? – ela deu um pequeno riso nervoso. tinha uma audição muito aguçada, então sabíamos que qualquer coisa que ele ouvisse, era real.
Ficamos em silêncio por alguns instantes, tentando ouvir também. deu pausa na música e então pudemos ouvir os barulhos da televisão da sala ligada e da minha geladeira sendo aberta.
- Uma... Música. Canção de ninar. Uma voz de... Criança? – ele fez uma careta e eu procurei o som.
- Eu tô... – sussurrou o que saiu quase como um suspiro.

“Get this kid who is afraid of frowns…”

A voz de uma criança sussurrava levemente uma... Velha canção de ninar, como se para si mesma. Levantei-me e segui o som, indo parar na sala. A televisão ligada em um canal qualquer e um lençol jogado folgadamente por cima do sofá, com marcas enrugadas no meio, indicando que alguém havia sentado ali. A música havia parado. e apareceram atrás de mim. A música não vinha da tevê, disso eu sabia. Fui até a estante, pegando o controle. A tevê começou a mudar de canal e eu mal havia tocado no controle. Tentei controlar a televisão pelo objeto em minhas mãos, mas não funcionava.
Dei um olhar desesperado para e coloquei as duas mãos pra cima, apontando para o controle, dizendo que não era eu. Olhamos para a sala e vi a parte enrugada do sofá se mexer, como se alguém estivesse sentado ali e endireitando-se.
Ouvi exclamar, começando a entrar em pânico. Prendi a respiração, indo até perto do sofá. me chamou, mas o ignorei. Contudo, quando cheguei perto o suficiente, senti um vento passar pelas minhas pernas.
- O que vocês estão fazendo? – Sr. O’Collan apareceu na porta, perguntando estupidamente, enquanto dava um gole em sua cerveja. O sol que entrava pela janela da sala fazia a cor da cerveja ficar em um tom de amarelo dourado maravilhoso e criava estranhas sombras se mexendo, por causa da cortina.
Abri a boca para responder, quando percebi uma sombra mais densa se mexer perto dele. Foquei minha visão da sombra e percebi ser a sombra de uma garotinha de uns seis anos, com um vestido comprido e um longo cabelo preso. Apenas a sombra. Ouvi arfar; eles também viram. Senti minha perna tremer e minha cor sumir.
- Mas o que... – Sr. O’Collan começou a dizer, quando a sombra começou a andar em sua direção. A sombra agarrou-lhe e começou a puxá-lo para dentro da cozinha. Gritos por parte de Sr. O’Collan ecoavam por toda a sala.
Eu estava atordoada, minhas mãos tremiam... Minhas pernas tremiam! Senti meu estômago dar várias voltas e eu perder todas as forças, como se fosse desmaiar. Eu estava estática olhando para a porta da cozinha, onde já não era mais possível ver Sr. O’Collan. Sangue voava por toda a cozinha, batendo até mesmo na porta. Mas eu estava imóvel, totalmente fora de mim. Tentei me mexer; foi impossível. Eu podia ouvir me chamar, mas... Uma gota de sangue que bateu na porta respingou em minha blusa branca, fazendo um grande círculo vermelho. De repente, senti-me voltar a meu corpo.
- ! – me pegou pelo braço, me puxando para dentro.
Corremos até o quarto de minha mãe, que era o último e mais longe da cozinha possível. Estávamos presos dentro de casa. xingou qualquer coisa e fechou a porta do quatro, a trancando. estava quase chorando. Puxei-a para cima da cama de minha mãe, que ficava confortavelmente encostada na parede, do lado oposto da porta. A fiz sentar na cama, encostada na parede, abraçada a mim, com o rosto escondido em meus braços. sentou-se rapidamente ao meu lado.
- O que foi aquilo? , que porra foi aquela? – falou em pânico.

“No, no, no...”

- Eu não sei, eu não sei! Você... Você a viu? – Eu disse tentando processar os fatos.
- Sim... Foi assustador. Aquela música...
Parte de mim ainda estava em pânico, enquanto a outra parte comemorava por ser o Sr. O’Collan na cozinha.
- Sal. Água benta. Crucifixo. Qualquer coisa contra espíritos – disse em um soluço e olhei em volta. Onde eu iria achar qualquer um dos materiais citados?
- Comecem a rezar. Alto. – ordenei e eles o fizeram sem questionar. Comecei a rezar também, procurando algum crucifixo pelo quarto de minha mãe, sem chegar muito perto da porta.
Eu sentia o medo em mim, medo de a qualquer momento aquela sombra de uma garotinha passar pela nossa porta e fazer o mesmo que fez com o Sr. O’Collan. Eu procurava freneticamente por algum crucifixo, mas não achei. Vi que começou a quase convulsionar. Corri para seu lado, apesar de tudo, ela continuava rezando.
A olhei de perto; ela não estava convulsionando, apesar de seus olhos estarem virando tensamente. Ela estava... Sendo possuída?
-... Bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus. Santa Maria, mãe de Deus... – continuava rezando, porém sua voz estava mudando de tom: ficava grossa e estranha e, então, voltava. Entrei mais em pânico, se possível.

“Please do not get him...”

Coloquei minhas duas mãos no peito de e comecei a rezar mais alto e forte, como se expulsasse o que quer que estivesse tentando apossá-la. Olhei para , num pedido de ajuda, mas ele olhava totalmente em choque.
- ! ! – eu gritava, mas era inútil. – ! Procure um crucifixo, porra! Primeira gaveta, a revire, rápido! – eu disse no meio da reza. Meu coração estava apertado de ver daquela maneira e não conseguir fazer nada. Ela estava lutando fortemente e parecia sentir muita dor. Ela se debatia, já deitada na cama, enquanto eu continuava com as mãos em seu peito, a segurando e rezando. – Saia do corpo da minha amiga, porra! Volte pro inferno, de onde você veio! – eu já estava chorando, não aguentando mais segurá-la. ainda estava revirando o quarto.
- ! Achei! – ele berrou e trouxe, também rezando, um crucifixo. Peguei o objeto com uma mão e coloquei no peito de . Ela começou a gritar, como se aquilo a queimasse ou qualquer coisa assim, e se contorcia.
colocou as mãos nela também, sem parar de rezar, me ajudando a segurá-la. Eu estava chorando muito e, quando percebi, estava gritando junto com , absorvendo sua dor. xingava o espírito que estava fazendo aquilo com ela, na pausa das rezas e o mandava embora. Eu apenas urrava, enquanto segurava o crucifixo que, como um imã de polos iguais contra o peito de , tentava sair dali. O crucifixo começou a esquentar, mas eu precisava ajudar . Nunca consegui a salvar de seu padrasto, pelo menos disso eu precisava ajudá-la.
ouviu um barulho vindo da cozinha e começou a gritar.
- Eu vou atrás dessa filha da puta que tá torturando a minha amiga! Eu vou acabar com ela! Vou fazê-la voltar para a porra do inferno de onde veio, e sofrer em triplo o que tá fazendo a sofrer! – ele já andava para fora do quarto.
- , não! Por favor – eu comecei a chorar mais, suplicando. – Não vá! !
“He is a beautiful child and...”
Era tarde. Ele havia ido. Eu só podia ouvir os gritos de à minha frente e meus soluços. Minha mão queimava, mas eu não sentia mais dor. parou de gritar por uns segundos, para poder tomar um pouco de fôlego, ainda se debatendo intensamente. Quando ela conseguia abrir os olhos, me olhava suplicante. Dei um berro. Eu não aguentava mais! Por que aquela porra não saia dali? Por que isso tava acontecendo com a gente?
Um grito. O grito de . Um longo e dolorido grito e então silêncio. Apenas os gritos de novamente. ...
- Porra! O que você quer de mim? O que você quer de nós?! O que nós fizemos? VAI EMBORA, NOS DEIXE EM PAZ! – gritei tanto que senti minha garganta arder. Onde estavam as merdas dos vizinhos quando precisávamos?
finalmente parou de gritar, desmaiando. Coloquei a mão em sua boca; ela ainda respirava. Dei um suspiro no meio de um soluço, limpando as lágrimas e tentando enxergar. Fiquei observando e sentindo minhas forças indo embora. Talvez a garotinha tivesse ido embora também, talvez... Talvez.

“He is crying, poor little one...”

Epílogo

Diário do Povo


“Nesta tarde de domingo (13), foram encontrados dois corpos em uma casa. Na casa havia quatro pessoas. Segundo a mãe da acusada, habitavam a casa na tarde de ontem Michael O’Collan, Frizz – enteada de O’Collan -, Meyer e Lillard. Os corpos encontrados foram de Michael e , segundo a polícia, , a única sobrevivente, teria usado de instrumentos poderosos (ainda não encontrados) para matar ambos, pois seus corpos estavam quase irreconhecíveis. A garota acusada possuía uma mancha de sangue de O’Collan em sua camisa e segurava um crucifixo que, também segundo a polícia, foi colocado em brasa e então prensado fortemente contra o peito da segunda garota, Frizz, que veio a morrer no Hospital Central. Lillard, acusada de três homicídios, se encontra ainda desacordada no Hospital.”

Fim



N/a: Wow, depois de muito tempo sem fic no site, eu volto com uma short meio de terror… Bom, na verdade, essa história é baseada em um sonho meu. Agora vocês se perguntam se eu sonhei com a minha amiga sendo possuída... E, bem... É. Bizarro, eu sei, mas meus pesadelos sempre são tensos (e na maioria das vezes eu escrevo histórias sobre eles!). No original, não tinha a musiquinha no meio, porque eu nem lembro o que a menininha cantava, mas eu precisava de um nome pra fic, e quando eu arrumei um nome, eu achei que ficaria legal se tivesse algo assim... Enfim, deu no que deu. Queria agradecer à Carol, Juh, Mari e Caue, crianças da minha vida :P E a Boo também, que aceitou betar a fic e que foi uma das primeiras que leu também *-* Enfim, espero que vocês tenham gostado! <3
Nota da Beta: Eu adorei essa short, mesmo *-* Sim, sou meio louca e adorei mesmo que todo mundo morra e... Enfim UIHFAISUHFSIUDHFIADS Qualquer erro que vocês encontrarem, me avisem no email, ok? Obrigada! Xx


comments powered by Disqus