Fic by: Fê Rodrigues | Beta:



-Você está fazendo tudo errado, seu burro!
-E como é que você sabe?
-Plutão é vermelho, não verde.
-E quem disse? Não faz diferença nenhuma.
-É claro que faz, seu babaca. Verde é Marte.
bufou irritado e revirou os olhos.
-De onde é que você tirou essas coisas? Tanto faz as cores, o importante é pintar.
-Se você prestasse atenção no que eu falo, saberia que eu já pintei Marte de verde – peguei a meia bola de isopor recém pintada e a chacoalhei na frente dele, arqueando as sobrancelhas. deu um sorriso sem graça e molhou o pincel na água, trocando o pote de tinta verde pelo vermelho. – Babaca – eu ri.
-Se você não tagarelasse tanto, eu prestaria atenção – disse em tom de reclamação, mas havia um sorriso humorado no canto de sua boca. Eu revirei os olhos.
-Quantos planetas faltam?
-Hm, esse e mais um.
-Termine de pintar, eu vou marcar a cartolina.
Levantei da cadeira e fui lavar as mãos na pia. Enxuguei-as com um pano de prato, mas meus dedos estavam tão sujos que alguma coisa acabou ficando nele. Droga, mamãe ficaria uma fera. Voltei ao meu lugar e peguei a cartolina preta. Eu já havia traçado as órbitas com grafite, então só as contornei com uma caneta gel prateada com extremo cuidado. Nosso trabalho seria o mais lindo. Se o babaca do não fizesse o favor de estragá-lo, é claro.
Comecei colando o sol. tinha cortado todas as bolas de isopor ao meio, porque assim seria mais fácil de colar, e também porque elas eram grandes. Depois, colei Mercúrio, e assim por diante.
-Você já fez muita coisa, deixa eu fazer – veio com as mãos imundas para pegar a cartolina e eu o impedi com um grito.
-NÃO! , não coloque essas mãos cheias de tinta no trabalho! Vai lavá-las na pia, vai, seu porquinho.
-Foi mal.
-E lave direito.
-Nossa, você tá uma grossa hoje, .
-Você que é um descuidado.
-Pronto, já lavei. Com o que enxugo?
-Com sua língua – comecei a rir. Ele as passou nas minhas costas, molhando minha blusa branquinha. Senti minha boca se abrir em protesto.
-Ai, eu não acredito, seu imbecil – deu a volta na mesa com as bochechas vermelhas de tanto rir. – Isso vai ter troco.
-To morrendo de medo. Me passa logo o trabalho, anda.
Eu suspirei e virei a cartolina na mesa com cuidado. começou a colar os nomes dos planetas logo abaixo deles e a escrever o pequeno resumo que tínhamos feito sobre cada um. Para não dar brigas, resolvemos revezar.
Eram quatro horas da tarde quando terminamos o trabalho. Disse a que o guardaria aqui em casa, pois ele era desastrado demais e acabaria o estragando. Ele protestou por um segundo, mas acabou concordando comigo.
-Tem tinta no seu cabelo, seu babaca. – avisei assim que chegamos à calçada.
-Onde? – ele percorreu os dedos pelos fios pretos, olhando para cima como se pudesse enxergá-los.
-Aqui, ó – levantei o pote de tinta azul que escondia atrás do corpo acima de sua cabeça e deixei o conteúdo cair. Ele arregalou os olhos e me olhou furioso enquanto eu ria vendo a tinta escorrer pelo seu rosto. Saí correndo para o outro lado da rua. veio atrás de mim, atirando o máximo de tinta que conseguia.
-Eu vou te pegar, sua idiota!
E nós gargalhamos, sujos, o resto da tarde.

~*~


Uma semana depois, eu estava de pé junto ao time de futebol mais derrotado de toda a história do Campeonato Interclasse. Eram duas horas da tarde e o campo do colégio estava lotada de pais e alunos.
-Eu duvido que algum de vocês faça um gol.
-Pois eu vou fazer – disse com uma segurança que me espantou.
-Nós vamos ganhar o campeonato – deu aquele sorriso colgate que só ele sabia dar. Suspirei.
-Vocês não ganharam nenhum jogo até agora, como querem ganhar o campeonato?
-Ela está certa... – disse com desânimo, passando os dedos pelos cabelos da nuca. – Olha só o tamanho deles, são o dobro da gente!
-Deixa de ser mulherzinha, deu um tapa na cabeça dele – Nós podemos não ganhar o campeonato, mas vamos ganhar esse jogo.
Eu olhei o time adversário, no outro lado do campo. Os meninos eram grandes e fortes e pareciam ser mais velhos. Tinham ganhado a maioria dos jogos. E, na minha frente, eu tinha... bem, eu tinha um magrelo que cutucava o nariz, um gordinho que não conseguia correr, três patetas que tropeçavam na bola, alguns retardados que não sabiam o que estavam fazendo lá e , e . Não eram grandes coisas. É, eles iriam perder.
-Bem, boa sorte. Vocês vão precisar.
O treinador os chamou para o aquecimento. Comecei a andar até a arquibancada.
-? – ouvi chamar e me virei.
-O que foi, bobão?
-Duvida de que eu faço um gol?
Eu ri.
-É claro que duvido.
-Bem... – ele curvou os lábios em um meio sorriso – e se eu fizer?
-Bom para você, oras!
olhou para baixo por um segundo, coçando a cabeça em seguida. Ele parecia constrangido.
-Se eu fizer um gol, você me da um beijo?
Fui pega de surpresa. Senti minhas bochechas esquentarem imediatamente. Uma risada nervosa escapou de minha garganta.
-Nem sonhando, seu babaca.
Saí correndo para a arquibancada. já estava no campo quando me sentei ao lado da aluna nova, que estava meio perdida. Ele aquecia com o . Fiquei o observando por algum tempo, me perguntando o que ele teria na cabeça para me dizer aquilo.

O jogo foi bastante previsível. Os meninos estavam perdendo feio de quatro a zero. às vezes ficava nervoso e ia tirar satisfação com o bandeirinha, que ria do jeito dele, assim como nós. era mais durão, ele apontava o dedo na cara dos próprios adversários e saia correndo atrás quando um deles tirava sarro. Enquanto isso, saia correndo toda vez que o outro time olhava para ele. Ele era desengonçado e medroso, e eu não me surpreenderia se ele fizesse um gol contra apenas para não correr o risco de ter o dinheiro do lanche roubado. Mas, nos últimos minutos do segundo tempo, as coisas mudaram. conseguiu interceptar um passe e cruzou o campo com toda a velocidade. Era como se não tivesse ninguém à sua frente. Corria com força, desejo e um sorriso confiante e louco nos lábios. A torcida vibrava mais a cada vez que ele se aproximada do gol. A causa era perdida, mas e daí? Eu sabia o quanto isso significava para ele, para eles, e se era importante para , era importante para mim. Eu me levantei. Senti uma energia estranha dentro de mim. Comecei a gritar o nome dele junto ao resto das pessoas e, de repente, gol!
saiu correndo pelo gramado com os braços abertos e um sorriso triunfante. Eu pulava de felicidade. Os meninos correram para o abraço e o bandeirinha apitou, indicando o fim do jogo. Eles tinham perdido, mas o que importava? Era o primeiro gol do time deles, e a primeira vez a gente nunca esquece.
Os olhos dele encontraram os meus em meio à multidão. Eu o aplaudi. Ele esticou um dos braços e apontou o indicador para mim. Seus lábios se moveram em um pra você, babaca. Novamente, senti meu rosto esquentar.
-Quem é aquele, ? – a garota nova perguntou para mim. Eu a olhei e, reprimindo um sorriso, respondi.
-Aquele é um idiota.

~*~


-Eu estou entediado. – disse ao meu lado, deitado no chão da sala.
-Eu também. O que vamos fazer?
-Não sei, não consigo pensar em nada.
-Que novidade – debochei. Ele me deu um soco leve nas costelas. – Quer jogar vídeo game?
-Não, estou enjoado.
-Andar de bicicleta?
-Não.
-Assistir televisão?
Ele fez uma careta. Bufei.
-Ai, , como você é difícil.
-Já sei o que eu quero.
-O quê?
-Eu quero um beijo.
Eu virei meu rosto para olhá-lo. Ele me encarava com um misto de humor e aflição. Dei um meio sorriso enquanto revirava os olhos, voltando o rosto para frente.
-Pense em uma coisa que você possa conseguir.
Ele riu baixo.
-Ok, ok... que tal uma corrida até a sorveteria? – eu franzi o cenho.
-E que graça tem isso?
-Quem perder, paga.
-Não vou gastar minha mesada com você, seu bobão.
levantou e calçou os tênis de qualquer jeito.
-Então me vença, boboca.
E ele abriu a porta e saiu correndo. Levantei no segundo seguinte e percebi que tinha vindo até a casa dele de chinelos. Droga, era horrível correr de chinelos. Sem muita opção e tempo para pensar, saí em disparada atrás dele totalmente descalça.
Eu estava a centímetros dele, mas o babaca do era rápido como uma bala. A sorveteria ficava a quatro quarteirões e nós já estávamos no final do segundo. Eu via os cabelos despenteados e espetados dele balançando com o vento e tinha certeza de que ele usava aquele sorriso de louco no rosto. Ele sempre ficava com cara de louco quando corria, era engraçado. Meus pés estavam doloridos, tamanha a força com que batiam no chão frio e esburacado. Algumas pedrinhas pontiagudas dificultaram as coisas para mim. Quando percebi, já havia chegado.
-Você paga, perdedora! Vou escolher o mais caro que tiver – ele pegou o cardápio que estava em cima de uma das mesas, passando os olhos por ele.
-Pago nada, não valeu! – apoiei as mãos nos joelhos, ofegando.
-Claro que valeu, eu cheguei primeiro. Vou querer um sundae duplo de chocolate com chantilly e calda de cereja.
Eu me sentei na cadeira ainda sentindo meu peito arfar.
-Não valeu, você saiu primeiro – fiz bico. Apoiei um dos meus pés no joelho, avaliando a sola dele. Estava vermelha e cheia de buraquinhos.
-Você veio descalça? – se sentou ao meu lado.
-Eu fui pra sua casa de chinelo. Não ia correr de chinelo.
-Por que não pegou um tênis meu, sua burrinha?
-Porque eu ia perder tempo, seu burrão! – disse como se fosse óbvio.
-Parece feio – ele analisava.
-Só está marcado.
-Está doendo?
-Bastante – torci um canto da boca em sinal de dor. passou os dedos cuidadosamente em meu pé, limpando a sujeira.
-Daqui a pouco passa. Me diz o sabor do seu sorvete que eu pego.
Parei pra pensar. Minha testa se franziu quando percebi que havíamos esquecido o mais importante.
-Você trouxe dinheiro?
-Não, já sabia que você iria perder.
-Ai, seu babaca, eu também não trouxe!
Ele arregalou os olhos.
-Então eu não vou tomar meu sundae duplo de graça? – disparou com incredulidade. Achei aquilo divertido.
-Se deu mal, bobão.
-Você fez tudo de caso pensado, tenho certeza. – disse emburrado, sentando-se novamente. Eu rolei os olhos. Ficamos em silêncio por um momento. – Vamos embora, então.
-Pode esperar mais um pouco? Meu pé está doendo. – pedi enquanto o massageava. Ele chegou sua cadeira mais perto da minha e tirou seus tênis. Eu estranhei. pegou minha perna com cuidado e a colocou em cima das suas. Tirou um dos pares do chão e, delicadamente, o calçou em meu pé. Eu tive vontade impedi-lo, mas não consegui, e apenas fiquei o olhando com um pequeno sorriso nos lábios. Ele trocou de pé. Senti alguma coisa crescer dentro de mim, e isso fez cócegas no meu coração. era meu melhor amigo em todo o mundo e eu o adorava. Ele era um babaca, mas era meu babaca.
-Pronto, isso vai ajudar – ele me sorriu de um jeito fofo.
-Desculpe não poder comprar seu sorvete. Prometo que te dou um depois.
-Não tem problema, eu nem queria tanto assim.
Eu sorri. Sabia que ele estava mentindo, já que era um eterno esfomeado. Ele me sorriu de volta e me ajudou a levantar. Comecei a rir quando dei o primeiro passo e vi que tinha muito tênis para pouco pé. colocou as mãos nos bolsos do jeans surrado e nós voltamos vagarosamente para casa.
-Posso trocar meu sorvete por um beijo?
-Nem pensar, seu babaca.

~*~


Eu estava lendo um livro em um banco mais afastado na escola. Na verdade, eu estava matando aula de educação física, nossa última do dia. Conseguia ouvir um barulho de pessoas falando ao mesmo tempo, mas ele estava distante o suficiente para não atrapalhar minha concentração. Infelizmente, não.
-! ! Graças a Deus eu te encontrei! – ele apareceu exaltado e com a respiração falha. Fiquei assustada.
-Nossa, o que aconteceu?
-Temumabrigalanaquadra – suas palavras saíram emboladas e de uma só vez, e eu não entendi nada.
-O quê?
-Tem uma briga lá na quadra! – ele apontou a direção com o dedo, arqueando as sobrancelhas.
-Ai, menino, eu lá quero saber de briga – respirei fundo – quero mais é que se matem, para deixarem de ser babacas.
balançou negativamente a cabeça, ficando ainda mais nervoso.
-O está no meio!
Congelei. Meus olhos se arregalaram e senti meu queixo cair. Meu coração disparou. Joguei o livro de qualquer jeito no banco, me levantei, e nós corremos.
Havia uma roda em volta dos dois, mas não tinha muita gente. Vi levar um soco e se desequilibrar, levando as duas mãos ao rosto. Quando ele se virou para encarar o adversário, eu estremeci. Seus olhos transbordavam ódio de um jeito que eu nunca tinha visto. Ele correu para revidar, mas o outro garoto segurou seu punho e o jogou no chão. Não consegui ver o rosto dele, mas ele era forte, bem forte. Aquelas costas não me eram estranhas. Ele fez menção em se sentar em cima de , com certeza para socá-lo, mas foi mais rápido e o chutou com força nas partes íntimas. O garoto soltou um grito e caiu de joelhos no chão, se contorcendo. Eu aproveitei o momento para correr até , que já estava de pé e se preparava para chutá-lo novamente, e o segurar pelos braços.
-Você perdeu a noção das coisas, seu idiota? – gritei. Ele me olhou assustado.
-Me solte, , eu vou acabar com esse infeliz – ele foi para cima do menino, que gemia no chão, mas eu entrei na sua frente.
-Já chega, , você não vai acabar com ninguém!
-Não vai mesmo. – uma voz masculina e grossa soou atrás da gente. Me virei. O diretor estava parado a poucos centímetros e olhava de para o outro menino com seriedade. As pessoas desfizeram a roda rapidinho. – Eu quero o senhor na minha sala agora – ele apontou para e se ajoelhou ao lado do menino, fazendo sinal para um dos faxineiros se aproximar. Foi então que vi seu rosto. Rony Blake. Perigo, para os íntimos. Era o garoto mais valentão do colégio e nem mesmo os professores gostavam dele. Sua ficha criminal era extensa e, não por coincidência, era o arqui-inimigo de . – Ajude-o a andar até a enfermaria, por favor. – olhou novamente para e saiu apressado.
-Por que você fez isso, seu babaca? – o repreendi. Ele me olhou sem uma expressão definida e suspirou, esbarrando fortemente em meu ombro ao sair de perto de mim. Fiquei o olhando se afastar, confusa, pensando o que diabos tinha sido aquilo.

Longos minutos se passaram desde que entrara na diretoria. Eu estava sentada no banco de madeira encostado à parede dela, abraçando minhas pernas. Não conseguia escutar nada além das batidas apreensivas de meu coração. Eu queria estar ao lado dele e saber o que tinha acontecido. era briguento, mas não saia chutando as partes íntimas das pessoas sem ter um motivo muito bom, disso eu tinha total certeza. E, conhecendo Perigo, eu sabia quem tinha começado.
-, até que enfim, eu estava super preocupada! O que aconteceu? – disparei assim que o vi sair pela porta. Ele tinha uma expressão séria e passou apressado por mim sem ao menos me olhar. Coloquei minha mochila no ombro e peguei a dele (ele a havia esquecido na quadra), correndo para alcançá-lo. – , da pra falar comigo, pelo amor de Deus? – ele me ignorou. – ! – segurei com força em seu braço, puxando-o sem delicadeza.
-Da o fora, , me deixa em paz! Sua idiota – as palavras saíram ríspidas e eu levei um pequeno susto com isso. Ele me olhava com frieza e uma pontada atravessou meu peito. Um nó se formou em minha garganta.
-O que eu te fiz?
-Nada, e esse é o problema! Até quando eu te defendo, eu não passo de um babaca pra você. Eu sou só um babaca pra você.
-O quê? Não! – comecei a me desesperar – Você não é um babaca, você é meu melhor amigo, . Eu adoro você.
A expressão dele de repente se suavizou e nós ficamos em silêncio por alguns segundos. Senti minhas bochechas esquentarem. Era a primeira vez que eu dizia isso.
-Me desculpe. – sussurrou. Ele parecia arrependido. Eu larguei as mochilas e o abracei. – Eu também adoro você.
-O que aconteceu? – afastei o rosto para olhá-lo. Ele tinha um corte pequeno no canto da boca.
-Aquele filho da mãe passou dos limites.
-Ele te ofendeu?
-Não. – franzi o cenho – Ele te ofendeu.
-O quê?
-Ele te chamou de vadiazinha e eu perdi a cabeça. Não admito que ninguém fale essas coisas de você. – ele disse meio envergonhado, desviando o olhar. Reprimi um sorriso.
-Ah, , você não deveria ter brigado com aquele idiota daquele jeito.
-Eu sei, mas meu sangue subiu e eu não consegui não dar um soco nas fuças dele – fechou uma das mãos em punho, nocauteando o ar. Achei graça.
-Ele não vale a pena. Promete que não vai mais perder a cabeça?
-É só ele não falar de você.
Dessa vez eu sorri abertamente. deu um sorriso de lado e se abaixou para pegar sua mochila. Fiz o mesmo.
-Sério, eu não quero mais te ver assim, machucado.
-Certamente não verá pelos próximos três dias.
-Como assim?
-Fui suspenso.
Suspirei.
-Bem feito. – ele me olhou atravessado e eu comecei a rir. Nós andamos em direção à saída e não pude deixar de completar minha frase com meu xingamento favorito – Seu babaca.

~*~


Saí correndo escada acima assim que mamãe me deixou na escola. A mochila pesava em minhas costas, fazendo meus ombros doerem, mas eu não me importava. Apenas corria alegremente pelos corredores como se fosse a única pessoa ali. Quase tropecei nos meus próprios pés ao chegar à sala. estava de pé chutando uma bolinha de papel com .
-Feliz aniversário, seu bobão! – eu o abracei apertado, quase o sufocando. Ele riu, me abraçando de volta.
-Obrigado, bobona.
-Oi, .
-Oi nada, você chutou minha bola longe!
Rolei os olhos. Ele era outro babaca. Procurei pela mochila de e me sentei na carteira logo atrás. Os dois logo se juntaram a mim.
-Vai à minha festa hoje à noite, né? – perguntou com os olhos brilhando.
-É claro que vou.
-Vai ter bastante comida, não é mesmo? – também tinha os olhos brilhando.
-Minha mãe comprou salgadinho e fez um monte de doces.
-Eu estarei lá!
-Meu Deus, vocês são dois mortos de fome. – ri. O professor entrou na sala.
-Comprou o meu presente, sua bobona? – sussurrou.
-Quem disse que eu vou te dar presente? – disse fingindo indiferença. Ele me olhou com os olhos semicerrados e sorriu de lado.
-Eu sei que você vai.
O professor nos deu bom dia e começou a falar. A sala ficou em silêncio por quase uma hora. Eu já não estava mais aguentando ficar com os olhos abertos quando escutei alguma coisa cair em minha carteira, fazendo um pequeno barulhinho. Passei os olhos atentamente pelo local e vi um pedacinho de papel cuidadosamente dobrado. Só poderia ser do . Peguei e abri.

Me da um beijo de presente?

Senti meu corpo esquentar e um leve desconforto se instalar em mim. Mais uma vez, isso fez cócegas em meu coração. Eu não sabia por que ele insistia tanto nesse negócio de beijo. Talvez fosse apenas para me irritar, mas, se fosse, não era exatamente isso o que estava acontecendo. Mordi meu lábio inferior quando, por um momento, eu considerei aquilo. Peguei meu lápis e respondi.

Vou pensar no seu caso.

Cutuquei-o pelas costas e ele fingiu se espreguiçar, colocando as mãos por trás da cabeça. Depositei rapidamente o bilhetinho em uma delas. Em menos de trinta segundos, ele estava em minha mesa novamente.

Já pensou?

Ri baixinho, balançando a cabeça.

Tenta mais tarde, seu babaca.

Cutuquei-o novamente e o ritual se repetiu. Ouvi-o rir baixinho também. As aulas seguintes passaram com metade da turma dormindo, nenhum novo bilhetinho e eu não conseguindo tirar os olhos dos cabelos bagunçados da nuca do menino que estava sentado à minha frente.

O nosso último sinal do dia tocou. Guardei meus materiais na mochila e esperei até que terminasse de fazer o mesmo para sairmos da sala. já havia sumido de vista junto ao , que chegou uma aula atrasado. Ele tinha desmaiado depois de tirar sangue. Pobre .
-, vamos sair pelo portão dos fundos? – perguntou ao ver a multidão que havia ao redor do portão principal. Eu concordei com a cabeça. Nós sempre usávamos a saída atrás do campo de futebol quando não tínhamos paciência para nos enfiar no meio da multidão. Era melhor atravessar o colégio inteiro e sair sossegado.
Nós fizemos todo o caminho em silêncio. Eu segurava as alças da mochila com as duas mãos, que suavam frio. Estava difícil tirar as palavras do bilhetinho de dentro da cabeça. Droga, o que estava acontecendo comigo?
-Quer chegar mais cedo lá em casa pra gente jogar vídeo game? Eu deixo você comer um brigadeiro antes da festa. – disse com a voz doce, me fazendo rir.
-Deixa eu comer dois? – ele me olhou divertido.
-Depende.
Senti minhas bochechas esquentarem e olhei para frente. Minha voz parecia presa à garganta.
-Depende do quê?
-Ei, marica.
Ouvimos uma voz conhecida gritar. e eu nos viramos simultaneamente, vendo a figura sinistra de Rony se aproximar. Ele tinha uma expressão séria no rosto. Eu olhei ao redor e estremeci ao notar que estávamos completamente sozinhos no gramado.
-, vamos embora – pedi baixinho, segurando no braço dele. Ele concordou com a cabeça.
-Olha só, se não é a sua vadiazinha...
-Vadiazinha é a sua mãe! – rebateu, juntando as sobrancelhas e dando um passo até ele. Eu o impedi.
-Não faça isso, , por favor.
Perigo apressou os passos.
-Eu tenho duas coisas pra você, mané. A primeira é pelo seu aniversário – dizendo isso, ele deu um soco no rosto de , que se desequilibrou sem cair. Levei as duas mãos à boca.
-Para com isso, Perigo!
arremessou a mochila no chão e se colocou em posição de ataque. Eu procurava por alguém desesperadamente.
-E a segunda é pelo chute que você me deu.
De repente meus olhos não conseguiram mais se mover. Eles ficaram presos ao objeto brilhante e metálico na mão de Perigo. Meu corpo estremeceu e perdeu os movimentos. Eu não consegui respirar. Com um movimento rápido, ele enfiou a lâmina no estômago de .
Eu soltei um grito desesperado. Os olhos de se arregalaram e sua boca se abriu. Seu corpo se curvou quando Perigo retirou a faca e o ouvi soltar um gemido abafado ao ser novamente esfaqueado. levou as mãos até os cortes e caiu de joelhos. Eu corri até ele e o abracei, sentindo as lágrimas quentes escorrerem em meu rosto. Meu coração parecia querer saltar do peito. Perigo tinha fugido.
-, fala comigo! !
O corpo dele ficou pesado e eu o deitei. Seus dedos estavam cobertos de sangue e eu levei minhas mãos até os ferimentos numa tentativa inútil de estancá-los. O sangue não parava de escorrer. O desespero tomou conta de mim e eu não sabia o que fazer para ajudá-lo. gemia de dor e a única coisa que eu via eram as grossas lágrimas inundando meus olhos.
-Socorro! Alguém me ajuda... por favor, alguém me ajuda! – eu gritei com toda a força que existia em meus pulmões, e continuei gritando até sentir minha garganta doer. – , fica comigo, por favor... fica comigo, meu menino... – eu passei os dedos ensanguentados pelo rosto agora pálido dele. Ele tentou falar, mas tudo o que fez foi tossir sangue.
-Minha Nossa Senhora!
Virei meu rosto. Um funcionário estava parado a alguns metros da gente, completamente assustado. Ele tirou o celular do bolso e discou alguns números, correndo até nós ao terminar de falar.
-Meu amigo foi esfaqueado – falei entre o choro. Ele pegou no colo com cuidado e nós corremos até a enfermaria.
-Jesus amado! – a enfermeira levou as mãos à boca ao ver todo aquele sangue. Eu soluçava sem parar. O funcionário deitou-o na maca e a mulher começou imediatamente seu trabalho. Em pouco tempo, o diretor chegou.
-Meu Deus, o que aconteceu?
-Foi o Perigo, foi ele quem machucou meu amigo! – gritei. O diretor segurou delicadamente em meus ombros e se agachou.
-, se acalme. Me conte, o que aconteceu com o ?
Eu limpei meus olhos, mas as lágrimas continuavam a cair.
-O Perigo o esfaqueou duas vezes e saiu correndo.
Não aguentei. Meus joelhos vacilaram e eu caí, abraçando com força o diretor. Segundos depois, dois homens vestidos de branco entraram na sala e carregaram para a ambulância. Eu tentei ir com eles, mas o diretor me impediu.
-Eu vou ligar para os pais dele e para os seus e nós vamos até o hospital, tudo bem?
Fiz que sim com a cabeça, tentando controlar o choro. A ideia de perder era insuportável para mim. Ele tinha que viver... aquele babaca tinha que viver.
Corri para abraçar a mamãe assim que ela chegou ao hospital juntamente com os pais de .
-O , mamãe, o ... – ela me abraçou apertado e então eu voltei a chorar.
-Eu sei, meu amor, ele vai ficar bem. Vai ficar tudo bem.
Notei pela voz dela que ela chorava também. Papai estava sentado em um banco ao lado do pai de . Ele havia entrado em cirurgia há alguns minutos. A mamãe dele se sentou ao meu lado e eu me afastei da minha para abraçá-la. Nós soluçamos juntas até que não tivéssemos mais forças para chorar.

Algumas horas se passaram. Eu estava deitada no banco e olhava fixamente para o chão. Meus pais estavam no banco da frente dando força para os pais de , assim como o diretor. Comecei a pensar em tudo o que já havíamos passado juntos. Seria extremamente injusto se não pudéssemos repetir. Esse pensamento apertou meu coração e uma lágrima solitária escorreu.
-Vocês são os pais do ? – uma voz masculina perguntou. Eu me sentei no mesmo instante.
-Sim – o pai dele respondeu. O médico soltou um suspiro longo e pesado.
-Ele teve duas perfurações graves. Uma delas atingiu uma artéria. Ele perdeu muito sangue. Nós fizemos tudo o que podíamos. – a mãe dele levou uma das mãos à boca e voltou a chorar. Eu perdi o chão – Eu sinto muito.
Minha cabeça rodou e senti meu corpo flutuar. Era como se as coisas tivessem ficado distantes e nada daquilo fosse real. Eu não conseguia acreditar que meu melhor amigo estivesse... Oh, Deus, não, não podia ser... isso não era real.. não podia ser, não podia ser...
Saí correndo em direção à sala de cirurgia. Eu não sabia onde era, mas eu a encontraria. Empurrei algumas portas com força, sentindo um misto de dor, raiva, ódio e profunda tristeza. Algumas pessoas tentaram me segurar, mas eu estava agitada e determinada demais para deixá-las. Corri até o final de um corredor e, à esquerda, vi uma porta branca. Corri até ela e a abri.
A gente nunca sabe como reagir diante a morte até que ela te obrigue a isso. A gente não espera por ela. E não aceita quando ela vem. Eu não soube o que fazer quando o vi deitado naquela mesa, completamente sem vida. Eu apenas senti meu mundo desabar junto às minhas lágrimas. Foi difícil dar um passo. Mas, quando dei, foi difícil parar.
Era como se ele estivesse dormindo. Meus dedos tocaram sua pele ainda quente e eu fechei os meus olhos com força, apenas a sentindo. Por que isso tem de acontecer? Como uma pessoa está aqui em um minuto e, no seguinte, não está mais? Por que Deus o havia tirado de mim, por quê? Abri meus olhos. Uma lágrima caiu na bochecha dele. Isso não estava certo. Ele não poderia estar morto, não poderia. Senti meu sangue esquentar e meu peito subir e descer com mais força. Um nó fechou minha garganta. Em um ato de fúria, empurrei a bandeja de instrumentos médicos no chão. Em um de desespero, subi na mesa, deixando entre minhas pernas e segurando com força em seus ombros, o chacoalhando.
-Acorda, seu idiota, acorda, acorda! – gritei com toda a força que tinha – Levanta dessa mesa, , levanta, você não pode me deixar, não pode morrer, levanta daí, seu babaca, seu idiota, acorda!
Senti dois braços envolverem minha cintura e me puxarem. Eu comecei a gritar em protesto e a chutar o ar com os pés enquanto era levada para fora da sala. Ouvi algumas vozes masculinas, mas não me atentei a elas. Como poderia? Meu rosto estava completamente molhado. Quando fui colocada no chão, saí correndo para a mesa novamente. Alguém tentou me pegar, mas dei socos e chutes até que conseguisse me libertar. Com um pulo eu me deitei em cima de , abraçando-o como podia e chorando sem nenhuma vergonha.
Eu sabia que tinha gente me olhando, mas eu não me importei. Ninguém tentou me tirar de lá. Eu puxava os cabelos dele com força, chorando como nunca havia chorado em toda a minha vida. A dor que esmagava meu peito era horrível e eu cheguei a pensar que fosse morrer também. Não sei por quanto tempo fiquei assim, mas quando levantei minha cabeça, já mais calma, não havia ninguém lá.
Passei um tempo olhando seu rosto. Meu coração falhou quando lembrei que dia era hoje. Era o dia do aniversário dele. Isso era tão injusto... Me ajeitei em seu corpo. Deixei minha cabeça cair em seu peito imóvel e fiquei assim por alguns minutos. Eu chorei em silêncio até sentir uma mão encostar suavemente em minhas costas.
-Eu sinto muito, meu amor – a voz doce de papai entrou em meus ouvidos. Levantei a cabeça para olhá-lo.
-Por que, papai, por que ele? Ele não podia morrer, não podia...
-Eu não sei, , mas você não pode ficar aqui.
-Eu não quero ir embora.
Ele suspirou. Seus olhos estavam avermelhados.
-Eu sei, mas você precisa. Eles não vão deixá-lo aqui por muito tempo.
-Eu quero ir com ele, papai.
-Não diga isso, meu amor. – Eu me levantei e o abracei. Papai me tirou de cima da mesa e se agachou. – Sabe de uma coisa? Não importa onde você esteja, o estará sempre com você. – concordei com a cabeça. Nada daquilo ainda fazia sentido para mim. Papai me pegou pela mão e nós começamos a caminhar para fora da sala. Quando chegamos à porta, eu parei.

Me dá um beijo de presente?

-Papai, você pode me esperar lá fora? Eu prometo que não demoro.
Ele me deu um olhar triste e o estendeu a , me respondendo com um sorriso. Eu encostei a porta assim que ele saiu e andei de volta até a mesa. Só havia uma última coisa que eu poderia fazer. Eu devia isso a ele.
Na pontinha dos pés, levei meu rosto até o dele. Meus dedos acariciaram seus cabelos macios e eu fechei os olhos. Meus lábios roçaram levemente os dele e, então, eu o beijei.

-Eu te amo, seu babaca.