Nunca gostei do calor. Essa é provavelmente uma das únicas coisas boas que vem à minha mente ao acordar às dez da manhã do dia vinte e três de dezembro e olhar pela janela que mostra uma paisagem completamente branca. Sabe, quando você vê no jornal sobre mão-de-obra especializada indo para os países ricos, você pensa “puxa, eu queria fazer isso! Receber um salário alto para morar num país mais rico!”. Eu entendo você. Também pensava assim, mas vou lhe contar: essa época de natal, quando o que você mais quer é estar com a família, pensar que está do outro lado de um oceano não é a coisa mais empolgante do mundo.
Esse é meu segundo ano na Itália. Ano passado consegui tirar uma folga e voltar para o Brasil na semana do natal e ano novo. Agora, quando você chega àquele ponto do emprego que, caso você trabalhe sem parar você pode ganhar uma bela promoção, férias e folgas ficam no segundo plano. Se eu conseguir essa promoção, minha amiga, posso voltar para o Brasil todo fim de semana. Então acho completamente válida a minha situação. Como eu já disse, a neve lá fora é um belo estimulante quando penso nos trinta e sei lá quantos graus que o povo está agüentando lá.
Depois de revirar alguns minutos na cama, decidi que eu tinha que me levantar. Atrasos estavam no mesmo plano que férias e folgas. Depois de todo o ritual pós-acordar e pensar sobre o natal e a distância (sim, faço isso todas as manhãs), peguei a minha pasta, meu sobretudo mais quente e fui para a garagem. Aí! Já dei a dica de que não moro exatamente em um apartamento pequeno ou coisa do gênero, de forma alguma. Minha casa é até que grande, meu emprego é até que bom e ganho até que bem. Então por que eu busco tanto pela promoção? Porque com ela minha casa seria grande, meu emprego seria bom e eu ganharia bem. Sim, levemente materialista. Atire a primeira pedra aquele que não for.
Mas enfim. Entrei no carro e comecei a minha jornada até o trabalho. Normalmente, vinte minutos de carro. Com neve? Deixo com a sua imaginação.
.+~**~+.
Quando cheguei ao escritório, fui recebida pelo meu chefe da forma mais calorosa possível.
– ? O que você está fazendo aqui?
Adoro o meu chefe. Sério. Do fundo do meu coração.
– Senhor Guido, por acaso me despediu e não estou sabendo?
– É claro que não, . Eu seria louco se a demitisse.
– Sou tão valiosa assim?
– Na verdade, você sabe onde me encontrar e pode ficar agressiva de vez em quando.
Falei. AMOR em sua forma mais pura.
– Obrigada – eu disse com minha maior cara de derrotada.
– Ah, estou só brincando. Você é valiosa. Mas já não deveria ter voltado para o Brasil para passar o natal com a sua família?
– Não tirei folga esse ano. Tinha muito trabalho.
– Você daria conta. Tenho certeza. Mas sabe que aprecio trabalho duro. Continue assim.
– Sim, senhor – eu disse, batendo continência e fazendo o senhor Guido rir. Em seguida, dirigi-me à minha mesa. Estava concentrada em arrumar a papelada que eu trouxe na minha pasta quando senti alguém sussurrar em minha orelha.
– Também não foi para casa, então?
Pessoas normais (lê-se: eu quando cheguei aqui) teriam dado um pulo na cadeira, porém agora eu já me acostumara com essas aparições repentinas.
– Fico feliz de ver que não fui a única, – eu disse, virando-me na cadeira e encarando aquele que havia surgido atrás de mim.
– Imagino que você esteja tentando melhorar de emprego. Interessada no meu cargo, ?
– Se você fosse do mesmo setor que eu, talvez. Mas, sim, vou mostrar para o senhor Guido que sou boa o suficiente para ser promovida e trabalhar com os chefes de departamento – deu um pigarro e completei, rindo. – Quando eu chegar lá, você me dá umas dicas?
– Não sei, não. E se você decidir mudar para o meu setor?
– Prometo que não. Será bom ser sua colega, de igual para igual.
– Sim. De igual para igual – abriu um daqueles sorrisos que, como todos os clichês do planeta, faziam a minha respiração ficar falha. – Mas então... Se você não voltou para o Brasil, quais são os seus planos para a noite de natal?
– Provavelmente assistir o máximo possível às minhas temporadas de Friends.
– Isso é deprimente – ele disse, rindo. – Então sem planos?
– Sem planos. E você?
– Eu e o vamos fazer uma festa.
– ? – perguntei. Nunca entendi essas pessoas que falam dos outros como se fossem conhecidos quando, na verdade, você não faz a menor idéia de quem ele está falando.
– Meu amigo que mora comigo.
Essa informação me fez arregalar os olhos de uma forma que chegou a doer e o fez ter uma crise de riso.
– Não sou gay. Ele é só meu amigo – disse quando parou de rir.
– Não falei nada!
– Sua expressão falou o suficiente.
Ok. Admito que fiquei envergonhada, mas, poxa. O que eu ia pensar? O é aquele tipo de cara bem sucedido, engraçado, simpático, bonito... Não é comum você dar a sorte de encontrar um desses por aí. Sempre desconfiei que tinha alguma coisa. Uma namorada, uma noiva, uma esposa. Um namorado, um noivo, um marido, quem sabe, se o mundo fosse bem cruel. Ele também não é italiano. Veio da Inglaterra e está aqui há mais tempo. Quando cheguei, ele sempre conversava comigo, almoçava junto e essas coisas. No fim, acabou se tornando meu amigo. Claramente, não o suficiente para me contar que morava com outro cara. E nunca tive coragem para perguntar sobre a(o) namorada(o), noiva(o), etc.
– Mas enfim – ele continuou. – Se você não tem planos, podia passar o natal com a gente. É melhor do que ficar assistindo à televisão, de qualquer forma.
– Não subestime Friends – eu disse, fazendo-o girar os olhos. – E não sei. Não quero atrapalhar a comemoração de vocês.
– Não vai atrapalhar. Faça o seguinte: você tem até a hora do almoço para me dar a resposta.
– A HORA DO ALMOÇO?! POR QUE NÃO ATÉ O FIM DO EXPEDIENTE?!
– No caso você decidir que vai, o que é inevitável, terá assim mais tempo para pensar no meu presente.
Parei com uma expressão confusa, pronta para dizer que aquilo não fazia o menor sentido, mas, depois de assimilar a idéia, acabei concordando.
– Não tenho planos mesmo e se você diz que eu não vou incomodar... Por que não?
– Ótimo! Mais tempo ainda para pensar no meu presente! – ele sorriu e se virou, indo em direção ao elevador.
.+~**~+.
O resto do dia foi normal. Encontrei o apenas às oito da noite, quando eu estava saindo. Ao que o elevador chegou, ele estava lá dentro, provavelmente indo embora também.
– Então... Vai me passar o seu endereço?
– Por que não fazemos assim: amanhã passo na sua casa e a pego às nove da noite? Que tal?
– E você ainda se lembra de onde moro?
Ele sorriu de lado.
– Não se esqueça de que lhe dei carona por um bom tempo até você comprar o seu carro.
– Ah, mas sei lá... Veneza tem tantas ruas e casas...
Ele riu, deu-me um beijo na bochecha e saiu do elevador.
.+~**~+.
Depois de sair do escritório, fui para uma galeria lá perto e comprei uma camisa preta social pelo simples fato que nunca vi o de camisa preta, mas acho um visual extremamente lindo, e uma caixa de chocolate para o , porque eu não ia ficar sem dar nada, porém também ia dar o quê? Chocolate é infalível em noventa e sete por cento das vezes, ou qualquer número assim.
No dia seguinte, acordei ao meio-dia porque não procisava trabalhar. Fui almoçar num restaurante ao lado da minha casa e, quando voltei, decidi assistir a alguns episódios de Friends, já que os meus planos de passar a noite os vendo tinham sido frustrados.
Quando deu sete horas, decidi tomar banho e começar a me arrumar. Não que eu demore tanto assim, mas nunca se sabe, né?
Às oito e meia eu já estava pronta, sentada na sala, assistindo ao episódio do natal da sétima temporada. Embora eu soubesse que ainda faltava meia hora para o chegar, não conseguia parar de olhar o relógio. Meus pais provavelmente não estavam nem pensando em se arrumar para ir à casa da minha avó. Comecei então a pensar no que eles estavam fazendo, relembrando-me da rotina da véspera de natal que eu tanto amava quando era criança.
Passei os trinta minutos seguintes pensando nisso e levei um susto quando o interfone tocou e vi que o episódio tinha acabado e o DVD havia voltado para o menu. Levantei-me, fui até o interfone e atendi.
– ?
– Não. Papai Noel – não sei se foi porque eu tinha acabado de assistir a Friends ou se a piada simplesmente era muito ruim. Sei que me limitei a estalar a boca. Destranquei a porta, mas o telefone começou a tocar. Voltei ao interfone.
– Entre. Está aberta. Tenho que atender ao telefone – e saí correndo antes que parasse de tocar.
– Pronto?
– ? Achei que você já tinha saído!
– Ainda não, mãe. Eu estava no interfone – sorri, encostando-me à parede e ficando de frente para a porta de entrada. estava entrando e acenou para mim. Respondi o aceno enquanto minha a mãe continuava.
– Ah, certo. Com quem?
– Meu amigo. Vou passar a virada com ele e o amigo dele. Eles moram juntos.
O silêncio de minha mãe me fez imaginar que ela recebeu a notícia com a mesma expressão que eu. Isso me fez rir.
– Eles não são gays.
– Eu não disse nada!
Essa resposta da minha mãe me fez lembrar o quanto sou parecida com ela. Ri, mas ao mesmo tempo senti um aperto no coração, uma saudade dela.
– Mas enfim... E vocês, fazendo o quê?
– Nada demais. Estou esperando o seu pai decidir se arrumar e depois vamos para a casa da sua avó.
– Como todo o ano... – eu sentia um nó se formando em minha garganta.
– Sim. Lembra-se de quando você era pequena, que contava os dias para a véspera de natal? Era o seu dia favorito do ano.
*Flashback on*
– Mãe! – eu devia ter no máximo dez anos. – Sabe o que eu estava pensando?
– O quê? – minha mãe estava lendo algum livro e nem levantou o olhar. Provavelmente já sabia o que eu diria. Todo ano, nesse dia, era a mesma coisa.
– Falta um mês para o dia vinte e quatro de dezembro! Um mês!
– É? – ela continuava lendo e isso me deixou muito frustrada.
– “Manhê”, acho que você não entendeu. Um mês!
– Entendi, sim. Um mês – ela disse sem ânimo nenhum e isso me fez girar os olhos.
– Dia vinte e quatro de dezembro! O dia em que reunimos a família inteira, conversamos, comemos, trocamos presentes...
Ela finalmente levantou o olhar e sorriu pra mim.
– Amanhã você vai voltar, falando que faltam trinta dias. Não vai?
Ri muito e fui tentar a sorte com meu pai.
*Flashback off*
– ? Ainda aí?
Eu estava, mas agora as lágrimas escorriam pelo meu rosto.
– Sim. Só estava pensando numa coisa.
– Ah, ok. Querida, tenho que ir. Seu pai quer falar com você. Ok? Bom natal!
– Ok. Bom natal, mãe! Amo você.
– Também amo você.
Esperei um pouco até ouvir a voz do meu pai.
– Alô?
– Oi, pai! Tudo bom?
– Tudo ótimo. E com você?
– Também – graças a Deus ele não reparou que a minha voz estava trêmula.
– Não vou gastar seu o tempo. Só queria desejar bom natal.
Normalmente, eu teria tentando convencê-lo de que ele não estava gastando o meu tempo, mas hoje era diferente.
– Bom natal para você também, pai. Estou com saudades.
– Também estou, . Sua mãe está mandando eu ir me arrumar. Acho bom ir logo antes que ela fique brava. Agora não tenho mais você para me ajudar com ela.
Dei uma risada fraca.
– Ok. Amo você, pai. Aproveite a festa por mim.
– Pode deixar. Também amo você, filha.
Quando desliguei o telefone, as lágrimas começaram a cair com mais força. De repente, eu nem me lembrava mais do meu motivo para estar na Itália no natal. Não me importava mais. Quando eu era pequena, via as pessoas que passavam o natal longe da família e prometi que nunca seria uma delas. Agora aqui estava eu, longe, enquanto todos eles se reuniam.
De repente, fui abraçada por alguém.
– O que aconteceu, ?
Eu tinha me esquecido do ... E me esquecido de que ele não falava português. Sabe-se lá o que estava se passando na mente dele.
– Nada. Só... Saudades.
Retribuí o abraço, esforçando-me para parar de chorar, enquanto mexia no meu cabelo. Nunca gostei de ser vista chorando, mas mesmo assim levei um tempo para me recuperar. Quando o fiz, afastei-me e olhei para ele de verdade pela primeira vez na noite. O homem estava usando uma camisa preta por baixo do casaco. Ponto para mim, dando presente repetido.
Funguei e pedi para ir retocar a maquiagem. Disse que ele podia ficar à vontade. Quando voltei para a sala, ele estava encostado à parede de frente à escada. Aproximei-me, sorrindo.
– E aí, vai me contar que tipo de ameaças em português estavam lhe fazendo quando cheguei?
– Eu lhe disse que era apenas saudades. Eram os meus pais.
– Ah, entendo. É sempre um momento triste quando os pais ligam no natal – ele disse como se estivesse recitando um provérbio, o que me fez rir.
– E você, por que não voltou para a Inglaterra?
olhou para baixo. Depois sorriu e disse:
– Parte da festa vai ser falar sobre por que estamos aqui – ele riu, colocando a minha franja atrás da orelha. Seus dedos contornaram o meu rosto, parando no meu queixo. Ele aproximou o rosto do meu e eu podia sentir a sua respiração no meu rosto. Quando os nossos lábios se roçaram, o celular de começou a tocar.
Oh! We’re half way there. Oh! Living on a prayer!
Nós nos afastamos e ele atendeu o celular, visivelmente irritado.
– Fale, – não pude deixar de me lembrar da vez que meu amigo disse que os homens fãs de Bon Jovi eram gays. Claro que esse mesmo amigo me levou com a namorada dele ao show e cantou todas as músicas. – Sim, já estamos indo – ele desligou o telefone. – O queria saber se eu ainda estava vivo. Acho melhor irmos.
– Certo – peguei a minha bolsa e os presentes e nós dois saímos em direção ao carro dele.
.+~**~+.
– GRAÇAS A DEUS, HOMEM! ACHEI QUE TINHA PERDIDO VOCÊ! – um ser, que deduzi ser , saudou-nos quando chegamos.
– A teve um pequeno problema com o telefone – olhou para mim de uma forma que me fez sorrir. – A propósito... , . , .
– Encantado – disse, fazendo sinal para eu passar. A casa dos dois parecia ser grande. A sala tinha uma árvore de natal e uma mesa cheia de comida. Demais para três pessoas, mas enfim.
Coloquei os presentes na árvore e me sentei no sofá entre os dois.
– Mas então, ... O que você faz da vida? – eu disse, encarando-o.
– Sou um pesquisador da ciência mais absoluta do mundo.
– Ou ele é físico – disse, fazendo o amigo abrir um sorriso.
– Ciência mais absoluta? – perguntei desconfiada.
– Na opinião dele – se levantou, derrubando o sorriso de . – Aceita algo para beber?
.+~**~+.
Ficamos conversando até meia-noite, quando entreguei o presente dos dois.
– HELL, YEAH! GANHEI CHOCOLATE! – disse, abraçando-me com força.
Quando abriu o seu presente, olhou para baixo como que confirmando se a camisa que vestia também era preta.
– Eu nunca tinha o visto com essa cor de camisa... – desculpei-me.
– Tudo bem. Adoro camisas pretas e esse modelo é diferente. Muito bonito, por sinal – ele sorria satisfeito. – Minha vez?
– Não. Minha vez! – voltou correndo da cozinha, trazendo um Toblerone daqueles grandes e me entregado. Ri e o abracei. Ainda bem que sou fã de Toblerone.
Quando o soltei, estava parado ao nosso lado, segurando um pacote irregular. Quando abri, quase dei um grito. Um cachorrinho de pelúcia – a coisa mais fofa do mundo. E ele tinha uma coleira verde e amarela com um pingente escrito “Forever”.
– Imaginei que você fosse ficar com saudades de casa – ele disse, dando de ombros.
Joguei-me sobre ele, abraçando-o e gritando “OBRIGADA!”. Era realmente tão fofo que eu não acreditava.
.+~**~+.
– Você não me contou por que não voltou para a Inglaterra.
Nós dois já estávamos no carro, voltando para a minha casa. No resto da noite, passamos rindo, falando de natais e presentes passados. Acabei me divertindo muito e agora estava abraçada com meu cachorro.
– Digamos que o está perto de uma descoberta que vai revolucionar a humanidade e eu não podia deixá-lo sozinho. Minha família entendeu bem – não consegui não rir, pela centésima vez na noite.
Quando parou em frente à minha casa, não saí do carro. Olhei para ele e disse:
– Obrigada por tudo. Foi uma ótima noite.
– Não está mais tão arrependida de ter ficado para trás?
– Não. E quero saber o que vai revolucionar a história da humanidade.
Ele sorriu e aproximou o seu rosto novamente do meu. Dessa vez, ele me beijou e nenhum som nos interrompeu.
.+~**~+.
Entrei em casa e olhei no relógio. Três horas. Agora seria meia-noite no Brasil. Embora eu sentisse um aperto, minha noite tinha sido boa o suficiente para que eu me sentisse bem. Subi para o meu quarto, ainda abraçada ao meu cachorro.