Capítulo 1
A chuva caía forte sobre o carro em que eu estava. Eu não podia sentir o frio que vinha da estrada graças ao aquecedor do carro. Mas eu me sentia completamente desconfortável por ter minhas mãos algemadas atrás das costas. Policiais idiotas. Quando não estão cumprindo seu dever e prendendo os verdadeiros criminosos, estão atrapalhando aqueles que trabalham no lugar deles.
E aquele policial... Bem, ele conseguiu me enganar. Em cinco anos, nenhum policial sequer chegou perto de mim. Eu sempre fui muito boa em me esconder, assumir identidades diferentes, criar personagens. É claro que, mesmo sabendo que eu era muito boa no que eu fazia, uma hora ou outra alguém ia me achar. Ainda mais com as complicações do meu último trabalho. Mas eu não esperava que fosse tão rápido.
Sua aparência o ajudou. Quero dizer, ele não tem cara de policial e nem aparenta ter idade para ser um. Ele não deve ter mais do que uns 25 anos, usa umas roupas descoladas – pelo menos a jaqueta dele era – e quando eu o vi pela primeira vez, parecia apenas um universitário em busca de uma noite de copos de cerveja e sexo casual com uma completa desconhecida.
Quanto a mim, parece que para a polícia alguém com 18 anos pode ser muito bem uma assassina qualificada, seja lá o que “qualificada” signifique. Será que eles separam assassinos por vítimas? Assassinos de crianças, de adultos, de velhinhas indefesas, de solteironas ricas... Eu me enquadraria em todas essas discrições e ainda assim não estaria em nenhum.
Quando aquele policial me prendeu, o detetive , ele disse que eu estava sendo presa por ter invadido a casa de um homem próximo a meia idade, e tê-lo matado a sangue frio. Bem, eu matei um homem. Matei vários para falar a verdade. E mulheres também. Mas eles não eram apenas isso.
Eu estava a duas cidades de distância de onde havia cometido o “crime”, quando o detetive me encontrou, comendo um hambúrguer e tomando cerveja gelada em um bar de estrada que ninguém conhecia, freqüentado por motoqueiros tatuados e mochileiros com poucos recursos financeiros. Eu não sei como ele conseguiu aquilo, já que eu não havia deixado provas no local, assim como a polícia não tinha idéia de quem o/a assassino/a poderia ser. Na verdade, eu sei como. Há muitas forças se movimentando para impedir a minha missão. E eu digo literalmente.
Agora eu estava no carro do tal detetive, que tinha que me levar até a delegacia da cidade de Dallas, para ser transferida para uma cela qualquer enquanto esperava por julgamento – embora eu duvidasse que de fato houvesse provas o suficiente para me mandarem para um presídio. Pelo menos esses eram os planos da polícia para mim. Já os meus planos eram muito diferentes.
Nós paramos em um hotel de quinta categoria - desses em que você só se hospeda quando não tem mais opções - graças à chuva que havia piorado. Eu achei ótimo. A chuva me ajudaria a fugir. Alguém lá em cima parecia gostar de mim. Bem, era o mínimo a fazer já que eu trabalho para eles.
O quarto que o detetive alugou para nós (de casal, aparentemente o único que ainda não havia sido ocupado, o que era algo surpreendente) tinha cheiro de mofo e coisa velha e uma decoração decadente. As cortinas em um verde musgo não combinavam em nada com a colcha vermelho-vinho sobre a cama. O carpete estava manchado.
- Seque-se um pouco – o detetive falou, tirando sua jaqueta marrom e a deixando sobre a pequena poltrona próxima a janela, deixando sua arma bem a vista. Aquela arma seria minha antes do final da noite, pensei.
- E como você espera que eu faça isso com as mãos nas costas? – perguntei, cínica.
Ele olhou para mim com uma das sobrancelhas arqueadas. Tirou a chave do bolso de sua calça jeans e veio até mim. Com uma ótima rapidez, ele soltou meus braços e os prendeu novamente na frente. Foi ao banheiro e trouxe uma toalha, que jogou em cima de mim.
- Quanta educação... – ironizei.
Ignorando-me, ele pegou o celular em um dos bolsos da calça e discou para o que eu percebi ser a central para informar que havia me pego e onde estávamos. Eu aproveitei para olhar para todos os detalhes do quarto. A única janela tinha grade do lado de fora. As do banheiro deveriam ser do mesmo jeito. Minha única forma de escapar seria pela própria porta.
- Você dorme aí – ele disse, desligando o telefone e o colocando de volta no bolso da calça.
- E você pensou que eu fosse dormir aonde? No chão? Aliás, eu não estou com sono.
Levantei e fui até a televisão pequena e antiga. O detetive logo veio atrás de mim, como se eu estivesse prestes a pegar a TV e jogar na cabeça dele. Confesso que vontade não me faltava. Eu girei os botões da TV (sim, ela era tão velha que ainda nem tinha botões para se apertar), mas tudo o que se via era chuvisco atrás de chuvisco. O detetive desligou a TV, segurou forte no meu pulso e me arrastou de volta para cama, me empurrando para ela como se eu fosse um bandidozinho de quinta.
- Ai! – reclamei. – Eu vou reclamar com seus superiores por maus tratos.
- Assassinos não têm direito de reclamar – ele falou com tom de voz seco. Abriu a gaveta de uma das mesinhas de cabeceiras e pegou dois livros que havia nela. – Ponto, uma bíblia e um dicionário – ele disse, jogando-os ao meu lado na cama. – Aproveite seus últimos momentos de liberdade para se tornar mais inteligente ou comece a pedir perdão a Deus por seus pecados.
- Preferia gastar eles em um show do Muse. E eu não preciso pedir perdão a Deus. Ele me compreende muito bem – falei, colocando as pernas para cima da cama, afastando os dois livros. – E eu sou muito mais inteligente do que todos os policiais do seu departamento juntos. Talvez você devesse começar a ler o dicionário. Você deve ser o pior detetive, ou pelo menos o mais incompetente para terem te mandado atrás de mim.
Pela cara que ele fez, eu estava certa.
- Talvez seja por causa da sua idade – eu prossegui com a provocação. Irritá-lo talvez me ajudasse a fazê-lo vir para cima de mim, e eu podia deixá-lo desacordado. – Quantos anos você tem? 19, 20? Realmente estão me levando muito a sério para mandarem um pirralho me prender.
- Eles pensaram certo, não é? – ele falou, sentando-se na poltrona e jogando a jaqueta no pé da cama, com a voz calma e inabalável. – Afinal, eu te prendi. Se eu fosse alguém mais velho, talvez você não teria flertado comigo e teria conseguido fugir.
Ok, eu flertei com ele no bar. Eu ainda sou humana. Ou pelo menos uma parte de mim é. E essa parte estava predominando naquela noite. Pelo menos antes dele me prender.
- Há, você é muito seguro de si. Eu poderia estar apenas me aproveitando para roubar o seu carro. Eu sou uma criminosa, lembra? Não é por isso que você me prendeu?
O detetive não respondeu. Apenas ficou me encarando. Eu então tirei meu coturno com um pouco de dificuldade, por causa das minhas mãos ainda algemadas, os coloquei ao lado da cama e me deitei, me cobrindo com a colcha vermelha-vinho com cheiro de mofo.
Capítulo 2
Abri meus olhos sentindo um cheiro forte – e não era o da colcha. Era um cheiro que eu conhecia muito bem e que eu detestava. Aliás, quem é que gosta de sentir cheiro de enxofre? Levantei meu corpo lentamente para não fazer mais barulho do que a cama já fazia. O detetive estava dormindo na poltrona, os braços cruzados próximo ao seu peito, cabeça baixa.
Sentei-me no chão e calcei meus coturnos. O cheiro estava ficando mais forte. Eu tinha que sair dali antes que eu fosse forçada a proteger o detetive. E eu definitivamente não queria protegê-lo. Na verdade, minha vontade era dar alguns socos nele. Mas só o fato de levar o carro dele comigo já estava de bom tamanho. E a jaqueta, que ainda estava sobre o pé da cama. Era uma boa jaqueta. Ficaria bonita em mim. O único problema é que eu precisava das chaves do carro. Eu sabia fazer ligação direta, mas para me proteger do que estava vindo, eu precisava das minhas armas que estavam na minha mochila, no porta-malas do carro. E as chaves ainda estavam no bolso de trás do jeans do detetive. Maldito policial!, xinguei mentalmente, Como eu poderia pegar a chave dele sem ele perceber? Rafael, eu preciso de uma ajudinha aqui.
Sem resposta e com o cheiro ficando cada vez mais forte, eu tive que apelar. Sabia que não deveria machucar humanos normais, mas se fosse preciso é o que eu faria. Aproximei-me do detetive e tirei sua pistola do suporte preso em sua cintura.
- Não se mexa – eu disse, apontando a arma para ele, que acordou instantaneamente. – As chaves do carro.
- Eu não vou te dar nada – ele disse, as mãos levemente para o alto.
- Não seja idiota. Eu preciso sair daqui o mais rápido possível. Para o seu próprio bem.
O detetive fez uma careta de repente, passou seu olhar rapidamente pelo quarto e colocou um os dedos levemente sobre o nariz. Seria possível? Humanos normais não sentem aquele cheiro. Ele se pôs de pé com as mãos levantadas um pouco acima do seu peito, e eu dei uns passos para trás sem desviar o olhar, e a arma, dele.
Mas que droga! O cheiro estava realmente forte. Ele ou eles estaria/m aqui em questão de minutos. Talvez segundos.
- Para fora, agora – ordenei. – Se você não quer me dar as chaves, você vai abrir a porta-malas para mim.
O detetive se deteve um pouco antes de finalmente perceber que eu não estava brincando. Foi virando de costas para mim, indo lentamente em direção à porta, enquanto eu pegava sua jaqueta e a colocava sobre a pistola. Eu ainda poderia atirar nele, mas dessa forma nenhuma testemunha veria que eu estava com uma arma e não tentaria intervir enquanto andávamos para o carro, mesmo ainda estando escuro e chuvoso.
O cheiro irritava demasiadamente o meu nariz. Eu olhei em volta para ver se notava a presença deles. O cheiro estava forte demais para ser apenas um. Seriam no mínimo três. Tudo bem. Eu já me livrei de 10 de uma vez só. Mas eu estava devidamente armada. Armas humanas não fariam nenhum dano neles.
O detetive pareceu ter notado minha rápida distração e se virou rapidamente, tentando me desarmar. Ele apertou meu braço com força. Sua jaqueta caiu e nós dois ficávamos brigando pela arma, que ainda estava em minhas mãos, apontada para o alto. Foi então quando eu escutei vários sussurros que logo se transformaram em gritos agudos de dor e ódio. Por reflexo e sentindo a dor que os gritos causavam em meu ouvido e cabeça, levei as mãos aos ouvidos, caindo de joelhos no chão. O detetive pegou a arma e a apontou para mim.
- Por favor... – eu falei, ainda com as mãos sobre os ouvidos, meu rosto demonstrando dor – Pegue a minha mochila. Eu preciso dela...
Dei um rugido de dor. Os gritos dos outros estavam ficando mais fortes e eu não estava habituada a escutá-los. Sempre usara um tipo de protetor especial. Mas ele estava na mochila. Eu não pensei que precisaria delas naquela noite. Nem me lembrava por que raios eu os havia tirado do meu ouvido. Aquela fora uma noite cheia de erros.
- O que está havendo? – o detetive perguntou não sabendo se eu estava tentando enganá-lo ou se minha dor era verdadeira.
- A minha mochila... Pegue para mim, no bolso da frente, uma caixinha branca de plástico! Rápido, ! – gritei, chamando-o pelo nome.
Mas ao invés de abrir o porta-malas, o detetive olhou para frente. Eu olhei para direção em que ele olhava e os vi. Eram cinco. Três homens e duas mulheres, com suas vestes pretas, olhos semi-serrados, maxilares trincados, vindo em minha direção. Eu levantei e fui andando na direção do detetive, meu corpo levemente curvado para frente que agora apontava a arma para os cinco que vinham em nossa direção. Seus lábios estavam fechados, mas eu ainda escutava os gritos, assim como também sentia o odor que traziam consigo.
Meti minha mão no bolso traseiro do jeans do detetive, tirei a chave do carro e me afastei, tentando discretamente abrir o porta-malas de costas, enquanto escutava ele gritando “quem são vocês?”. Assim que senti a porta abrindo, me virei e peguei os protetores. Os seres então vieram correndo em nossa direção. O detetive começou a atirar, mas eu sabia que era inútil. Coloquei rapidamente os protetores nos ouvidos e peguei a primeira arma que consegui alcançar: uma faca de estilo Bowie.
Quando me virei, acertei em cheio no peito de um dos homens que veio para cima de mim. Eu o empurrei e ele caiu no chão. Vi sendo atirado pelo ar para o outro lado, enquanto uma das mulheres ia até ele para matá-lo, logicamente. Consegui pular nas costas do outro homem acertando-o na altura da costela com a faca. Mais um ao chão.
Tentei voltar para o carro para pegar meu revólver, mas uma das mulheres acertou um chute no meu rosto. Eu caí no chão, sentindo o gosto de sangue surgir na minha boca. Minha faca tinha escorregado da minha mão, mas eu a recuperei rapidamente e, depois de lutar um pouco, acertei a mulher no peito. A outra mulher começou a me puxar pelo cabelo, me fazendo gritar enquanto era arrastada pelo asfalto do estacionamento. O corpo da que eu havia matado ainda estava sobre mim, já que a minha faca havia ficado presa no peito dela. Quando finalmente soltou, eu acertei a mão da que me puxava, cortando-lhe dois dedos fora. Ela berrou, mas o seu grito foi abafado pelo som da chuva que engrossara. Eu então tentei acertá-la no peito com a faca, mas ela segurou minha mão. Com a mão livre, eu lhe dei um soco que a fez perder o equilíbrio. Eu acertei a faca em seu peito a matando também.
Olhei para o outro lado e vi estirado no chão. Comecei a correr até ele para socorrê-lo, quando o último homem me atirou contra uma caminhonete que estava parada a alguns metros, fazendo com que eu perdesse a faca.
- Olá, – ele disse, seus olhos negros sobre mim, enquanto me levantava apenas com uma das mãos, apertando o meu pescoço.
Eu batia meus pés com força no ar enquanto tentava tirar as mãos dele sem sucesso do meu pescoço. Não conseguia ver sua face direito. Minha vista ainda estava embaçada por causa do impacto. A chuva também não ajudava.
Escutei os barulhos de tiro novamente. vinha em nossa direção, atirando no homem. Ele estava com a mão sobre a costela, e andava cambaleando. Mas que idiota. Não adiantou na primeira vez, por que adiantaria agora? Pelo menos irritou ainda mais o homem. Ele me atirou no chão com a mesma facilidade que tacaria um pedaço de papel amassado, mas eu bati no concreto tão pesadamente quanto um carro sendo solto no alto por um guindaste. O homem foi em direção ao detetive, que jogou a arma no chão depois que todas as suas balas acabaram. parecia estar disposto a lutar com ele. Coitado, não tinha a menor chance.
Quando recuperei meu fôlego, levantei e fui correndo em direção a e o homem, que estavam travando uma briga em que estava visivelmente perdendo. Vi ele caindo no chão e sabia que era a minha deixa. Pulei sobre as costas dele, apertando seu pescoço com a pequena corrente da algema. Teria que acabar com ele da forma mais complicada. Comecei a sussurrar as palavras em romano que tive que aprender caso houvesse situações como aquelas. O homem foi se curvando para frente. Estava ficando fraco. Ele caiu no chão, seus dedos arqueando pelo dor que eu sabia que ele estava sentindo. Eu continuei a falar ainda sobre ele até que ele finalmente parou de se mexer. Estava morto.
Eu caí para o lado do corpo, sentando no chão frio e molhado pela chuva que ainda caía sem descanso. Arfando, olhei para um dos lados e vi o detetive caído no chão desacordado. Olhei irritada para o céu. Sabia que agora eu teria que ajudá-lo, por mais que eu não quisesse.
Capítulo 3
- O que vão querer? –a garçonete perguntou, usando um uniforme vermelho ao se aproximar da nossa mesa.
- Panquecas com calda de chocolate e suco de laranja, por favor. – eu pedi, com um sorriso amigável, entregando o cardápio para ela.
- Só um café – o detetive falou com a voz um pouco baixa. Ele parecia distraído.
A garçonete o encarou por alguns minutos, fazendo uma careta ao notar os roxos no rosto e cortes no lábio e na testa do detetive, antes de sair com seu caderninho e caneta na mão.
- Vai me explicar agora o que aconteceu? – ele me perguntou, batendo levemente com o paliteiro sobre a mesa.
- Prefiro esperar o café da manhã – respondi. – Minha barriga está roncando. Você também deveria comer alguma coisa. Vai fazer você se sentir melhor.
- Não finja se preocupar comigo – ele disse com rispidez, continuando a me encarar.
- Você sempre fica de mau humor depois de levar uma surra? – Perguntei. arqueou a sobrancelha. - O que quer saber?
- Quem eram aquelas pessoas? Por que eles estavam atrás da gente? Por que nenhum deles morreu quando eu atirei, enquanto você acabou com eles apenas com uma faca? Por que eu...?
- Wow! – eu o interrompi. – Muitas perguntas de uma vez só. E eu não sei se você está preparado para as respostas.
- Tente – ele disse, seus olhos azuis fixos nos meus.
- Ok, então – falei. Dei um suspiro e, depois de uma pausa, continuei: – Eles eram demônios e...
- Espera aí – agora foi ele quem me interrompeu. – Demônios?
- É, demônios.
- Você quer que eu acredite nisso?
- Eu disse que você não estava preparado para resposta – me irritei, cruzando os braços. – Escuta, eu vou falar apenas uma vez: sim, eles eram demônios. Estavam atrás de mim para me matar. Tem sempre um ou outro aparecendo para acabar comigo. Mas eu consigo me livrar bem deles quando estou armada. Aliás, nada daquilo teria acontecido se você não tivesse me prendido. Mas como eu estava dizendo – eu continuei antes que ele pudesse me interromper -, eu estava em uma missão. Estou atrás de um Grimório. Você não sabe o que é? Grimórios são livros de magia, que ensinam a fazer feitiços, talismãs, a invocar entidades... O que eu estou procurando tem especificamente o nome e a forma de invocar os primogênitos do inferno.
- Você realmente acha que eu estou acreditando nessa história toda de demônio que mais parece coisa tirada de revista em quadrinhos ou filmes de Hollywood? – ele falou incrédulo.
- Você nunca ouviu aquela frase que diz que a arte imita a vida? Nem tudo que se vê no cinema é mentira. Afinal eles têm que se inspirar em alguma coisa para criarem aquelas histórias, não é?
- Você só pode estar me zoando.
- Aqui está – a garçonete colocou o prato com panquecas e o suco na minha frente e serviu o café para o detetive antes de sair.
- Você tem uma explicação melhor? Você mesmo disse que atirou neles e eles não morreram. Nem ao menos sangraram antes de eu acabar com eles – eu disse, depois de uma garfada na panqueca. - Eles te atiraram para longe como se você fosse nada. E não diga que não sentiu o cheiro de enxofre porque eu sei que sentiu. Eu só não sei como.
- É claro que eu senti aquele cheiro horrível. E por que você conseguiu matar eles e eu não?
- Porque eu tenho as armas certas e você, não. E humanos não sentem cheiro de demônios. Nem ao menos percebem que demônios não são como pessoas normais.
- Mas você sentiu – ele falou. – Além de toda essa baboseira, vai me dizer agora que não é humana?
- Não. Quero dizer, sim, eu sou. Mas não inteiramente.
Ele ficou me encarando, achando que eu era uma maluca, com certeza. Nem ao menos tinha tocado em seu café, enquanto eu dava boas garfadas na panqueca e pensava até mesmo em pedir mais. Eu teria que provar fisicamente que era diferente para ele acreditar. É assim com todos os céticos – só acreditam vendo. E aparentemente a noite anterior não tinha sido o suficiente. Olhei em volta para ver se alguém nos observava. Como as poucas pessoas ali estavam bem ocupadas saboreando seus cafés da manhã, eu peguei uma pequena adaga que eu tinha posto mais cedo dentro do meu coturno, estirei minha mão sobre a mesa e cortei a palma.
- Você enlouqueceu? – o detetive falou um pouco alto demais, enquanto pegava alguns guardanapos e cobria minha mão imediatamente para estancar o sangue.
- Está tudo bem – eu disse, puxando minha mão de volta e mostrando-a novamente para ele, que afastou levemente o corpo ao ver que a ferida estava cicatrizando e logo minha mão ficou perfeita novamente, como se nada tivesse acontecido. Peguei alguns guardanapos e limpei a ponta da adaga e coloquei de volta no coturno. – Viu? Tenho certeza de que você não conhece nenhum humano capaz de fazer isso.
O detetive ficou olhando para mim, mudo e pensativo, enquanto eu continuava a comer minhas panquecas e a tomar meu suco. Sabia que receberia um puxão de orelha por ter me mostrado assim em um lugar com tantas pessoas. Mas aquela foi a única forma que eu achei para fazê-lo acreditar em mim e, bem, parar de me olhar do jeito que ele estava olhando.
- Vai ficar mudo agora? – perguntei com a boca um pouco cheia.
- Só estou pensando.
- Tentando montar as peças desse quebra-cabeça, hein? Eu também fiquei assim quando soube que eu tinha que fazer isso... Caçar demônios e procurar artefatos, sabe.
- Você fala isso com tanta naturalidade – ele disse, voltando a bater com o paliteiro na mesa.
- Bem, eu não posso dizer que isso é inteiramente prazeroso. Mas é o meu trabalho. Se você tivesse que matar uma pessoa pra salvar a sua vida, você o faria. Afinal você é um policial. Eu me considero uma também, só que sem reconhecimento algum.
- O homem que você matou então... era um demônio? – ele perguntou, parecendo estar finalmente aceitando a história toda.
- Era. Ele estava invocando alguns demônios para atrapalhar na minha busca. Eu tentei exorcizar ele, mas não consegui. Exorcizar é sempre melhor do que matar. Algumas pessoas conseguem sobreviver a possessão de demônios. Mas às vezes eu não tenho oportunidade, como essa noite. O único que eu tentei não sobreviveu. Provavelmente o demônio estava no corpo dele há muito tempo.
O detetive baixou o olhar por alguns segundos. Perguntei-me se ele pensou se as pessoas “aprisionadas” pelos demônios ainda estariam vivas se ele não tivesse atirado nelas. Eu não acreditava nessa possibilidade.
- Com licença, tem alguma igreja aqui perto? – perguntei para a garçonete que passava pela nossa mesa.
- Há uma a uns 10 km ao norte daqui – ela respondeu. – Quer mais alguma coisa?
- Não, obrigada – respondi.
- Alguma coisa errada com o café, senhor? – ela perguntou para , também percebendo que ele não havia tomado nenhum gole.
- Não, está tudo certo – ele respondeu, tomando um pouco para disfarçar e sorrindo fraco ao posar a xícara na mesa.
A garçonete olhou os guardanapos sujos de sangue no canto da mesa, e depois que eu balancei o vidrinho de ketchup, ela acenou com a cabeça e foi atender outra mesa.
- O que vamos fazer na igreja? – ele me perguntou.
- Rezar.
Capítulo 4
Havia umas duas senhoras ajoelhadas, fazendo suas preces entre os bancos no meio da fria igreja de iluminação fraca. Eu fui andando até o altar, acompanhada do detetive que, embora não fosse mais me prender, resolvera me seguir para ver o que eu faria. Talvez estivesse procurando mais respostas para tudo o que acontecera na noite anterior.
Eu coloquei minha mochila sobre o primeiro banco e parei em frente ao altar, fechando os olhos.
- O que você está fazendo?
- Shhh.
Concentrei-me por alguns minutos de olhos fechados, tentando não me importar com o detetive, que eu sabia que ainda me olhava. O senti saindo de perto de mim poucos segundos depois.
- .
Abri os olhos e vi Rafael do outro lado. Dessa vez, estava no corpo de um homem de aparência jovem, mais ou menos da minha idade. Com olhos castanhos e cabelos avermelhados, usando um terno azul escuro.
- O que houve com o seu corpo antigo? – perguntei e ele me lançou um olhar recriminador. Ele odiava quando eu me referia às pessoas em que ele “habitava” como um simples objeto. Mas era isso o que elas eram afinal. Anjos possuíam humanos que nem os demônios. A única diferença era que os anjos pediam permissão aos donos dos corpos antes, e elas não morriam depois que os anjos saíam.
- Estava na hora dele voltar para sua casa.
- Quem é esse? – o detetive perguntou voltando para o meu lado.
- Rafael – eu disse.
- Sou o anjo da guarda da , por assim dizer – Rafael disse, esticando o braço para apertar a mão de em sinal de cortesia, mas ele não retribuiu.
- Se fosse um anjo da guarda, teria aparecido na noite passada para me dar uma ajuda.
- Você quer dizer que é de fato um anjo? – o detetive perguntou, atônito.
- De fato ele é – respondi cruzando os braços.
- Como vai, ? – Rafael perguntou, dando um leve sorriso.
- Como você sabe o meu nome?
- Ele é um anjo. Esqueça a cortesia, Rafael... – reclamei. – Eu quase fui pega dessa vez.
- Você sabe que eu não poderia interferir, – ele disse com sua voz grossa e serena.
- Na busca do grimório. Mas contra demônios tentando acabar com a minha vida você tem todo o direito. Eu pensei que você fosse o encarregado pela minha segurança.
- E sou. Eu poderia não estar lá, mas nós mandamos alguém para te ajudar – Rafael terminou de falar lançando um olhar a .
- Ele? Só pode estar de brincadeira – debochei.
- foi enviado para te ajudar, sim. Não é a toa que você conseguiu ser transferido do departamento de Memphis para Dallas e pegar um caso importante apenas três meses depois de ter entrado para a polícia. Tudo foi direcionado para que você, , entrasse no caminho de e a ajudasse a partir de então.
- Ele não ajudou muito – reclamei. – Se não tivesse me prendido, eu...
- Se ele não tivesse te prendido, talvez você não estivesse viva agora, – Rafael reclamou, me fazendo sentir um arrepio passar pela minha coluna. Anjos irritados e contrariados podem ser piores do que demônios.
- Que seja... – eu arfei. Fui até minha mochila e tirei uma pequena bolsa de veludo cor de vinho do fundo. – Cumpri minha missão. Aqui está o grimório.
Rafael pegou a bolsa e examinou seu conteúdo sem tirar o livro de dentro.
- Pensei que ainda estava procurando – comentou e eu o ignorei.
- Muito bem, . – Rafael estendeu o braço para mim. - Você deverá guardá-lo com sua vida.
- O quê? – levantei as sobrancelhas. - Eu pensei que vocês fossem destruí-lo!
- Não podemos. Não por enquanto. O grimório deve ficar com aquele que o recuperou até recebermos outras ordens.
- Ordens de quem? – perguntou.
- De Deus – falei irritada. Não era óbvio? De quem mais anjos receberiam ordens? Com certeza não era do presidente dos Estados Unidos – Eu não quero carregar isso. É como pedir para ser caçada por todos os demônios do inferno – minha voz se elevou, fazendo as duas senhoras olharem para nós.
- Os demônios não sabem que você ainda o possui. Os que foram atrás de você ontem só a acharam graças ao telefone que dera para seu superior. Ele estava possuído no momento – Rafael explicou. – Os demônios acham que você o entregaria para mim. Você deve seguir para o norte e esperar até que eu te encontre – ele continuou, sua voz soava calma e tranqüilizadora, mas eu não conseguia tirar a má sensação que tinha em meu peito. - Além do mais, vai te ajudar a partir de agora.
- Você não está dizendo que ele vem comigo, está? – perguntei.
- Como eu já disse, não é a toa que chegou até você. Ele deve seguir com você para onde você for, te proteger, e ajudar a proteger o grimório. sempre teve uma ótima percepção, ótimos reflexos. Ensine e diga a ele tudo o que ele precisa saber.
- Não consigo deixar de sentir que tudo isso vai acabar de um jeito horrível – disse mais para mim mesma do que para os outros.
- Perdendo sua fé, ? – Rafael perguntou.
Sem responder, olhei para a bolsa que agora estava novamente em minhas mãos. Eu passei um ano inteiro atrás dele, matando espíritos malignos, libertando humanos, invadindo lugares, recolhendo informações, e fugindo pelo país. Passei por diversos apuros, várias noites de insônia e quase morri pelo menos umas três vezes por causa daquele livreto que não deveria ter mais de 20 páginas. Agora eu teria que levá-lo comigo para onde for sabendo que vários demônios – praticamente o inferno inteiro - estariam atrás dele. Atrás de mim.
Levantei o rosto e vi que Rafael havia desaparecido. Por que anjos têm essa mania de sumir do nada? Será que eles não sabem o quanto isso é irritante?
Peguei minha mochila, enfiando o grimório dentro dela novamente e saí dando passos pesados pela igreja recebendo um olhar furtivo das senhoras que ainda estavam ajoelhadas no mesmo lugar. Eu estava furiosa, e no momento tudo o que eu queria era arrancar as penas da asa de qualquer anjo, uma por uma.
- Então, para onde vamos? – perguntou do lado de fora da igreja.
- Você não está pensando em vir mesmo comigo, não é?
- O tal anjo disse que eu deveria.
- Há alguns minutos você não sabia ou acreditava em nada disso. Não vai dizer que além de acreditar, você vai aceitar tudo isso assim n’uma boa.
- Eu não posso simplesmente sair andando e fingir que nada disso aconteceu, posso? Se eu voltasse para o departamento, eles me mandariam de volta atrás de você ou algum outro policial. Além disso, estou muito intrigado para simplesmente sair andando. Tenho muitas coisas a perguntar. E pelo visto, a aprender também.
- Ótimo então! – falei quase num to de protesto.
- Para onde vamos? – ele perguntou novamente.
- Para o norte – respondi. – Eu vou saber quando chegarmos ao lugar em que ficaremos.
Nós atravessamos a rua e entramos no carro de . Ele acelerou o carro e entramos rapidamente em uma rodovia. Eu fui me acomodando no banco do carona e deixando o cansaço tomar conta de mim.
Fim(?)
N/A: Hey pessoas. Bah, essa fic é meio doida. A escrevi pra um desafio que a minha beta Bia fez com as escritoras “dela”. Eu não ganhei, mas como eu achei que ficou legal, e minhas amigas gostaram, eu pedi pra minha beta colocar no site. Ela é baseada na quarta e quinta temporada ( quinta é a que começou esse ano né? Eu não lembro) de Supernatural. Por que Supernatural? Well, eu amo essa série. Acompanho desde a primeira temporada (aliás, nessas duas últimas temporadas – a que começou esse ano e a anterior eu descobri que eles me plagiaram =O. Sim, quando eu tava assistindo a primeira temporada, eu escrevi uns episódios de Supernatural que, bem, eu não vou dar detalhes, mas que continham coisas que estão passando na série agora, como o fato do Dean ser bem importante pra essa guerra entre o céu e o inferno. Sou vidente –q). Eu adoro os irmãos Winchester, o jeito irônico-cínico do Dean, e várias outras coisas. Não sei como explicar. Eu simplesmente gosto e ponto. Enfim, voltando a fic. Ela vai ser dividida em três partes. Todas curtinhas como essa. Espero que vocês gostem. Deixem comentários. Eu adoro eles, mesmo que sejam pra dizer “putz que saco”. E leiam minhas outras fics =]
Beijos, Andie Gomes;
Outras fics:
Every Burden Has A Version (McFly/Finalizadas)
O Que Mais Machuca (McFly/Finalizadas)
Better In Time (McFly/Em Andamento)