Os olhos negros de null percorreram uma árvore longínqua, cujo tronco e os galhos definhavam conforme o outono se alastrava pela pacata cidade de Lynn. Ela os havia visto definhar, desde o verão escaldante de agosto, quando as folhas eram em enorme quantidade e transbordavam clorofila vívida, ao brilho de um sol dourado. Mas agora eram tão douradas quanto, entre tons de amarelo e grená, alaranjados suaves; e não mais se prendiam aos galhos, caíam deles, e o vento as levava ao mundo, fosse qual fosse o lugar, deixando sua origem para trás, um tronco seco e sem voracidade – como a vida de null. Ao menos os galhos e o tronco sabiam que o outono antecederia o inverno, então sucedido pelo aroma e beleza da primavera, trazendo-os de volta ao mundo das expectativas atendidas. Planejamento ocorrido nos conformes. Estação boa ou ruim, sempre haveria uma esperança; não, uma certeza – para a árvore.
E null?
Uma folha alaranjada foi arrastada pelo vento até a sua janela, e o mesmo permaneceu pressionando-a contra o vidro e tapando a visão que null tinha dos galhos esperançosos à mercê dos ares do outono. Os braços até então cruzados e estendidos sobre a escrivaninha, apoiando o queixo de null, que encarava jardim afora, moveram-se de forma a se descruzarem, enquanto null erguia a cabeça para poder enxergar sua inspiração. Mas a árvore, então, comparada àquele movimento, pareceu monótona e entediante. Relatório de depressão profunda: provavelmente se passaram três meses.
Os dias se arrastavam como um caramujo infeliz em uma estrada de pedregulhos e null tentava não esquecer os nomes de seus amigos, amigos esses que não a visitavam, ou mesmo telefonavam para perguntar se estava tudo bem, se ela não havia se suicidado após receber A Notícia. Nada que afetasse null seriamente. Aqueles amigos nunca lhe foram de muito agrado, sempre reclamando que ela não queria ir às festas, que passava as tardes estudando em função d'A Notícia. E quando A Notícia chegara e o pesadelo começara, null soubera que não precisaria de ninguém ao seu lado para lhe dizer "eu disse que você deveria estudar menos". Como poderiam ser tão imaturos e irresponsáveis a ponto de desprezarem seus futuros de tal maneira repugnante? Festas! O que eram as festas comparadas ao fracasso que seriam suas vidas após o colégio? Sem faculdade, sem emprego, sem dinheiro; necessariamente nessa ordem. O problema era que o colégio terminara. O colégio terminara e os festeiros entraram para uma faculdade de segunda categoria em qualquer lugar do estado. Nada admirável, mas foram admitidos. Enquanto que ela, que tanto tempo passara dedicando seus olhos, suas mãos e sua mente às pilhas como montanhas em sua escrivaninha, fora, afinal, rejeitada pela universidade com a qual sonhara desde que era uma criança indefesa a assistia Legalmente Loira.
Os festeiros admitidos, a estudiosa reprovada. Era assim que as coisas iriam terminar. Os planos que ela fizera, o conhecimento que adquirira, a vida que imaginara, o brilho nos olhos de seus pais, de repente, com a chegada d'A Notícia, encontraram-se descendo esgoto abaixo, em companhia dos ratos de estimação dos mendigos em direção a algum lugar miserável em Boston. Assim, os pôsteres da universidade que decoravam as paredes de seu quarto foram brutalmente arrancados, rasgados – ou melhor, picotados – e mortos à trilha sonora da descarga. null passara mal, vomitara, fora levada para o hospital. Recebera alta alguns dias depois, voltara para casa. O relógio parou. null não se encontrava mais em terra, era um vegetal consciente. E, então, ali estava. Três meses – é isso mesmo, produção? Alguém anotou a data no calendário? – depois, encarando o definhar dos galhos de uma árvore que, mesmo em direção à morte, tinha mais chances de vencer na vida do que ela. A raiva que sentia dos amigos festeiros subindo por sua garganta e os pensamentos negativos corroendo suas células gradativamente. "É isso, meu Deus. null null é um fracasso".
Uma batida na porta. Toc, toc. Entra. null ainda encarava sua árvore, mas então desviou os olhos. Sentiu os passos de sua mãe invadirem o carpete suavemente, como fazia todos os dias, há cerca de três meses. Diria "minha querida, eu trouxe alguns folhetos de faculdades como Stanford, Princeton e Yale, não quer dar uma olhada?". Mas a mãe não entendia que, tendo sofrido a rejeição que sofrera, a última coisa que interessava à null, naquele momento, eram faculdades, fossem quais fossem. Se não quisesse cursar Inglês, sua mãe já lhe teria trazido panfletos do M.I.T, segunda opção aos formandos de Massachusetts após Harvard. Harvard, dissera um amigo qualquer – um dos festeiros –, o próprio nome já diz, tire um "arv" e fica Hard, por isso não vale à pena perder seu tempo. null bufou, inconformada. Agradeceu a tentativa claramente fracassada de tentar ajudá-la, mas não entendia como alguém poderia ser tão idiota. Afinal, era a melhor universidade do mundo! E null não era boa o suficiente para ela...
– Minha querida? – ouviu a voz de sua mãe se aproximar da escrivaninha, na qual ela se encontrava repousando como sempre. Realmente sempre, pois no período pré-A Notícia, era onde se deixava rodear por livros, agora completamente largados às traças, servindo de enfeite, provavelmente na mesma posição em que estavam três meses atrás.
– Mãe. – null soltou um fio de voz, para que a mãe soubesse que sua presença era indiferente.
– E então, meu bem, você pensou sobre aquilo de Salem? – a mãe perguntou, sentando-se na cama desarrumada de null, calmamente.
null mal lembrava sobre "aquilo de Salem". Para ela, era mais uma das ideias de sua mãe para tentar convencê-la de que ainda poderia ser útil à sociedade. Mais uma dessas faculdades quaisquer, que aceitam qualquer um que tenha lido alguma coisa no segundo grau. "Mas não", lembrou-se null do que a mãe lhe dissera, afinal, sobre a universidade estadual de Salem. "É uma das melhores universidades do condado de Essex e tenho certeza que irá se divertir na república que seu tio Arnold dirige por lá. Não é definitivo, sabe, é só para você não desperdiçar o seu ano chorando ao leite derramado de Harvard. Temos que seguir em frente, meu bem". null assentiu, desinteressada. Quem era aquele tio Arnold, mesmo? E que tipo de pessoa dirige uma república para viver? A mãe lhe dera a notícia: "Por precaução, enviei sua inscrição na semana passada e, veja só, a carta de admissão chegou hoje! O que acha dessa oportunidade, null?".
null achava que seria uma humilhação para ela. Da melhor universidade do mundo para a melhor do maldito condado de Essex, com suas míseras 35 cidades e 11 universidades de segunda categoria. O que seria a maior cidade do condado, Lynn, para a grandiosa e renomada Cambridge, agora era a maior cidade do condado, Lynn, para uma estranha Salem, cuja aparente maior contribuição para a sociedade eram aquelas ridículas lendas sobre bruxas. Sim – era isso o que null pensava. Mas, muito embora assim o fizesse, tinha que admitir que a mãe estava certa quando dizia que ela não deveria desperdiçar seu ano chorando ao leite derramado de Harvard. E, bem, null estaria em pior condição se não tivesse formação acadêmica alguma. Já que entrara para o doloroso mundo dos fracassados, que se acomodasse em um canto escondido e tentasse voltar a sorrir. null não iria sofrer para sempre – guardar o trauma da rejeição, ao certo, mas um dia teria que ser superado e, como dizem, antes tarde do que nunca.
– É, eu pensei, sim. Já tomei minha decisão e vou para essa universidade de Salem. Alguma coisa precisa ser feita... O que quer que seja. – respondeu, virando-se para a mãe, que subitamente abriu um enorme sorriso.
– Maravilha! Eu vou ligar para o seu tio Arnold para felicitá-lo com as boas novas. Você pode começar a fazer as suas malas, mas nada tema, minha querida, que eu irei visitá-la sempre que puder. E pode entrar no site da universidade também, para se familiarizar com o ambiente. Volto logo! – a mãe parecia realmente maravilhada. Mas não, null não entraria em site algum. Só faria suas malas com calma, separando tudo o que fosse necessário e fingindo que viajaria para Paris, ou Londres, ou apenas Nova Iorque, para se livrar da dor, fugir da realidade, descansar. Porque Salem nada seria além de uma válvula de escape e, ainda assim, não seria das melhores. Mas null não tinha coragem de deixar que a mãe enviasse sua inscrição para outras universidades tão prestigiadas quanto Harvard – como Stanford, Princeton e Yale –, pois acreditava que uma só rejeição já lhe fizera estrago o suficiente. As outras três poderiam ser dispensadas.
Antes de se levantar para começar a arrumar suas coisas, null direcionou mais um olhar à árvore de galhos secos com as folhas alaranjadas caindo sobre a grama esmeraldina. E, de alguma forma, a árvore a fez sentir melhor, pois agora a paisagem não parecia mais tão melancólica. O pôr-do-sol atingia em cheio as folhas de cor alaranjada e avermelhada e surtia um efeito realmente fotográfico no local. O outono era, então, uma estação de beleza – não a beleza colorida da primavera, mas uma beleza alternativa, que não deixava de ser bela. Talvez null pudesse adotar a premissa. Harvard era a primavera, mas alguém escada acima decidira que ela, no momento, deveria ser contemplada apenas com Salem, que era o outono. O que null não sabia era que, comparado àquele outono macabro que enfrentaria nos próximos dias, o inverno psicológico da cidade de Lynn, à monotonia das tardes em depressão, logo, logo pareceriam extremamente convidativos.
CAPÍTULO ÚNICO
DIA 29
Com exceção dos meses de Depressão, nunca antes houve um momento na vida de null em que ela se pegasse pensando no passado com muita frequência, ou mesmo relembrando pequenos acontecimentos de sua infância, que nunca exerceram grande influência em sua vida. Entretanto, o dia em que visitou a rua Essex de Salem pode ser considerado uma exceção à regra, tanto quanto foram os meses de Depressão.
Era um sábado nublado nos últimos dias de outubro – "véspera da véspera do Halloween", dissera sua mãe com entusiasmo – e a cidade de Salem não parecia em nada diferente da cidade de Lynn. O mesmo clima de pôr do sol, null poderia dizer, a mesma alternância entre árvores cheias de folhas alaranjadas e grenás e árvores com troncos macilentos e galhos macabros, que pareciam assombrar desde jardins de pequenas e adoráveis casas a grandes mansões com aspecto medieval. Sua mãe havia tomado frente de todos os preparativos e nem sequer lhe perguntara se estava interessada em fazer o tour por uma cidade que ficava a apenas quinze minutos da sua, como se fosse algo realmente especial. Mas null não se importava em conhecer todos aqueles lugares na companhia de seu tio Arnold, que se oferecera como guia turístico, e que estava sendo um verdadeiro chato de galocha com suas histórias sobre surfe de empregos e como conseguira inaugurar sua república em Salem. Não se importava porque qualquer coisa, por mais irritante e patética que fosse – como Salem e seu histórico de bruxaria duvidável – seria bem vinda, se com o objetivo de fazê-la esquecer d'A Notícia.
Algo como a exceção à sua regra de não remoer o passado ou recordar de momentos inapropriados de sua infância. null teve que fazê-lo quando tio Arnold e sua mãe estacionaram em frente a uma casa que null conhecia bem. Embora desprezasse a cultura de sua nova moradia, em grande parte por ter recentemente sido vítima de um trauma inesquecível e Salem estar servindo apenas como válvula de escape, havia outro motivo pelo qual null não gostava de Halloween, vampiros, monstros, zumbis, múmias, fantasmas e, principalmente, bruxas. Um motivo relacionado também a um trauma de infância, mas em menor escala e de efeitos quase nulos, por ter ocorrido há muito, muito tempo.
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Onze anos antes
Talvez se fosse dia, as lembranças não fossem tão fortes na mente da null, mas era noite. Uma noite sem estrelas e sem lua, para tornar tudo mais escuro e sombrio. null tinha por volta de oito ou nove anos e estava em Salem, visitando seu tio Arnold que, naquela época, nada tinha a ver com repúblicas ou com a universidade e sim com uma falível loja de roupas e fantasias de Halloween. null era hóspede ilustre na casa do tio, pois em Lynn era sempre visitada pelos primos, filhos de Arnold, e sua esposa, Paula. Mas agora era ela quem os visitava, pela primeira e penúltima vez. Eram eles: Cory, Arlinda e null, de 14, 13 e 10 anos, respectivamente. null os adorava incondicionalmente, embora se recusasse a admitir e vivesse dizendo que não poderia ter primos mais irritantes. Em sua vizinhança tinha alguns amigos, mas nem o melhor dos amigos poderia ser comparado ao seu trio de primos incansáveis, que lhe visitavam uma ou duas vezes a cada seis meses, embora morassem perto o suficiente para visitarem todos os dias. O problema era que sua mãe e a esposa do tio Arnold, Paula, não se davam bem desde o colégio, quando estudaram juntas e enfrentaram certas divergências sociais (as quais null entendia como "Paula era a líder de torcida popular e sua mãe a intelectual deslocada"). Logo, nenhuma das duas gostava da ideia de ter seus filhos em contato constante, mas abriam mão do orgulho de quando em quando, convencidas por seus maridos. Eram as melhores visitas que null poderia receber.
No papel de hóspede, null queria fazer um bom trabalho e não decepcionar seus inquilinos, fossem os tios ou os primos. E foi exatamente o que pensou quando, no meio da noite, null – ou melhor, null – apareceu de surdina no quarto de Arlinda, onde null havia se instalado, para convidar a prima para um passeio nada convencional. De primeira, null descrevera o local como "a casa do juiz Corwin" e null não pudera entender o que havia de especial nisso. Mas ao sair da casa dos tios e atravessar a rua, null percebeu que a casa do tal juiz era uma estrutura antiquada de madeira desbotada, janelinhas arrepiantes e uma placa que null já havia visto, mas só então tivera oportunidade de ler: "A Casa da Bruxa".
– O que estamos fazendo aqui, null? – perguntou null, encolhendo-se em seu sobretudo, que a protegia do frio polar que assolava a região e escondia seu pijama do Bob Esponja.
– Como assim "o que estamos fazendo aqui"? Nós vamos explorar a casa da bruxa, sua boba! Eu sempre quis fazer isso, mas não gosto de explorar sozinho. – "todo explorador tem um ajudante intrépido", dizia null para não admitir que morria de medo de "explorar" sozinho. – E nem Cory, nem Arlinda quiseram me fazer companhia. Então sobrou você e como é a garota mais corajosa que eu conheço, vai servir como minha fiel escudeira.
null não sabia se sorria ou se gritava. Sorrir, pois era bom saber que o primo a admirava daquela forma, que ela representava a imagem de uma garota corajosa para alguém. Gritar, pois as expectativas de null sobre ela não permitiam que ela saísse correndo, tamanho o medo que sentia de explorar a casa de uma bruxa maligna no meio da noite congelante de uma cidade com histórico sobrenatural.
– Mas... – null balbuciou, os dentes batendo uns nos outros devido ao frio. – Por que nós precisamos fazer isso no meio da noite? Os seus pais sabem que estamos aqui?
– Claro que não! – bradou null, quase rindo. – Acha que eu sou bobo? Os meus pais nunca iam me deixar fazer isso. E depois, que tipo de explorador explora uma casa de bruxa de dia? Não tem a menor graça e nem faz sentido, pois bruxas não aparecem de dia. Todo mundo sabe disso, null.
– Aparecem? – null tremeu, sentindo um súbito arrepio. – Está dizendo que vai aparecer uma bruxa agora?
– É véspera de Halloween, null! A bruxa já deve estar aí há alguns dias. Vamos pegá-la no flagra com algumas poções mágicas. Poderemos prendê-la e, então, venderemos para... Ahm... Para os caçadores de bruxas. Ganharemos uma grande recompensa e, então, seremos muito famosos. Vamos ficar conhecidos como "null e null, os aventureiros de Salem". – null sorriu e tirou do bolso uma rede de pesca, ainda ensacada, que ele havia comprado no dia anterior. – Isso é o que vamos usar para pegá-la. – disse.
null olhou ao redor, amedrontada. Parecia incrível pegar uma bruxa de verdade e ficar conhecida por todos como corajosa, não apenas por null. Mas e se a bruxa fosse mais esperta que eles? null não poderia imaginar alguém mais esperto do que seu primo, null. Ele tinha grandes ideias para momentos de apuro, levava a vida como se fosse uma grande floresta a ser explorada, imaginava as mais inteligentes armadilhas para pegar os mais assustadores monstros e, muito embora nunca tivesse posto nenhuma delas em prática, na mente de null e null tudo parecia infalível. Ainda assim, null não sabia ao certo o nível de inteligência da mente de uma bruxa. Talvez ela lhes lançasse um tenebroso e irreversível feitiço, que os transformasse em sapos para sempre, ou pior, que os fizesse morrer de forma absurdamente dolorosa. Isso assustava null mais do que ser transformada em sapo – talvez não se importasse se null fosse transformado em sapo, pois dizem que sapos podem se transformar em príncipes após serem beijados por uma linda princesa, mas ela não queria se tornar um sapo, embora a ideia parecesse mais atrativa do que a de morrer.
– Não sei, null... Não sei, não. – disse null. – Eu... Eu tenho medo. – por fim admitiu. Não queria mostrar ao primo que não era tão corajosa quanto ele pensava, mas preferia fazer isso a morrer pelas mãos asquerosas de uma bruxa terrível.
– Ah, você é muito certinha, null. Então, eu vou sozinho. Não se pode explorar sem um ajudante, mas em alguns casos um explorador precisa se impor e fazer valer todo o seu conhecimento. Espero que morra de inveja quando meu nome sair nos jornais sem o seu ao lado. – disse null, enfiando a rede de pesca de volta no bolso e seguindo em frente com seu plano. null ainda gritou seu nome quando o viu entrar sorrateiramente na casa mal-assombrada do juiz sei-lá-o-quê, mas null fingiu que não a escutara. A porta se fechou e null foi deixada sozinha no meio da rua, a encarar uma casa onde uma bruxa vivia às escondidas, esperando pela chegada do seu dia.
null pensou em voltar para a casa dos tios, acordar Cory e Arlinda e pedir para que eles as ajudassem a resgatar null das garras da bruxa. Mas pensou que durante o curto espaço de tempo em que o faria, a malévola poderia fazer picadinho de seu primo e ferver no caldeirão de suas poções mágicas. Pensou, então, em entrar na casa, destemidamente, convencer null a não prosseguir ou, em caso de encontro com a bruxa, derrotá-la com sua força e inteligência, salvando seu primo e ganhando mais admiração do que jamais poderia ter. O medo falava mais alto, entretanto, e null acabou permanecendo parada, no meio da rua, estremecendo de frio e pavor, esperando pelo retorno de seu primo que, com sorte, traria a bruxa presa na rede de pesca. Não se importava em não ter seu nome nos jornais. Se null estivesse feliz por ter seu trabalho finalmente reconhecido, ela estaria feliz ao seu lado.
De repente, um grito.
– AAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHH! ! SOCORRO! ! – a voz de null ecoou pela noite sem estrelas e sem lua da rua Essex.
– ! – null gritou, correndo até a casa. – , ! , EU VOU... – null parou de repente, quando viu seu primo. – Te... salvar...
As gargalhadas satisfeitas de null, Cory e Arlinda não foram tão altas quanto o grito falso e muito bem representado do primo mais novo, mas cravaram-se na mente de null durante o resto de sua vida e estouraram seus tímpanos mais do que qualquer outro som poderia fazer. Eles riam compulsivamente, segurando o estômago e apontando o dedo na direção de uma null confusa, que os encarava escorados na mesinha de uma sala comum, nada fantasmagórica e sem qualquer relação com bruxaria. Cory repetia: "Panaca! Panaca! Caiu como um patinho!", enquanto Arlinda tentava fingir que se importava com null, embora contraditoriamente não pudesse se aguentar em pé com o próprio riso. "Cory, pára! Olha a cara dela, está branca feito farinha!". null repetia, sem cessar: "Bobona! Achou mesmo que existia uma bruxa vivendo aqui? Sua bobona, bobona! Bruxas não existem! Essa casa só é usada pra turismo, pra enganar trouxa! HA, HA, HA!". null pôde sentir a raiva subindo por sua garganta ao ouvir as palavras do primo, que há menos de dois dias acreditava não apenas em bruxas, mas em todos os tipos de seres imaginários, e que provavelmente descobrira a verdade através dos irmãos, de forma tranquila e nada constrangedora e resolvera pregar uma peça na própria prima, que, dois anos mais nova, era ingênua como uma criança deveria ser. null tentou pensar em todos os tipos de palavrões, mas sabia apenas dois: "merda" e "maldição" (damn), os quais não pareciam muito úteis naquele momento. Talvez devesse bater nos primos. Socar até eles morrerem. Parecia apetitoso.
Por via das dúvidas, apenas chorou.
Chorou até seus primos pararem de rir. Chorou até tio Arnold e tia Paula virem ao seu resgate. Chorou até ouvir os primos receberem duas semanas de castigo. Chorou até ser levada no colo de tio Arnold para fora da casa da bruxa, até parar de chorar, quando pensou ter visto, como que em um flash, um vulto se mover em uma das janelas da casa, cuja luz acendeu e apagou tão rapidamente quanto seu coração parou de bater e seus olhos se arregalaram em dúvida. Alguns anos depois, null escolheu por acreditar que bruxas não existiam. E essa convicção permaneceu até o dia em que retornou a Salem, com dezenove anos de idade, para ingressar na universidade Estadual.
~~
– Você conhece a história, null? – perguntou tio Arnold, enquanto acompanhava a irmã e a sobrinha em um passeio independente pela casa do juiz Corwin, mais conhecida como "A Casa da Bruxa". null quisera contestar o passeio que custara por volta de 8 dólares para cada um (até mesmo para null que, logo percebeu, já era tida como adulta e pagava o preço cobrado a tal), pois acreditava que o Halloween, como a maior parte dos feriados – principalmente o Dia dos Namorados – era apenas mais uma forma de gerar dinheiro aos capitalistas do alto escalão da sociedade. Mas desistiu após ser distraída pela lembrança dos momentos de agonia que vivera há cerca de 10 anos, enquanto esperava pelo retorno de seu primo da intrépida "exploração" da casa da bruxa e, principalmente, do que ocorrera depois disso.
– Que história? – perguntou ela, tentando demonstrar algum interesse, por mais que inexistente.
– A história das bruxas de Salem. Eu imagino que não conheça, então vou lhe contar. É o seguinte: por volta do século dezessete, uma escrava da África Ocidental foi trazida para Salem, como era costume na época, a qual começou a contar histórias sobre os costumes de sua terra, que envolviam bruxaria, voodoo, contato com o diabo e superstições, desde gatos pretos à pássaros amarelos e vermelhos. A escrava se chamava Tituba e com suas histórias, acabou assustando algumas mulheres, que passaram a ter constantes pesadelos. Essas mulheres acusaram Tituba de bruxaria e seu caso foi levado ao tribunal. A escrava acabou confessando seu envolvimento com a prática e ainda acusou outras duas mulheres. Juntas, ficaram conhecidas como as Bruxas de Salem, embora o clima de medo que se instaurou pela cidade tenha levado o tribunal a acusar, prender e até matar muitos outros homens e mulheres supostamente envolvidos com magia negra. Tituba, entretanto, foi presa, mas algum tempo depois, solta e, desde então, nunca mais se ouviu falar dela.
Tio Arnold fez questão de usar "aquele tom de suspense" no desfecho de sua pequena história, deixando uma brecha para possíveis, porém errôneas, interpretações. Para null, tudo não passava de uma história boba sobre uma escrava que acabou assustando uma cidade inteira ao revelar hábitos completamente comuns em sua sociedade africana e, levando-os a criar paranormalidade onde não existia, prejudicando muitas pessoas injustamente. Mas ao que parecia, para Salem, a coisa ainda era muito mais séria do que isso. E quem era null para discutir com uma cidade inteira o valor de uma superstição?
– Puxa. Que incrível. – disse null, lutando contra a vontade de usar de muito sarcasmo. Acabou por esforçar-se para parecer realmente interessada.
– E não é? É a história dessa cidade, basicamente. E, sabe, essa casa, a casa da bruxa, é a única estrutura que permaneceu de pé desde os tempos dos julgamentos no século XVII. – disse Arnold, orgulhoso.
– Mas não é uma casa de bruxa de verdade. É a casa de um mero juiz, que só ficou conhecida como a "casa da bruxa" porque é a única casa que restou daqueles tempos. O que não é de se surpreender, quero dizer... Aconteceu no século XVII. – null disse, sem a genuína intenção de criticar a história, apenas de acrescentar um pouco de razão àquele emaranhado de baboseiras supersticiosas.
Sua mãe a encarou com um olhar repreensivo. Claramente, para tio Arnold o comentário fora uma ofensa. Uma ofensa à sua cidade, à sua cultura e às suas crenças. null rapidamente se arrependeu de seu comentário. Talvez fosse melhor mesmo permanecer calada, assentindo com a cabeça e acrescentando um "que legal" quando fosse preciso.
Tio Arnold partiu em defesa da casa. – Ora, mas... O juiz Corwin esteve diretamente envolvido com os julgamentos das bruxas de Salem!
– Eu acho que deveríamos partir em... Um pouco de exploração independente. Que tal cada um de nós conhecermos uma parte da casa sozinhos? – sugeriu a mãe, para o desespero de null. Mas dessa vez, ela não hesitaria em esconder seu medo. Não era mais uma criança ingênua e indefesa e não demonstraria de forma alguma à mãe e ao tio que, ficar sozinha na casa de uma bruxa, mesmo que a casa claramente não pertencesse de fato a uma bruxa, e que bruxas sequer existissem, a apavorava. null assentiria e partiria na tal "exploração independente" de forma destemida.
Destemida!
Eis uma característica que ninguém poderia atribuir a null null.
Quando entrou na casa, null viu um grupo de turistas, em uma visita com direito à guia, subir as escadas para o segundo andar. Decidiu que faria o mesmo e talvez tivesse sorte de encontrar o grupo "acidentalmente". null se sentiria melhor com alguma companhia, mesmo que de completos desconhecidos, do que sozinha à mercê da própria imaginação, que daria um jeito de lhe pregar peças tão frustrantes quanto a que seus primos lhe pregaram anos atrás. Subiu as escadas o mais rápido que pôde, assim que a mãe sumiu de vista e o tio fechou atrás de si uma porta que dava para qualquer lugar. null sabia que se andasse devagar em escadas como aquela, de madeira velha e horripilante, poderia ouvir o ensurdecedor barulho do ranger dos degraus. E, como esperava, o fato de ter sido rápida diminuiu consideravelmente sua agonia. O ranger foi breve.
null não encontrou o grupo de turistas com o guia. Imaginou que, talvez, eles tivessem subido para o terceiro andar. Olhando para todos os lados como se tivesse medo de algo - e tinha -, null começou a procurar pelas escadas. Encontraria o grupo de qualquer maneira. Avistou-as, então, ao fim de um longo e sombrio corredor. "Não tenha medo. Nada pode acontecer.", disse null a si mesma, enquanto seu subconsciente se perguntava se ela estava com medo de uma possível bruxa ou apenas de levar um segundo susto e um segundo trauma por uma brincadeira de mau gosto em sua vida. Mas ninguém havia subido aquelas escadas, além do grupo de turistas, desde que ela chegara. Quem quer que quisesse lhe assustar, teria que já estar na casa há algum tempo. Estariam? Tio Arnold teria alertado seu filho null sobre a chegada da prima e esse teria planejado uma segunda travessura? Ou era tudo fruto da fértil e fragilizada imaginação de null? Onde estavam as preocupações com Harvard agora?
null parou.
Uma das portas, que se encontravam no corredor, abriu-se, e do aposento saiu uma velha senhora. null sentiu seu corpo estremecer da cabeça aos pés. Era uma senhora diferente de todas as outras. Não tinha aquele aspecto de "vovozinha da chapeuzinho vermelho" e sim... Um aspecto de bruxa. Os cabelos grisalhos desgrenhados, crespos e soltos, caindo por sobre os ombros macilentos da velha senhora, que se esgueirava pelo corredor como se seus ossos doessem a cada passo. Usava um vestido preto longo, que definitivamente parecia vir de outro século, com alguns detalhes que lembravam null das vestimentas da Paris pré-revolução francesa. Mas o rosto da senhora era quase deformado de tão feio, as olheiras que quase chegavam às suas bochechas lhe davam um aspecto mórbido, os lábios finos e quebradiços estavam tortos por algum motivo, deixando transparecer alguns de seus dentes incrivelmente amarelados e em alguns pontos inexistentes. Mas antes fosse apenas isso. Era o nariz que assustava null mais do que qualquer coisa. O nariz era grande de forma sobrenatural e, apesar de não conter nenhuma verruga como as bruxas normalmente apresentam, possuía curvas que faziam null lembrar da Rainha Má da história da Branca de Neve, quando transformada em velha senhora vendedora de maçãs. Só que, à luz da lamparina que pendia sob um mostrador preso no papel de parede sujo daquele corredor sem janelas, a senhora se fazia muito mais assustadora. null se sentiu como uma criança, assistindo a um filme de terror – preferencialmente uma mistura de "O Chamado" com "O Exorcista" – pela primeira vez.
A velha senhora encarou null e sorriu. Mas não foi um sorriso amigável, reconfortante. Foi um sorriso maléfico, torto, tão sobrenatural que quase parecia clichê. null pensou em dar um passo para trás, mas seu cérebro não pôde transmitir a ordem às suas pernas. Ela permaneceu parada, exatamente como quando null entrou na casa da bruxa sozinho, e ela se perguntou se deveria ou não segui-lo. Mas, dessa vez, null estava em perigo. A velha senhora se aproximava dela com passos lentos, assombrosos. O ranger ensurdecedor da madeira sob seus pés fazia null se arrepiar. O estado catatônico em que se encontrava apenas piorou. Como se estivesse hipnotizada ou... Enfeitiçada. Ela não conseguia se mover, nem que quisesse. O que estava acontecendo?
Aproximava-se cada vez mais. Aproximava-se. Aproximava-se.
null piscou e, quando abriu seus olhos, a bruxa estava ao seu lado. Não que tenha sido "em um passe de mágica", mas fora essa a impressão que null tivera no estado em que estava, no auge do pavor. Ao seu lado, a velha senhora soltou um murmúrio anasalado, sua voz ecoando pelo corredor e fazendo null ter certeza de que iria morrer, sim, da forma mais absurdamente dolorosa possível. Que "arderia nas chamas do inferno", como diziam os religiosos fanáticos. Ou pior. Porém, suas palavras foram enigmáticas, quase ininteligíveis:
– Que o seu Halloween seja sangrento, minha cara.
E foi embora.
Foi embora.
null não poderia dizer quanto tempo se passara desde que a bruxa deixara o corredor. Ela só poderia dizer que permanecera ali, estagnada, sentindo seus pés colarem-se à madeira do assoalho. Seu coração batia forte em um minuto, para no seguinte não bater. Sua mente lhe dizia que se tratava de uma louca fantasiada para o Halloween, mas seus instintos lhe diziam que ela deveria se preparar, pois o encontro com a bruxa acabara, mas o pesadelo apenas começara. E seus instintos estavam certos, de alguma forma, afinal.
~~
– O que eu posso dizer? – tio Arnold abriu a porta de sua república com entusiasmo. Havia tagarelado incessantemente durante todo o caminho de volta da casa da bruxa. A mãe de null já voltara para Lynn, após uma despedida calorosa, mil perguntas de "você vai ficar bem?" e algumas de "você está bem mesmo? Por que está estranha desde que saímos da casa da bruxa...". – Cory se formou esse ano e está fazendo um estágio em Boston. Estamos todos muito orgulhosos. Ele gostaria de poder estar aqui para recebê-la, normalmente vem nos visitar no Halloween desde que ingressou em Ha... Em uma universidade lá dos arredores da capital. Mas esse ano as coisas estão mais atarefadas, então... Ele mandou lembranças, diz que sente sua falta. Arlinda e null ainda estão aqui. Quase não se lembraram de você quando eu lhes disse, já que parou de falar com seus primos desde aquele dia em que eles...
– Eu estava ocupada, estudando. Não tem a ver com o que fizeram. Eu já esqueci tudo isso. – null justificou, prontamente. De repente, falar de Harvard era muito mais fácil do que falar do episódio de seus oito ou nove anos. Harvard parecia uma bobagem perto do que presenciara na casa da bruxa.
– Oh, sim, sei que sim. Por isso vai gostar de revê-los. Mas em suma, as coisas são bem divertidas aqui na república. Os alunos são os melhores e não creio que vá ter qualquer problema. Quer ver seus primos primeiro ou deixar essas malas no seu novo quarto? – perguntou tio Arnold.
"Não quero ver meus primos", pensou null. Por mais que não quisesse admitir, pois sabia que aquela atitude era uma grande imaturidade de sua parte, ainda guardava rancores de Cory, null e Arlinda pelo que a fizeram passar. Mas, pelo bem de sua reputação, estava disposta a deixar as mágoas para trás e conviver com os primos como sempre deveria ter feito.
– Gostaria de conhecer o meu quarto primeiro. – disse null, timidamente.
– Mas é claro. Venha comigo. Vamos deixar null e Arlinda sofrerem à sua espera mais um pouquinho. Quando se lembraram de você, ficaram ansiosos por sua chegada. Claro que terão tempo de sobra para se reconciliar. Teremos uma pequena festa de Halloween hoje à noite. Não é oficial, sabe, é uma coisa interna, aqui da república. A grande festa mesmo vai ser na segunda à noite, na universidade. Todos estarão presentes, será "a festa do ano". Mas hoje a banda de null vai tocar. Ele tem uma banda, sabia? Canta e toca guitarra, é um prodígio esse menino. Se chama null, a banda. O som deles é muito bom. Você vai gostar. – tagarelou tio Arnold enquanto guiava a sobrinha pela república até o seu novo dormitório.
– O que eles tocam? – perguntou null.
– Ah, você sabe... Música. – disse tio Arnold, como se isso não fizesse muita diferença.
"Mesmo? Achei que eles tocassem comida", pensou null, guardando todo o sarcasmo para si mesma, como fazia na maioria das vezes.
– Sim, mas... É rock, pop, folk, country... Ou música clássica? – perguntou null, enquanto seu tio parava em frente a uma porta e tentava encontrar a chave certa para abri-la.
– Oh, sim, sim... Acho que é pop rock. – disse ele. null cansou de demonstrar interesse. Precisava era de umas boas horas de sono antes da festa que seu tio provavelmente a obrigaria a ir. E, acima de tudo, precisava pôr a cabeça no lugar e tentar se convencer de que o que acontecera na casa da bruxa tinha mil e uma explicações completamente racionais.
– Parece legal. – foi tudo o que conseguiu dizer antes de entrar em seu quarto, jogar as malas na cama e pedir ao tio para lhe dar algumas horas de descanso antes "dessa festa tão maravilhosa". Arnold assentiu. null suspirou, exausta.
~~
Por volta das seis e meia da tarde, null achou que talvez seu tio Arnold houvesse lhe esquecido, o que era excelente, pois ela não precisaria inventar nenhuma desculpa para não ir à festa. null não se sentia nem um pouco disposta, mas sabia que se o tio Arnold lhe pedisse, ela teria que ir por educação. Até porque ainda não vira seus primos e isso poderia parecer um tanto quanto rude de sua parte. Mas null acabou recebendo uma mensagem em seu celular, do tio, que dizia: "Vamos acordar desse sono da beleza, bela adormecida? A festa começa às sete. É um pouco cedo para uma festa, eu sei, mas preciso zelar pela reputação da república. Não esqueça a fantasia!".
"Deus do céu", pensou null ao ler a mensagem, enquanto deixava de lado seu aconchegante livro e saía de baixo de seu ainda mais aconchegante edredom. "Como ele consegue tagarelar até mesmo em uma mensagem de texto?". Levantou-se da cama e seguiu em direção a sua mala, ainda não desfeita, onde estavam suas roupas. null havia tido uma surpresa ao abrir seu guarda-roupa e perceber que tio Arnold lhe disponibilizara algumas fantasias de Halloween (muito provavelmente ainda restantes de sua antiga loja de roupas e fantasias), mas nenhuma delas agradara null e, mesmo que houvesse, ela preferia se vestir como se sentisse confortável. Escolheu uma calça jeans justa, uma camiseta preta com a imagem de Samara Morgan deixando sua moradia no poço – que era o que mais se aproximava de uma roupa de Halloween que havia em sua mala – e um par de tênis converse extremamente surrados, que ela achou que não faria mal usar. Pensou em prender o cabelo, mas percebeu que não estava indo a uma conferência de Harvard e sim a uma festa de Halloween. Deixou-os soltos.
Em seguida, bastou seguir o barulho para encontrar a área da piscina, onde ocorria a "Spooktacular Party", segundo um banner muito amador.
null pôde avistar seu primo antes de qualquer outra pessoa. null null definitivamente havia crescido, era tudo o que null podia dizer. Bem, o que se poderia esperar, afinal, ela o havia visto pela última vez quando ele tinha apenas dez anos de idade. E ainda assim podia reconhecê-lo onze anos depois. Não era difícil, pois null se diferenciava dos outros garotos – ou melhor, homens: quem ainda é garoto aos 21 anos? – por uma combinação incrivelmente atraente de olhos azul-acinzentados e cabelos castanhos. Mas não era apenas isso. Era também a forma triangular de seu rosto, os lábios finos e as sobrancelhas bem delineadas. Para null, talvez fosse algo mais, algo que ela simplesmente não podia explicar, mas que provavelmente se relacionava com o fato de que a expressão divertida de null, rindo ao lado dos irmãos com os dedos em riste, na direção de null, ficara marcada em sua mente, e onze anos não foram o suficiente para fazê-la esquecer.
Como poderia?
Os dois traumas de sua vida – Halloween e Harvard – se reuniam naquele exato momento, pois, dissera sua mãe antes de entrarem no carro para seguirem viagem até Salem, null havia sido aceito na universidade de Harvard, mas desistira de ingressar para tentar sucesso com sua banda estúpida. Algo que null abominava intensamente, mais do que qualquer brincadeira de mau gosto feita contra ela no Halloween. null nunca poderia entender um ato tão irresponsável, tão absurdo. Dispensar Harvard. null dispensara Harvard, enquanto null morria para ser aceita. Era mais do que incompreensível, era cruel e tentador. null se dividia entre a raiva e a inveja, lutando contra ambas, sem sucesso.
null. Sem qualquer fantasia, apenas uma camiseta comum, uma jaqueta de couro, calças jeans e tênis. Afinando sua guitarra calmamente, como se não fosse culpado por um dos maiores temores da vida de null null e intimamente relacionado com o outro.
– ! – uma voz se fez ouvir.
null se virou e avistou Arlinda null, sua prima. Quase esquecera que ela existia, por uma breve fração de tempo. Mas então se lembrara. Arlinda, ao contrário de null, mudara significantemente. Tornara-se uma mulher muito bonita, o que era uma surpresa, porque aos treze anos, até mesmo null – que sempre se considerou desengonçada e excessivamente comum – parecia mais bonita do que ela e seus cabelos sempre bagunçados, estilo desleixado e sorriso indiferente. Mas agora Arlinda estava realmente bela. Alisara os cabelos, null pôde perceber, algo que havia funcionado muito bem em seu rosto triangular como o do irmão. E usava uma fantasia de bruxa clássica: vestido preto longo, chapéu pontiagudo, uma vassoura em mãos.
– Arlinda? – null fez questão de se certificar de que não havia identificado-a erroneamente.
– Eu mesma. Há quanto tempo, não? Da última vez que nos vimos, você estava chorando feito um bebê, com medo da bruxa de Salem. – riu Arlinda, sem a menor noção de como aquilo machucava null por dentro. Claramente, para Arlinda havia sido apenas um momento bobo da infância em que ela rira demais.
– Eu não estava chorando por causa da bruxa. Estava chorando porque meus primos estavam rindo de mim. Mas isso é passado, não é? – disse null, em um tom de voz sugestivo, que Arlinda pareceu não ter captado, embora tenha concordado em mudar de assunto ainda assim.
– Tem toda a razão, prima. Fico feliz que esteja na cidade! Já falou com o papai, a mamãe e o null? – perguntou.
– Com o tio Arnold, sim. Mas minha mãe acabou vindo, então a sua provavelmente se trancou no quarto. – null riu e Arlinda acompanhou. – Ainda não encontrei null. Você sabe onde ele está? – mentiu null, mais para fazer bem a si própria do que para convencer a prima de que não havia reconhecido-o.
– Ah, ele está logo ali, vamos lá falar com ele. – Arlinda puxou null pelo braço, animadamente. Quando se virou de volta na direção de null, percebeu que agora havia uma garota conversando com ele. Era uma garota muito bonita, muito mais bonita do que Arlinda e uma deusa comparada à null. Ela vestia uma fantasia de diabinha, com uma minissaia de couro vermelho, uma blusinha também de couro vermelho, que deixava aparecer parte de sua barriga, os chifrinhos na cabeça, um rabinho com a ponta em forma de uma seta preso à saia e um tridente em mãos. null pôde perceber, de longe, que a garota estava quase que literalmente se jogando em cima de null. E ele parecia gostar, o que irritou null ainda mais, pois ela não conseguia entender como aquele tipo de pessoa conseguira ser aceito em Harvard, enquanto que ela, no auge de sua integridade, afogando-se em um mar de livros, fora rudemente recusada.
– null! null! Olha só quem chegou! – disse Arlinda, ignorando a presença da diabinha.
Ao ver a prima, null sorriu. Um sorriso sincero, mas que ainda guardava resquícios da diversão da noite em que a enganara de forma cruel.
– Ora, se não é null null. Meu Deus, você cresceu, garota! Da última vez que a vi...
– Eu estava chorando feito um bebê com medo da bruxa de Salem, eu sei. Gostaria que não me lembrassem disso a cada cinco minutos.
null riu. – Eu ia dizer que você era baixinha e magricela, mas isso também. Ao que parece, você ainda não superou, não é? Nunca vai nos perdoar? Foi só uma brincadeira, null, coisa de criança. – disse ele, mas não falava em tom repreensivo, falava em tom divertido, aquela diversão que parecia acompanhá-lo todo o tempo, e que olhava para null com a mesma cara de nojo com a qual a diabinha fazia.
– Não, eu superei sim. É que todos parecem querer lembrar isso... Arlinda, tio Arnold... Bom, deixa pra lá. Você também cresceu, sabia? Mas não mudou tanto quanto achei que mudaria. – disse null, nervosa. A última coisa que queria que pensassem era que ela era uma neurótica obcecada por coisas superficiais, embora, de alguma forma, ela fosse um pouco disso, sim.
O primo riu novamente. – É verdade, continuo tão perfeito quanto antes, obrigado por lembrar. Mas agora tenho uma banda, e...
– nullzinho, querido... Você prometeu que a gente ia dançar. Olha só, essa música é perfeita. É a nossa música. Vamos? – a diabinha interrompeu, após direcionar um olhar fuzilante à null e até mesmo à Arlinda. A música que tocava era "Keeps Gettin' Better", da Christina Aguilera.
– Corinne, achei que a nossa música fosse "If You Seek Amy", da Britney. Pelo menos foi isso que você disse ontem à noite. – null riu. A irmã riu também e null se viu forçada a rir, embora não tivesse achado o trocadilho engraçado.
– Aff, null, como você fala! Vamos dançar logo! – Corinne segurou em uma das mãos de null e tentou puxá-lo para a pista de dança, mas ele a soltou antes que ela pudesse fazê-lo.
– Desculpe, mas null acabou de chegar e ainda temos muito a conversar. Por que não vai dar para alguém do time de futebol? – null sugeriu. Arlinda gargalhou. Corinne bufou de raiva.
– Tá. Mas não venha me implorar para voltar para você depois.
– Deixa comigo. – disse null, tomando um gole de seu refrigerante, serenamente. Corinne se retirou, dando passos firmes e irritados.
– Ah, null, eu pensava que a vadia nunca ia sair daqui. – disse Arlinda, sorrindo. – Você estava dizendo à null sobre a banda. – disse ela, mas assumiu ela própria o controle da conversa. – null, o null é a melhor banda que existe. Espera só até você ouvir o novo som deles, está simplesmente incansável. É a banda de maior sucesso aqui em Salem e olha que até agora só lançaram duas músicas! Pra você ver como o talento deles é indiscutível. E, é claro, o null é o melhor. Ele é o vocalista, mas também toca guitarra, não é, null?
– É, modéstia à parte, eu arraso. Mas não posso deixar de dar os devidos créditos aos garotos. Se eu estivesse sozinho, não ia conseguir tanto sucesso por aqui. Eles são realmente incríveis. Juntos, eu digo, nós somos a melhor banda que você já ouviu. – null sorriu.
– Bom... Eu ainda não ouvi nada. – disse null, sorrindo.
– Você vai ouvir, espera só os garotos voltarem, eles foram comprar mais cerveja. – disse null. – Ah, mas que indelicadeza da minha parte. Quer um gole? – null estendeu o copo em sua mão à null, que ao notar a bebida, perguntou-se como pôde pensar que era refrigerante, uma vez que a diferença era óbvia.
– Não, obrigada. Eu não bebo. – disse null, um pouco encabulada.
– Ah. – null pareceu surpreso. – Faz certo. – e tomou um gole que esvaziou seu copo.
Arlinda deixou null e null a sós, pois o namorado – o qual null considerou desengonçado demais para uma mulher tão bela quanto Arlinda – havia chegado. null continuou a falar sobre sua banda e null se sentiu feliz por ele não mencionar nada relacionado à Harvard, como se ele soubesse que ela havia passado por uma rejeição recentemente e não estivesse interessada em ouvir nada do tipo. A conversa acabou se tornando prazerosa para null, que passara tanto tempo pensando no sofrimento que null lhe proporcionara que acabara esquecendo de todas as suas inúmeras qualidades. Acabara esquecendo o quanto ele era extrovertido, com espírito de aventureiro, sempre disposto à novas experiências e com muitas histórias a contar, histórias agradáveis de se ouvir. Mas null também perguntou sobre null, sobre sua vida, seus planos para o futuro, que curso ela planejava fazer na universidade de Salem, que fantasia planejava usar na festa da universidade na noite do Halloween – nenhuma, pois não era muito apegada à fantasias, algo com que null se identificou, embora tenha deixado escapar que "você ficaria linda de bruxa, além de que seria irônico" – e como estava sua mãe, seu pai, sua família em geral. null nem viu o tempo passar, as músicas mudarem, o olhar de Corinne, ao longe, dançando com um garoto do qual ela nem mesmo sabia o nome, estraçalhando null com a serra da inveja e a metralhadora do ciúme.
null e null relembraram bons momentos do passado, de quando eles costumavam "explorar" juntos pela vizinhança de null na cidade de Lynn, do dia em que encontraram uma página de um livro e, não sabendo ainda ler, acreditaram – ou fingiram que acreditaram, para dar vida à brincadeira – terem encontrado um mapa do tesouro ininteligível. À medida que o tempo passava, null percebia que havia deixado que a raiva e o rancor dominassem sua vida durante tantos anos, os quais ela podia ter aproveitado ao lado dos primos, gerando tantas outras lembranças felizes, tantas memórias mais a serem relembradas naquela conversa. Sem nem perceber, null fez com que null deixasse de lado, por uma noite, toda a sua frustração em relação à Harvard. Não queria deixar de viver bons momentos por causa de um trauma que já deveria ter sido superado há mais de três meses.
null até mesmo aceitou uma bebida, após algum tempo conversando. Aceitou uma e então duas e, então, três. E então, não estava mais contando. Estava se divertindo como há muito tempo não se divertia. Até mesmo contara a null sobre o ocorrido na casa da bruxa mais cedo naquela manhã, quando encontrara uma velha senhora que lhe desejara um "Halloween sangrento". null rira, dissera que provavelmente era uma senhora esquizofrênica que andava pelas ruas de Salem, assombrando os habitantes há anos, mas nunca fizera nada de efetivo. Nenhuma de suas previsões nunca se concretizara e nenhuma de suas supostas noites de feitiçaria nunca funcionara contra ninguém. Os habitantes de Salem até mesmo passaram a gostar dela, considerá-la um "símbolo" para a cidade. null se sentia em paz. Todo o sofrimento, toda a dor, toda a angústia estava desaparecendo gradativamente. Ela ria cada vez mais alto e até chegara a lançar um olhar de pena zombeteira para Corinne. E era sempre um copo de bebida para cada momento de felicidade.
DIA 30
– E, então. – null disse, em um tom de voz alto, entre uma risada e outra, com um copo de cerveja em mãos. – Eu disse... Que ela parecia uma vaca de patins. – e riu, ainda mais alto.
– Não brinca! – disse null. – Disse mesmo isso?
– Bem, eu só disse a verdade! – null sorriu. null a estava acompanhando de volta até seu dormitório, embora null tivesse insistido em ficar na festa, que já estava no fim. Passava das três da manhã e Arnold, que havia permitido que os estudantes passassem do horário previamente estipulado, decidira acabar com a festa antes que a polícia viesse bater em sua porta. null mal podia ficar de pé, tamanha era sua felicidade. null a estava ajudando a voltar para o seu quarto, com os braços segurando sua cintura e a impedindo de cair. Ainda assim não era o suficiente e volta e meia null tropeçava em seus próprios pés.
– Ooops... – disse null, quando isso aconteceu pela quinta vez seguida. – Desculpe, eu estou sendo um fardo para você, sei disso.
– Não é isso, null. – disse null. – Só acho que você bebeu demais, só isso.
– Bem, eu já sou maior de idade.
– É, mas nunca bebeu antes, não devia ter exagerado na primeira vez.
– Tá, tá, tá. Agora você parece a minha mãe. – Chegaram à porta do dormitório de null, que sorriu, agradecida. – Obrigada, null. Foi uma noite realmente divertida. Vejo você na festa da universidade, não é? Sabe, acho que vou me fantasiar sim. De bruxa, como você sugeriu. Mas não uma bruxa clássica, como a Arlinda estava vestida hoje. Eu estou pensando em uma bruxa mais sensual...
– Boa noite, null. – sorriu null. – Não chegue perto de objetos cortantes, está bem?
– Tá, tá, tá. – disse null, sorrindo. Entrou em seu quarto e em seguida fechou a porta. Nunca havia se sentido melhor em toda a sua vida.
~~
Toc, toc, toc.
null ainda estava aérea, não havia conseguido dormir, então ouvir alguém batendo em sua porta fora um alívio para ela. Com certeza era null, de volta para nunca mais ir embora novamente. null sorriu. Eles ainda tinham mesmo muito o que conversar. Ainda não haviam falado o suficiente sobre a música do null, que null pudera comprovar, era realmente incrível. Ela queria pedir à null para ensiná-la a tocar guitarra, a cantar. Talvez ele até deixasse que ela entrasse para a banda. null poderia abandonar a faculdade como ele fizera, para investir em sua carreira musical. Agora, a ideia não mais parecia assim tão absurda. Pois aquela sensação de felicidade intensa, de alívio, de paz que a festa lhe proporcionara, aquela sensação não poderia ser trocada por nada no mundo, fosse pela melhor universidade – Harvard – ou pela pior – Salem. null já havia até treinado algumas músicas em frente ao seu espelho, após a saída de null. Ele gostaria de ouvi-la cantar. null tinha a impressão de que sua voz não era tão ruim quanto pensara ser durante todos aqueles anos. "Mas é claro", pensou ela. "Eu estava sufocada por aqueles livros estúpidos e nem tive tempo de aproveitar a minha vida".
– null – disse null, ao abrir a porta. – Eu estava mesmo...
Mas não era null. null se surpreendeu e até deixou seu queixo cair um pouco, ao ver Corinne na companhia de duas garotas à sua porta.
– Oi. Você é null, não é? – disse Corinne. Ela ainda estava usando a mesma fantasia de diabinha. As amigas eram tão bonitas quanto elas, uma delas era até mais, null pôde notar. Era uma ruiva que estava vestida como uma vampira, com o mesmo toque sensual que Corinne adicionara à sua fantasia. A outra garota estava vestida de bruxa. A exata fantasia da bruxa provocante que null gostaria de usar na festa da universidade.
– Sou.
– Olha... Eu sei que ficou um clima meio estranho hoje na festa, sabe, por causa do null. Mas eu não queria que você pensasse mal de mim, nem nada. Eu só quero ajudar. Meu nome é Corinne Morbiden, aliás. Essa – com os olhos, apontou para a bruxa – é a Vicky Hickersonn, e essa – apontou para a vampira ruiva – é a Tammy Carson. Nós viemos juntas porque, bem, temos uma experiência em comum que gostaríamos de compartilhar com você. Será que a gente pode entrar?
– Ah... Pode, claro. Entra aí. – null abriu completamente sua porta e as três garotas adentraram o quarto. Corinne foi a primeira a falar.
– Bem, eu serei breve. A gente só queria te alertar em relação ao null null. É que... Bem, você é nova por aqui, então, provavelmente perdeu algumas coisas. Mas a verdade é que o null é um verdadeiro canalha. E digo isso, de verdade, eu estava apaixonada por ele no semestre passado, e tínhamos começado a namorar. Eu era uma garota completamente inocente e ingênua, assim como você e, bem, o null me mudou completamente. Ele me fez começar a beber, a fumar e até a usar drogas. Tudo bem, eu sei que isso... Bem, isso pode ser relativo, sabe, algumas pessoas concordam, outras não. Não sei como se posiciona em relação à esse tipo de coisa, mas não é sobre isso que eu vim falar.
"A questão é que o null te transforma nessa garota super vadia, sabe, para simplesmente transar com você e depois te jogar fora como se fosse tralha. Eu não fui a única vítima dos joguinhos de sedução dele. Vicky e Tammy estão aqui para provar isso. Elas também se apaixonaram por ele, porque ele é o mais popular, é líder do null e coisa e tal, além de ser muito lindo, então é difícil evitar. Mas ele as seduziu também e depois... As largou. Passou para outra. Entende? Eu não sei o que você tem com o null e, tipo, se quiser mesmo só transar e pronto, acho que encontrou o cara certo. Mas viemos aqui porque... Talvez você seja uma de nós. Talvez esteja apaixonada e não queremos que se decepcione depois."
– É verdade, null. Somos testemunhas disso, o null usa as garotas. Não gostamos de ser brinquedos e achamos que você também não gostaria. – disse Tammy.
null suspirou. Acreditar ou não acreditar? Pela primeira vez naquele dia, agiu de forma racional, pesando os prós e os contras da situação. Prós:null havia sido, de fato, galanteador até demais. Ele a oferecera bebida e tratara Corinne como lixo, talvez para impressionar null. Além de que,null null tinha um certo histórico em fazer null se sentir mal. Apesar dos momentos bons que passaram juntos, null não poderia esquecer de sua expressão divertida, rindo em companhia dos irmãos, satisfeito por ter enganado a prima e tê-la feito "cair como um patinho". Contras: Corinne era confiável, afinal? null havia sido mau com ela, mas ela mesma não agira como uma boa samaritana. A sua pose, os seus olhares direcionados à null e até mesmo sua fantasia indicavam uma garota que sempre fora uma verdadeira vaca e não uma que se tornou devassa apenas para agradar ao namorado. Vicky e Tammy pareciam tão vadias quanto a abelha-rainha. Valeria à pena confiar nelas, quando a verdade era que null poderia continuar sendo o mesmo garoto legal e corajoso de sempre, "perfeito", como ele mesmo se auto descrevera? De repente, uma luz veio à mente de null. E ela se arrependeu de ter tido o trabalho de pôr tudo isso na balança.
Riu. – Ah... Olha, meninas... Eu agradeço mesmo que estejam tentando me ajudar, mas... Eu não tenho nada com o null e nem pretendo! Quero dizer, ele é meu primo! Isso seria completamente incabível. Não é necessário que tentem me ajudar, porque eu não preciso de ajuda. Mesmo. – disse null.
– Bem, null... De qualquer forma, precisávamos alertá-la, porque o null sabe como seduzir mesmo a garota que mais o odeie no mundo. Quero dizer... Todo mundo sabe que ele dormiu com a própria irmã. O que uma prima não seria para ele, não é? – disse Vicky. Corinne e Tammy concordaram prontamente.
– Não, não, espera aí... null nunca faria isso.
– Está vendo como você ainda é ingênua demais? O mundo é cruel, null. null é cruel. Sentimos muito, mas é a verdade!
– Não, não é a verdade. null pode muito bem ser tudo o que estão dizendo, mas ele nunca dormiria com a própria irmã! Isso é um absurdo, eu o conheço. Sei que ele não é o melhor dos homens, mas ele não é um psicopata. Não faria isso nem por um milhão de dólares, eu garanto a vocês. Ouviram uma fofoca muito mal elaborada! – bradou null. No instante em que aumentou o tom de voz, começou a se sentir bem novamente. Como era bom gritar com as pessoas! Extravasar a raiva que sentira durante todos aqueles anos. Mais do que rir, gritar era maravilhoso.
– null, nós...
– NÃO, PAREM COM ISSO! Vocês não passam de invejosas, mentirosas! Só porque o null te deu um fora, Corinne, veio com essa vingança de oitava série para cima de mim? Quantos anos acha que eu tenho, onze? Por favor! Saiam do meu quarto. AGORA! SAIAM JÁ! VOCÊS SÃO PATÉTICAS! – gritou null, sentindo-se melhor a cada sílaba pronunciada em alto tom de voz.
– Tudo bem, se é o que você quer. Não diga que não avisamos. – disse Corinne e elas se levantaram e se dirigiram até a porta.
– ISSO. VÃO EMBORA, VADIAS! FILHAS DA PUTA! VACAS!
– Vamos mesmo deixar ela nos chamar assim? – foi o que null ouviu Tammy dizer, ao aproximar-se de Corinne, poucos centímetros fora do quarto.
~~
Quando acordou, a primeira coisa que sentiu foi a dor. Uma dor de cabeça infernal. null sentia sua pele latejar, como se os músculos de sua testa pulsassem incessantemente. Abriu os olhos e viu a luz que entrava por sua janela, mas então os fechou novamente. A luz fazia seus olhos doerem. De olhos fechados, começou a se lembrar do que ocorrera noite passada. Claramente ela bebera demais. Não devia ter cometido tal imprudência. A dor de cabeça era o seu castigo. Nunca experimentara uma ressaca de verdade, mas agora que passava por isso, preferia ser rejeitada em todas as melhores universidades do mundo mil vezes seguidas a sentir mais uma vez aquela dor que parecia que nunca ia passar. Lembrou-se de ter lido em um livro que havia apenas um remédio infalível para curar a ressaca: não beber na noite anterior. E null sentia como se tivesse bebido dez barris inteiros de cerveja. Lembrava de null, de seu sorriso, de suas palavras. Era bom conversar com ele, mas com certeza seria melhor se o fizesse sóbria. E, então, lembrara-se de Corinne, Vicky e Tammy. Elas haviam ido ao seu quarto um tempo depois que null fora embora, tentar convencê-la a não transar com ele. Que loucura! Como elas poderiam ter pensado que null seria capaz de dormir com o próprio primo? A ideia só deixava null ainda mais apreensiva. null era como um irmão para ela. Deixou escapar um sorriso. "Que viagem a dessas garotas, pensar que null e eu... Que absurdo", pensou. E então decidiu abrir os olhos. Encarou a luz, aguentou a dor. Iria se levantar, tomar um banho bem quente, pois fazia muito frio naquela manhã. Ela se sentiria bem melhor após beber a quantidade que havia bebido de cerveja, convertida em água. Sim, dez barris, se fosse necessário. Levantou-se. Mas em seguida caiu novamente. Caiu de susto, de pavor, de medo. Caiu ao ver Tammy Carson morta no chão de seu quarto.
~~
null tentou se acalmar, mas seu coração batia tão forte quanto fizera quando ela se deparara com a velha senhora horripilante na casa da bruxa. null olhou para o seu próprio corpo e pôde ver a sua camiseta com a imagem de Samara Morgan deixando o poço completamente ensanguentada. Sua calça estava ensanguentada, sua cama estava ensanguentada. O chão de seu quarto estava ainda mais ensanguentado. Era uma horripilante poça de sangue que saía de dentro do corpo de Tammy, perfurado com uma faca que ainda se encontrava no mesmo lugar. Bem ao meio da barriga da garota. null podia sentir o cheiro do sangue. Sangue de verdade. Mas não conseguia encarar a garota por muito tempo sem passar por uma crise nervosa que talvez resultasse em um AVC, embora ela nunca tivesse enfrentado problemas cardiovasculares. Os seus olhos estavam fechados. Ela provavelmente sangrara até a morte. Agonizara – após null enfiar a faca em seu corpo. Bem, fora o que acontecera, não fora? null não se lembrava. Não se lembrava de nada. Mas o que mais poderia ser?
Encostou-se na parede e deslizou ao chão, devagar. Chorou. Havia matado uma pessoa. Por quê? Fora a bebida que a fizera agir de forma tão cruel? Claro que sim. Ela nunca tiraria uma vida em sã consciência. Ou tiraria? Não, é claro que não. null não tiraria uma vida em sã consciência, a bem da verdade, não tiraria uma vida nem mesmo sob efeito de álcool, drogas ou qualquer outro tipo de merda. null jamais faria algo daquele tipo. Mas ela fizera. Por que, então? Qual fora o motivo? Bem. Talvez não tivesse sido ela. Mas como? A garota estava ali, no chão de seu quarto, ensanguentada, com uma faca em sua barriga. Quem iria matá-la e jogá-la no chão de seu quarto para incriminar null? Corinne e Vicky? Mas eram amigas de Tammy! E apesar de parecerem grandes vadias, Corinne e Vicky não matariam uma pessoa apenas para incriminar outra. Mesmo que fossem psicóticas e tivessem coragem de fazê-lo, não deveria ser alguém aleatório? Por que Tammy? Logo Tammy, que estava ao lado delas! Não poderia ter sido Corinne. Nem Vicky. E null? null mataria Tammy? Não parecia haver qualquer motivo para isso. Tio Arnold? Tia Paula? Arlinda? Não – fora null.
Havia uma explicação restante. Neurótica, sim, mas deveria ser levada em consideração. A senhora. A bruxa, melhor dizendo, que null encontrara na casa mal assombrada. Ela previra o acontecimento, e ao contrário do que null dissera, a profecia se cumprira. A bruxa lhe dissera. Ou melhor dizendo, a bruxa lhe amaldiçoara. Desejara-lhe um Halloween sangrento. E ali estava ela, na véspera do dia do Halloween, envolta por sangue. Sangue humano. O sangue de Tammy Carson. Só podia ser isso – a bruxa não era apenas uma velha senhora esquizofrênica, como pensava null. A bruxa era uma bruxa de verdade. Uma bruxa de Salem! Talvez fosse a própria Tituba! Amaldiçoando null, fazendo-a matar uma pessoa. Dessa forma, não teria sido por efeito da bebida. Teria sido por meios sobrenaturais. null null matara Tammy Carson sob efeito de bruxaria. Sim, pois se não fora Corinne, Vicky, null, Arlinda, Arnold ou Paula, só poderia ser null, mas a própria null, contraditoriamente, não poderia ser.
Logo se lembrou do dia em que null, Arlinda e Cory lhe pregaram a peça da bruxa, quando tio Arnold a carregava de volta para sua casa e null vira. Ela vira um vulto se mover em uma das janelas, a luz ligar e então se apagar rapidamente. Já havia alguém lá, e era a Bruxa de Salem. Talvez tivesse se irritado com o choro de null e, na primeira oportunidade, aproveitado para se vingar. Era só o que restava. Bruxaria.
null encarou novamente o corpo de Tammy. Ela só gostaria de entender como acontecera. Lembrava-se perfeitamente do momento em que Tammy, Corinne e Vicky deixaram o seu quarto. Elas haviam ido embora. Como então null matara Tammy? Teria null ido até o quarto de Tammy e a matado? Não. Provavelmente, Tammy voltara ao quarto de null para tirar satisfações sobre tudo o que ela dissera às meninas. Sobre elas serem vadias, filhas da puta, vacas. null lembrava-se de que Tammy não havia gostado. Claramente ela retornara. E null perdera o controle. Mas então, por que não se lembrava de nada? Só podia ser bruxaria. Por mais ilógica que fosse essa explicação, no momento era a explicação mais lógica.
~~
null trocou de roupa. Deixou seu quarto e trancou a porta. Teria que procurar ajuda. Esperava encontrar null, embora não soubesse ao certo qual seria sua reação ao descobrir que a prima era uma assassina. Talvez tio Arnold aceitasse melhor, talvez ele a entendesse. Entendesse que não fora especificamente ela, mas ela sob domínio da bruxa de Salem. Tio Arnold acreditava naquelas coisas. Sim. Ele deveria saber.
Mas antes que pudesse ir até a sala de seu tio, deparou com Corinne Morbiden e Vicky Hickersonn no meio do corredor.
– null! – chamou Corinne. null estremeceu. – Que bom que a encontramos. Ontem você estava meio bêbada, então pode ter sido difícil assimilar a nossa conversa...
– Eu assimilei tudo perfeitamente, Corinne. – disse null, a voz falhando um pouco.
– Ah. Bem, é que você nos enxotou e, tipo, estava gritando e nos chamando de um monte de coisas... – Corinne lembrou, tentando forçar uma risada para quebrar o gelo.
– Desculpe. Eu não devia ter feito aquilo. Ontem, eu... Não estava em mim. – disse null, e era verdade.
– Bem. Imagino que deva estar morrendo de dor de cabeça agora, não é? Sei como é uma ressaca. – disse Vicky, sorrindo gentilmente.
– É bem pior do que vocês imaginam... – null sussurrou, mais para si mesma do que para elas.
Corinne assentiu. – Você viu a Tammy por aí? Seria bom pedir desculpas à ela, porque, na verdade, foi ela quem se ofendeu mais. Eu e a Vicky nem nos importamos, sabíamos que você não estava bem, pois tinha bebido demais.
– Eu... – null perdeu a fala. De repente, a atitude daquelas garotas, tão amigável e reconfortante, a fez sentir um remorso gigante. Julgara Corinne e Vicky como as piores garotas do mundo e, no entanto, eram elas que estavam lhe tratando bem. E null havia matado a amiga delas. Talvez ela devesse lhes contar. Explicar que não fizera por querer, que a bruxa de Salem tomara conta de seu corpo e fizera valer de sua maldição. O Halloween sangrento. Talvez elas lhe entendessem, talvez até lhe ajudassem, lhe dissessem o que ela deveria fazer. Sim, em uma recaída súbita, null deixou-se levar pelo sentimentalismo e contou a verdade às amigas da garota que ela matara. – Eu a matei. – Os queixos de Corinne e Vicky caíram ao mesmo tempo, quase tocando o chão. Seus olhos se arregalaram e elas também perderam a fala. null tratou de explicar o que acabara de dizer. Talvez tenha soltado tudo rápido demais. – Não, quer dizer... Eu... Matei. Mas não foi por querer, eu juro. Eu estava louca! Não sei o que deu em mim. Bem, na verdade eu sei o que deu em mim. Foi... Foi a bruxa! A bruxa de Salem! Eu a encontrei na casa da bruxa ontem de manhã, e ela me disse, me disse que eu teria um Halloween sangrento. Ela me jogou algum feitiço, eu sei, ela... Ela me fez matar a Tammy. Eu não queria, nunca faria algo desse tipo. Juro.
Corinne e Vicky ficaram ainda mais atônitas. Não conseguiram assimilar um terço do que null dissera. Parecia a mais ridícula das desculpas para se assassinar alguém, e, por isso, parecia genuína. Porque se null tivesse que inventar uma desculpa, inventaria algo bem mais elaborado. Ainda assim, talvez Corinne e Vicky não estivessem preparadas para ajudar uma assassina.
– Você... – Vicky balbuciou. – Você é uma assassina! Uma grande assassina! Como pôde? A Tammy, oh, meu Deus... Tammy... – Vicky gritou.
– Espera, Vicky. Talvez... – Corinne hesitou. Talvez não soubesse ao certo se deveria mesmo dizer aquilo. – Talvez ela tenha estado mesmo sob efeito de bruxaria. Quero dizer... Se lembra do Halloween passado? Quando eu...
Vicky se calou. Um silêncio penetrou o corredor.
– O que aconteceu, Corinne? – perguntou null, a voz ainda mais falha do que antes.
– Eu bati na minha... Na... Na minha irmãzinha. Assim, foi só um tapa. Mas eu nunca tinha feito isso antes e... Eu... Não me lembrava. Fiquei sabendo por Vicky e Tammy, que viram tudo. Mas eu não me lembro desse momento. Então, eu... Bem, é que uma semana antes eu tinha... Tínhamos pregado uma peça naquela velha senhora que vaga pelas ruas de Salem dizendo coisas sem sentido. Nós fizemos um mal a ela e ela disse que íamos nos arrepender. E na semana seguinte, bati na minha própria irmã, de três anos. Acho que foi bruxaria. – ela encarou Vicky, que parecia atordoada. Vicky, então, encarou Corinne de volta e por fim disse:
– Lembro muito bem. Eu vi quando aconteceu. É verdade, a Corinne bateu na irmã dela. A... Carly. – e então olhou para baixo, pensativa.
– Então vocês me entendem! Oh, meu Deus! Vocês me entendem! – null, de repente, abraçou-as. Nunca imaginou que abraçaria duas estranhas daquela forma, mas aquela era uma situação completamente diferente de todas as outras que já vivera. Não tinha nada a ver com a peça que null e seus irmãos pregaram nela quando pequena, nem nada a ver com Harvard. Era um assassinato e null deixaria todo o seu orgulho de lado, pois precisava da ajuda de pessoas como Corinne e Vicky, pessoas que a entendiam.
A voz de Corinne soou amável. – Entendemos, null... Entendemos. E vamos ajudá-la. Onde está a Tammy?
~~
Corinne e Vicky entraram no quarto de null devagar e mal conseguiram prosseguir após avistarem o corpo de Tammy ao chão, no mesmo lugar em que estava quando null saiu – o que, naquelas circunstâncias, null considerou algo bom. Corinne e Vicky ficaram sem dizer nada por alguns instantes e null achou melhor não interromper. Mas então, de repente, Vicky quebrou o silêncio com uma ideia que provocou em null inúmeros calafrios.
– Vamos jogá-la no rio. – disse ela.
– O quê? Ficou louca? – Corinne protestou. null permaneceu calada.
– É a melhor opção, Corinne. A não ser que queiramos que null seja presa. Podemos jogá-la no rio Danvers. É raso e ela com certeza não vai afundar. Virá à tona em algum momento e alguém irá encontrá-la. Eles não saberão quem a matou. Irão enterrá-la e isso permanecerá um mistério para sempre.null não será prejudicada, o que é bom, não é? Porque ela não é culpada de verdade. É tudo... Bruxaria. Depois que tudo se resolver com a Tammy, vamos dar um jeito de mostrar para as pessoas que aquela senhora não é esquizofrênica, é uma bruxa mesmo. Vamos expulsá-la da cidade. – Vicky expôs seu plano. Para null, parecia infalível. Cruel, sob certo ponto de vista. Mas se ela não tinha mesmo matado Tammy em sã consciência, então era justo. Mas esperou Corinne se manifestar para que pudesse dar seu voto positivo.
Corinne se abaixou, aproximou-se do corpo de Tammy e fitou o sangue que já havia secado e se impregnado em sua roupa, por alguns minutos. Em seguida, desviou seu olhar para Vicky e null, que a encaravam, com um olhar assustado. Suspirou e por fim disse:
– Parece... Lógico.
~~
Para tirar Tammy do quarto de null havia sido realmente complicado. Elas concordaram em escondê-la sob um dos edredons de cor mais escura de null e levá-la até o carro de Corinne quando ninguém estivesse olhando. Enrolá-la no edredom fora fácil, mas encontrar um tempo para levá-la até o carro de Corinne deu um pouco mais de trabalho. Vicky teve que convencer alguns alunos a ficarem em seus quartos, pois segundo ela, havia um grande e horripilante rato se esgueirando pelo corredor. Funcionou com as meninas, mas os meninos não caíram, e Vicky teve que induzi-los a acalmar as garotas. A passagem de Corinne e null, que carregavam Tammy enrolada no edredom, foi extremamente rápida, e o coração de null batia mais forte a cada segundo. Em um certo ponto da passagem, null pensou que não fosse aguentar e que fosse desmaiar de pavor ali mesmo, denunciando seu ato, estragando os planos de Vicky e Corinne e melhorando os da bruxa de Salem. Mas pensou que agora duas outras garotas estavam envolvidas e que, se ela desse o braço a torcer, estaria prejudicando não apenas ela, mas meninas inocentes que só estavam tentando ajudá-la. Respirou fundo e continuou o trajeto, carregando com dificuldade o corpo de Tammy, que parecia pensar 500 kg ao invés de 50. Chegando ao carro, Vicky abriu rapidamente o porta-malas e elas colocaram Tammy nele com cuidado. Fecharam-no e Corinne dirigiu até o rio Danvers, no litoral de Salem.
As águas do rio Danvers eram calmas e límpidas como null imaginava que era o céu para o qual Tammy havia ido. A tranquilidade do local foi rudemente quebrada pela chegada das três garotas que carregavam um cadáver. Às margens do rio, Corinne disse à Vicky e null que elas deveriam descobrir o corpo, para que fosse mais fácil localizá-lo. Também disse que após jogá-lo, elas deveriam imediatamente ir embora, para não deixarem mais vestígios de que estiveram ali. Assim fizeram e null pôde sentir dor maior do que a de ser enganada pelos primos ou rejeitada por uma faculdade: fazer algo genuinamente errado, ainda que por um motivo que só era correto se visto sob o ponto de vista sobrenatural, o qual poucas pessoas tinham capacidade de ver. Assim que o corpo de Tammy foi jogado no rio, por Corinne, null e Tammy, que se apoiavam em pedras um pouco acima do nível da água, as envolvidas apressaram-se em voltar para o carro e ir embora. Viver suas vidas normalmente e esperar que alguém descobrisse o corpo de Tammy, contatasse seus pais, lhe fizesse um enterro decente, no qual null compareceria, pedindo desculpas por tudo e prometendo à garota que mal pôde conhecer que lhe faria justiça – vingaria sua morte, prendendo a grande bruxa de Salem, vulgo velha esquizofrênica e pseudo inofensiva.
Logo, tudo estava acabado. null, Corinne e Vicky estavam de volta à república. As novas amigas se ofereceram para ajudar null a limpar todo o sangue de seu quarto, mas null recusou. Precisava de um tempo sozinha para pôr suas ideias em ordem, assimilar os recentes acontecimentos, respirar. Sobreviver. As amigas entenderam e voltaram para seus respectivos quartos. null passou o resto da tarde limpando o seu dormitório. Retirou todos os panos manchados de sangue e os entocou em algum canto do guarda-roupa. Lavou e lavou sem cessar, com muito sabão e muito detergente. Chorava copiosamente enquanto esfregava o assoalho, mesmo que ali não houvesse mais mancha alguma de sangue.
Só terminou no fim da tarde. Em algum ponto do dia, seu tio Arnold fora lhe visitar e se surpreendera com sua atitude. Perguntara-lhe a razão daquela limpeza e null inventara alguma desculpa da qual não se lembrava muito bem. Seu tio não estranhara. Sorrira e lhe dissera que, se precisasse de alguma coisa, era só chamar. null assentiu. Mal conseguia pensar sob a máscara da impunidade que a sufocava como uma forca. Deveria sentir culpa? E se, afinal, houvesse matado Tammy sob efeito do puro álcool e houvesse culpado a velha senhora apenas para se isentar da culpa e conseguir o apoio de Corinne e Vicky, que, por coincidência, haviam passado por um problema parecido? Seria uma psicopata? Iria para o inferno? null não sabia mais de nada.
~~
Foi à noite que desceu para o refeitório, ponto de encontro dos alunos, para descansar e livrar-se daquele cheiro de detergente que assolava o seu dormitório. Não imaginava como poderia dormir ali pelos próximos quatro anos, sabendo o que acontecera logo no segundo dia. Talvez devesse apenas esperar alguns meses, deixar a poeira de sua mente baixar, certificar-se de que não restava nenhuma prova e, então, pedir transferência de quarto. Talvez de andar. Talvez de república ou, quem sabe, de cidade e universidade. Precisava esquecer o que acontecera. Simplesmente precisava.
No refeitório, avistou null conversando com uma mulher. Era uma mulher alta, com cabelos longos e ondulados do que eles chamavam de "louro morango", olhos castanhos como uma barra de chocolate ou uma mancha de café, com o corpo de uma modelo da Armani e um sorriso angelical, que só não chamava a atenção de toda a república por estar trajando vestes completamente comuns: uma calça jeans, um suéter e uma jaqueta bege. Mas qualquer um que parasse para admirá-la perceberia tamanha sua beleza. Era, definitivamente, muito mais velha que null. Devia ter por volta de 30 anos ou pouco mais. null se aproximou de ambos e, então, pela primeira vez naquele dia, sorriu. Sabia quem era a mulher e não poderia haver pessoa melhor para ajudá-la naquele instante. Ela surgira exatamente no momento em que deveria surgir: Lucy Andrews.
– Ah, meu Deus! LUCY ANDREWS! – null quase gritou de tanta felicidade. Lucy Andrews olhou para ela e então sorriu, um sorriso de orelha a orelha, o sorriso mais reconfortante que poderia haver em todo o mundo.
– null! null null! Minha querida, eu estava mesmo procurando por você! Vim visitá-la! – disse Lucy, ainda sorrindo.
null não se importou com a presença de null. A bem da verdade, pouco se importava com a opinião alheia naquele momento. Correu até Lucy e a abraçou. Abraçou com força, como se Lucy fosse sua própria mãe. Sem perguntas, Lucy a abraçou de volta, exatamente como fizera quando descobrira que null havia sido rejeitada por Harvard. Lucy era a pessoa que mais tinha direito de dizer alguma coisa. O que quer fosse, uma lição de moral, um consolo. Mas Lucy apenas a abraçou, sem dizer nada, e null sentiu como se, perto de Lucy, não precisasse fingir ser alguém que não era. Pudesse desabafar, chorar, gritar. Contar-lhe toda a verdade. Para null, durante o que ela considerava os "tempos de expectativa", Lucy fora sua conselheira acadêmica. Era a ligação que null tinha com Harvard, pois o irmão de Lucy era professor de história na universidade e tinha uma influência muito grande por lá. null não lembrava ao certo como conhecera Lucy Andrews, mas sabia perfeitamente do histórico indiscutível de "super investigadora criminal amadora", como ela gostava de dizer, embora null soubesse que Lucy era como Sherlock Holmes e Hercule Poirot com o toque de elegância de Miss Marple e a beleza da Gisele Bundchen em casos que pareciam impossíveis, mistérios insolúveis. Todos sempre, inevitavelmente, solucionados por Lucy, embora ela nunca procurasse por assassinatos misteriosos para desvendar, eles sempre viessem até ela de forma curiosa. null ouvira sobre quase todos os casos.
Era de Lucy Andrews que null precisava naquele momento. Embora o caso do assassinato de Tammy Carson não fosse um "mistério insolúvel", null sabia que Tammy poderia lhe dizer exatamente o que fazer para consertar as coisas. Ela lhe daria conselhos muito mais sábios do que os de Corinne e Vicky e talvez até pudesse provar a culpa da bruxa de Salem.
– Lucy, Lucy, eu preciso tanto da sua ajuda. Por favor, você precisa me ajudar. Vamos até o meu quarto, posso te contar tudo e poderemos conversar sobre isso. É uma história tão longa e...
– Com licença, mas... – disse null, em tom de brincadeira. – a Srta. Andrews já tem companhia.
– Desculpe, null, mas tenho certeza que o seu problema, seja qual for, não é nem um terço tão grande quanto o meu! – bradou null. null a encarou, surpreso. Talvez estivesse pensando que null estava chateada com ele por algum motivo, mas na verdade ela só estava cansada, deprimida, apavorada e impaciente. Não podia esperar para resolver aquela situação, e embora estivesse, de alguma forma, já resolvida, null sabia que Lucy lhe apresentaria uma solução ainda melhor. Mesmo que null tivesse que admitir em público ser a assassina de Tammy, sabia que Lucy estaria ao seu lado para protegê-la de qualquer eventualidade e até mesmo bancar a advogada temporária. A agonia iria embora.
– Tudo bem, vamos nos acalmar, certo? – disse Lucy. – null, eu acho que null tem mesmo algo muito importante a me dizer. Podemos continuar a nossa conversa depois?
null bufou. – Tudo bem. Quem precisa de notícias do irmão em Harvard? Faz só uns seis meses que não o vejo! – ironizou.
Lucy sorriu. – Já lhe disse que está tudo bem. Não se preocupe, ele... – Mas null puxou Lucy para longe antes que null pudesse ocupá-la.
~~
– Espere um pouco. – disse Lucy. – Disse que não se lembra do que aconteceu?
– Isso mesmo. – null sentiu a voz falhar, mas definitivamente seu coração estava mais leve.
– E essas garotas... Corinne Morbiden e Vicky Hickersonn... Você achava que elas não gostavam de você porque elas achavam que você tinha um caso com seu primo, null. – confirmou Lucy.
– É.
– Você viu a faca enfiada na barriga da garota? – perguntou Lucy.
– Vi.
– Chegou a retirar?
– Não. Corinne e Vicky retiraram, quando estavam a enrolando no edredom.
– Onde você estava nessa hora?
– Eu estava... Estava... – null tentava se lembrar. – Ah, sim. Estava na dispensa. Corinne me pediu para buscar uma corda para amarrarmos o edredom na Tammy.
– Você já conhecia essas garotas antes de vir para cá? O que pode me dizer delas?
– São boas pessoas. No início, achei Corinne meio... Não sei. Metida. – null não queria usar a palavra "vadia" na frente de Lucy. – Sabe, como aquelas garotas super populares que vivem te tratando mal. Mas então percebi que na verdade elas são boas pessoas. Elas me ajudaram com algo que, sei bem, ninguém mais me ajudaria. E acreditaram em mim quando contei sobre... A bruxa.
– Entendo... Conheço uma garota que também era do tipo "super popular que vive te tratando mal", mas na verdade... Bem, deixa pra lá. – Lucy suspirou. – Então, null... Você ainda tem alguma coisa manchada com o sangue da Tammy? O que quer que seja?
– Tenho. O lençol da minha cama também manchou por causa da briga, eu acho. Eu acho que teve uma briga, porque imagino que a Tammy voltou ao meu quarto naquela noite e acabamos brigando. A minha camiseta de Halloween e a minha calça também estão manchadas.
– Posso ver?
– Claro. – disse null e prontamente se dirigiu ao seu guarda-roupa, de onde tirou o lençol manchado e sua camiseta da Samara Morgan. Entregou-os à Lucy, que os examinou minuciosamente.
– Não sei. – disse Lucy, de repente. – Ou melhor dizendo... Eu sei, sim. Acho que sei o que aconteceu, null... Mas eu preciso ir à Boston. Tenho que ter certeza disso.
– Boston, Lucy?
– É... É necessário. Não se preocupe. Se for o que eu estou pensando, tudo vai ficar bem, eu prometo à você.
– Mas... E a bruxa? Você não vai perguntar sobre a bruxa?
– Não se preocupe. Indo à Boston, poderei ter certeza sobre tudo, incluindo a... Bruxa. – disse Lucy, enquanto dobrava o lençol e a camiseta de null e guardava em sua bolsa.
– O que vai fazer em Boston? – perguntou null.
– Falar com alguns amigos. Eles têm tecnologias que podem responder às minhas perguntas. Já disse para não se preocupar. Eu volto amanhã à noite, no máximo. Está bem?
A bem da verdade, nada estava bem para null null – ainda assim ela tinha a equivocada certeza de que, por volta de "amanhã à noite", iria ficar.
As ruas de Salem pareciam ter sido tocadas pelas mãos mágicas das bruxas, pois não havia um só lugar isento dessas personagens para onde se pudesse olhar. As bruxas enfeitavam as casas em forma de estátuas de cera; os carros em forma de adesivos coloridos; as árvores em forma de adornos rodeados por luzes cintilantes de cor laranja cítrico e pequenos e grandes Jack-o-lanterns cujo sorriso maléfico invadia cada olhar em cada ponto. Pessoas fantasiadas já transitavam pelas ruas, e muito embora as bruxas fossem maioria, também haviam outras fantasias incrivelmente bem elaboradas. As pessoas recorriam aos clássicos monstros tenebrosos como Frankeinsteins, lobisomens e zumbis; a vampiros tradicionais com suas roupas do século XIX, dentes afiados e andar elegante, ou a vampiros modernos da nova era, com cabelos cheios de gel, roupas de marca e pele de diamante; a múmias enfaixadas desde o mais nobre dos panos ao mais fuleira dos papéis higiênicos; a anjos e demônios; a fadas e duendes; até mesmo ao Papai Noel, cuja época de aparecer ainda se via um tanto distante; a ícones cinematográficos como Jason de "Sexta-feira 13", Samara Morgan de "O Chamado", Reagan de "O Exorcista", Freddy Krueger de "A Hora do Pesadelo", de Hannibal Lecter de "O Silêncio dos Inocentes" e Michael Myers de "Halloween"; a fantasias criativas e sem sentido, como iPods, chuveiros, peças de jogo de xadrez, livros dos mais variados tipos; desde estrelas da música atual como Lady GaGa, Justin Bieber e Hannah Montana a nomes dos séculos passados como Mozart e Beethoven; a animais, coelhos, ratos, cobras e até gambás; a brinquedos desde Barbie ao famoso Chuck. A lista continuava e null gostaria de poder anotar todas as boas ideias para talvez usar no próximo Halloween. Nesse instante, se lembrava de todos os motivos pelos quais odiava o Halloween, aquela atmosfera preta e alaranjada, aquelas fantasias, as peças pregadas, os sorrisos nos rostos e as festas mais badaladas como a da universidade de Salem que haveria naquele dia, e a qual Corinne e Vicky haviam a convencido a ir.
Corinne optara por um vestido colado e curto na altura dos joelhos, com gola até o pescoço, sem mangas, na cor bege, com os cabelos louros presos em um coque e um batom forte nos lábios. Era assim que ela incorporava Catherine Tramell, a psicopata do filme "Instinto Selvagem", com o figurino de sua cena mais famosa. null se admirou com a escolha de Corinne, pois a fantasia era incrivelmente simples, mas com um personagem interessante. Vicky decidira seguir a mesma linha de raciocínio que a amiga, e vestira uma calça de couro preta, uma blusa da mesma cor no estilo corset, e os cabelos ruivos na altura dos ombros soltos e bem penteados. Sua personagem era a também psicopata Kathryn Merteuil, do filme "Segundas Intenções". Apesar de admirar a ideia tanto quanto admirava a de Corinne, null não sabia ao certo se suas personagens poderiam ser identificadas pelas fantasias tão rapidamente quanto uma vampira ou uma bruxa, por exemplo.
null tivera que pensar sobre sua fantasia durante algum tempo. À princípio, fora contra sequer comparecer na festa de Halloween da universidade de Salem, mas Corinne e Vicky, com muito esforço, conseguiram convencê-la. "Sabe, eu... não sei se vou à essa festa. Quero dizer, eu nem conheço a universidade direito, e... não sei, acho que seria... desrespeitoso. Sabe, ir à uma festa depois do que aconteceu. Acho que não vou.", dissera null, relutante por fora, mas completamente decidida por dentro. "Eu concordo com você. Seria desrespeitoso... se a pessoa em questão não fosse a Tammy. Sabe, ela estava falando dessa festa há meses. Já tinha até uma fantasia que ela mandou vir da Carolina do Norte, sabe-se lá porque. Vicky e eu já estávamos cansadas de ouvi-la falar sobre o quanto ela queria ganhar o concurso de fantasia. Estava tão animada que considerou a festa da república um ensaio. Sabe, como fazem com as festas de casamento...", disse Corinne, colocando uma de suas mãos em um dos ombros de null, gentilmente. Foi Vicky quem completou o raciocínio da amiga, de forma a convencer null. "Corinne e eu achamos justo ir à festa e ganhar o concurso de fantasia para ela. Quando..." Vicky olhou ao redor e baixou o tom de voz. "Quando ela for descoberta no rio e enterrada... podemos deixar o troféu perto de sua lápide. Acho que ela iria gostar e... diminuiria a nossa culpa. Sua por... matá-la... e nossa por esconder como ela foi morta." null achou que ainda assim seria desrespeitoso. Mas em seguida se colocou no lugar de Tammy, e pensou que, se ela estivesse morta, ia gostar que suas amigas fizessem algo assim por ela. Talvez Tammy também gostasse, e talvez isso a ajudasse a perdoar null. Seria uma espécie de redenção. Incompleta, insuficiente, mas todo o tipo de tentativa de consertar um erro irreparável era válida, pensou.
A fantasia, entretanto, não deixava de ser um grande problema. null chegara a pedir ajuda ao tio Arnold quando Corinne e Vicky desistiram de pensar. null insistira que queria usar algo preto. Era sua forma de demonstrar respeito pela morte de Tammy, e, no Halloween, quem iria entender uma roupa completamente preta como luto? Corinne sugeriu uma "gótica qualquer", mas null contestou. Góticos a lembravam morte e também não precisava ser tão significante assim. Vicky sugerira que ela usasse uma roupa de couro preta como a sua fantasia de Kathryn Merteuil, só que com sapatos de salto vermelho e cabelos louros curtos e encaracolados, de forma a interpretar Sandy Dee no musical "Grease: nos tempos da Brilhantina". Mas null também fora contra. Não queria que sua fantasia fosse muito deprimente (como uma gótica), mas também não deveria ser muito feliz, como era a cena em que Sandy se veste dessa forma e canta "You're the One that I Want". Felicidade não era algo em abundância naqueles dias. Tio Arnold, por sua vez, que usava uma fantasia de Mario Bros que parecia ter sido feita para ele, rira e dissera que preto estava fora de moda. Escolha algo mais colorido – mas tio Arnold não sabia, e nem deveria saber.
Foi então que null se lembrou de Lucy. Lembrou de como esperava por seu retorno e pela resolução daquele "caso". Esperava pelo que Lucy fora buscar em Boston. E tivera a ideia que fora sua decisão, afinal, e que combinava com a situação de alguma forma. Fora difícil encontrar a fantasia, mas por sorte uma loja possuía exatamente o que ela queria. A blusa, a calça, os sapatos, o colete - peça principal, aliás -, o boné e até mesmo as luvas brancas de látex. null seria uma crime scene investigator. Como Lucy. Bem, não exatamente como Lucy, mas em homenagem a ela.
As amigas aprovaram.
– Eu gostei. Quando você disse "preto", nem me toquei que essa poderia ser uma opção. – disse Vicky.
– Também achei bem legal. Faz o seu estilo, sabe? Bem certinha... – Corinne acrescentou.
null considerou o comentário como um elogio.
A festa de Halloween da Universidade Estadual de Salem era, definitivamente, a melhor que null já vira. Não que ela já tivesse visto muitas festas, mas imaginava que não poderia haver nada melhor do que aquilo. Feito sobre a área verde do campus, rodeada por árvores bem ao estilo do Halloween, a decoração era simplesmente de fazer cair o queixo. Além das bruxas de cera que pareciam "assombrar" os estudantes aqui e ali, haviam Jack-o-lanterns por toda a parte, feitos com abóboras de verdade e espalhados pelo chão, brilhando devido às lanternas que foram colocada dentro de cada uma delas. Pela grama, havia glitter laranja. Pelo menos duas mesas de quitutes a cada cinco metros, sem contar com as mesas dos convidados, que ficavam em uma área previamente determinada. Parecia que todo o mundo da fantasia estava na festa de Halloween de Salem. Por um momento,null tivera a impressão de ter visto a bruxa com quem encontrara na casa da bruxa assim que chegara a cidade, mas depois percebeu que era apenas uma fantasia parecida demais. O som, por fim, talvez o mais importante componente de uma festa, alternava entre pop atual, os lançamentos de maior sucesso da temporada, e rock pesado para "levantar o medo", segundo o DJ, que escolhera desde as mais radicais de Nirvana, Guns N Roses, Metallica e Pearl Jam às mais radicais de Green Day, Linkin Park e Red Hot Chili Peppers. De vez em quando, uma lenta tocava aqui e ali. Até Coldplay ingressara na trilha sonora. null quase podia listar as músicas em ordem cronológica, pois o que estava fazendo desde que chegara era basicamente ouvi-las, enquanto Corinne e Vicky dançavam com seus respectivos namorados por uma noite como se Tammy Carson não houvesse morrido no dia anterior.
– null? – ouviu uma voz chamá-la. Virou-se e não se surpreendeu ao ver null null fantasiado de... null.
– Oi. – respondeu, quase sem voz, sem ânimo. – Cadê a sua fantasia?
– Pois é, Sara Sidle, eu até pensei em me fantasiar de Grissom, mas como pensei que você viria fantasiada de null Combs, resolvi me vestir de null null. O que acha? – ele riu.
null disfarçou uma risada, que deve ter saído como um sorrisinho torto, pois não se permitia nem mesmo se movimentar rápido demais. Qualquer coisa seria desrespeitoso para com Tammy. – Você parece mesmo com null null. É a fantasia mais realista que eu já vi até agora.
– Que bom. Então, acho que agora que não tem nenhuma Lucy para você roubar de mim, podemos dançar, não é? – ele estendeu sua mão, como em um baile completamente formal.
– Desculpe por aquilo. Mas eu realmente precisava dela.
– Eu não devia desculpar, já que Lucy mal falou comigo depois de você tê-la chamado. Disse que iria para Boston e só voltaria hoje. Mas vou abrir uma exceção, se aceitar dançar comigo.
– Não posso.
null fez uma expressão confusa. – Por que não?
– Por que descobri que as pessoas andam por aí dizendo que você dormiu com a sua própria irmã. Não quero ser alvo de fofocas também.
– Que eu o quê? Por Deus, null, quem disse isso?
– Não importa. Eu sei que é mentira. Só não quero que falem isso de mim também.
– Sabe qual é o seu problema, null? – null a puxou pelo braço até a área onde os estudantes dançavam ao som de Livin' On A Pnuller, de Bon Jovi, o primeiro clássico de verdade, notara null. Ela tentou se soltar, mas acabou sendo arrastada pela multidão. Teria caído se null não a tivesse segurado pela cintura a tempo de salvá-la. – Desde que começou com sua neurose com Harvard, se importa muito com o que os outros dizem de você.
– Como sabe que é desde o que você chama de "neurose"? Faz onze anos que a gente não se vê, null. – null sorriu pela primeira vez naquele dia.
– Eu sei porque dá para ver nos seus olhos. Quase está escrito "Harvard, Harvard, Harvard", e isso está prendendo você como uma corrente. Porque sempre precisava parecer perfeita para que os caras de Harvard gostassem de você. E, veja só, eles não gostaram. Sabe por quê? Por que você não estava sendo você mesma. Se estivesse, eles não teriam como recusar. E agora está fazendo o mesmo. Se excluindo para que ninguém pense mal de você. Mas é exatamente isso que está fazendo todos comentarem que você é reclusa e antissocial. Se estivesse, nesse momento, sendo a null que você era quando tinha nove anos, seria o centro das atenções dessa festa. Mas Harvard transformou você em uma espécie de robô. É por essas e outras que eu não quero ir para lá, por mais que meus pais queiram e que Lucy insista. Por que não quero ser esse robô que só age conforme lhe disseram para agir.
null permaneceu calada por algum tempo, parada bem ao meio da área em que todos estavam dançando como loucos. Era o refrão. Oooh, we're half way there. Ooooh, living on a pnuller. Take my hand, we'll make it, I swear. Oooh, living on a pnuller. null a encarava com repreensão, e null tentava desviar o olhar, pois sabia que tudo o que ele havia dito sobre ela era verdade. Algumas pessoas os encaravam com um olhar inquisidor, pois eram os únicos que não estavam dançando. Como poderiam, com aquele clima pairando sobre suas cabeças? Para dispersá-lo, null pigarreou e então tentou quebrar o gelo.
– Bem, talvez o meu pai tenha me falado um pouquinho sobre você também... mas garanto que mesmo que ele não tivesse, ainda assim daria para ver tudo isso em seus olhos. – disse, sorrindo.
null sorriu também. – Tio Arnold, além de tagarela, é fofoqueiro também. Bom saber!
– Sempre foi. – ele riu.
– Ah, null... me desculpe por isso. Por não ser eu mesma. Acho que já virou um hábito, sabe? Eu não sei...
– Águas passadas, null. Agora você tem a chance de ser você mesma. Livin' On A Pnuller é a sua música favorita. Vai mesmo ficar parada? Com medo do que as pessoas possam dizer ao vê-la dançar com o seu primo que supostamente dormiu com a própria irmã? – null sorri e lhe estende uma das mãos, mas antes que null possa aceitar e se deixar levar por sua música preferida, o DJ interrompe o som e faz um anúncio.
– AÍ, GALERA! Foi mal a interrupção, mas É HORA DE ENSANGUENTAR! – gritou. Todos gritaram junto, em um coro de felicidade. null quase deu um pulo para trás com o susto. null teve que segurá-la novamente, e tranquilizá-la com uma explicação.
– Calma, null. É só a ensanguentada. Eles fazem todos os anos, é divertido. Alguns dias antes da festa, matam uns animais e tiram todo o sangue. Juntam tudo em uma espécie de piscina para quem quiser...
– Banho de sangue? Por Deus, que tipo de gente é essa? Mergulhar em uma piscina de sangue? Você está falando sério, null? Quantos animais não tiveram que matar para...
– Oh, não, null. Não é uma piscina de verdade, é como se fosse. É uma pequena piscina de plástico, e só é usada para guardar o sangue. Ninguém mergulha nela, eles só pegam baldes e colocam na piscina, enchem de sangue e ficam jogando nas pessoas cujas fantasias eles acharem ruins. A fantasia que não for ensanguentada é a vencedora do concurso de fantasias. – ele explicou, e apontou para alguns estudantes que erguiam seus baldes sobre a piscina, null pôde notar, realmente não muito grande, para enchê-los com sangue de animais e jogar uns nos outros.
– Eew. – disse null. – Ainda assim é nojento. Eu vou embora.
– Espere, não quer tentar? É divertido!
– Não, obrigada. Definitivamente, essa não sou eu. Você vai?
– Só um pouco. Te encontro na frente da universidade em dez minutos. Pode ser? – disse ele. null assentiu. Em seguida, viu null desaparecer em meio a multidão de alunos que pegavam seus baldes e apontavam uns para os outros. null teve que desviar de alguns para chegar à saída da festa. Apesar de ser uma noite fria, preferiu tirar o colete de CSI, que a estava incomodando de alguma forma. Largou-o em algum canto e decidiu procurar por Lucy, que, se bem conhecia, deveria estar em algum lugar da universidade caso já tivesse voltado de Boston. Na realidade, null não sabia ao certo se queria ver Lucy, uma vez que sabia sua opinião em relação à Harvard. Naquele momento, ela preferia conversar com alguém que tivesse uma visão externa de seu confronto interno. Alguém que não fosse uma exímia defensora de Harvard, mas que também não tivesse fortes motivos para querer ficar em Salem – como uma banda de pop rock com popularidade local ou uma república recém fundada. Talvez Corinne, ou mesmo Vicky. Mas elas provavelmente estavam ocupadas tentando esquecer Tammy. Quem, então?
~~
De repente null se encontrou em uma rua escura e deserta. Olhou para os lados e se perguntou onde estariam as crianças fantasiadas, batendo de porta em porta e pedindo "doces ou travessuras". Onde estariam os estudantes se dirigindo à grande festa da universidade? Onde estaria... qualquer pessoa? Súbitos arrepios tomaram conta de seu corpo, e de repente estava mais frio do que o normal. null se arrependeu de ter se livrado de seu colete de CSI, mas decidiu continuar andando, afinal, não era medrosa. Ou, pelo menos, tentava não ser. A rua ficava mais sombria a cada passo, de forma que null se viu obrigada a pisar firme, com determinação, para enfrentar aquela pseudo-esquizofrenia que lhe atingia toda vez que um clima sobrenatural lhe alcançava. Mas antes fosse apenas um clima, pensou null. E ela estava certa, pois o que viu em seguida fez seu coração disparar e quase saltar de seu peito como um foguete.
À primeira vista, parecia um zumbi. null deu passos para trás. Era uma mulher, pôde perceber pelos cabelos. O rosto estava encarando o chão, e por isso null não pôde vê-lo. Os cabelos eram claros, alguma cor entre louro e ruivo, de um liso escorrido como se estivesse... molhado. Meu Deus, null pensou, e repetiu a exclamação/súplica em sua mente diversas vezes seguidas. Poderia ser a bruxa de Salem, mas a bruxa que null vira na casa da bruxa definitivamente não era aquela mulher. A bruxa era uma velha, baixinha e enrugada, enquanto que aquela pessoa parecia jovem, apenas uma jovem deteriorada. Suas roupas estavam tão encharcadas quanto seus cabelos, e ela andava devagar, com passos que faziam um barulho tenebroso, as mãos soltas como se não tivessem vida. Na realidade, nada naquela pessoa parecia ter vida se não seus pés. E ela seguia exatamente na direção de null, que de repente se encontrou petrificada. Novamente petrificada, como estivera na presença da bruxa. Estaria null enfeitiçada novamente? Ela não conseguia se mover, não conseguia sair do lugar. E a garota encharcada se aproximava cada vez mais. A rua estava escura de forma que null não pôde enxergá-la com detalhes, podia apenas vê-la. Porém, em algum momento, ela se aproximou o suficiente. As suas roupas estavam rasgadas, completamente destruídas, mas de alguma forma ainda podiam lhe vestir. E null ainda podia identificar. Era uma espécie de fantasia de vampira moderna, uma blusa e uma saia balonê, sobre a meia calça preta completamente estraçalhada e um salto alto quebrado. Vampira moderna... null conseguiu se mover. Deu um pulo para trás, e caiu. Deve ter se machucado, mas nem percebeu. A dor do medo era maior que a dor da queda. O coração de null começou a disparar. Uma vampira moderna... aquela fantasia. A garota se aproximou, ainda com os mesmos passos mórbidos. Se aproximou o suficiente para que null pudesse ver seu rosto.
– T-t... T... T-t-tammy?
Tudo aconteceu muito rápido. Os olhos antes fechados de Tammy se abriram como em um flash, e de repente ela atacou null. Simplesmente atacou. Jogou-se sobre null e começou a arranhá-la, socá-la, rasgar sua roupa e soltar uns grunhidos ininteligíveis. null gritou. Era Tammy Carson. Encharcada, saída do rio Danvers. Morta. E viva.
– V... mato... vo... aoo... – Tammy dizia, enquanto parecia tentar deixar null no mesmo estado em que ela própria estava.
null gritou mais uma vez. Gritou novamente, e então gritou e chorou ao mesmo tempo. Tentava empurrar Tammy para longe, mas a garota cravava suas unhas molhadas na pele de null de forma que ela não conseguia se livrar.
Gritou e gritou novamente. Pôde perceber que o maior rasgo na roupa de Tammy se encontrava na região da barriga, e ao redor, haviam manchas vermelhas de sangue seco. O sangue que secara antes que null, Corinne e Vicky a jogassem no rio Danvers. Mas então, um novo sangue surgiu. Era o sangue de null, que saía de sua pele com os arranhões e até mordidas de Tammy. O que diabos estava acontecendo, afinal? null reuniu todas as suas forças, dentro de tudo o que acreditava e até do que não acreditava, e conseguiu empurrar Tammy com força suficiente para fazê-la se afastar pelo tempo que null pudesse levantar e correr. E foi o que fez. Levantou, caiu, levantou novamente e saiu correndo. Correndo na direção da festa, onde estaria cercada por pessoas novamente. Mas havia um problema. null estava tão atônita, tão confusa, desesperada e apavorada que não lembrava mais para que lado a festa ficava. E podia sentir que atrás dela corria uma morta-viva louca por sangue e vingança. A bruxa de Salem a ressuscitara. O Halloween sangrento de null não seria dado com a morte de Tammy por suas mãos, e sim com a sua morte pelas mãos mortas de Tammy.
De repente, uma porta.
De repente.
null não pensou duas vezes antes de entrar. Logo percebeu que havia chegado aos fundos da universidade, e aquela era a porta para a cozinha, onde trabalhavam os funcionários da cantina. Estava vazia. null rapidamente ligou a luz. A luz a fazia sentir melhor, sentir mais destemida, menos perturbada. Talvez com a luz ligada, Tammy não viesse à sua procura. Talvez a luz afastasse criaturas renascidas do pântano pelas mãos de uma bruxa. Maldita ideia de sua mãe de mandá-la para Salem! Maldita rejeição de Harvard que a obrigara a vir! Maldito null null, que a fizera acreditar que bruxas existiam, e então que não existiam, e agora que existiam novamente. Malditas Corinne e Vicky com suas ideias de jogar Tammy no rio. Deveriam tê-la enterrado. null deveria ter sido presa. Essa era a justiça. Assim, Tammy não estaria atrás dela procurando fazer a sua própria.
null se encolheu em um canto da cozinha da universidade. Era grande e a luz lhe trazia segurança. Até que viu a silhueta de Tammy Carson surgir, e então ser invadida pela luz, que parecia não lhe provocar nenhum estrago. Apenas dava à null o privilégio de vê-la melhor. Suas roupas rasgadas e sujas de sangue, sua pele pálida, seu andar vagaroso e manco, seu olhar macabro, ao mesmo tempo sem vida. Tammy não temia a luz. Se aproximou de null, adentrando a cozinha. Vinha encarando-a com seus olhos verdes que não mais eram belos, e sim apavorantes. Se aproximava cada vez mais, morta e viva ao mesmo tempo, como se fosse uma marionete sendo controlada pelas cordas invisíveis que levavam às mãos da bruxa de Salem que as guiavam. Para null, era como se aquele corpo estivesse completamente morto, e até mesmo aquela alma, estando apenas sendo levado a fazer tudo aquilo. Sem saída, gritou novamente, talvez alguém lhe ouvisse. Só havia uma porta naquela maldita cozinha, e era aquela pela qual Tammy Carson havia entrado. null estava presa entre a garota encharcada renascida das águas do rio Danvers e as sólidas paredes da cozinha. Não havia mais para onde correr. Era morrer... ou matar. "Panaca! Panaca! Caiu como um patinho!", Cory gritava em sua mente. null era uma covarde. "Cory, pára! Olha a cara dela, está branca feito farinha!", Arlinda, sua amiga e inimiga, a defendia e zombava ao mesmo tempo. null ainda era covarde. "Bobona! Achou mesmo que existia uma bruxa vivendo aqui? Sua bobona, bobona! Bruxas não existem! Essa casa só é usada pra turismo, pra enganar trouxa! HA, HA, HA!", null, por fim, martelava em seus pensamentos. null continuava a mais covarde de todas. A covarde que não respondera àquelas frases, àquelas provocações. A covarde que chorara até seu tio vir lhe buscar. A covarde que deixara de falar com os primos por mais de onze anos por conta de um trauma bobo de infância. A covarde que não conseguira ingressar em Harvard. A covarde que não pudera enfrentar a bruxa quando a encontrara. A covarde que bebera demais na festa da república. A covarde que matara Tammy. E a covarde que a mataria de novo. Até deixar de ser covarde. Até encontrar a coragem dentro de si, para lutar contra seus medos e enfrentar a bruxa de Salem e sua pequena marionete de carne.
null saiu em disparada, em direção à uma gaveta. O destino lhe providenciou que abrisse a gaveta certa. A maior das facas que ela já vira em toda a sua vida se encontrava ali, reluzindo, a ponta apenas esperando para perfurar. Não teve medo dessa vez. Não pensou na coisa errada ou na coisa certa a se fazer. Tomou a faca em suas mãos e não parou para pensar, ou para fazer uma pausa dramática. Seguiu em frente, na direção de Tammy, que, ao ver o objeto cortante nas mãos de null, esboçou, pela primeira vez, uma reação. Um sentimento. Medo. null o conhecia muito bem. Primeiro, surpresa, espanto. Depois, medo. Mas Tammy não teve tempo de demonstrar mais nada. Antes que pudesse iniciar o ritual da covardia com os clássicos passos para trás, null inseriu a faca no mesmo lugar onde antes estivera. Em sua barriga. Não apenas uma vez, mas várias. Inseriu e retirou, com toda a força que ainda lhe restava. Gritava enquanto o fazia, pois gritar lhe fortalecia. Inseria e retirava a faca do corpo morto de Tammy. E, para um corpo morto, null teve tempo de pensar, estava jorrando sangue demais. Aquilo a assustou, mas não a fez parar. Se parasse, seria invadida pelo medo e pela covardia mais uma vez. Teria que enfrentar seus erros e viver à sombra da culpa novamente. Não parou para estranhar o que quer que fosse. Apenas inseriu e retirou a faca, enquanto planejava o que faria em seguida. Avistou chaves. As chaves da cozinha haviam sido deixadas em cima do balcão por algum funcionário desleixado. Era perfeito. null continuou esfaqueando-a. Com força, brutalidade, raiva. Ela o fez por alguns minutos, até perceber que sua inimiga havia sido aniquilada. Seus olhos haviam fechado e ela já não esboçava mais reação alguma. null a matara mais uma vez. E antes que Tammy pudesse ter tempo de ressuscitar novamente, null saiu de cima da garota, largou a faca em qualquer lugar, saiu da cozinha e trancou a porta.
~~
Os minutos seguintes foram vitais. null saiu cambaleando pelo campus da universidade de Salem, sem conseguir raciocinar direito. Suas roupas, ela notou, sujas de sangue. null não queria pensar nisso. Não queria pensar em nada. Deveria apenas respirar fundo. E andar. E foi o que fez. null andou. Andou, andou até seus pés doerem, até ouvir um som. A música. Música pop, música de humanos, pessoais normais que aproveitavam o seu Halloween da forma mais normal possível. Era a festa. null, ainda atônita, só fez seguir o som. E, quando caiu em si, estava parada em frente àquela multidão de alunos que dançavam e cantavam um sucesso qualquer. A maioria suja de sangue, mas um sangue diferente. Sangue de animais irracionais.null não iria se destacar pelo sangue, pois ninguém saberia dizer a diferença. Andou novamente, driblando a multidão, sem saber exatamente para onde ia e o que iria fazer. Talvez estivesse procurando por null, mas não o avistava em nenhum lugar. Não deveriam ter se encontrado? Na frente da universidade, há alguns minutos? Sim, deveriam. Mas ele não aparecera. Tammy fora em seu lugar, a morta que fora novamente morta. null pensou que talvez seu ato de "matá-la" novamente não houvesse a matado de fato, apenas expulsado a presença da bruxa de Salem de seu corpo. Ela já estava morta. Mas, se já estava morta, o que havia sido aquela reação? Aquele olhar de espanto quando avistara a faca que null segurava? A resposta apareceu para null logo em seguida, na forma de uma mulher loura e de corpo escultural, conhecida como investigadora criminal amadora.
– null! OH, CÉUS, null. – disse Lucy, mas com um sorriso de alívio e não de preocupação. Certamente o sangue não lhe chamara atenção. – Procurei por você em toda a parte, querida. Onde estava?
– Por aí...
– Tudo bem... deixe-me dizer. Consegui o que eu queria em Boston. Eu disse que resolveria tudo para você, meu bem.
– Resolveu?
– Sim. Venha, vamos sair dessa multidão, tenho que lhe contar tudo. Sabe, seria cômico se não fosse trágico. Eu não sei se rio disso tudo ou mato alguém, sinceramente. Onde estão os modos das crianças de hoje em dia? Oh, bem, do que estou falando? Sei que na minha época haviam crianças cruéis, também. Meu irmão era uma delas, mas por sorte teve tempo de mudar. Veja você, tão apavorada, apenas uma vítima... venha, querida. Vou lhe contar tudo. – e a levou para um canto afastado da multidão, mas que ainda fazia parte da festa.
Ao chegarem lá, Lucy e null sentaram-se em um pequeno banco, e Lucy tomou frente da conversa.
– São cruéis, cruéis. Eu sabia desde o primeiro momento em que as vi. Você sabe, Corinne Morbiden e Vicky Hickersonn. Não excluo Tammy Carson, não, que deve ser a segunda pior de todas. Acontece que elas tinham raiva de você. Isso você já sabe. Corinne queria null para ela, mas no dia da festa de Halloween da república, ele a dispensou para dar atenção à você, e ainda a tratou mal, a humilhou em sua frente, talvez para chamar sua atenção. Isso fez com que Corinne, a qual, devo dizer, tem uma moral muito mal desenvolvida, cultivasse o ódio da pessoa errada. Ao invés de odiar null, passou a odiar você. E então foram ao seu dormitório, inventaram mentiras horríveis sobre o seu primo para convencê-la de que ele era um mau caminho, mas isso não a abalou. Pelo contrário, você as expulsou do dormitório como se...
– Essa parte eu sei, Lucy. Aonde quer chegar com tudo isso?
– Bem, está certo. Eu estava introduzindo a situação. Porque, afinal, tudo parte deste ponto. O ódio, a inveja, a ira, o ciúme de Corinne. Tudo isso fez com que ela colocasse as amigas contra você, e as convencesse a fazer parte de uma... pequena peça. Uma brincadeira de mau gosto, que iria lhe mandar embora de Salem, muito provavelmente. O plano era muito simples. Você já estava bêbada naquela noite. Quando caísse no sono, elas invadiriam o seu quarto e montariam a cena. Sabe, colocariam Tammy, que, aliás, faz curso de teatro e quer ser a próxima Angelina Jolie, no chão do seu quarto, se fingindo de morta, para que você acreditasse tê-la matado. Então elas a convenceriam a jogar Tammy no rio e...
– Espere. O quê? Isso... isso não é possível. Eu vi a faca, eu vi o sangue! Do que está falando, Lucy, está louca? Acha que não reconheço uma pessoa morta quando vejo? Por Deus, eu...
– Não era sangue humano, null, era sangue de animais. Porcos, eu suponho. Há muito disso por aqui nessa época do ano, foi fácil conseguir. E a faca... por favor. É um mundo de fantasias. Nunca viu aquelas tiaras que colocam na cabeça para parecer que há uma faca atravessando-a? É quase a mesma ideia, apenas confeccionada com uma faca de verdade para parecer mais real. E, afinal, você estava nervosa demais para averiguar os detalhes, não estava?
– O quê... eu... mas... nós a jogamos no rio! Ela estava enrolada no edredom, amarrado com uma corda e...
– Vocês a jogaram no rio que Corinne e Vicky escolheram, com o edredom que elas enrolaram, amarrado com uma corda que elas amarraram. null. Lembra que você disse que estava na dispensa enquanto elas tiravam a faca? Bem, era porque elas não queriam que você descobrisse a verdade. E enrolaram-na em um edredom com uma corda amarrada de forma bem frouxa, rápida de ser soltada. Você também me disse que Corinne sugeriu que vocês fossem embora na mesma hora em que jogassem Tammy no rio. Qual acha que era o motivo? Obviamente elas queriam impedir que você visse o momento em que Tammy se soltou do edredom com facilidade, nadou até um ponto mais afastado do rio, retornou à superfície e foi pra casa! Um procedimento bem simples, eu devo dizer. Afinal, o rio Danvers não é muito fundo, não. – disse Lucy, e encarou null como se esperasse que ela contestasse mais alguma coisa, mas ela apenas a encarava com um olhar assustado, arregalado e apavorado que Lucy conhecia bem. Resolveu continuar, para quebrar o silêncio desconfortável prestes a surgir. – Bem, imagino que saiba até aí. Mas o plano de Corinne, Vicky e Tammy ainda tinha muito mais conteúdo. Elas planejavam fantasiar Tammy de zumbi renascido do pântano do rio Danvers e fazê-la usar suas habilidades, ahm, artísticas para convencê-la de que a cena era real. Queriam lhe "dar uma lição", sabe? Pobres garotas!
– Como... como descobriu isso tudo? – dessa vez a voz de null mal saiu.
– Bem, quando você me contou que não lembrava de nada, eu meio que já havia entendido. Nunca acreditei nessa história de bruxaria, null. Mas então você me ofereceu detalhes tão reais que comecei a formular hipóteses para explicá-lo. Havia apenas uma possibilidade para aquele sangue, a qual eu já lhe disse. A perícia de Boston soube identificar perfeitamente que aquele sangue não era humano. A faca poderia ser forjada facilmente. Uma boa atriz e pronto. Quanto ao rio, confesso que foi mais difícil descobrir. Cheguei à conclusão de que, se Corinne e Vicky providenciaram tudo aquilo, tiveram a ideia e organizaram sem a sua ajuda efetiva, então deveriam ter pensado também em uma forma de manter Tammy viva. Eu imagino que tenham forjado o nó da corda também. Devem ter apenas colocado-a em volta do edredom, mas não amarrado, assim Tammy poderia se soltar quando fosse jogada no rio. Quero dizer, muito conveniente que elas tenham pensado em tudo, não acha? Mas devo dizer que a confirmação principal foi quando chequei os parentescos de Corinne Morbiden e descobri que ela não tem irmãos ou irmãs, muito menos uma irmã mais nova chamada Carly. Por quê mentiu para você, então? Simples. Ela deparou com aquela coincidência, a sua certeza de haver matado Tammy sobre "influência da bruxa de Salem", e inventou a história sobre ter batido na irmãzinha para que você se comovesse e aceitasse sua ajuda, concordasse com suas ideias. Vicky percebeu a mentira e apenas confirmou. Quando soube isso, tive certeza. Corinne e Vicky eram culpadas de alguma coisa. E, no caso, Tammy Carson também, não? Ela deve ter sido a que mais se divertiu com toda a "atuação". Imagino que agora ela estaria procurando por você, fantasiada de zumbi, pronta para assumir o papel de assombrá-la e fazê-la deixar Salem...
null balbuciou alguma coisa que nem ela mesma entendeu, mas que para Lucy soou como um:
– Estaria?
– Sim. Bem, deixe-me continuar. Fui à Boston. Era sangue de animal. Voltei e vim até a festa que já estava acontecendo, encontrei Corinne e Vicky e as confrontei. Elas acabaram admitindo e disseram que era apenas uma brincadeira inocente, uma peça para se vingar de você. Disse à elas que deveriam parar com aquilo e pedi para ver Tammy. Elas recusaram, então tive que ameaçá-las. Foi bem interessante, para dizer a verdade, até que elas cederam e me levaram até o banheiro feminino da universidade, onde Tammy Carson vestia sua fantasia de zumbi das trevas. Tive que me segurar para não rir, a bem da verdade. Acabei por dar uma bronca nelas e acho que entenderam tudo muito bem. Corinne e Vicky disseram que iriam contar toda a verdade, mas sou apressada e vim contar antes. Sei que deve estar tão apavorada, e ao mesmo tempo tão irritada por ter pensado ser uma assassina, que mal consegue esboçar um sorriso, mas tenho certeza que um dia ainda vai rir disso tudo, null.
– Rir...
– null?
– Rir...
EPÍLOGO: UM CONFORTO
A mente de null estava a mil. Ela sentia como se fosse desmaiar a cada segundo novamente. Seus pés doíam e suas mãos cansadas mal conseguiam mover os dedos. De vez em quando, também sentia como se não pudesse pensar, e seus únicos pensamentos fossem flashbacks tenebrosos dos momentos passados. Do olhar de Tammy ao ver a faca na mão de null, ao ver sua pequena peça, sua pequena brincadeira de mau gosto atingir um nível de seriedade muito mais elevado, que poderia resultar em consequências drásticas. null podia sentir o cheiro do sangue, embora não pudesse dizer qual era animal e qual era humano. Via Tammy vindo em sua direção com os passos vagarosos de zumbi das trevas e o olhar penetrante, quando não disperso como se estivesse morta de verdade. null também se lembrava da "bruxa de Salem". null estava certo, afinal. Era apenas uma mulher esquizofrênica que falava coisas sem sentido e que não poderia pagar uma psiquiatra. A bruxa era passado, quase não existia. Mas o corpo morto de Tammy que jazia no chão de uma cozinha trancada naquele exato momento era real, sólido e inevitável. E nada do que dissesse poderia absolvê-la das chamas do inferno.
Encontrou null conversando com alguns amigos na festa. Ela não conseguia ouvi-lo muito bem, por sua mente estar apenas vagando pelo ambiente. Mas tivera a impressão de que ele dissera alguma coisa relacionada ao encontro que eles deveriam ter tido em frente à universidade. Havia sido "desculpe, não pude ir" ou "estive lá, mas não a encontrei"? O que quer que fosse, não mudava a situação de null. Ela respondeu alguma coisa com um murmúrio baixo e seco, e apenas abraçou o primo com toda a força do mundo. Abraçou-o como se ele pudesse protegê-la das consequencias que viriam com sua atitude. Como se seus braços fossem um portal para um mundo mágico, sem mortes e sem sofrimento, e o contato entre seus corpos fosse a chave. null queria fugir. Mas, enquanto não podia, apenas o abraçou. Talvez assim o seu Halloween acabasse mais depressa do que ela imaginava que acabaria.
null apenas o abraçou, e deixou que o para sempre durasse alguns minutos.
FIM
Nota da Autora: Bem, eu não considero esse um final satisfatório para os leitores, mas vocês verão que poucas das minhas histórias têm finais felizes, então se é o que esperam, melhor nem começar a ler. Ainda assim, estou satisfeita com essa short, pois atingiu minhas expectativas em relação à uma shortfic especial de Halloween. Espero, sinceramente, que tenha atingido a de vocês também. Caso contrário... em breve terão muitas outras opções de leitura por aqui. Ah - essa fic também está disponível no meu tumblr nesse link. Obrigado por acompanharem até o fim. Abraços, Sofia Queirós.:)
Nota da Beta: Caso tenha algum erro de português/script/html, não use a caixa de comentários, entre em contato comigo pelo twitter ou por e-mail.