PRENDS TON TEMPS

Ajeitei o foco da câmera para que pegasse as fotos na estante atrás do sofá em que estava sentada. Um lugar estratégico, onde a luz quase alaranjada daquele fim de tarde de verão a pegava por completo, conferindo uma aura âmbar à senhora. Ela me olhou com um sorriso tranquilo e paciente, desses ensinados apenas pela idade e experiência, a iluminar seu rosto um tanto enrugado.
A casa cheirava a biscoito recém assado e lavanda, fazendo com que eu lembrasse a minha infância brincando na rua com as outras crianças. E depois correndo para a casa da minha avó para comer alguma guloseima que ela tinha feito especialmente para mim.
Puxei uma cadeira e me sentei de frente para ela, que passou a mão pelos cabelos já brancos, arrumando-os. Não contive meu sorriso por ver que em nada havia mudado, continuava a mesma vaidosa. Ela corou.
- Não vai ligar a câmera, querida?
- Já está ligada. – Continuei sorrindo.
- Oh! – ela abaixou a cabeça, mas logo voltou a me olhar com os olhos vívidos destoantes de sua figura idosa. – Então, o que quer saber?
- Bem... – consultei minhas anotações – Por que não conta sobre seu casamento?
- O primeiro ou o segundo, anjo? – sua voz era doce.
Ela riu ao ver minha confusão, como se fosse uma piada interna à qual eu não estava familiarizada. Não soube o que responder. Sinceramente. Eu desconhecia o fato de ter sido casada mais de uma vez. Mal conseguia abrir a boca para formular uma sentença coerente, ela continuava com aquele sorriso inocente, que agora só me deixava mais desconcertada.
- Acho que começar pelo primeiro seria melhor então. – Disse, por fim, ainda meio incerta do que falava.
Continuei fitando minhas anotações. Como havia deixado esse detalhe escapar?
Ela riu mais uma vez e suspirou, tomando fôlego. Eu gostava da risada dela, me acalmava. - Muito bem... Se me lembro bem era verão também, como agora. Sim, era verão. Ah, como eu poderia esquecer aquela noite? – os olhos dela brilharam de uma forma diferente, como eu nunca havia visto. – Sabe, se não fosse aquela noite, eu não teria casado com meu marido, e nem teria passado ao lado dele os quarenta melhores anos de minha vida.
Ri quando a vi dando uma piscadela para mim.
- Uau. O que aconteceu nessa noite afinal? E quem foi o seu marido? – perguntei, já não contendo a curiosidade, embora devesse me manter imparcial.
Ela deu aquela gargalhada dela novamente e sorriu dando tapinhas em meu joelho.
- Calma, querida, tudo tem seu tempo.
A forma como ela disse fez com que me sentisse novamente uma criança. Torci o nariz e recostei na cadeira esperando que continuasse.
- A tarde já caía quando Helena me ligou me chamando para essa festa de um amigo. Em pensar que eu quase não fui... – riu de si mesma.


Era um fim de tarde quente e alaranjado, não entrava vento algum pela janela completamente aberta do meu quarto. O ventilador estava desligado, era melhor assim. Ele ventilava um ar quente que em nada ajudava a amenizar o calor, pelo contrário. Eu já havia tomado pelo menos três banhos na esperança de me refrescar. Não fui à praia naquele dia, não lembro bem o porquê, acho que só quis ficar em casa um pouco.
Deitei-me no chão morno, que já era menos quente do que o resto do meu quarto e da casa, segurando um livro no alto em frente ao meu rosto e um travesseiro sob a cabeça. Apesar do calor, era um dia agradável. Mas eu estava com preguiça demais para sair e fazer algo com meus amigos. Aquele chão morno, o travesseiro, o livro e um copo de suco gelado ao meu lado era minha ideia de perfeição para aquela tarde e noite, talvez.
Estava quase chegando à metade do livro quando meu celular tocou em cima da cama. Olhei para ela sem me levantar, estava evitando qualquer tipo de movimento. Voltei a ler o livro, mas o barulho do celular vibrando atrapalhava minha concentração. Suspirei exageradamente e atendi a ligação sem me levantar.
- Oi, Helena. – falei, sem nem ao menos fingir animação.
- Nossa, finalmente! Estava quase desligando.
Eu não estava com paciência para Helena e seu entusiasmo exacerbado para com tudo. Ela me cansava com isso. Apenas esperei que continuasse seu costumeiro monólogo tentando me convencer a fazer algo que eu provavelmente me arrependeria depois.
- Adivinha de onde estou saindo. – falou animada.
- Não é um bom momento, Lena.
- Quando é um bom momento se tratando de você, ?
Ela tinha razão. Eu nunca estava em um bom momento para qualquer coisa que não envolvesse eu sozinha num quarto com música e livros. Talvez um filme. Na verdade eu nem sabia como Helena conseguira me convencer a ir àquela estúpida viagem. Não gostava de praia, o que eu estava fazendo ali afinal?
- Está bem. – me rendi. – De onde está saindo?
- Da praia, que aliás estava ótima, e acabei passando em frente à academia.
- Resolveu largar de ser sedentária então? – falei, tentando abafar um risinho.
- Olha, eu ando até a praia, ok? E não sou eu quem fica em casa o dia todo. – defendeu-se. – Mas enfim, eu passei por lá e você não sabe com quem eu dei de cara.
- Quem, Helena?
Odiava quando ela ficava enrolando tanto para contar algo. Helena era minha melhor amiga, mas conseguia ser bem irritante na maior parte do tempo.
- Te conto quando chegar em casa.
Helena riu e eu senti meu rosto ferver de raiva. Ela sabia o quanto me irritava ficar assim, curiosa.
- Você é inacreditável e, para o seu bem, espero que já esteja chegando.
Desliguei o celular e fiquei mais um tempo deitada, mas não aguentei muito e logo já estava de pé andando de um lado para o outro. Sentei na cama. Levantei. Olhei pela janela. A casa não ficava exatamente de frente para a praia, mas se você se inclinasse um pouco dava para ver o mar e um pouco da areia. Era bonita a vista, um tanto desconfortável ficar daquela forma, com o tronco inclinado sobre o parapeito da janela projetando o corpo para frente, mas surpreendentemente tranquilizante.
Inspirei aquele cheiro de maresia e o ar já um pouco mais gelado do inicio da noite. Olhei o céu alaranjado, finalmente me lembrando de como Helena havia me convencido a embarcar naquela viagem louca. Uma foto da vista, o céu no fim da tarde e do inicio da manhã. As lembranças dela ainda bem jovem vindo sempre com a família nas férias. A forma como os olhos dela brilhavam enquanto me contava me fizeram ver como aquele lugar podia ser realmente especial. E eu estava precisando disso. Um pouco da calma das pequenas cidades próximas à praia.
- Cuidado para não cair.
Fingiu me empurrar colocando as mãos em minha cintura. Assustei-me e ela riu. Virei-me em sua direção e ela se jogou de costas na cama.
- Vai ter esse luau de um amigo hoje à noite e seria incrível se você fosse comigo, sabe? – Começou a falar ainda deitada. – Tem uma pessoa que eu quero que você conheça. Vocês são perfeitos um para o outro, super combinam e têm tantas coisas em comum.
- Eu não tenho vontade alguma de sair hoje. Eu só quero ficar em casa, vendo filmes, lendo livros. Eu sou assim. – falei, em um tom entediado e arrastado.
Não havia porque discutir, eu ia acabar fazendo o que ela queria de qualquer forma. A verdade é que eu queria sair, só estava com preguiça de ter que realmente sair e interagir com as pessoas, ficar rindo para piadas idiotas e ter conversas vazias com pessoas que eu nunca havia visto antes. E ainda mais para Helena me arranjar mais um dos loucos que ela conhecia. Quando ela começava a se explicar tanto, no mínimo, era furada. E aquela parecia das grandes.
Sentou na cama e me lançou um olhar que me fez perceber quão perdida aquela discussão seria. Desisti.
- Quem é, Helena?
- Olha, na verdade eu o conheci hoje na praia. Você também teria, se não fosse essa esquisita que não sai. Sério, , há quem nem lembre mais quem você é.
- Lena, quem se preocupa com essas coisas é você. Obrigada pelo esforço em me arranjar um namorado, mas não estou interessada.
Me olhou séria. Deu batidinhas na cama pedindo que eu me sentasse ao seu lado. Obedeci.
- O que você vai fazer hoje? Aposto que vai ficar em casa vendo um filme mofado. Vamos, vai ser ótimo sair um pouco de casa, amiga. Por favor.
Ela não foi rude, pelo contrário, foi tão delicada e doce ao dizer aquilo que percebi o quão preocupante minha situação era. Eu não estava muito no clima para prolongar discussões que não dariam em lugar algum. E, aliás, que mal há em conversar com alguém? Não iria perder nada indo. Eu realmente precisava sair um pouco, ver gente que não estivesse em preto e branco.
- Tá bom, eu vou. Mas qual a pegadinha? Porque no mínimo tem uma. – minha voz soou como eu me sentia: derrotada.
- Absurdo! Não tem pegadinha alguma. Estou até ofendida.
Ela colocou a mão no peito, forçando indignação. Ela sempre fazia isso quando afinava a voz da forma que afinou. O que só deixava mais claro que eu estava certa, tinha alguma coisa além do que estava me dizendo. Continuei a encarando e ela suspirou, relaxando o ombro.
- Está bem, é o seguinte, o tal cara é o dono do luau e é afim de você desde o ano passado, mas você nunca deu bola. Eu encontrei com ele saindo da academia e ele me perguntou se você não tinha ido, eu disse que não, então ele nos chamou para o luau. Mas só se você for. E eu quero muito ir. Por favor.
Ela falou rápido, sem me dar chance de interromper. Eu sabia quem era a pessoa e se não havia dado uma chance até aquele momento, eu tinha motivos.
- Você nem precisa beijá-lo nem nada, é só conversar um pouco. Ele vai ver que vocês têm nada em comum e vai desistir. Fim de papo.
- Helena, por acaso o nome dele não é Alex não, né? – falei, fechando calmamente os olhos. - Ele mesmo. – ela disse alegre. – Aliás, como se conhecem?
- Nós fizemos um período da faculdade juntos semestre passado. O cara é um completo idiota, Helena. Só quer saber de malhar e quando abre a boca só sai besteira. Você só sabe me meter em furada mesmo, viu.
- Ai, só dê oi e depois vá conversar com outra pessoa.
- É brincadeira, né? Os amigos dele também são todos assim, acredite.
- Você que é exigente demais. – Levantou e foi para a janela.
Virou-se para mim, apoiando as mãos no parapeito. Sentou-se na janela.
- Eu não estou pedindo para casar com o cara, só para ir lá um pouco, por favor.
Helena saltou da janela e ajoelhou-se no chão de frente para mim, com as mãos unidas, implorando. Suspirei.
- Vinte minutos apenas, depois vamos embora.
- Uma hora.
- Meia e não se fala mais nisso.
Deu gritinhos de alegria enquanto batia palmas. Conversamos um pouco mais e então ela saiu do quarto para tomar banho e se arrumar, me deixando sozinha com meus pensamentos. Eu não era uma pessoa depressiva, eu só estava deprimida. Sem motivos. Ninguém havia morrido, nenhum namorado terminara comigo. Nada. Eu só não conseguia me sentir verdadeiramente feliz. Quer dizer, até me divertia quando estava com Helena, mas nada duradouro. Nada que amenizasse aquela sensação de entorpecimento em que me encontrava. Era como se eu fosse incapaz de manter qualquer tipo de sentimento. Não sentia saudade de casa, da minha mãe, dos meus irmãos, de ninguém, para falar a verdade acho que nunca cheguei a realmente sentir saudade de alguém. Mas também não me sentia triste. Eu precisava sentir algo, qualquer coisa, ou enlouqueceria na minha própria indiferença para com o mundo ao meu redor.
- Talvez não seja tão ruim assim dar uma chance a ele.
Disse para mim mesma, jogando-me de costas na cama. O lençol fino de algodão estava fresco, mas logo esquentou com o calor do meu corpo e me senti incomodada. Rolei na cama. Helena estava na porta, enrolada numa toalha de um tom claro de amarelo e me olhava de uma forma estranha.
- O que foi? – perguntei.
- Você está bem, ?
Ainda me olhava de um jeito estranho.
- Sim. Por que a pergunta?
Sentei-me na cama.
- Você estava deitada olhando o teto há um tempo já. Tem certeza de que está bem?
Helena me olhava com um sorriso sutil no rosto. Tentei retribuir, mas não saiu como o esperado e isso fez o dela sumir. Ainda estava lá, por trás de seus olhos, a preocupação sufocante que eu tinha certeza que ela sentia. Por mais que eu quisesse eu não sabia como fazer para mudar aquilo. Mudar permanentemente, digo. Ela se aproximou de mim e colocou a mão em meu ombro. Abaixei o rosto, não queria chorar. Não agora. Estragaria a noite dela e eu não queria isso.
- Eu vou ficar bem, Lena. Eu prometo.
Sorri sem olhar para ela e me levantei. Procurei uma roupa no armário evitando qualquer tipo de contato visual com minha amiga.
- Vá se arrumando, vou tomar banho e fico pronta em dez minutos. Você demora uma eternidade. – falei enquanto saía do quarto.
Não virei para ela. Não quis ver a preocupação, totalmente fundamentada, em seus olhos claros. Eu não iria chorar, eu não queria chorar. Mas assim que liguei o chuveiro e senti a água morna escorrer de minha cabeça para meu corpo, deixei que ela lavasse as lágrimas que desciam caladas pelo rosto, mesclando-se à água que caía.


- Eu não fazia ideia de que se sentia assim. – Não me contive e interrompi a narração de . – Quer dizer, é sempre tão alegre que jamais me passou pela cabeça que algum dia você possa ter se sentido dessa forma.
Deu um sorriso tranquilo e paciente, como sempre fazia. Olhou pela janela e por um momento pude ver uma sombra escurecer seus olhos. Uma tristeza profunda, que já não estava lá quando voltou a me olhar.
- Eu era muito jovem, entende? Tinha vivido bastante coisa, não me entenda mal, mas ainda era muito confusa, muito ingênua. Sentia tanto medo de me machucar, de me arrepender de confiar em alguém que nem ao menos me permitia sentir qualquer coisa que não medo. É, era isso, a dormência sentimental que eu sentia era medo e qualquer pessoa que tentava ultrapassar essa minha barreira era, não tão gentilmente, afastada de minha vida.
- Mas não é mais fácil viver assim? Ninguém chega perto o suficiente, então não te “machuca” – fiz aspas com as mãos.
colocou a mão direita no rosto e balançou a cabeça negativamente com um ar triste, mas ainda sorrindo.
- Não, querida, você não está entendendo. Esse... – pareceu procurar a palavra seguinte. – Vazio, é, vazio, que eu sentia era justamente por isso. Veja bem, com o tempo você percebe que por mais que diga o contrário, você precisa que as pessoas entrem em sua vida. Até as descartáveis. Porque, se não der uma chance, sempre faltará alguma coisa. Não se engane, todos que nós conhecemos ao longo dos anos nos toca de alguma forma, faz uma diferença. Mesmo que pequena e imperceptível na hora.
Eu estava confusa naquele ponto. Sempre achei que fosse o contrário. Quanto menos se envolvesse, menos confusão arrumaria para sua vida. Nunca tinha realmente parado para pensar em como é complicado manter as pessoas afastadas. Depois que desligasse a câmera iria ter uma conversa com , ela ainda tinha tantas coisas para me ensinar.
Olhei um momento para meus pés, não sabia mais o que dizer. Seria muito insensível pedir para voltar a contar a história, eu tinha plena noção disso, mas não sabia exatamente o que dizer. Escolhi com cuidado minhas palavras, não queria reabrir uma possível ferida.
- Você... Ainda se sente assim?
Sorriu do mesmo jeito doce de sempre, olhando-me nos olhos.
- Não mais. Desde aquela noite. – fez uma pausa que eu não ousei interromper. – Sabe, é até engraçado parando pra pensar como uma simples noite, um simples sorriso, uma coisa pequena qualquer pode mudar tanto uma vida.
Dessa vez foi o meu riso leve a preencher a sala. Eu estava curiosa, mas deixei que ela achasse seu próprio tempo. Eu podia editar a filmagem depois. Ela suspirou, se mexendo no sofá creme.
- Depois de uma hora esperando Lena terminar de se arrumar, finalmente saímos para o tal luau...

A noite estava agradável, um pouco fria, como toda noite de verão. De longe já dava para ver algumas tochas acesas na areia da praia e um grupo de pessoas, aparentemente, se divertindo. Uma música dançante que eu não conhecia estava tocando. Olhei para Helena, que sorriu e me empurrou de leve com o ombro. Tentei sorrir.
Quando finalmente, após uma considerável caminhada, chegamos ao luau, notei que não tinha uma mesa ou qualquer outra coisa com bebidas, mas sim um monte de coolers espalhados pelo local. Uma grande tenda branca com uma mesa cheia de salgadinhos, biscoitos e pastas variados. Algumas esteiras e cangas na areia e uma fogueira pequena no meio. Pessoas riam e conversavam animadas, a música não estava muito alta e era agradável.
- Viu? Não vai ser tão ruim assim.
Ela me abraçou com um braço só pelo meu ombro e sorriu. Eu até ia concordar, mas vi Alex vindo em nossa direção.
- Falou cedo demais, Lena. – falei séria e me afastei dela.
- , não seja infantil.
Gritou pra mim enquanto eu andava na sua frente, afastando-se cada vez mais. Dei um sorriso amarelo ao passar por Alex e ele agarrou meu braço, fazendo com que eu ficasse de frente para ele. Olhei sua mão em meu braço e franzi o cenho.
- Me solta, Alex. – falei entre dentes
- Mas aonde está indo? Você veio por minha causa, não foi?
- Eu vim porque fui obrigada. – olhei para Helena, que se aproximava com olhos arregalados. - Você queria que eu viesse, estou aqui. Mas em nenhum momento disse que iria interagir com você. Agora com licença, está me machucando.
Desvencilhei-me dele e continuei andando olhando para frente. Ele continuou parado lá. Olhei para trás e vi Helena me lançava um olhar reprovador enquanto conversava com Alex. Dei de ombros e voltei a olhar para frente. Me resolveria com ela quando chegasse em casa. Peguei em um dos coolers a primeira garrafa que vi, sem me importar realmente com que tipo de bebida seria. Tirei minhas sandálias e andei um pouco pela orla, afastando-me da agitação sem me preocupar com a água fria que molhava meus pés a cada onda que vinha. Ocasionalmente bebia um gole do conteúdo, ainda desconhecido, da garrafa que estava em minha mão. Eu só sabia que queimava ao descer pela minha garganta e estava me deixando um pouco tonta. Não gostava muito de beber, mas se eu teria que suportar aquele lugar por meia hora não seria sóbria que conseguiria. Fora que se ficasse suficientemente bêbada, Helena teria que me levar pra casa.
A tontura se intensificou e resolvi me sentar na areia, um pouco mais afastada da água, porém de forma que as ondas ainda molhassem meus pés descalços. Coloquei a garrafa e minhas sandálias ao meu lado e os braços para trás para ter apoio. Fechei os olhos e inspirei a maresia gelada, enterrando mais e mais meus dedos na areia fina e gelada. Ainda conseguia ouvir o burburinho da música e pessoas alcoolizadas dançando e conversando futilidades para esquecer de suas vidas sem graça por uma noite, um verão. Não me entenda mal, eu queria fazer parte disso, mas nunca tive vocação para tal. Mais do que tudo queria esquecer, mesmo que por meia hora, minha vida patética e nada inspiradora. Cursava uma faculdade que não gostava, um curso que em nada me interessava com pessoas menos interessantes ainda, e a cidade me sufocava.
Eu perdi a noção do tempo ali. Era tudo tão tranquilo que nem a sensação estranha que oprimia meu peito se fazia notar. É admirável o que o álcool te faz esquecer. Mas não era o suficiente ainda.
Abri os olhos, peguei a garrafa, já bem leve, e dei um longo gole. Acho que bebi quase a metade e continuava sentindo a ardência na minha boca e garganta. A diferença é que eu já não me importava com isso. Voltei à posição de antes e deixei meus pensamentos viajarem enquanto observava o mar escuro e suas ondas indo e vindo.
- Se importa se me juntar a você?
Uma voz masculina me afastou de meus pensamentos e me assustou pela forma repentina com que falou. Parecia que eu me movia em câmera lenta quando me virei para ver quem era. Não conseguia ver direito, ele estava contra a luz e eu já não estava enxergando lá muito bem então por fim assumi que seria Alex. Voltei a fitar a água indo e voltando molhando meus pés.
Ele se sentou mesmo sem minha autorização. O olhei de canto de olho, mas logo minha atenção estava nos meus pés de novo. Eu podia sentir o mundo girar de leve ao meu redor e não era agradável. Bebi mais um pouco da bebida quente. Senti que ele me olhava, mas fingi não perceber e ignorei a presença dele ali.
- Por que não ficou lá com o resto do pessoal? – ainda me encarava obstinadamente.
- Porque não gosto daquelas pessoas e não me interesso pelo que elas possam vir a dizer.
Ele riu.
- Você ao menos os conhece?
- Não e nem quero. Conheço uma delas e pra mim é o suficiente.
Virei para ele rápido demais para encará-lo e fiquei ainda mais tonta.
- Você está bem?
Colocou a mão no meu braço de uma forma delicada e se aproximou um pouco mais de modo que finalmente vi seu rosto.
- Você não é o Alex. – disse surpresa, e um pouco embolado.
- Agradeço todo dia por isso. – riu.
Puxei meu braço e acabei me desequilibrando, caindo de costas na areia. Comecei a rir. Ele riu junto e deitou ao meu lado.
- Decepcionada?
Eu ri ainda mais.
- Decepcionada? Eu estou é aliviada, se quer saber.
Nos calamos e ficamos olhando o céu com poucas estrelas e algumas nuvens, nem dava para ver a lua. Eu queria dizer algo, continuar a conversa, mas não tinha o que dizer e ele também não parecia ser de falar muito.
Sentei-me e peguei a garrafa, ele continuou deitado olhando o céu.
- Quer uma bebida? – disse após dar um gole.
Estendi a garrafa em sua direção. Sentou e a pegou. Bebeu o que restava, pouco mais de um quarto.
- Eu sinceramente espero que você consiga segurar sua bebida. – disse rindo.
Era estranho, talvez fosse a bebida, mas eu me sentia mais leve. Eu não o conhecia e não estava me importando se iria parecer idiota ou não. Gostei daquela sensação.
- Olha, quem bebeu a maior parte não fui eu, hein. – ele também riu. – Você bebeu isso tudo sozinha?
- Sim senhor. – estufei o peito, orgulhosa de meu feito.
- E como se sente? – adotou um tom sério demais.
- Leve como a brisa. – me joguei de costas na areia de novo com um largo sorriso estampado no rosto. – O que é um alívio, eu estava sentindo esse peso no peito, sabe? Fazia tempo já e nada do que eu fazia parecia melhorar. Não que eu tenha realmente tentando amenizar, tudo o que fiz foi ficar trancada em casa vendo filmes que acho que nem minha avó viu o lançamento e li vários livros. Mas não adiantou porque, veja bem, isso só te faz ignorar o problema, não o resolve. Eu não fiquei me lamentando, não sou assim, mas também não tentei resolver.
Ele continuava sentado, me olhando com a boca semiaberta e uma expressão confusa no rosto.
- Eu estou falando demais, não é? – tentei esconder meu rosto sob minhas mãos, mas acabei apenas me sujando de areia e rindo ainda mais.
- Sim, meio embolado também. – sorriu – Tem certeza que está bem? – perguntou, limpando meu rosto.
- Tenho. Estou ótima, de verdade. É a bebida, sabe? Eu quase não falo, então quando bebo fico assim. E faz tanto tempo que não bebo, nossa. – sentei novamente. Estava ficando agitada e quente. – Você, meu caro, é que está bebendo de menos. – apontei o dedo para ele.
Ele riu. Olhei para as pessoas no luau ainda.
- Eu já disse que não gosto daquelas pessoas, qual a sua desculpa para estar aqui comigo, alguém que nem conhece, e não lá com seus amigos?
Pareceu pensar um pouco.
- Não são meus amigos, eu só conheço o Alex mesmo. E nem queria estar aqui, ele só me chamou porque queria que eu distraísse a amiga da garota que ele quer.
- E você aceitou isso? – perguntei indignada.
Não sei dizer por que aquilo me irritou tanto. Na verdade, não poderia me importar menos com o que o Alex fazia ou pedia aos seus amigos. Se ele percebeu, ignorou, porque deu de ombros e respondeu tranquilamente.
- O Alex é do tipo que não desiste enquanto não consegue o que quer, então eu concordei só para não perder a paciência.
- Mas ainda assim, você aceitou. – insisti.
- Sim, ele pediu para eu vir, eu vim. Mas, a menos que seu nome seja Amanda, não vou ficar papeando com uma garota só para ele pegar a amiga dela.
Amanda?. Foi a gota d’água. O Alex havia se superado. Falou com Helena como se sua vida dependesse do meu comparecimento ao estúpido luau dele e ele estava interessado em outra? Eu não iria ficar ali nem mais um minuto, não tinha motivos mais.
- Olha, já chega.
Eu me levantei e estendi a mão para ele. Que a segurou e levantou.
- Aonde pretende ir?
- Vamos dar o fora daqui. Imediatamente. Já perdi tempo demais de minha vida fazendo o que eu não queria para agradar terceiros. - respondi, puxando-o em direção à aglomeração de pessoas. Desde que consigo me recordar, eu sempre fiz o que se esperava de mim, nunca o que realmente queria. Talvez fosse o álcool em meu organismo que afetara meu julgamento, ou talvez apenas me fez ver o que eu tentava sufocar dentro de mim. A música ia ficando mais alta à medida que nos aproximávamos e eu a sentia pulsando dentro da minha cabeça. Procurei Alex rapidamente com os olhos e fui ao seu encontro assim que o avistei. Eu não estava pensando direito. Estava com a adrenalina nas alturas, ao ponto de minhas mãos tremerem. Só queria dar um fim naquilo de vez e sair dali. Sei que Alex não era o real alvo de minha ira, mas seria nele que descontaria. Como se enfrentá-lo fosse uma metáfora para minha libertação de minhas amarras psicológicas. Me libertando do que ele representava estaria livre para finalmente respirar e fazer o que quisesse da minha vida.
Soltei a mão do outro garoto e segui até Alex. Meu corpo todo formigava e fervia, a adrenalina pulsando ainda mais por todo o meu corpo.
- , finalmente. Eu te procurei tanto.
Empurrei-o com toda a minha força e ele caiu na areia, entornando sua bebida toda em si mesmo.
- Enlouqueceu?! – perguntou, estupefato, sem saber se levantava ou tentava limpar a bebida da roupa. - Eu estou cansada de você, Alex! Você não entende que eu te acho um babaca e jamais vai acontecer algo entre a gente? Você é vazio. – eu gritava a plenos pulmões. – E ainda assim um peso que me puxa para trás. Eu cansei! A partir de agora farei o que eu quiser, quando eu quiser e com quem me der na telha, porque você não tem controle algum sobre mim. Nunca mais se aproxime de mim, ouviu bem?
Todos pararam para observar a cena. Uma pessoa segurou meu braço e me puxou. Era Helena. - Do que você está falando, ? – me olhava visivelmente confuso. Em momento algum me passou pela cabeça que talvez meu discurso só tenha sido conciso e eloqüente em minha cabeça e que, na verdade, o que saiu da minha boca foi uma confusão de palavras moles sobrepostas e emboladas. Helena me puxou com mais força, me afastando de Alex.
- Me solta, Helena! – soltei meu braço e cambaleei para trás. – Quer saber? Cansei de você também. Você é egocêntrica, narcisista e egoísta. Alguma vez você se importou com alguém além de si mesma?
- Está bêbada, não faz ideia do que fala! Não vai me machucar. – cruzou os braços sobre o peito e eu joguei os meus para cima. - Viu? É exatamente isso que estou dizendo. O mundo não gira em torno de você. Nem tudo tem a ver única e exclusivamente com você! Mas quer saber? Chega. – ri. – Estou indo embora. Me virei para sair dali. As pessoas abriram caminho para que eu passasse, todos boquiabertos, sem saber bem o que dizer ou fazer. Parei e dei meia volta.
- Quer saber? Vou levar isso comigo.
Peguei uma das garrafas de dentro de um cooler perto, mas dessa vez olhei o rótulo. Blue Label. Sorri. Saí novamente e o garoto com quem havia conversado me seguiu. Estava descalça, com toda a confusão esquecera minhas sandálias, não me importei.
- Aonde vamos? – ele perguntou ao me alcançar.
- Você eu não sei, – olhei-o de esguelha – mas eu vou fazer essa droga de noite valer à pena.

- E essa é a ultima coisa que lembro dessa noite. – disse sorrindo.
Eu estava de queixo caído. Jamais havia imaginado daquela maneira. Para mim ela sempre foi uma velhinha doce e amável que estava casada há mais de quarenta anos com o mesmo homem e o amava da mesma forma de quando se conheceram e se casaram.
- Mais nada? Eu achei que essa era a história do seu primeiro casamento.
- E é. Mas daquela noite eu não tenho uma lembrança sequer depois disso. Só da manhã seguinte.
Ela riu e eu fiquei sem jeito. Era bem estranho ouvi-la falando aquelas coisas. De ter bebido tanto que apagou uma noite inteira de sua memória. Agora já tinha uma ideia de como essa história toda se encaixava no que ela disse sobre ter sido casada mais de uma vez e o porque de eu não saber disso antes. Mas ainda assim, eu não conseguia evitar, estava curiosa para saber o fim da história e o que ela tinha a ver com o segundo casamento.
- Pode contar?
Ela riu do meu estranhamento.
- Bom, quando eu acordei estava com uma bela dor de cabeça e escuridão onde deveria ser minhas lembranças da noite anterior...

Eu acordei num quarto escuro e numa cama estranha, com o braço de um cara segurando minha cintura. Fiquei alarmada e tentei levantar. Minha cabeça parecia ter uma pressão interna descomunal, a sensação era de que iria explodir com qualquer movimento muito brusco. Massageei minhas têmporas com os indicadores, tentando aliviar a dor. Funcionou um pouco, mas não o suficiente. Olhei o homem ao meu lado e imediatamente verifiquei se estávamos vestidos.
Eu ainda usava o vestido leve e florido da noite anterior e ele apenas uma calça jeans. O quarto cheirava a álcool. Ele emanava o mesmo odor. Eu não estava tão diferente. Tudo começou a girar e me senti enjoada. Dei uma rápida olhada em volta procurando um banheiro, uma lata de lixo que fosse, eu iria vomitar a qualquer momento.
Havia uma porta na parede do meu lado da cama. Me sentei com os pés quase tocando o chão. A tontura aumentou e abaixei a cabeça por um breve momento, tentando respirar fundo. Senti uma dor forte no estômago e um gosto amargo na boca. Eu iria vomitar. Corri até a porta e agradeci a Deus por realmente ser um banheiro. Pela luz alaranjada que entrevia pelo basculante, imaginei que já fosse à tarde, mas não dei muita importância para isso, fechei a porta do banheiro apenas a empurrando com força atrás de mim.

O barulho deve tê-lo acordado, pois quando abri a porta novamente ele estava sentado na cama esfregando os olhos. Eu lembrava dele de pouco antes de sairmos do luau, mas era como se o visse pela primeira vez. Os cabelos castanhos amassados do sono, os olhos claros levemente avermelhados e inchados. As várias tatuagens que cobriam o corpo e os músculos bem definidos, ainda que não fossem enormes e exagerados, e as sobrancelhas masculinas mais lindas que eu já havia visto me tiraram o fôlego rapidamente e me fizeram ficar tonta mais uma vez. Eu estava pensando rápido demais. Parecia me mover rápido demais enquanto o mundo a minha volta estava em câmera lenta.
Tateei a beira da cama e me sentei. Ele deu um sorriso tímido e logo desviou os olhos dos meus. Mirava os lençóis com devotada atenção. Meu rosto inteiro adotou um tom avermelhado. Eu mal o conhecia e havia dormido com ele. E agora estávamos presos nesse silêncio opressor. Vi minha mão esquerda espalmada sobre a cama de relance pela visão periférica. Fechei os olhos com força.
- Então... – ele começou a dizer, ainda sem me olhar.
- Pois é.
Eu evitava o olhar dele tanto quanto ele o meu. Minha respiração estava lenta e pesada, mas eu não conseguia respirar fundo para normalizá-la, tinha medo de como ele interpretaria isso. Se veria como se eu estivesse suspirando por estar de saco cheio da presença dele ou se estava nervosa por estar perto dele. De qualquer forma eu preferia respirar mal a dar a chance dele pensar qualquer uma dessas coisas.
- Você lembra algo da noite passada? – perguntei, finalmente olhando na direção dele.
- Alguns flashes soltos. – ele ainda olhava para todo canto menos para mim.
- Igualmente.
Continuamos em silêncio. Minha cabeça rodava demais ainda. Eu queria perguntar um monte de coisas a ele, mas aparentemente ele sabia tanto quanto eu. Que saímos do luau juntos, enchemos a cara e acordamos juntos.
Respirei fundo.
- Me diz que isso não é o que eu estou pensando que é.
Levantei minha mão esquerda com as costas viradas para ele. Olhou para minha mão e riu baixo olhando a própria mão.
- Temo que sim, minha cara.
Repetiu meu gesto. Uma aliança dourada brilhava em seu dedo anelar esquerdo assim como no meu.
Não sei se foi nervosismo ou desespero, mas me joguei na cama rindo ele acabou fazendo o mesmo. Eu já estava sem fôlego quando finalmente paramos de rir e olhamos um para o outro. Era a primeira vez que o via sorrir assim, tão abertamente. Os dentes alinhados e perfeitos. Deve ter percebido que eu encarava sua boca sem nem piscar pois rapidamente o sorriso se foi. Tão efêmeros são os motivos para se rir sem parar, mesmo que sejam impróprios os momentos em que aparecem tais razões. Aquela era sem dúvida uma dessas horas.
- Senhor! – eu disse encarando o teto, com as mãos sobre minha barriga, que doía.
- O que foi? – ele me olhou.
Me virei para ele e nossos olhos se encontraram pela primeira vez diretamente. Demorei um pouco olhando o rosto dele. Decorando cada traço para jamais esquecer suas feições e aquele momento. Não sei como não havia reparado antes, mas ele tinha um piercing de argola na narina esquerda. Ele fugia totalmente dos meus padrões. Eu gostava disso nele. Sorri e voltei a encarar o teto.
- Bom, eu me embriaguei pra valer ontem, xinguei e provavelmente machuquei o dono da festa em que eu estava, roubei duas garrafas dele, falei barbaridades para minha única amiga, fugi de lá com um desconhecido, me casei com esse mesmo estranho estando completamente bêbada, não lembro de nada depois de ter saído daquele luau idiota e, a cereja do bolo, não faço a menor ideia de qual seja o seu nome.
Ao terminar de falar eu estava com o meu rosto virado para ele e sorria. Ele me encarava sério. Era estranha a forma como eu me sentia. Não estava apaixonada por ele, longe disso, mas sentia gratidão. Ele havia me ensinado, ainda que indiretamente e sem querer, a viver minha vida intensamente.
- E, ainda assim, mesmo tendo sido a maior besteira que já fiz na minha vida, é, com certeza, a memória mais feliz que tenho e que levarei comigo eternamente.
Ele sorriu, corando quando eu coloquei uma mão gentilmente em seu rosto. Eu retribuí o sorriso e ele se aproximou. Meu coração imediatamente se acelerou. Ele me beijou os lábios com delicadeza.

tinha um sorriso largo no rosto, desses que damos ao sentir saudade ao recordarmos um momento bom que vivenciamos. Eu não pude evitar e sorri junto. Uma lágrima escorreu por seu olhos, embora não parecesse triste.
- E depois desse beijo? – perguntei, escolhendo minhas palavras.
- Foi só isso. – manteve o sorriso. – Ele fez um chá para nós dois para ver se meu enjoo passava e me deu uma aspirina para a dor de cabeça e só. Fui para casa e liguei para os meus pais contando o que havia acontecido.
Arregalei os olhos.
- Eles quiseram me matar, sim, meu pai principalmente. – riu. – Mas tínhamos um amigo advogado e como o casamento não havia sido consumado...
- Não? – me assustei. – Nem durante a noite?
- Nem durante a noite. Estavamos tão bêbados que só tiramos os sapatos e dormimos. Acredito que nem nos lembrávamos na hora que tínhamos nos casado. Fora que eu era virgem.
Eu ri e imediatamente ficou séria. Meu rosto ferveu.
- E qual era o nome dele?
- Eu não sabia. Nunca perguntei, achei melhor assim. E quem resolveu tudo foi meu pai e o amigo dele, então...
Estava abismada. A primeira coisa que eu faria seria procurar aquele homem em todos os cantos do planeta. Mas talvez fosse uma boa coisa ela não o ter procurado. Talvez ela não conhecesse meu avô e não teria meus pais, consequentemente eu não seria neta dela. E eu gostava da minha família, do jeitinho que ela era.
Mesmo aquele vídeo sendo, inicialmente, um presente de casamento para ela e meu avô pelos 45 anos juntos. Não sei se ele gostaria de ver sua esposa de tanto tempo falando essas coisas de outro homem, mas eu pouco me importava, queria saber mais. Não chegava a ser uma história de amor, porém, definitivamente, era uma excelente para se contar aos netos. Ou à neta, no caso. Eu daria um jeito de apagar essa parte.
- E nunca mais o viu?
- Bem, depois do que aconteceu, mesmo sabendo o nome dele, não o procuraria. Eu não estava apaixonada, mas eu me sentia realmente grata por ter sido, de todas as pessoas, ele. Eu parei de sentir medo e de me prender tanto às coisas ruins que aconteciam. Nunca mais me senti deprimida. Depois de seis meses tomei coragem, larguei a faculdade que eu fazia e resolvi viajar pela Europa.

Meus pais não eram ricos, mas tinham condições, então conversei com eles e disse que meu lugar não era naquela faculdade, que eu precisava viver um pouco antes de decidir como o resto da minha vida seria. Não que meu pai tenha aceitado de cara, mas eu disse que ele só precisava pagar minha passagem de ida e, quando eu quisesse voltar, a de volta, porque iria me virar por lá mesmo. Uns amigos haviam feito intercâmbio e conhecido varias pessoas pela Europa quase toda, lugar para ficar não me faltaria.
Eu tinha um dinheiro guardado que seria para minha viagem dos sonhos por conta própria e eu economizava desde os 15 anos. Eu pedi o dinheiro que seria gasto no lugar da festa, melhor coisa que fiz, então daria para ficar uns bons seis meses lá antes de precisar trabalhar. Claro, ficando em albergues e não gastando com qualquer besteira.
Demorou mais um ano para organizar tudo, tirar visto, comprar passagem, conversar com os amigos dos meus amigos... Assim que resolvi tudo, fui. Meus pais me ligavam praticamente todo dia e eu sempre mandava e-mails com fotos de lugares que eu visitava, pessoas que eu conhecia e sempre contando como tudo estava sendo. Nunca os deixava sem notícias, compreendia que teriam um ataque do coração caso o fizesse. Contava como os cursos de idiomas que eles pagaram com tanto gosto estavam valendo à pena e meu pai ficava todo bobo.
Eu já estava viajando há dois meses e há uma semana mais ou menos em Lyon, na França. Uns amigos que eu havia conhecido umas semanas antes na Alemanha me convenceram a ir com eles a um pequeno pub da cidade porque era “Noite do Microfone Aberto”. Ao contrário do que era antes do meu casamento relâmpago, eu não negava mais quase nada. Sempre que me chamavam para fazer algo eu topava, claro que mantive meu bom senso, não era completamente louca.
Jamais esquecerei, ele estava com uma jaqueta de couro preta sobre a camisa branca não muito folgada. Os cabelos estavam maiores, mas com o mesmo corte de quando o conheci, e estavam avermelhados pela luz do local. Os olhos claros brilhavam ainda mais com o holofote sobre ele. Estava sentado no palco tocando violão cantando She Will Be Loved. Ao terminar, deu aquele sorriso brilhante dele que me encantou da mesma forma como da primeira vez. Não o via há quase dois anos, mas não importava quanto tempo se passasse, eu o reconheceria a qualquer distância.
Ele descia do palco e eu, ignorando meus amigos perguntando aonde eu estava indo, fui ao seu encontro.
Assim que me viu ficou surpreso e eu ri.
- Sou eu mesma, estou ruiva agora.
Ele também riu e me abraçou. Respirei e o perfume dele adentrou minhas narinas e instintivamente fechei os olhos, apreciando-o. Dei um sorriso breve quando nossos corpos se separaram. Ele me guiou com as mãos em minhas costas até uma mesa próxima, sentei e ele foi pegar duas cervejas para nós. No meio tempo em que se ausentou, mandei uma mensagem para minha amiga dizendo para não se preocupar e que eu voltaria para casa com um amigo que não via há tempos. Ele voltou e sorrimos uma para o outro enquanto se sentava.
- Mas o que está fazendo aqui?
Ele me encarava abertamente, seus olhos nos meus. Abaixei o olhar e comecei a brincar com o rotulo da garrafa, que se soltava por estar molhado.
- Chutei o balde. – rimos. – Aquela faculdade não era mais pra mim, não agora. Estou num momento mais aventureira.
Fiz minha melhor expressão sedutora e ele soltou uma gargalhada alta, ri junto. Ficamos em silêncio. Bebi minha cerveja e continuei olhando para baixo.
- Quer sair daqui?
Ele disse de repente e me surpreendeu. Fiquei o olhando por alguns segundos, avaliando a pergunta. Ele ainda tinha o piercing na narina esquerda. Sorri.
- Claro.
Era o que eu mais queria, desde aquele dia na casa dele. Eu continuava pensando nele e só me dera conta disso naquele momento. Eu era diferente. Não ficava mais questionando cada pequeno detalhe, muito menos me martirizava por querer o que eu queria. Pelo contrário, quando eu queria algo eu ia atrás e não parava enquanto não conseguisse. Eu o queria. Demorou dois anos e, desses, dois meses rodando a Europa, descobrindo novas culturas, novos sabores, novos amores, para me dar conta disso. Mas não importava porque ele estava ali, comigo, com chances tão ínfimas de acontecer, e me queria também. Então nem pensei em me prender às intenções dele. Se me largasse na manhã seguinte, melhor para mim. Seguiria com minha viagem, mas pelo menos teria saciado um desejo antigo.
Seguimos pelas ruas de Lyon conversando sobre tudo e nada. Ele não tocou no assunto do casamento nem no nome de Alex e eu não seria a pessoa a fazê-lo. Contou-me das coisas que havia feito nesses dois anos e eu fiz o mesmo. Os lugares que conhecemos, as roubadas em que nos metemos e rimos. Além de tudo, rimos. Era isso que eu mais gostava nele, fazia-me sentir tão leve e alegre, o riso era a resposta natural à presença dele.
Acompanhou-me até o albergue em que eu estava hospedada e quando chegamos à porta ele sorriu. Daquele jeito todo especial e bobo dele que me fazia derreter por dentro. Sim, derreter. Eu criara uma barreira de gelo em meu coração como prevenção às possíveis decepções. Talvez por isso jamais o tenha esquecido. Eu sabia que se escolhesse realmente seguir viajando, não poderia me apegar às pessoas que eu conhecesse de uma maneira romântica, de forma que ele fora o último a realmente se aproximar. E não havia ninguém melhor do que ele para ser essa última pessoa.
Ele me conhecera em meu momento mais sombrio e, de alguma forma inexplicável, trouxera a luz consigo. Gostei de me sentir daquela forma, então me apropriei de tal. Porém a iluminação dele era diferente. E estando ali com ele me sentia aquecida de um jeito que eu jamais havia experimentado antes. Nem mesmo naquela primeira noite, a que nos conhecemos.
Ele ainda sorria daquela forma encantadora e eu não resisti. Me aproximei dele, puxei-o pela nuca e o beijei. Por um momento achei que ele não fosse retribuir, mas acho que foi por ter sido pego de surpresa, porque em uma fração de segundos depois ele me agarrou pela cintura e me prensou contra a parede. Agarrei os cabelos dele com uma mão enquanto a outra arranhava as costas dele sob a camisa de forma que não o machucasse, mas que percebesse que eu o fazia. - Quer subir? – perguntei, separando nossas bocas.
Nossos peitos arfavam. A boca dele estava vermelha e as bochechas coradas. Olhou para o pequeno edifício de três andares, algumas luzes ainda acesas.
- Eu estou ficando na casa de um amigo aqui perto. – olhou em meus olhos, a luz de um poste os acertando. – Teremos mais privacidade.
Sorri e o beijei novamente. Partimos o beijo e ele segurou minha mão me guiando. Não sei dizer ao certo, mas provavelmente corremos. Para mim parecia que estávamos muito lentos, como presos no tempo, uma eternidade até chegarmos à casa do amigo dele. Ele tirou e jogou a jaqueta no chão da sala próximo à porta enquanto nos beijávamos. Me colocou nas costas, me segurando pelas coxas, eu ri e ele fez o mesmo. Subiu as escadas correndo e eu quase bati a cabeça numa parte mais baixa do teto.
Ele me jogou na cama dele e foi fechar a porta. Me ajoelhei na cama tirei a minha camisa, ele tirou a dele e eu vi as tatuagens. As mesmas que povoaram meus sonhos sem eu me lembrar onde as havia visto. Passei a mão nelas e colei meu corpo ao dele, estávamos quentes. Ele desabotoou meu sutiã com uma mão só enquanto a outra agarrava meu cabelo com força. Puxou minha cabeça para o lado, deixando meu pescoço à mostra e o beijou com ferocidade. Minhas unhas cravaram nas costas dele enquanto ele subia e descia com seus lábios, de minha orelha ao colo descoberto e eu soltei um gemido baixo. Senti os lábios dele se repuxarem para cima num sorriso. Abri a calça dele e a minha. Ele me jogou na cama com força, tirou a própria calça e em seguida a minha. Sorriu, do mesmo jeito de quando ainda me beijava, ao ver minha calcinha preta rendada e veio para cima de mim. Nós dois ardendo em desejo, um desejo reprimido durante anos, ignorado, jamais esquecido. Não contive um suspiro próximo a um gemido de prazer ao senti-lo penetrar em mim.
Nunca havia sentido daquela forma antes com outra pessoa. Não que eu tivesse tido muitas relações, mas nenhum se aproximou daquilo. Nenhum outro cara me fez sentir aquele misto de alegria e medo, como se eu fosse pular de um avião e temesse que o paraquedas não abrisse. Tantos pensamentos se misturavam em minha cabeça depois que eu não consegui me concentrar em nada além daquele momento. Porém, mais calma, voltei a me sentir como há dois anos, apavorada. Então esperei ele dormir e saí.

Minha boca estava semiaberta de espanto e assombro. Ver sua avó contando essa parte de sua vida não é exatamente normal e acolhedor. Eu a via como uma mulher agora, não só como minha avó. Por um momento eu desejei que aquela história acabasse com eles dois juntos, mas eu já sabia como terminava. Ela ficava com meu avô, eu só não via onde ele se encaixava no relato dela. Sempre ouvi que haviam se conhecido em uma espécie de festa e ele correra atrás dela durante meses antes de finalmente ouvir um sim. Se casaram, tiveram o meu pai e continuam casados até hoje. Mesmo amando como minha família era, não pude evitar a pontada de tristeza que senti. Era tão romântica a história de certa forma e aquele cara misterioso parecia incrível.
- E nunca mais se viram? – não aguentei mais.
- Não exatamente. Eu me esquecera de um importante detalhe, ele sabia onde era meu albergue e ficou plantado na frente até eu sair.
- E então? – meus olhos brilharam.
- Eu já havia ido embora.
Fiquei em silêncio. Então era assim que acabava? Um mero desencontro do destino.
- Só fomos nos encontrar novamente em Venlo, uma cidadela na Holanda.
- Mais um acaso? – sorri.
- Claro que não! – deu a gargalhada que eu tanto gostava e que preenchera minha infância. – Ele me seguiu até lá. Simplesmente não aceitou eu ter partido sem dizer adeus.
- E quando se encontraram? Se despediram em mais uma noite de puro amor e depois se separaram.
Ela fez uma careta, estranhando a minha fala, mas sorriu.
- Eu não consegui. – disse após uma eternidade a meu ver. – Assim como não consegui nenhuma das outras vezes que tentei. Ficamos juntos os oito meses seguintes. Viajando por todo o continente e um pouco da Ásia e África. Mas eu tinha que voltar para meus pais. Então fomos juntos ao único lugar que eu evitara ir, estava guardando para o final. E...
- E então? – a interrompi.
Ela riu, balançando a cabeça em negação, provavelmente pensando como eu não havia perdido a mania de criança e continuava ansiosa. Me encolhi na cadeira.

Era outono e estávamos em Paris. As folhas perdiam a coloração verde, ganhando tons de marrom variados, e caíam das árvores, colorindo o chão. Passeamos por toda Paris durante duas semanas, mas sabíamos que o tempo estava se esgotando. Logo eu iria embora e ele ficaria. Não nos veríamos mais. Queríamos aproveitar ao máximo os últimos dias juntos e em nenhum momento tocamos no assunto da minha volta.
Após um delicioso lanche por uma das confeitarias próximas à torre Eiffel no último dia nos sentamos no gramado perto da dama de ferro. A cabeça dele descansava sobre minhas pernas esticadas e eu acariciava seus cabelos macios.
- Você tem noticias do Alex? Ele não falou mais comigo depois daquela noite.
Perguntou de modo casual, com os olhos fechados. Era a primeira vez que falávamos qualquer coisa que tivesse a ver com aquele fatídica noite de verão.
- Da última vez que o vi ele estava com Helena. Acho que vão se casar.
- Acha? Ela não te convidou? – abriu os olhos e fitou os meus.
- Não. Até tentamos continuar amigas depois de tudo o que aconteceu, mas eu havia mudado e acredito que ela não soube lidar muito bem com o fato de não ser mais a divertida da turma, o centro das atenções. – Falei um tanto vaga. – Não me fez falta alguma.
- Então não os convidaremos para nosso casamento também.
Ele fechou os olhos novamente e eu ri.
- Estou falando sério, .
Ele se sentou de frente para mim, olhando fundo em meus olhos. Estremeci e instantaneamente meu riso cessou. Ele falava sério. Só então me dei conta de que nunca havia perguntado o nome dele e ele também nunca falou. Em oito meses juntos não nos tratávamos pelo primeiro nome. Ele só sabia o meu porque ouviu um de meus amigos mencionar, senão estaria tão no escuro quanto eu.
- O quê? Enlouqueceu?
- Não. – respondeu categórico ainda me olhando.
Ele ficou em um joelho só, como nos filmes, pegou uma caixinha preta de veludo no bolso da calça e a abriu.
- , quer se casar comigo? Pra valer dessa vez?
Eu fiquei atônita, não saía nem um único som por minha boca aberta. Olhei em volta, algumas pessoas observavam a cena atentas e com sorrisos em seus rostos.
- Eu aceitaria, mas nem sei seu nome. – falei baixo, temendo que um dos observadores me ouvisse.
Ele riu. Deu aquele sorriso doce dele e pronto, estava tudo perdido. Não importava mais se eu sabia o nome dele ou não. Minha resposta seria sim, não podia ser outra, eu não queria responder outra coisa.
- Realmente, você não sabe meu nome.
Ele continuou rindo e eu ri junto, dando de ombros. Saber o nome dele nunca esteve em minha lista de preocupações, só o que importava era o que eu sentia por ele e quando estávamos juntos. Mais nada.
- Então se souber meu nome se casa comigo? E sem divórcio no dia seguinte?
- Sim. Jamais se repetirá.
Rimos mais uma vez e ele me olhou com seriedade.
- .
Colocou a aliança, a mesma da primeira vez, em meu dedo e eu o beijei com tanta vontade que o fiz cair de costas no gramado comigo por cima dele.

sorria para mim enquanto eu tentava processar todas aquelas informações novas.
- Espere, você disse ?
- Sim. – ela tinha um sorriso divertido a brincar em seu rosto levemente enrugado.
- ... Como o nome do vovô ?
- Exatamente.
Meu cérebro entraria em parafuso. Eu passei todo o tempo em que ela contava aquela história, talvez minha vida inteira, acreditando em uma coisa que na verdade era outra. Não que fosse ruim, a nova versão de como meus avós se conheceram era infinitamente mais interessante do que o clássico “se conheceram em uma festa e ele correu atrás e a venceu no cansaço”, mas era muito para assimilar em tão pouco tempo.
- Ouvi meu nome?
O senhor ainda alto entrou na sala e se sentou ao lado de dando um beijo em sua bochecha, que imediatamente corou. Eu achava incrível como em todos esses anos ele ainda a fazia corar com meras carícias e mimos, e vice e versa. Sob a camisa de botão aberta em cima se entrevia uma parte das tatuagens dele e parecia que só agora eu havia tomado consciência delas.
Por fim decidi deixar o vídeo exatamente como estava, sem cortar nem minhas risadas ou perguntas. Seria o melhor presente que eu poderia dar a eles e a todos os que estariam presente na festa do dia seguinte, a história de como meus avós haviam se conhecido, as loucuras que fizeram. Eu iria mostrar para todos que, mesmo sendo um casal de velhinhos hoje, um dia foram jovens que curtiram a vida, e não foi pouco, antes de acertarem em um lugar e montar sua família. A minha família.
Ele segurou a mão dela tentando disfarçar, como um casal de namorados. Ela corou ainda mais e os dois sorriram.
Uma lágrima escorreu pelo meu rosto. Uma lágrima quente de pura felicidade. Se o amor realmente existia, aqueles dois eram a personificação dele. E eu estava mais do que feliz de poder fazer parte e contar essa história.

N/A: Olá, queridas! Talvez não tenha sido exatamente o que esperavam por se tratar de uma fic no especial do dia do sexo, mas como a exigência era apenas ter cenas e/ou falar de sexo pensei ‘por que não?’. Gosto muito dessa estória e espero que também tenham gostado. A caixinha de comentários está ali para dizerem tudo que acharam, não tenham medo de usá-la que ela não morde ;)
P.s.: Para quem se interessou, Prend Ton Temps é uma música linda demais da fofíssima Joyce Jonathan. Recomendo.

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Nota da Beta: Qualquer erro nessa fanfic é meu, então me avise por email ou mesmo no twitter.