O despertador acordava-me pontualmente às oito da manhã, como sempre fazia nos últimos meses. A claridade que entrava pela fresta da cortina já era indiferente, assim como os sons dos passarinhos que cantavam em meu jardim, em um passado não tão distante.
A grande cama era convidativa, e quase que dizia para deitar-me novamente, mas eu sabia muito bem que não podia fazer isso. Não sei ao certo, mas só me dei conta da bagunça que o quarto estava quando finalmente olhei para ele, dando-lhe alguma atenção. A poeira, as roupas atiradas em diversos cantos, garrafas e latas de bebidas, junto às pequenas embalagens de antidepressivos, davam ao cômodo um clima mais pesado, se é que era possível.
Como de costume, peguei duas cápsulas dos remédios brancos e sem efeito algum, engolindo-os sem nenhum tipo de acompanhamento. Fui até o banheiro, somente colocando meu cabelo no formato de um moicano, passando um pouco de lápis preto nos olhos. As roupas – como de costume – não seriam trocadas, não havia o porquê de ficar me arrumando.
Afinal, para quem eu iria fazer isso, ou por quê? Com tais pensamentos, meu humor fora por água à baixo, como os fracos e indiferentes pingos que caiam sobre a pia inutilizada. Observei minha imagem pelo espelho, que tinha os cantos empoeirados, desconhecendo o reflexo que encarava. Quem era aquele homem com cabelos e roupas parecidas com as minhas, mas com expressão morta, que não sabia mais o que era um sorriso?
Todo dia, toda a manhã, eu tentava, mas não conseguia. Pensamentos otimistas do tipo “hoje é um novo dia, tente”, ou “faça somente o que prometera e seja feliz”, até habitavam minha mente, mas em um idioma que eu desconhecia, e não faria força para entender.
Na sala de estar havia uma montanha de cartas empilhadas de maneira desorganizada, sobre a mesa de madeira empoeirada, ainda com o último arranjo de flores que ele me dera. Tão mortas quanto sua presença na enorme casa. Por mais que elas atraíssem inúmeros insetos e estivessem horríveis, eu não tinha coragem de jogá-las fora.
Peguei meu celular, que há tempos não recarregava, junto à chave de casa, e abandonei o recinto, andando novamente sem rumo. O dia estava com o clima agradável, nublado, mas com a temperatura na média para a época, que não exigia vestimentas pesadas. Sempre que saía da prisão que se tornara minha casa, acabara por fazer o trajeto de vários passeios que dávamos, mesmo que na maioria das vezes fosse inconscientemente.
Mas hoje seria um pouco diferente. Já que ninguém me ligara perguntando se ainda estava vivo e em condições aceitáveis de sobrevivência, decidi ir até um parque, não muito distante, mas muito aconchegante. Com certeza tal opinião seria mudada até chegar lá.
As pessoas na rua me observavam; algumas com curiosidade, outras com espanto, e algumas com pena, o que eu menos queria que algum ser vivo sentisse de mim. Eu não estava fazendo o que prometera, não estava lutando para ser feliz e seguir em frente, não estava nem tentando. Outras pessoas estariam fazendo totalmente o contrário, mas o que eu fazia? Ficava em casa, bebendo e usando narcóticos para esquecer a realidade.
Pela primeira vez pensei em suicídio. A brisa que alternava entre as temperaturas chocava-se contra meu rosto, trazendo lembranças que eu não queria lembrar, não agora. Isso apenas fazia com que minha mente se sentisse ainda mais culpada e solitária, desejando não existir.
Tentei parar de pensar no assunto, distraindo-me com a primeira coisa em meu caminho. Havia um homem pintado perfeitamente de prateado, na mesma cor que suas roupas, sapatos e cabelos. Ele não se movia, não era possível nem vê-lo piscar. A sua frente havia uma pequena caixa com moedas, e na outra havia um cesto com pequenos pedaços de papel.
Retirei uma moeda do bolso da calça de meu casaco, depositando-a no pequeno pote. O homem sorriu e mudou sua posição sobre o minúsculo palco que o deixava mais alto que todos, fitando o vazio, enquanto suas pernas estavam cruzadas, os braços em uma posição parecida com as de estátuas clássicas.
Eu continuei a observá-lo, espantado pelo modo que ele conseguia ficar imóvel. Se estivesse escuro, eu poderia confundi-lo com uma estátua. Depois de um tempo, ele gesticulou para que pegasse um dos papeis que estava no pequeno cesto. O observei, agachando-me, já curioso para saber o conteúdo de todas elas.
O homem me assustou quando sua sombra desenhou-se curvada sobre o chão, a alguns centímetros de distância de mim. Não pude evitar me afastar, encarando-o desconfiado. O homem apenas continuou a sorrir, pegando um dos pequenos papéis de dentro do cesto e entregando-o a mim.
Até o papel estava meticulosamente dobrado. Sua cor era um pouco amarela, de textura grossa e porosa. Comecei a abrir lentamente, tendo o cuidado para não rasgar, sendo interrompido novamente pelo homem. Seu dedo indicador estava apontado para mim, movendo-se de um lado para o outro.
O homem estátua e mímico gesticulou novamente, mas dessa vez para que me afastasse. Algo me dizia que eu nunca mais o veria. Andei em passos lentos na direção que mantinha antes, não olhando para trás. Voltei a abrir novamente o bilhete, dessa vez não tendo nenhum problema com o número de dobras, mas sim com a mensagem que estava escrita no papel, com uma caligrafia semelhante a uma que eu jamais veria.
“Não deixe de cumprir sua promessa.”
Eu não sabia dizer como estava. Apenas apertei o papel em minha mão e virei-me para trás, avistando apenas algumas pessoas que seguiam indiferentes pela rua. O mímico-estátua havia sumido como eu havia previsto. Talvez não fosse para eu questioná-lo, talvez isso fosse a prova de que eu finalmente deveria fazer o que era certo.
Suspirei, guardando o bilhete em meu casaco. Eu precisaria lê-lo milhares de vezes para assimilar – ou até cumprir – tais palavras. O caminho fora curto até o parque, ainda mais porque não parei em nenhuma das vezes para me distrair com mais nada. Haviam algumas pessoas sentadas na grama, algumas sozinhas, outras com companhia.
Andando até o meio do parque e seguindo na direção da grande floresta que ali havia, eu iria chegar a uma clareira com um pequeno monte rochoso, e assim o fiz. Não demorou muito, mas devido à pequena caminhada, já me sentia exausto. Isso me lembrou que não comia algo decente a... Bom, eu não lembro, mas deveria fazer muito tempo.
Como lembrava, lá estava o monte rochoso; algumas pedras perfeitamente desenhadas para se sentar em cima. A pequena escalada me cansou mais ainda, mas logo pude descansar sobre uma rocha lisa e a uma altura maravilhosa. Quando eu vinha ao parque com ele sempre escalávamos o monte e quem chegasse ao topo primeiro teria um prêmio. O prêmio... Não é difícil de imaginar, certo?
Deite-me sobre ela, colocando meu antebraço sobre os olhos. O dia nublado estava no fim, mas o branco do céu ainda machucava meus olhos. Como esperado, minha mente voltou a vagar por memórias, memórias que não deveriam ser lembradas. Mas ao mesmo tempo em que não queria revê-las, eu tinha medo de esquecê-las, coisa que o tempo poderia muito bem fazer.
Dizem que é um sistema de contagem complexo, e muitas vezes generoso. Também dizem que o tempo apaga a dor, e junto a ela as lembranças mais reais que temos de alguém ou de algo. E se fosse para isso acontecer eu preferia viver com uma dor emocional para o resto de minha vida.
Meus olhos foram se fechando à medida que meu corpo foi relaxando sobre a rocha, levando-me até o inconsciente. E pela primeira vez em vários meses, eu sonhei. Sonhei com a memória mais perfeita que poderia possuir em algum lugar da minha mente.
Era primavera na Alemanha, e estávamos no mesmo parque. Sempre vínhamos ao grande campo desde pequenos, mas o que eu não esperava era que naquele dia, em especial, tudo seria diferente.
Seus braços envolviam meu corpo quando nossos pais não estavam olhando, já que decidiram ir junto para fazer um piquenique em família. Suas mãos percorriam minha cintura, indo até minhas costas, deslizando por meus braços. Eu jamais consegui esquecer o toque de seus dedos sobre minha pele, pela primeira vez com segundas intenções.
- Eu quero te mostrar uma coisa. – sussurrou em meu ouvido, e antes que pudesse dizer algo, sua mão me guiava em meio à floresta.
O mais estranho é que na época tínhamos quinze anos, e nas imagens que via agora estávamos com nosso físico atual. Tudo bem que era um sonho, mas ainda assim era uma memória, que já começava a se tornar irreal. O parque, que antes estava cheio, agora era nosso, como se todas as pessoas tivessem desaparecido em um passe de mágica.
Ele me guiou até o monte rochoso, e aquela vez fora a primeira que eu a avistara.
- Como descobriu isso? – meus olhos corriam pelas pedras, apreciando o mistério e beleza que davam ao lugar.
- O que eu quero fazer agora tinha que ser em um lugar especial, não concorda? – eu estava novamente em seus braços, tendo sua face apoiada em meu ombro. Suas mãos acariciavam minha barriga enquanto sussurrava em meu ouvido.
- Mas o que quer fazer? – minha inocência e pureza não ajudaram no momento.
Ele não respondeu, apenas selou nossos lábios com volúpia. Sua língua pedia passagem que logo fora concebida, e começou a explorar minha boca de maneira que nunca havia feito antes. Seu piercing roçando em meu lábio fazia-me querer mais daquela boca, mas não tinha coragem o suficiente para pedir.
E também nem foi necessário. Seus lábios praticamente me devoravam, sua mão me empurrando delicadamente para o monte. Mesmo que ele me correspondesse da forma secreta que queria, parecia não ser o suficiente. O ar já se fazia necessário, mas isso não nos impediu de continuarmos juntos. Apenas separamos nossos lábios, que ficaram roçando-se enquanto respirávamos o máximo e mais rápido que podíamos.
Por mais que o momento exalasse luxúria de ambas as partes, ele sabia que eu queria que isso acontecesse de forma calma e delicada, a ponto de chegar à perfeição. Suas mãos me empurraram com sutileza para cima de uma das pedras, deitando-me sobre ela. Seu corpo começou a se deitar sobre o meu, mas nunca permitindo que seu peso me machucasse.
Seus olhos me observavam brilhantes, talvez pelo êxtase do momento. Mas como dizem que tudo que é bom dura pouco, esse momento não se prolongou. As imagens que eram tão perfeitas e tão nítidas aos poucos iam fugindo de mim, e eu não tinha como segurá-las.
Olhei para ele, como se fosse a última vez que o veria, e realmente era. Eu tentei tocá-lo, mas minha mão atravessava seu corpo, sua imagem cada vez mais difusa sobre o espaço. Eu não sabia o que estava acontecendo, nem o porquê. Ele continuava parado, agora ao meu lado, observando-me com o olhar sofrido e um sorriso esperançoso em seus lábios.
“Eu estarei ao seu lado, lembre-se disso. Cumpra sua promessa, lembre-se dela e de mim.”
Essa foi a última vez que eu ouvi sua voz.
- Tom, TOM! – eu descia desesperado pelas pedras, quase caindo sobre um monte delas.
Era impossível conter as lágrimas que saiam por meus olhos, o desespero que tomava conta de mim. Tom estava ao meu lado, tão perto, tão vivo, e eu o tinha perdido de novo. Saí correndo em meio as árvores, procurando-o desesperadamente. Já tinha escurecido bastante, e eu não tinha percebido, o que tornava tudo mais difícil.
Somente parei quando cheguei novamente ao centro do parque, observando as poucas pessoas que ainda estavam lá. Foi apenas um sonho. Eu mentalizava a frase quantas vezes podia, ainda estático por ter sonhado com algo tão real. Meus olhos estavam doloridos pela quantidade de lágrimas que haviam derramado em tão pouco tempo, assim como minha cabeça doía com a adrenalina repentina.
Com medo de que alguém perguntasse o que tinha acontecido, e por que estava no parque tão tarde da noite, comecei a andar em direção a minha casa em passos lentos, quase que automáticos. Não reparei quando comecei a chorar de novo, somente senti uma brisa mais fria do que o normal em minhas bochechas.
E como eu tinha dito, toda a vez que tinha tentado esquecer, algo me levava à tona aquelas lembranças, mas pelo menos dessa vez havia sido algo mais amigável, algo que eu realmente iria querer lembrar.
Mas o que realmente não saia da minha mente foram as últimas palavras que ouvira de sua boca, tanto no sonho como da última vez que ele realmente falou. Cumpra sua promessa, lembre-se dela e de mim. Lembrar-me dele, como se fosse difícil. E ainda mais lembrar-me da promessa. A única diferença é que eu não a cumpria.
Entrei em casa indo em direção ao meu quarto, mais exatamente ao pequeno armário que tinha perto da cama de casal. Dentro de uma das gavetas havia um maço de cigarros junto a um isqueiro. Peguei os dois, seguindo para a pequena sacada da casa. Não me importei em ligar nenhuma das luzes, muito menos trocar de roupa. Eu apenas precisava sentir aquela brisa fria, como se isso fosse esfriar minha cabeça.
Rolei a porta de vidro sobre sua base e fui para a sacada, acendendo sem dificuldade um dos cigarros, atirando o maço sobre a pequena mesa que ali havia. Entre uma tragada e outra, minha mente recriava as memórias, já não eufóricas, por nunca mais ter nenhuma do gênero para guardar, mas sim triste e feliz ao mesmo tempo. Triste por sentir tamanha saudade de cada toque, cada beijo, cada palavra e até cada briga, mas, ao mesmo tempo, feliz por saber que um dia elas existiram.
Quando se ama alguém nem o tempo pode apagar as memórias, mas sim reforçá-las como se fosse uma promessa de que um dia ambas as almas gêmeas fossem estar novamente juntas. Mas se essa fosse a real promessa, o que aconteceria se eu não cumprisse a minha como havia sido seu último pedido?
Seja lá onde Tom estava agora, se estivesse ou não me vendo, eu não iria querer magoá-lo, e sim orgulhá-lo sendo aquela pessoa forte e alegre que sempre fui antes de perdê-lo. O cigarro finalmente chegou ao fim, e logo joguei o pequeno toco fora. Mais uma vez voltei à sacada, inspirando profundamente o ar frio que era tão agradável.
Nele havia um aroma suave, extremamente agradável, e eu poderia até dizer que era conhecido, mas talvez isso fosse loucura, paranoia de minha parte. Meu dia já estava sendo bem estranho e talvez não fosse tarde demais para acrescentar um pouco mais disso a ele. Quem visse me chamaria de maluco, e eu apenas responderia que isso é a prova mais pura de amor e esperança que poderia existir.
Lembrei-me do papel que estava em meu bolso, cujo homem prateado havia me dado. Procurei em toda a parte do meu casaco, bolsos da calça e tudo mais, sem nada encontrar. Eu não conseguia acreditar que havia perdido um papel que fora tão bem guardado. E eu não me lembro de ter esbarrado em nada, nem de ter tirado meu casaco. Bom, com ou sem o papel, eu estava decidido a uma última loucura.
- Tomi... – comecei, tentando ser forte o bastante para não chorar, como se fosse possível. – Eu sei que tenho feito tudo o que me pediu para não fazer, mas você deve saber como é difícil. Tão difícil que estou aqui falando sozinho. – ri irônico, suspirando profundamente, sem desistir. – Mas como eu disse e prometi, irei tentar, e espero que aonde você estiver, que esteja bem. Um dia nós iremos nos encontrar, eu prometo. Pode ser logo, ou até pode demorar um pouco, mas essa é minha promessa. Eu te amo, e sempre irei lembrar-me de você. – abaixei minha cabeça, deixando que algumas lágrimas caíssem.
Lembrar-me dele seria a maior motivo para viver, lembrando-me da maneira como era ativo e vivo, como aproveitava cada segundo que vivia, ainda mais ao lado de quem amava. Sua bondade, seu humor, sua humildade e esperança, tudo. Eu poderia dizer que ele era perfeito.
Eu me sentia diferente, mesmo que parte da racionalidade que estava em mim dissesse que isso tudo fora besteira. Sendo ou não, isso seria somente o início da minha promessa, a qual eu estava prestes a começar a cumprir. Suspirei longamente, sentindo o ar frio aliviar parte da dor que sentia em minha cabeça.
Aos poucos, o ótimo cheiro que sentia foi enfraquecendo, na medida em que fui abrindo meus olhos. A cidade brilhava, assim como o céu que tinha várias estrelas, cada uma com um brilho e tamanho diferentes, mas igualmente lindas. Talvez Tom fosse uma delas lá, brilhando na noite para mim.
Rapidamente olhei para frente, passando a mão por minha nuca ao sentir algo duro bater nela. Por sorte havia algumas luzes que me mostravam um pequeno pedaço de papel voando, o papel que eu estava procurando há alguns minutos. Não me estiquei sobre a sacada para tentar pegá-lo porque não conseguiria, e talvez não fosse para eu possui-lo.
O vento também parou lentamente, mas o clima continuou ótimo. Eu não queria sair dali, e também nem precisava, não agora. Claro que eu tinha muitas coisas para fazer e várias para retomar, mas apenas queria desfrutar por mais alguns minutos da linda visão que tinha.
E também queria desfrutar de uma frase que estaria para sempre em meu coração como motivação para continuar em frente: lembre-se de mim.
Ende.
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