Debaixo de seus pés, a abundância de folhas secas lhe dizia que o outono havia chegado, enfim, depois do longo e sufocante verão. O vento gelado lhe acariciava a pele — Harry instintivamente fechou os olhos, aproveitando a sensação — e, debaixo da jaqueta, seu coração batia mais rápido cada vez que se lembrava do motivo que o levara até aquele parque.

Quantas pessoas não haviam alertado-o sobre ela. Uma garota que chegou tão de repente só poderia ir embora do mesmo modo. Nem um bilhete sequer, nenhuma mensagem na caixa postal; o anel de prata com as iniciais de ambos que ele nunca chegara a lhe dar jazia esquecido numa gaveta de seu criado-mudo, junto com cartas, papéis e ingressos de cinema, e todo o resto daquilo que um dia fora um “nós” em que ele estava incluído.

Tudo aquilo que um dia lhe fizera se sentir completo.

“Eu amo você.” disse, e seus olhos sorriram, acompanhando o movimento dos lábios. “Eu amo você, eu quero você comigo durante todos os dias da minha vida, até o último instante, até minha última respiração e sempre, sempre, sempre...” a cada palavra, suas bochechas adquiriam um tom levemente rosado. A garota à sua frente sorria de sua tolice.
“Eu sei disso.” aproximou-se e tomou-lhe o rosto com ambas as mãos. Prevendo que ele iria dizer alguma coisa, colocou um dos polegares coberto pela luva grossa sobre seus lábios, impedindo-o, e ele escondeu os orbes azuis com as pálpebras. “Shh. Não diga nada.” ela contorceu o rosto numa careta, procurando as palavras certas “Não te doas do meu silêncio, Harry. É preciso amar calado. Aquele que muito fala de amor pouco sabe sobre ele.”
Harry abriu os olhos e encontrou as íris claras de Julie encarando-o com uma sinceridade assustadora.
“Só preciso saber que sentes o mesmo.”
Ela o abraçou.
“Eu sinto.”


Talvez o seu erro residisse na obviedade de seus sentimentos. Talvez se houvesse sido mais cauteloso, se tivesse se aproximado com um pouco mais de calma, se não tivesse sido tão tolo... ela ainda estaria com ele. Mas de que lhe adiantava os talvez? Julie já havia ido embora, e especular sobre o que havia implicado em tal ato não a traria de volta. Talvez não resolveria nada. Ele queria certezas.

Respirando fundo o ar vespertino da cidade, as mãos tremiam — ainda quentes — dentro dos bolsos, fechadas. Apoiou a meia-ponta do pé no chão e ergueu a perna e a abaixou rapidamente, e continuou com esse movimento até que uma mão pousasse em seu joelho, forçando-o a parar.

— Nervoso? — um sorriso inócuo, um par de olhos absurdamente hipnóticos e bochechas cor de carmim. A garota de feições suaves o olhava com curiosidade. Ele nunca a havia visto, e ainda assim ela parecia assustadoramente familiar.

— Não. — ele tirou seus olhos dela e os fixou em qualquer ponto no horizonte.

— Parece. — sentando-se ao seu lado no banco de madeira coberto de folhinhas que haviam caído da copa da árvore mais próxima, ela dobrou uma das pernas e a colocou debaixo da outra. Harry respirava pela boca, fazendo com que uma leve camada de fumaça se formasse no ar à sua frente. — Anh... oi? — a garota tentou chamar sua atenção, sem sucesso. — Ei! — abanou uma das mãos perto de seu rosto — Está tudo bem?

Ele virou a cabeça rapidamente, olhou-a levemente interrogativo e voltou a fitar qualquer ponto aleatório.

— Sim. — soltou o ar pelo nariz. — Desculpe, mas quem é você?

— Ah, mas que falta de educação a minha! — o tom de voz dela parecia um-pouco-alto-e-animado-demais para os ouvidos dele — Eu sou a . — ela estendeu a mão sorrindo, esperando que ele a pegasse. Harry girou os olhos até o canto da órbita, fitou por um instante a mão descoberta dela e considerou a possibilidade.

— Harry. — ele cumprimentou-a, por fim, tirando as mãos dos bolsos.

— Harry... hmm. Sabia que esse nome significa “líder do exército”? — ele negou suavemente com a cabeça, ainda sem encará-la. — É um nome que vem do Inglês Antigo. O velho cognato norueguês “Haraldr” também era comum entre colonizadores escandinavos na Inglaterra. Depois da conquista normanda após a Batalha de Hastings, quando mataram o rei Harold II, o nome meio que morreu, mas começou a ser reutilizado no século XIX.

ajeitou-se no banco, de modo a sentar em cima das mãos para esquentá-las.

— Andou lendo uma enciclopédia nominal ou algo do tipo? — Harry ergueu uma das sobrancelhas para ela, que parecia levemente alheia. Ao ouvir sua pergunta, sorriu misteriosamente e o encarou, divertida.

— Não. — disse simplesmente, dando de ombros. — Digamos apenas que eu sou um pouco curiosa em relação a...

— ... nomes. — ele completou.

— Assuntos e conceitos que tenham resposta, em geral. — continuou como se não houvesse sido interrompida — Qualquer coisa que eu puder descobrir o significado e de onde ele vem.

— Tudo, em suma? — ele perguntou apenas levianamente interessado.

— Não, Harry. — ela o encarou demasiadamente séria, os lábios rachados e cor de cereja suavemente comprimidos, o cabelo agitando-se um pouco devido ao vento — Não tenho absolutamente curiosidade nenhuma sobre o amor, por exemplo.

— Você não acha que o amor tem resposta? — o garoto indagou, atiçado pela curiosidade. Ela pareceu ponderar sobre a pergunta por um instante antes de responder.

— Acredito que o amor não tem uma definição ou origem. Para mim, não existe “amor é” e reticências.

— O que existe, então?

sorriu.

— “Amor é”. Ponto.

O vento estava ficando mais forte, e levava todas as folhas espalhadas no chão para algum lugar que estava fora da vista dos dois sentados ali. O céu permanecia cor de chumbo, mas o parque mantinha-se estranhamente claro; não de um jeito vibrante, e sim consideravelmente nublado. Todavia, Harry ainda conseguia enxergar os riscos mais escuros nas íris de , e via como cada um desses riscos parecia contar uma história própria.

— Tem certeza que não tem curiosidade nenhuma sobre esse assunto? Quero dizer, milhares de poetas dedicaram sua vida a entender esse sentimento, escreveram sobre isso e pensaram nisso ininterruptamente, e você simplesmente me diz que não se interessa pelo significado do amor?

— Não preciso entender o que o amor significa para amar, preciso? — ela riu, abaixando a cabeça e colocando o cabelo para trás das orelhas — Amar é de meu interesse, entender o amor não. Mais do que isso, você torna uma coisa inválida quando fala ou discute muito sobre ela, pois acaba deturpando sua essência.

Harry a fitou por o que pareceram longos minutos, assimilando suas palavras.

— Hey... há algo errado? — a voz da garota tinha um quê de preocupação. Ele balançou a cabeça negativamente e deixou um pequeno sorriso nascer em seus lábios — O que foi?

— Nada. — voltou a olhá-la, dessa vez mais brandamente. Alguns fios do cabelo de haviam escapado e emolduravam seu rosto graciosamente; agora, além de suas bochechas, a ponta do seu nariz também estava vermelha, dando-lhe uma aparência meio boba.

— Tem certeza? — ela questionou. Ele fez que sim com um movimento da cabeça e ela lambeu a boca, desviando o olhar da face do garoto para o chão — Você está aí, me encarando com seus olhos oblíquos.

— O que você quer dizer com isso? — ele continuava com o olhar firmemente preso nela; e acabou por virar-se e aproximar-se dele, mirando-o diretamente nos orbes claros.

— Eu quero dizer que seus olhos são dissimulados. Eles escondem algo. Tentam me enganar. — ela baixou um pouco as pálpebras para forçar a vista, e ele virou o rosto — O que há, Harry? O que você quer me dizer?

— Quem disse que eu quero te dizer algo? — ele riu fingidamente para o céu, tentando disfarçar o nervosismo. Quando baixou o olhar, ela sorria.

— Ninguém. — a menina piscou os dois olhos vagarosamente, tombando um pouco a cabeça e analisando-o com cautela — E nem precisaria. Está tudo escrito bem aí em suas íris.

— Achei que você tivesse deixado claro que meus olhos eram oblíquos e dissimulados — pontuou, ainda sem quebrar o contato visual. Algo nela o prendia de um modo que ele não saberia explicar — Não deixou?

Ela deu de ombros, os dentes brancos à mostra travessamente.

— Eu nunca disse que me deixaria enganar.

Harry pensou que deveria ter perdido a razão em algum lugar enquanto caminhava até aquele banco, porque até então ninguém havia conseguido fazer com que ele falasse sobre Julie desde que ela o deixara. Ele vivia sempre fechado em seu arrependimento e seu sentimento de culpa para externar seus sentimentos. E, no entanto, ali estava uma garota que em uma hora ou um pouco menos conseguira convencê-lo a falar com algumas poucas palavras.

— É só que... — ele respirou fundo antes de prosseguir. Retorcia as mãos inquietamente, apoiadas no colo — Você é parecida com alguém que conheci.

— Alguém importante? — perguntou, sinceramente interessada. Ambos olhavam a calçada, vazia àquela hora.

Ele confirmou com um aceno, perguntando-se como ela teria notado.

— Minha ex-namorada. — o garoto engoliu em seco ao perceber o quão difícil era pronunciar a frase seguinte — Alguém que entrou na minha vida de repente e foi embora ainda mais repentinamente. Simplesmente desapareceu. Pouff! — ele gesticulou, levantando uma das mãos e a abrindo rapidamente, como se algo estivesse se libertando dali — Escapou como fumaça pelos meus dedos antes que eu pudesse fazer qualquer coisa. O anel que eu iria dar a ela ainda está guardado numa caixinha de veludo azul-marinho numa gaveta no meu quarto. — ele mordeu o lábio inferior para que este não tremesse — Não sei por que ainda não joguei fora. Acho que eu só estava tentando me convencer de que um dia ela voltaria, e eu poderia lhe presentear com ele.

Ele apreciou o silêncio que sucedeu a sua fala. Há muito tempo queria dizer todas aquelas coisas a alguém que entendesse e permanecesse calada, e a menina de cabelos representava bem aquele papel.

— É engraçado. Sinto-me como se tentando pegar um pombo numa praça ou algo assim. — seus dedos começaram a se fechar, como se Harry tentasse capturar algo inexistente pairando na atmosfera à sua volta — Quando você acha que o tem nas mãos...

— Ele voa. — completou, como se entendesse. Ele confirmou com a cabeça mais uma vez, olhando-a. Temia que tivesse soado um pouco idiota. E era como se sentia, de fato, comparando Julie a um pombo. — O que exatamente me faz parecida com ela?

— Suas palavras. — respondeu, convicto, lembrando-se do que ela dissera mais cedo. — “Você torna uma coisa inválida quando fala ou discute muito sobre ela, pois acaba deturpando sua essência.” Julie me disse que era preciso amar calado, pois quem muito fala de amor pouco sabe sobre ele.

Analisando, agora, o que a ex-namorada dissera, achava que ela possuía alguma razão, afinal. Não era ele mesmo quem sempre encontrara o amor por meio de incertezas? No que não foi dito, no que não foi exposto; era sempre ali que ele percebia o quanto os sentimentos podiam ser verdadeiros. As palavras eram supérfluas e pérfidas, raciocinou, passando a ponta da língua pelo lábio inferior que havia machucado levemente, e talvez fosse por isso que ele gostasse tanto delas.

Entretanto, todo aquele devaneio não poderia estar correto. Se ele vira veracidade nos sentimentos de Julie e ela o deixara daquele modo, no que o silêncio ajudara? Nunca poderia ter certeza do que alguém sentia se essa pessoa permanecesse calada por muito tempo. Tentando balancear justamente uma equação, pesando prós e contras, decidiu que queria a intensidade das palavras de forma branda, por mais que aquilo soasse como uma antítese.

Antes que Harry tivesse tempo de perceber, uma imensidão negra salpicada de pontos brilhantes tomara o lugar das nuvens no céu, e a temperatura começava a baixar drasticamente. Havia parado de ventar, o que era particularmente estranho. Ele esfregou uma mão na outra, tentando produzir calor, mas não obteve sucesso de qualquer espécie. As luzes do parque começavam a ser acesas, e de repente tudo pareceu se iluminar.

— O outono demorou a chegar — murmurou, mais para ela do que para qualquer outro. Ele teve vontade de concordar, mas apenas deixou que a garota prosseguisse — Eu senti falta deste parque.

— Sentiu falta? — questionou, tão tipicamente erguendo a sobrancelha. A menina ao seu lado observava atentamente uma das últimas folhas presas num dos galhos da árvore que estava logo atrás deles, portanto mantinha a cabeça virada para cima, e ele se pegou fazendo o mesmo.

— Sim... Eu só venho ao parque no terceiro dia após o começo de cada estação, para observar como o ambiente muda. É fascinante. — ela sorriu, parecendo absolutamente infantil — E não há só a mudança física. As pessoas se comportam de um jeito diferente também.

— E é claro que você tem interesse por essas mudanças. Afinal, elas têm um porquê... Acertei?

— Sim, você está certo — ela riu suavemente, antes de continuar — Antigamente, eu freqüentava o parque quase diariamente. Com o tempo percebi que, de fato, há um motivo para que todos ajam de acordo com a estação. Por exemplo, eu duvido que você fosse estar aqui, sentado, se estivéssemos na primavera.

Ela estava certa. Julie ainda existia na sua vida na primavera, e eles estariam provavelmente sentados na grama observando as flores ou algo do gênero. O cabelo dela estaria preso e ela teria um grande sorriso no rosto, o sorriso que ele mais amava, exatamente aquele que lhe direcionava no momento.

A pequena folha presa no galho da árvore lutava contra o resquício de vento da noite, e Harry não tirou os olhos dela nem por um segundo sequer. Não tinha exatamente uma razão, era uma folha como qualquer outra; contornos bem delineados, aparência craquelada e cor...

... A cor ainda era vibrante.

— Então acho que foi um acaso que nós tenhamos nos encontrado aqui — murmurou, sem prestar muita atenção em suas palavras.

A folha caiu e pairou no ar, absurdamente leve, para então cair no ombro dele.

— Ah, Harry, não diga isso — levou as mãos tão delicadas à pétala e a pegou, mostrando ao garoto uma borboleta pequenina que parecia presa à folha por uma réstia de teia de aranha. Ela passou o dedo suavemente pela bainha e o inseto voou rapidamente — Vê? — os olhos de ambos se encontraram numa compreensão muda, e a garota sussurrou: — Não existem acasos.

E parecia sincronizado que os dois levantaram-se ao mesmo tempo, e deram um passo para trás, afastando-se. Ele observou com cautela como ela parecia frágil e pequena sob toda aquela luz, com suas mãos nuas e suas bochechas coradas e a ponta do nariz avermelhada, e o sorriso adorável que se desmanchava em palavras tão certas.

Era definitivamente tarde. E não só porque a noite já havia chegado há muito, mas também no sentido de ser tarde demais. Tarde demais para perguntar qualquer coisa que fosse, para entender qualquer coisa que fosse, ou falar qualquer uma das coisas que ele, na verdade, nem tinha em mente. Não que fosse de todo ruim. Aprendera a apreciar o silêncio.

girou os pés e começou a andar sem maiores explicações, sem frases de efeito, sem uma despedida, sem acenos ou beijos de tchau. E Harry não pôde deixar de pensar que havia outros mistérios, outros assuntos, outras pessoas que merecessem mais a atenção dela, merecessem aquela curiosidade tão genuína que ele nunca vira em mais ninguém.

— Talvez o acaso faça com que nos encontremos de novo — ele aumentou a voz e declarou, não se importando com o fato que parecia esperançoso.

Ela se virou e sorriu apenas com os lábios pela última vez naquela noite.

— Não existe o acaso, Harry.

Sorriu apenas por querer sorrir. Queria que ela ficasse. Queria ter-lhe oferecido suas luvas para que suas mãos não perdessem a delicadeza do toque. Queria ter-lhe tocado a face para saber se sua pele era tão macia quanto parecia ser. Queria saber o significado do seu nome, e por que ele soava tão bem, e por que ela tinha aquele sorriso que lhe dava vontade de sorrir.

— Espero que não exista, . — murmurou, inconscientemente, quando ela já estava longe demais para ser vista.

Debaixo de seus pés, a abundância de folhas secas lhe dizia que o outono havia chegado, enfim, e que demoraria a ir embora para dar lugar ao terceiro dia do inverno.

xx
n/a: oi, gente =) como vocês devem saber pelo aviso no comecinho da fic, isso aqui é um humilde presente pra juh, a Ava, Judd mais fofa que eu conheço. Ela já leu a fic e ficou meio histérica com ela, e me pediu pra colocar no Addiction (na verdade eu dei a sugestão e ela apoiou, heh) e cá estou eu. Hmm, em primeiro lugar eu tenho que dar os devidos créditos a Manuel Bandeira pela sua frase “Não te doas do meu silêncio”, no poema “Pousa a mão na minha testa”. Tudo nasceu a partir da minha aula de literatura graças a essa pequena frase. E também, créditos para Machado de Assis pelas características dos olhos do Harry, oblíquos e dissimulados (“Olhos de cigana oblíqua e dissimulada”, sobre Capitu). E... é isso. O resto é tudo meu *enfia na bolsa e sái correndo*, e da Juh, claro :) Em terceiro lugar, quero dizer que o nome da fic é esse porque Reticere é a expressão em latim que gerou a palavra “reticências” (os três pontinhos da língua portuguesa: ...), e significa “calar alguma coisa”. Esqueci de algo? Ah! Mil obrigadas pra Thaty, melhor beta do mundo inteiro, que concordou em betar minhas fics mesmo que seu status no Classificado de Betas esteja como “indisponível.” ^^ Beijos!


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