- Barbie, Barbie! - minha irmãzinha gritava, do meu lado. Se ela estava ao meu lado, por que mesmo ela gritava?
- É, Cassie, Barbie. Olha ela ali, na televisão - respondi, sem dar muita atenção pra ela.
- Mas, , é dia das crianças, amanhã - Cass choramingou. Eu movi apenas os olhos, esperando que meu olhar 43 servisse pra alguma coisa. Não funcionou, e ela insistiu. - , compra pra mim?
Ah, ela só podia estar de brincadeira.
- Não - me ergui do sofá, desligando a televisão quando me levantei. Joguei o controle no sofá, antes de sair da sala.
E Cassie me seguiu até a cozinha.
- , me promete que vai passar esse dia das crianças comigo? - sua voz foi tão meiga, que eu quase cedi. Quase. Eu não... Sou chegada no dia das crianças.
- Não, Cass. Não força a barra - eu pedi, abrindo a geladeira mais por distração do que por fome.
- Mas ano passado você disse que...
- Não importa o que eu disse. Se quiser presente, se contente com um pirulito - devolvi com displicência. Peguei um danone e subi as escadas para o meu quarto.
Do andar de baixo, Cassie protestava, provavelmente vestindo a sua expressão mais birrenta.
- Eu vou contar tudo pra mamãe.
Pra variar.
Perdi a noção de quantas horas eu passei no quarto, ouvindo música no meu iPod. E, como sempre, no último volume. Portanto, não posso realmente dizer se alguém, vulgo mamãe, apareceu no meu espaço particular pra reclamar do show da minha irmã. Ou do demônio que eu era obrigada a conviver com, todos os dias. Se alguém reclamou, falou com as minhas costas, infelizmente. Não que eu, de fato, me importe com isso. Enfim.
Só voltei à realidade quando meu celular tocou. Era .
- ! - ele estava animado, dava pra notar. - Planos pro final de semana, meu amor?
- Não, . E você? - eu não estava muito animada, diferente dele. Mas estava tudo bem, porque nunca ligava quando eu estava desanimada ou ranzinza.
Pensando que pudessem ser as músicas do meu iPod o motivo do meu mau humor, mudei para Blink 182. Acabei desligando o aparelho, porque não conseguia prestar atenção em duas coisas ao mesmo tempo. E exigia muito do meu tempo.
Exatamente cinco anos.
- Não ainda... Nós vamos sair hoje à noite. Pronto, temos planos - eu podia jurar que ele sorria do outro lado da linha.
- Não é nada que me faça voltar depois da meia noite, certo? - confirmei, me levantando e caminhando em seguida até a escrivaninha. Arrastei-me até a escrivaninha, aliás.
Onde eu tinha deixado meu ânimo?
- Claro que não, - ele respondeu, animado. - Vamos voltar antes da meia noite, porque vamos às oito horas ao cinema!
- Cinema? - eu gemi, esperando que com isso ele percebesse o quão batida era essa ideia.
Eu queria fazer coisas diferentes. Queria esquecer que o dia seguinte era o bendito dia das crianças, que eu não tinha comprado presente algum pra minha irmã e que eu me aterrorizava cada vez que essa data se aproximava. O medo só passava quando chegava o dia treze.
Vou explicar, tenho trauma do dia das crianças. Um horrível trauma.
Quando eu tinha a idade da minha irmã Cassie, que deve ter uns oito anos, assisti a um filme horrível com um palhaço. E provavelmente foi aí que começou meu trauma com palhaços. Kevin, meu irmão mais velho (hoje, com uns 24 anos, mas com 16 na época), me pregou uma peça. Mas mesmo até hoje, sabendo que era uma peça, não consigo esquecer. O mais engraçado é que meus pais tiveram filhos de oito em oito anos, mas não é o momento pra pensar nisso.
Enfim, Kevin espalhou imagens de palhaço por toda a casa, no dia das crianças. Eu tinha saído com meus pais para um passeio no parque, comemorando o dia das benditas, e, quando voltei, me deparei com milhares de fotos de palhaços.
E eu estava numa fase de horror a palhaços.
E na mesma hora, me lembrei do filme.
E Kevin apareceu vestido de palhaço. O mesmo com a mesma cara terrivelmente maníaca do filme. Correu atrás de mim até meu quarto, que costumava ser minha fortaleza. Isso tudo, ouvindo meus pais gritando com Kevin, ao fundo. Eles estavam furiosos, mas eu estava desesperada e nada conseguiria me acalmar. Só o meu travesseiro, meu "Cachecol da Sonserina" feito pela vovó e a luz da minha lanterna especial.
Pra minha surpresa, assim que abri a porta, nada disso se encontrava ali. Um pano preto de TNT revestia o quarto, tirando boa parte da iluminação, dali. Mais palhaços, palhaços e palhaços. E até o esqueleto que papai usava pra dar aulas estava ali, com uma máscara de palhaço estampada onde devia estar o crânio.
Depois disso, eu não me lembro de muita coisa, mas me disseram que eu desmaiei aos gritos.
Foi o dia em que o 'Kevin matou criança a grito'. Ou quase isso.
Claro que depois disso eu fiquei traumatizada demais pra decidir sequer sair de casa no dia das crianças. Eu tinha decidido que não haveria motivos no mundo que me tirassem de casa, no dia doze de outubro. Nunca mais.
- Por que você não vem ficar em casa? - pedi, com a voz manhosa.
- Porque amanhã é dia das crianças, é o dia proibido - ele me bombardeou com tantas acusações, que eu mal consegui manejar sobre como responder a isso. - E você tem uma irmã. Aquela que vive me pedindo pra comprar Empala pra ela.
- É Impala, . É só um esmalte, nem é tão caro assim - parei de falar quando percebi que estava defendendo a minha irmã. Por mais que, por tabela, estivesse me defendendo, também.
E eu estava animada pra ficar em casa porque naquele dia começaria a estréia da sexta temporada de Supernatural. Fariam uma maratona dos últimos da quinta temporada, e, em seguida, passariam o primeiro e o segundo da sexta.
Maravilhoso, não?
- Mas vai sair Harry Potter em 3D, HOJE! , isso é super-mega-big-master-hip-hip-hurra, importante!
Hip hip hurra?
- Você não precisa dormir aqui, . Não precisa acordar aqui no dia das crianças.
- Se você tirar a sua irmã de casa, eu durmo aí - tentou fazer chantagem, inutilmente. Nunca funcionava comigo e ele sabia muito bem disso. Aliás, eu adorava fazer pirraça e contrariá-lo.
- Claro, vou ver se a jogo numa lata de lixo. Pode vir - respondi com escárnio. Eu não era muito chegada na minha irmã, mas não era pra tanto. - A não ser que você pague colônia de férias pra ela. Pra amanhã.
- Não. Deixa. Eu vou pensar em outra coisa - parou um pouco pra pensar e eu aproveitei pra ir buscar um cappuccino. Mamãe normalmente deixava pronto, numa jarra térmica.
Coloquei o celular na orelha enquanto subia as escadas. Achei que tinha dado tempo suficiente.
- Ah, não, . Não podemos desligar agora - eu estava me controlando pra não berrar. Assim que acabou o segundo episódio de Supernatural, começou Vampire Diaries.
Eu amo Vampire Diaries.
- Ah, não, . Se deixar, você assiste a todas as séries que passam nesse canal. Você já falou com seus pais sobre isso? Obsessão é probleminha - tentou me dar um sermão, enquanto desligava a televisão na minha cara e voltava pra cama.
Mantive a expressão emburrada.
- Se alguém tem probleminha aqui, esse alguém é você - percebi que estava de braços cruzados nessa hora, quando precisei descruzá-los pra coçar a bochecha, que pinicou com um beijo dele. Barba, pra quê?
- Você tem probleminha - ele riu de volta, sem realmente se importar com a minha falta de bom humor. Para variar.
- Mas eu gosto de Vampire Diaries - rebati, num muxoxo.
Quem sabe com uma abordagem diferente, ele mudasse de atitude?
- Amanhã, ok? Por enquanto, vamos ficar com o beijo do vampiro.
Muito engraçado, .
Ele me beijou em seguida, puxando meu corpo contra si. Isso me deu arrepios.
- Parece um bom começo pro dia das crianças - comecei, dando um sorriso de canto, enquanto o puxava pra mais perto de mim, na cama.
Falei cedo demais.
Assim que acabei de falar, a luz acabou. Assim, apagou do nada. Nem piscou. Nem me avisou antes.
Nem sequer preparou o meu emocional, antes!
Soltei um berro agudo, antes de me abraçar com mais força. Aquele deveria ter ciúmes de mim até no escuro. Talvez ainda mais no escuro, onde não podia ver se tinha mais alguém entre nós.
Ouvi um barulho alto do corredor. Parecia Cassie me chamando.
- CASSANDRA! - soltei um berro rouco, preocupada. Só me preocupo com ela nessas horas.
- Calma, . Cadê a sua lanterna?
- A lanterna especial? - conferi. Ele concordou com um murmúrio e eu completei: Ah, dentro da última gaveta do criado mudo. Isto é, se você puder alcançar sem ter o braço comido por monstros.
- Aqui - ele disse, enquanto a acendia e passava pra mim. Agradeci mentalmente mais de cinco vezes, só pela lanterna ter pilhas.
Na verdade, ela sempre estava carregada; pilhas não costumavam ser realmente o problema.
Eu estava me levantando pra ir até a porta, quando ouvi meu celular vibrar, no criado mudo. Fiz o caminho de volta e o tomei nas mãos. Sms do Kevin.
"Pronta pra enfrentar seu maior medo?"
Acordei com me abanando. Ou assoprando. Ainda estava tudo meio escuro. Só a lanterna me iluminava. Lancei um olhar rápido à porta, me certificando que ela ainda estava trancada. Ou ao menos fechada, o que já devia me acalmar em 90%.
Ergui o corpo nos cotovelos, percebendo pela maciez do contato que estava na cama. Ao menos uma notícia boa.
me dizia algumas frases que pareciam desconexas. Eu sabia que na verdade, não tinha nada de desconexo em nada do que ele dizia, mas eu não estava de volta à realidade o suficiente pra entender o que se passava ali.
Eu teria mesmo que abrir aquela porta? Justo aquela, que, quando abri pra entrar NESSE quarto, me deu o maior medo da minha vida?
Sentei-me na cama, encarando a madeira branca, a maçaneta. O assoalho. Continuei observando os elementos que compunham a cena à minha frente, até que um grito de Cass me tirou de transe.
Olhei pra , que só me deu um sorriso de volta. Por que ele era tão corajoso?
- Ah, isso é tudo um plano seu! - acusei-o, finalmente entendendo tudo. Ou achando que tinha entendido tudo.
- Não, . É um plano dele! - ele se referia ao meu irmão, Kev. - É um jogo.
Continuei a encará-lo, como se a informação que ele tivesse me dado fosse incompleta.
- Vamos passar o medo adiante - acrescentou, pacientemente. - Vai ser mais divertido do que pode parecer.
Foi assim, me apegando à ilusão que , o namorado mais fofo que eu já tive (e o único, também), impunha à mim, que eu abri a porta. Munida apenas do meu celular, minha lanterna... E meus medos.
Ah, depois de vestir uma calça, porque foi ciumento o suficiente pra me fazer tirar o short do pijama e vestir um jeans. Na minha própria casa.
O corredor estava completamente escuro, e, antes de erguer a lanterna - já sabendo o que eu encontraria -, inspirei fundo. não estava comigo, e, infelizmente, eu não sabia explicar o porquê. Eu só sabia, de alguma maneira bem surreal, que ele me esperaria no jardim de inverno, que ficava no andar de baixo, na extremidade leste. Se eu ainda sabia os pontos cardeais, eu estava a oeste de onde deveria ir.
'Merda, eu tenho dezesseis anos, não seis. Preciso ser mais forte do que ele', pensei. Esse tipo de pensamento me deu alguma força pra acender a lanterna, então eu o fiz. E apertei-a com mais força entre os dedos, especialmente porque não gostei nada do que vi. Tanto que, a princípio, dei um berro tremendamente maior do que o que ouvi de Cassie.
Confesso que foi lembrar do berro dela, o que me levou adiante.
Dei alguns passos tímidos pelo corredor, sentindo arrepios gelados brincarem na minha espinha. Não era nada confortável. Comecei com passos curtos, lentos, tentando não olhar muito para as paredes, que estavam cheias - mesmo! - de máscaras, sangue falso e TNT preto.
Onde Kevin conseguia essas coisas? E por quê? E como ele tinha tido tempo? Ele nem morava mais em casa! E onde estava que, depois de cinco anos de namoro, dizia que ainda me amava, mas me abandonava justo... Agora? Justo quando era mais importante que ele não saísse do meu lado e continuasse repetindo que aquilo era só uma brincadeira de mau gosto?
Aliás, quando eu tinha concordado com aquilo mesmo? Eu estava com medo, já queria sair dali.
Novamente, me amaldiçoei por pensar demais.
Ouvi um barulho de assoalho atrás de mim, e, confesso, já sabia o que me esperava; virei o rosto lentamente, deixando que meu cabelo caísse na frente dos olhos, pra que eu visse antes os pés, depois as pernas e só então o corpo e o rosto do palhaço.
Senti vontade de rir, chorar e de desaparecer. Tudo ao mesmo tempo. Minha visão se tornou turva e (como se fosse possível) o ambiente à minha volta perdeu ainda mais a viscosidade. Exceto as cores da roupa do palhaço, que pensando melhor, poderia ser .
Mas não pensando novamente, minhas pernas me levaram a correr, o que, segundos atrás, parecia impossível. Parecia que todas as sinapses do meu corpo haviam parado, mas por algum tipo de força sobrenatural, eu corria. Motivo de força maior: preservar a própria vida e sanidade. A imagem ficou retida na minha mente e pra todos os cantos que eu olhava, embora um corredor não tivesse exatamente cantos, eu revia o palhaço. Antes de chegar ao fim do corredor, e ainda retendo os gritos horrorizados dentro de mim, resolvi dar uma única olhada pra trás.
Só uma, porque eu sabia que não teria coragem pra mais. Ou até mesmo de continuar depois daquilo.
O que mais me assustou, e me deu vontade de cair da escada, foi que quando olhei pra trás, não vi ninguém. Passei a luz da lanterna acerca de onde o palhaço se encontrava anteriormente, mas agora... Nada. Era como se ele tivesse existido apenas na minha imaginação. A parede estava preta novamente. Com uma olhada rápida, e ainda à distância, nas portas, reparei que estavam fechadas. E eu sequer tinha escutado o barulho delas fechando! Na realidade, eu já não sabia se tinha mesmo visto alguma coisa.
Iluminei os degraus, enquanto descia trêmula. Descia devagar, lançando olhares medrosos pra trás, procurando ver algo, mas na verdade, com esperança de não ver nada.
Outro berro. Meu coração bateu ainda mais rápido. Isso, se fosse possível. Eu já sentia como se ele fosse saltar do peito, pela garganta. Sentia o sangue pulsando nas pontas dos dedos dos meus pés, nas minhas unhas, nos meus lábios e até atrás dos meus olhos. Passei um pouco de cabelo atrás da orelha, a fim de parar de ver vultos ao meu redor. Só estava me dando mais arrepios, e decidi que seria mais sensato ver tudo e me assustar por ver, do que assustar por não ver.
Continuei a passos vagarosamente medrosos pela escada, até ouvir outro grito de Cassie. Este, mais distorcido. Parecia que tinha alguém a esganando. Eu não podia acreditar que Kevin realmente faria isso. Mas eu também não acreditei que ele poderia obrigar Cassie a gritar tanto, só pra me assustar. Senti uma onda de calor me invadir, tirando toda a calma que eu vinha economizando até então, e, já fora de controle e coordenação, eu tentei correr até o fim da escada, a fim de acabar logo com aquela história.
O que aconteceu em seguida foi rápido demais pra que eu pudesse registrar perfeitamente; tropecei nos pés e nem minha mão que se apoiava no corrimão foi suficiente pra me manter em equilíbrio corpóreo. Corpóreo, porque o emocional já tinha ido embora há tempos. Senti meu rosto se batendo contra o chão, não com muita força, já que minhas mãos cuidaram pelo amortecimento da queda.
Quando a pressão que o medo criou sobre os meus ouvidos se desfez, consegui ouvir meus próprios pensamentos com um pouco mais de clareza.
Eu estava caída no chão, as mãos espalmadas ao redor do corpo, a lanterna a dois metros de mim. A sala mergulhava na escuridão e só alguns feixes da luz fraca da lua ousavam adentrar o ambiente.
Fechei os olhos, desejando arduamente que aquilo fosse um sonho. Um pesadelo. Até um pesadelo seria mais aceitável e divertido do que a realidade.
E, continuando por essa linha de pensamento, o primeiro encontro de foi a melhor coisa que me aconteceu.
É incrível como, apenas em momentos ruins, nos lembramos dos momentos bons, não é? É quase sempre assim. E o ruim de um momento ruim, é que você não consegue se lembrar de como se sentia, quando estava bem. Mas, bem, eu conseguia.
vestia um blazer preto de seu pai. Era o nosso primeiro encontro, e ele claramente não sabia o que vestir. O blazer ficava-lhe um pouco largo na altura dos ombros, é verdade, mas eu adorei. Seu cabelo estava jogado de lado, numa tentativa fracassada de passar gel. Em minha opinião, ele não precisava de artifício algum para ficar mais bonito, mas como na primeira vez, todos se sentem inseguros, eu entendi que sua maneira de buscar segurança era com gel e um paletó grande.
Eu vestia uma roupa básica, porque muita roupa, muito decote, muito fricote... É, não é comigo, só me afoba mais.
Foi, de longe, a noite mais engraçada da minha vida; a começar pelo contraste. Eu com roupa básica, parecia que ia pro cinema, enquanto vestia blazer, como se fosse pro casamento.
Decidimos que seria péssimo ir a um restaurante muito comum, pra combinar comigo, porque ele seria o contraste, e seria pior ainda o oposto. Acabamos optando, então, por um restaurante à beira mar. Ou estilo beira mar, já que não tem exatamente uma praia na cidade onde moramos.
Eu e estávamos um desastre, naquela noite. Um mais nervoso do que o outro. derrubou suco na social que vestia por baixo do blazer e eu derrubei um molho muito laranja na minha regata branca.
Foi um desastre, é verdade, mas foi o melhor desastre que já me aconteceu.
Outro devaneio tomou conta da minha mente, talvez como um modo de me distrair do que estava à minha volta. Só escuridão.
Era um dia claro. Brilhante. Não, literalmente.
Mas só literalmente, mesmo, porque justo naquele dia, meu melhor amigo, Eric, exigia que eu transasse com ele. Tudo bem, ele estava bêbado, e nós estávamos em uma festa.
Só pra frisar, eu não estava bêbada. Não tanto quanto ele, eu via tudo muito bem. Até os olhos avermelhados dele.
Aquele foi o dia mais desastroso da minha vida. Mais tristemente desastroso. Não teve nada de bom naquilo, exceto pela festa que fora realmente boa (isso, até o momento que descobriu as intenções do meu melhor amigo. Ou só melhor, já que é quando dizem 'meu melhor', querem mais do que amizade.
Era o que Eric queria. E ficou querendo, coitado. Eu namorava e nem cogitava traí-lo, quanto mais com meu melhor amigo. Que sempre me apoiou a ficar com . Foi uma decepção e tanto, mas vamos dizer que eu me acostumei a decepções depois disso.
Afinal, as coisas têm que piorar pra depois ficarem boas. Depois daquele dia, eu me tornei uma amiga distante de Eric, mas ganhei muito mais proximidade de , apesar de não exatamente ter feito aquilo com ele. É, aquilo.
De qualquer maneira, bom ou ruim, eu sentia falta daquele dia.
Belisquei-me, com intenção de voltar a prestar atenção ao 'agora'. Infelizmente, eu não podia viver de flashbacks, se queria sair da situação em que me enfiara oito anos atrás; a realidade era aquela, mesmo, e, desastre ou não, teria que consertá-la.
Ergui-me do chão, tateando até encontrar a lanterna, que, pra minha maior alegria, estava sem as pilhas. Não resistira ao impacto e as pilhas, provavelmente muito graciosamente, tinham se espalhado pela sala. Somente pelo fato de poder estar em qualquer canto (desde o sofá, até o canto do esguio abajur de canto), desisti da ideia de reacender a luz.
Afinal, pra que ela tinha me servido, até então? Pra me dar medo; pra me mostrar coisas que eu não desejava ver na parede. Preferi ir tateando até o jardim de inverno, já que, morando naquela casa há dezesseis anos, eu saberia dizer exatamente onde ficava cada elemento da casa.
Não foi tão difícil; um tropeço aqui, um tropeço ali (e esse foi o que me garantiu dores fortes no tornozelo). Mais gritos atordoados de Cassie, mais desespero da minha parte. Minha casa parecia um festival de horrores, pois, até onde eu podia ver, bolinhas coloridas de roupas de palhaço tomavam a minha visão. Outro susto, com o que parecia ser uma mão pegando no meu braço. E o berro mais forte e atordoado que já dei na minha vida. Uma parte do meu cérebro, a mais coerente, me dizia que só podia ser , Kevin, ou Cassie, mas a parte instintiva e irracional me deixou sem opções ou tempo pra pensar melhor sobre o assunto; tomou posse da minha coordenação motora e me tirou dali em disparada, me fazendo bater a coxa em outra coisa, que deveria ser a mesa da copa.
Até onde eu conhecia minha casa, dali eu poderia ir direto para o jardim de inverno, apenas dobrando à esquerda.
Desesperada por chegar logo ao que me fora dito ser o fim, eu corri até a porta de vidro que o cercava. Agradeci mentalmente por Kevin não tê-la trancado nem colocado mais um exemplar de animador de circo lá dentro. Eu não precisava de mais nada pra dificultar.
Já dentro do jardim de inverno, encontrei apenas a aliança de no chão de terra, banhada à luz da lua. A nossa aliança de compromisso! A nossa! No chão! Exposta ao brilho mortiço que aquela lua anêmica provia. Guardei-a no bolso do jeans.
- Maldito - rosnei entre os dentes, desacreditada. Esperava que aquilo fosse parte da brincadeira cretina na qual eu estava envolvida, ou...
Encontrei um papel no chão.
'É na cozinha que ficam as facas, . O palhaço não vai morrer sozinho'.
- Ah, puta falta de sacanagem! - senti as palavras escaparem da minha língua, ainda desacreditada. Talvez irritada coubesse melhor no contexto.
Apoiei o corpo contra uma parede de concreto, e, num olhar rápido à minha direita, vi o que parecia uma vassoura. Eu não fazia a menor ideia do motivo daquela vassoura estar ali, mas preferi não questionar. Aproveitei para usá-la como arma, já que minha lanterna havia sido tirada de mim. Empunhei-a como um taco de golfe e voltei à copa, tendo o cuidado de manter a vassoura a uma altura boa o suficiente para não acertar nenhum vaso de mamãe. Aliás, onde estava ela?
Quando comecei a correr pela casa, acreditando que estava sozinha e com o caminho livre, bati de frente com a porta. Literalmente. Outro grito, este ensurdecedor; especialmente porque vi, acima de mim, mais um palhaço. Este, preso no teto, como se alguém o tivesse enforcado ali. Só a cabeça, pra meu horror. Seu sorriso demoníaco sorria aberta e diretamente para mim e eu me senti extremamente vulnerável a um boneco. Ou o que deveria ser um boneco, já que eu, sabendo que nunca juntaria coragem o suficiente pra descobrir, saí correndo dali, literalmente sem ver por onde ia, esquecendo de vez a vassoura.
Fui tateando as paredes, até chegar às paredes de vidro que ligavam a sala de estar ao gramado da frente. As luzes da rua estavam acesas e eu pensei em sair correndo pra pedir ajuda, mas seria mais idiota do que tudo. Eu sabia que estava em um jogo. Era o meu desafio, e eu o venceria, quão alto fosse o preço.
A última instrução que me fora dada era a cozinha. Aparentemente, eu teria que pegar uma faca. Parei no caminho para o corredor que levava à janela da cozinha, quando me lembrei a quem exatamente aquele palhaço no corredor dos quartos me remetia. .
Ah, Kevin estava brincando demais com meus nervos.
Empunhei toda a coragem que eu sabia que não tinha, e, percebendo um banco ao lado da janela da cozinha, eu entendi que aquele era exatamente o plano. Estava tudo estrategicamente bolado pra que eu não destrancasse a porta da cozinha (eu juro que não queria saber onde estava a chave) e viesse pelo lado de fora. Sem pensar duas vezes, eu subi no banco e saltei pra dentro, caindo bem onde eu esperava que fosse. Na pia.
Passei as mãos ao meu redor, me preparando pra levantar e descer, quando vi uma vela acesa na mesa, ao lado do que parecia uma faca pequena. Um arrepio gelado passou por sobre os meus ombros, como uma brisa. A sensação foi cortante como gelo, e, entendendo o esquema, desci da pia em outro salto, caindo em uma poça de uma espécie de pó, por perder o equilíbrio.
Curiosa, desci a mão até o chão e o puxei à boca. Se eu estava certa, Kevin não tinha a intenção de me matar e sabia tanto da minha curiosidade quanto eu. Ele não deixaria ácido sulfúrico em pó, no chão da cozinha, sabendo que eu passaria exatamente por ali. Sal? Por que diabos Kevin deixaria sal no chão da cozinha?
Tentei ignorar todos os pensamentos que me lembravam sobre rituais maldosos envolvendo sal. Aquilo era sal grosso e o sal na minha cozinha era simplesmente... Sal de cozinha.
Ao lado da vela, reparei que tinha algo que não era realmente uma faca. Era uma estaca.
Não pude conter um grito, lembrando-me que estava sozinha naquela casa havia algum tempo. E os gritos de Cassie haviam me abandonado, o que não me dava nenhuma pista sobre o caminho a seguir. Não sabia dizer ainda, se sentia medo, ou se sentia raiva. Sentia-me presa, isso eu poderia dizer com a maior certeza. Sentia-me completamente presa a um labirinto, o qual só tinha uma entrada e uma saída. Eu esperava que estivesse realmente perto de descobrir a saída.
Saída!
Encarei a porta da cozinha, que, banhada também pelo luar, encontrava-se semi-aberta. Lancei um olhar à estaca, sem de fato pensar se aquela era a decisão certa. Tudo parecia macabro demais pra mim, e, logo eu, que tivera medo disso por tanto tempo, estava me acostumando a ficar sozinha, assustada e ouvindo gritos. Foi ao som do último grito de Cassie que saí correndo pela cozinha, passando por cima de uma cadeira que me derrubou por alguns segundos, antes de finalmente alcançar a porta.
O corpo de um palhaço jazia no jardim do fundo, e, mais uma vez, guiada pelos instintos, que no momento, não eram nada deleitáveis, corri até o corpo e me joguei sobre ele, afundando a estaca com toda a força que me restava em seu peito. Foi relativamente fácil, visto a raiva que eu guardava em mim, por aquela noite estafante. Mais algumas vezes, tirei e investi novos golpes com a estaca contra ele, como se fosse um vampiro. Uma espécie de líquido vermelho começou a sair dele e então eu percebi que o corpo, boneco, ou o que quer que fosse não tinha olhos.
Gritei o mais alto que pude, aterrorizada, quando as luzes ao meu redor se acenderam.
Entendi que, finalmente, o jogo estava acabado.
A porta da casinha de ferramentas que tínhamos no fundo de casa de abriu, e, de lá, saiu Kevin. Acompanhado de . Meu queixo caía gradativamente, enquanto eu tentava não associar o terror pelo qual eu passei à e Kevin. Sabia que tinha tudo a ver com eles desde o início, me fora avisado, mas algumas coisas estavam muito fora de ordem naquela história.
Vale lembrar que eles estavam rindo. Eu sabia bem o porquê.
- ONDE ESTÁ A CASSIE? - gritei a plenos pulmões, não ligando para os ouvidos deles. Eles mereciam.
- Cassie saiu com os seus pais - me explicou, a voz branda e cuidadosa. Ele sabia com o que estava mexendo.
- E COMO VOCÊ ARMOU ESSA FESTA NA MINHA CASA, SEU CRETINO? - me dirigi, então, ao meu adorável irmão, que só depois de oito anos, tentava me tirar o trauma causado.
- Enquanto você assistia à televisão, sua viciada - Kev tentou brincar, mas meu humor não engoliu a piada. Eu arfei, saindo rapidamente de cima do corpo manchado de vermelho, para perto deles. - Estou muito feliz que você tenha perdido o seu medo, .
É, dava pra notar pelo sorriso dele, a felicidade.
- Vocês me assustaram muito! VOCÊS! Vocês fizeram um campo de terror na minha casa! - continuei com as acusações. Eu tinha atacado o meu medo, é verdade, mas isso não justificava o método.
- Nossa casa - Kevin corrigiu, rindo.
- Que se dane! Estou muito brava com você. Pelo ocorrido oito anos atrás, e pelo ocorrido oito anos depois dos oito anos atrás! - eu arfava, a mão no peito. Admito que tinha esperanças que isso aquietasse meu coração novamente.
- Ah, e o que você vai fazer? Vai xingar muito no Twitter? - Kevin zombou. Foi só então que eu percebi que ele tinha um prendedor de roupa no nariz. Antes que eu pudesse rir, mesmo que nervosa, eu me lembrei que ele o fazia porque tinha alergia à pó, coisa que mais tinha na casinha de ferramentas dos fundos.
- Tanto faz, Kevin - eu dei de ombros, percebendo que estendia-me os braços. Eu notei que estava suja (já falei que minha casa estava um show de horrores? Não deixou a desejar no quesito sujeira e meleca), quando o abracei e seu braço colou ao meu. Aproveitei o momento pra devolver a aliança à , que me lançou um sorriso amarelo como resposta. Provavelmente aquela seria a maior resposta dele sobre aquele deslize.
Quanto ao ocorrido anteriormente, achei que talvez pudesse agradecê-los, mas quem sabe num futuro bem distante.
Alguém de vinte e quatro anos não deveria assustar alguém de dezesseis, tão covardemente.
A história se repetiu, e com Cassie.
Descobri que a coitada também tinha assistido ao filme do palhaço, na noite anterior, na casa do irmão mais velho. Era obviamente um preparatório para o dia seguinte. A coitada fez exatamente o mesmo que eu, e, justamente como Kevin me disse depois - repetindo as palavras de , curiosamente -, estávamos passando o medo adiante. E fui eu que me vesti de palhaço, correndo atrás dela.
Jurei segredo pra deixá-la com medo até os dezesseis, mas me peguei pensando se, algum dia, Kevin teria sido vítima disso.
Descobri também que os gritos de Cass haviam sido, sim, subornados, mas haviam sido gravados. Isso, gravados. A cada vez que Kevin apertava um botão específico, o barulho ecoava pela casa. Talvez fosse por isso que eu estivesse completamente perdida, por lá; as caixas de som dos meus pais haviam sido instaladas em pontos estratégicos da casa.
E o palhaço que eu vira no corredor, aparentemente não existia mesmo. Ou talvez fosse mais uma mentirinha de Kevin e para mim.
Kevin não estava errado, em um ponto, apesar de eu achar sua teoria de 'matar medo' muito ridícula: O medo passa adiante.
É, nada se cria, nada se perde. Tudo se transforma... Ou passa.