Escrita por: Lala | Betada por: Ana;
As coisas não podiam ficar piores.
Não tinha dois meses que voltei de Capitol por ter ganhado os Hunger Games e descobri que meus pais foram mortos por “um acidente na mistura dos remédios da farmácia, levando-os ao envenenamento tóxico”. Meus pais eram donos da única farmácia do Distrito Doze, os únicos que sabiam mexer com remédios de qualidade e com sabedoria. Envenenamento tóxico era no mínimo impossível de se acontecer.
Esse “acidente” também só podia ser culpa deles e pelo menos um estava ciente disso.
Sem pais, morava com o que era mais próximo de uma família: meu quase-tio, Haymicht. Tinha minha própria casa da Vila dos Vitoriosos, mas precisava de companhia e eu era a única pessoa que gostava de Haymicht em todo o Distrito. Isso porque ele era alcoólatra e mais do que geralmente fazia coisas que lhe traziam problemas.
A irmã de minha mãe era namorada de Haymicht. Escutar as histórias que ela me contava sobre como os dois eram felizes no meio de toda miséria que éramos obrigados a viver era algo que eu queria experimentar de tão vívido que era. As coisas mudaram quando ele foi chamado para os Jogos. Haymicht deve ter feito algo que irritou Capitol e acabaram matando todos os resquícios de família que ele tinha. Os meus pais nunca gostaram dele, então foram deixados de lado... Por um tempo.
Nunca tive permissão para conversar com ele, porém eu gostava de um desafio. O cara era diferente do que os outros achavam e fui a única a perceber aquilo. Demorou um pouco, contudo ele tinha minha confiança, assim como eu tinha a dele. Os seus momentos sóbrios eram raros, todavia eu tentava participar deles o máximo possível. Era neles que Haymicht me contava de sua horrível experiência na arena e, ao voltar para casa, como ele não tinha ninguém para quem viver, sendo essa a razão de ter se tornado um alcoólatra.
Irônico como isso se parece com a minha história, não?
Então eu morava com Haymicht. Agora que sabia as coisas que ele tinha passado na minha própria pele, tanto eu quanto ele precisamos de companhia para não afundar em nossas memórias. E não era algo ruim. Morar com ele estava se saindo melhor do que o esperado. O homem não se mete na minha vida, não faz perguntas demais e, sempre que um de nós precisa, estamos sempre disponíveis para um papo na varanda da casa.
O Distrito Doze quase nunca ganhava os Jogos. Era – e realmente é – uma tarefa impossível. Crianças sem nenhum tipo de conhecimento em luta, sobrevivência em um ambiente diferente e com um medo de tremer até a alma, são a razão pelas derrotas e a perda de duas pessoas queridas. Os únicos ganhadores – ainda vivos – foram Haymicht, eu, Peeta e Katniss. Por mais que eu não saiba se posso considerar Katniss viva.
Depois do 74° Jogo, o qual teve as regras mudadas para que as coisas ficassem mais “interessantes”, por conseqüência trouxe dois vencedores – e as regras falam claramente que só pode haver um vencedor. Os dois vencedores foram Peeta e Katniss, que fingiram ser vítimas de um amor impossível e cheio de desventuras, fadados a se matarem na arena. O Idealizador chefe daquela edição, com certeza, foi assassinado por deixar os dois vivos pela ação de Katniss. Já na minha vez, o novo chefe e o resto dos Idealizadores fizeram questão da fazer minha vida um inferno. Sem patrocinadores, sem remédio, sem comida e brincadeirinhas todas para mim. Sobreviver foi realmente um desafio e, por mais que eu goste deles, gostaria de poder escolher aquele.
Agora, o motivo pelo qual a minha vida em específico foi feita um pesadelo é simples, mas a história é longa.
Dois anos atrás, eu era namorada de Peeta. A sua mãe não era o que eu gostava de chamar de sogra legal, porém ela pelo menos me aceitava por ser filha dos farmacêuticos. Peeta Mellark era o que eu costumava chamar de futuro marido, contudo só para mim mesma. Pense em um menino perfeito, aquele que você sente que é o único na sua vidinha miserável, que só com ele essa se torna a melhor do mundo. Conhecíamo-nos desde crianças, brincávamos juntos e acabamos tendo um relacionamento. Foi quando ele foi escolhido como tributo que as coisas foram desandando.
Quando me despedi dele, fiz o garoto prometer que ia voltar para mim ou que, se eu fosse assistir ao menino morrer, ele pelo menos tinha que tentar. Peeta respondeu que tentaria, que eu era a única razão pela qual ele era feliz aqui, e só de me deixar para um caminho praticamente sem volta já o mataria. As suas palavras foram lindas e me fizeram chorar por pelo menos três dias, mas em momento algum eu sentia aquela firmeza em sua voz. Era como se ele não quisesse ter uma chance. E, por causa disso, não pude acreditar que ele voltaria e ainda assim assistia ao garoto, rezava para que estivesse tudo bem e que logo, logo o visse de novo. “Se eu voltar, só vai ser por você, ” – essa maldita frase ficou ecoando por dias.
Isto é, até a entrevista.
Aquela declaração em rede nacional tinha literalmente me derrubado. Ela não tinha sido para mim, e sim para Katniss – outro tributo do Doze, aquela que sempre está com a cara fechada e não fala com ninguém, tem seu próprio jeito de agir e parece que não tolera os outros. Não tenho nada contra ela. Quer dizer, tinha. E não é porque ele tinha dito que a amava na frente de todo mundo. Até porque, mais para frente, entendi aquilo como uma tática. Vivi a minha vida toda com Peeta e ver os seus atos pode ter enganado toda Panem, mas não eu. Também não foi pelos beijos que eles trocaram, toda aquela melação que só eu compartilhava com ele, os olhares que lançava a ela, os quais eram diferentes do que dava a mim – essa parte cabia a Peeta, e não a ela – e nem a preocupação excessiva que tinha com ela, a melhor pessoa do Distrito para ganhar aquela coisa.
O único motivo pelo qual eu não gostava dela era que, depois de se mostrar toda corajosa e forte nos Jogos, a primeira ação demonstrativa que fez assim que voltou de Capitol foi fugir com Gale. O problema é que essa fuga causou desentendimentos entre Presidente Snow e Peeta. Algumas verdades não ditas foram reveladas de forma que nenhum de nós sabe explicar como e Peeta começou a pagar pela fuga da suposta amada.
Capitol conseguiu descobrir que a única vez que tinha falado com Katniss tinha sido realmente quando eram pequenos e ela precisava do pão que ele dera. Peeta sempre teve um coração bom, mesmo quando pequeno. Porém essa tinha sido a única vez em que eles tiveram contato um com o outro. Com essa descoberta, colocaram algumas peças no lugar, chegando a mim. Não era Katniss que Peeta amava. Era eu.
Então era óbvio. Por que não matar/torturar Peeta até ele dizer aonde Katniss tinha ido? Primeiro de tudo, ele realmente não sabia. Assim que saíram do trem, já se trataram como meros desconhecidos de antes. Segundo, matar o queridinho de Panem? Isso daria problemas a Capitol. Ao invés de acabar com outro, acrescentaria um. Aí eles pensaram em uma forma de atingi-lo e é aí que eu entro. Por que não levar a verdadeira queridinha de Peeta para a arena e fazer a vida dela um inferno até que ela se renda e morra?
Assim, fui para a arena quando ouvi “ Bluebonnet” sendo chamado por Effie Trinket e minha vida realmente foi um inferno. Mas a diferença é que os surpreendi – assim como a mim mesma – e ganhei.
Podia ter ganhado, contudo não era a mesma desde então. A minha relação com Peeta, não só pela mudança dos Jogos, mas também por outros casos, já não era a mesma e eu não achava capaz de termos a mesma coisa que tínhamos. E, claro, a minha vida nunca deixaria de ser um inferno agora que tinha Capitol atrás de mim também, como se eu soubesse onde aquela desgraçada se meteu!
Sério, Peeta. Não poderia lhe agradecer mais.
Um ano, três meses, uma semana e quatro dias atrás.
Tinham alguns dias desde que Peeta voltou. Nenhum de nós tentou um tipo de comunicação. Eu não tinha vontade de conversar com ele... Depois de ser obrigada a ver tudo o que o garoto fez na TV, não sei do que serei capaz de falar. Mas a quem eu queria enganar? Queria mesmo conversar com ele, abraçá-lo, beijá-lo e ficar ao lado dele pelo resto dos dias, por mais que a minha cabeça dissesse o contrário. Por que ele não veio me procurar ainda? Quer dizer, não é como se eu tivesse me mudado ou algo do tipo, já que é proibido deixar o distrito sem autorização direta de Capitol, e minha família podia ter uma condição melhor do que grande parte do Doze, mas não mudaríamos.
Afinal, por que estou tagarelando sobre isso?
Já tinha até visto Katniss pela cidade e, por mais que me sinta triste e desconfortável perto dela, ela mesma veio até mim para conversar. Demorou um pouco. Sempre que me via, os seus olhos se arregalavam e a garota abaixava a cabeça, como se estivesse com vergonha de mim ou eu pudesse fazer algo contra ela. Sério? Vi a capacidade da menina e já sabia mesmo antes de ela ir para Capitol. Katniss podia ter sido a menina que ficou ao lado de Peeta por grande parte. Eu não era louca de pular em cima dela e partir para briga por vários motivos. O mais óbvio era: eu morreria ao contar três. Depois, ela não tinha nada a ver com a repentina falta de conversa entre Peeta e eu... Era o que pensava. E, por último, ela salvou a vida dele mais de uma vez e devo muito a Katniss por isso.
Estava acabando de fazer uma entrega de alguns remédios – ironicamente na casa dela, para a mãe que era curandeira – e, ao sair, Katniss me chamou toda envergonhada e me parou na pracinha da Vila dos Vitoriosos, bem na frente de onde Peeta morava desde que voltou. Desculpou-se pelas coisas que ela passou com ele completamente sem intenção e admitiu ser uma tática para tentar trazer os dois vivos. Achei aquilo legal da parte dela; falar tudo aquilo. Tinha dito também que estava se sentindo super mal por mim, por ter sido obrigada a assistir aquilo sem nenhuma explicação e provavelmente me sentindo traída. Bom, naquilo ela acertou. Acontece que também disse que eu não era a única a se sentir traída, porque Gale não falava com ela e se recusava a acreditar. Tinha certeza de que aquela parte não deveria ter sido dita, porém foi bom porque realmente me deu mais forças para acreditar que tudo era uma farsa como tinha pensado.
Mas, claro, por mais que eu soubesse, ainda tem a bendita insegurança dentro de mim que ficava dizendo “será?”.
Assegurei-me de que estava tudo bem, que, afinal de contas, os dois voltaram vivos e isso era o mais importante. Agradeci que ela tinha sido sincera e deixei claro que o meu problema – notado por metade do Seam – não devia ter nada a ver com ela, mas que a causa era desconhecida.
Algumas semanas depois, estava fazendo uma tarefa que a minha mãe tinha me pedido. Estava colhendo algumas ervas no jardim que seriam transformadas em remédio. A demanda estava grande desde que aconteceram alguns acidentes na mina, lugar onde pelo menos 90% dos homens do distrito trabalhavam.
A tarefa deveria ser algo fácil, e realmente era quando o sol não estava tão forte a ponto de conseguir matar grande parte do que eu precisava.
– Precisa de uma ajuda aí?
Aquela voz. A doçura da voz, junto com um pouco se insegurança e hesitação. Na última vez que a ouvi tão perto assim, tinha sido na TV.
Olhei para Peeta por alguns segundos, o que me pareceram horas.
– Não. É só o sol agindo de novo – dei de ombros.
– Você acha que a sua mãe vai achar ruim se eu roubá-la por alguns minutos?
Sacudi a cabeça para negar, larguei as luvas de jardim e saí de casa ao lado dele.
O silêncio era tão desconfortável e estranho que não parecíamos nós dois, e sim dois estranhos forçados a andarem lado a lado. Não tive coragem de quebrar o silêncio por motivos óbvios. O que eu ia falar? Perguntar se estava tudo bem era idiotice demais quando estava estampado na cara dele que não estava. E o motivo? Idiotice de novo. Todos sabiam que era pelas coisas que ele passou.
Para o meu alívio, ele foi o primeiro a dizer alguma coisa.
– Tudo bem com você, ?
Ouvir o apelido que ele tinha criado novamente até abriu um sorriso no meu rosto.
– Sim – eu não perguntaria dele e nem podia dizer outra coisa além disso.
Costumávamos dizer que estávamos vivendo pelas condições em que éramos obrigados a viver, mas naquele caso Peeta podia estar muito melhor do que eu em condições alimentares e moradia. Porém mentalmente...
Paramos em uma pedra ao lado do muro que dava o limite do Doze e nos sentamos lá. Aquele era nosso lugar de costume, já que era o único agradável de todo distrito.
Peeta suspirou e passou a mão pelo rosto. Sinal claro de que estava nervoso. Suspirou mais uma vez antes de falar.
– Você deve ter mil perguntas – eu tinha, contudo não queria fazê-las. Tinha medo das respostas.
– Acho melhor deixá-las guardadas...
– Se você não fizer, vai ficar com elas presas na cabeça e, sempre que ficar perto de mim, ficará esse clima estranho que claramente nenhum de nós gosta.
– Por que simplesmente não fala, então? Você que supôs que eu tinha perguntas.
– Você admitiu.
– Mas não disse nada.
Suspirou mais uma vez, só que agora era mais... Derrotado.
– Devo-lhe desculpas. Sei que o que fiz com certeza abalou o que você sentia por mim – não respondi no espaço de tempo que ele me deu. – Mas quero que saiba que nunca deixei de pensar em você em nenhum momento.
– Você fez o que o manteria vivo, Peeta. Estando vivo e a salvo aqui é o que importa. Mesmo que isso signifique... Nós dois.
– Se pudesse existir um jeito de voltar no tempo no dia da colheita... Faria tudo ser diferente.
– Não seria, Peeta. Essas coisas acontecem. Mesmo sem téssera, eu, assim como você foi, poderia ter sido um tributo.
– Se fosse com você lá, as coisas seriam reais.
– Ah, não me venha com isso – ele falou exatamente a única coisa que nunca deveria ter dito. – Assisti. Vi tudo o que você fez para mantê-la viva... Arriscando-se com os Profissionais. O desastre com as Tracker Jackers. Quase morrendo pela facada de Cato. Arriscou tudo o que tinha para mantê-la viva! Não me diga que fez isso só para parecer real, porque não parecia que você estava se esforçando.
– Tive que fazer isso! Se não fizesse, Panem não acreditaria na história e não sairíamos vivos!
– Então não diga que não foi real – falei mais alto, impedindo-o de continuar. – Você ainda tenta mentir depois de todos os anos que a gente passou juntos? Conheço-o melhor do que imagina. Além de sua namorada, lembre-se de que fui sua amiga.
Ficamos em silêncio mais uma vez. Estava me sentindo horrível por gritar com ele, como se o cara estivesse doente, ou algo do tipo, mas era preciso... Algo em mim não me deixava engolir aquilo.
– Por que não falou comigo logo que voltou? – perguntei bem baixinho após alguns minutos.
– Medo de você me rejeitar – olhei-o incrédula. – Eu ficaria bem magoado se fosse você fazendo tudo aquilo e ainda ser obrigado a assistir.
– Eu não disse que não estava magoada – soltei. – Mas não significa que eu o rejeitaria. Fez aquilo por um motivo. Eu... Entendo.
– Só queria voltar para casa...
– Mas você não voltaria se não fosse o plano.
– Não – a sinceridade me machucou. – Nunca teria a capacidade de matar alguém como os Profissionais ou até mesmo Katniss.
– Até antes de ela salvá-lo, antes do banquete, antes de levá-lo para a caverna... Você a mataria se tivesse condições. Dava para ver que faria isso. O seu rosto mostrava isso, diferentemente das suas ações. Como se estivesse esperando pelo momento certo. Mas... Depois você não teve coragem.
– A menina me salvou. Eu devia a ela.
– Não foi só isso – senti um nó subindo pela garganta. Nunca tinha dito a minha dedução em voz alta... Isso porque não queria deixá-la concreta. – Você... Criou sentimentos por ela.
– O quê?! ...
– Não minta para mim de novo – falei com certa repulsa. – Posso não saber nada sobre como os Jogos devem ser horríveis de vivenciar, mas sei muito bem o modo com que você olhava para mim. E lhe garanto que o jeito com que olhava para ela se assemelhava.
Peeta não admitiu de primeira, porém a sua expressão já tinha entregado.
– Não tivemos nada além da armação, . Tanto eu quanto ela deixamos claro que temos sentimentos por outras pessoas.
– Gale também percebeu. Até porque ele não fala com ela. Peeta, em algum momento, você teve sentimentos por ela? – agora, ao invés de deduzir, perguntei. Como se eu quisesse me torturar, queria ouvir aquilo da boca dele.
– …Tive, . Eles não existem mais.
Ouvir aquilo doeu. Mais do que imaginaria que realmente fosse doer. A gente nunca sabe o quanto a verdade realmente vai doer.
– Assim como aqueles que você tinha por mim deixaram de existir quando ficou com ela? Está claro por que teve medo de eu rejeitá-lo... – não sabia de onde aquilo tinha saído, mas quando vi já era tarde.
– Não fale besteiras...
– Não me fale mais nada você! Posso não ter o direito de falar que não estou bem quando você está um caco, mas tenho o direito de me sentir quebrada, usada e um completo lixo. Nunca fui tão magoada assim... Ao mesmo tempo em que escondia a verdade de mim mesma, eu tinha certeza. Amei-o demais, Peeta. De repente esse foi o meu erro.
E seria o meu erro pelo resto da vida.
Saí de lá a passos rápidos, deixando Peeta na mesma posição. Se ele me seguiu ou não, não sei e prefiro não saber. Chorava enquanto andava e não queria que ele me visse daquele jeito, tão indefesa e boba, indecisa e extremamente magoada.
Mais alguns dias tinham se passado e eu me esforçava para que não acontecesse de encontrar Peeta por aí. Ainda não estava preparada para outra conversa provavelmente mais séria do que a última.
Fui obrigada a voltar à Vila dos Vitoriosos quando me bateu aquela vontade repentina de encontrar Haymicht. Desde que todos voltaram, ele se escondia na casa e eram raras as vezes em que o via comprando bebidas no Hob. Nesse caso, para o meu azar, sempre estava acompanhada de meu pai ou minha mãe. Aí comunicações são completamente proibidas, sendo obrigada a me limitar com um aceno e um sorriso.
Ele me entenderia com toda história de Peeta e de repente... Sei lá, me escutasse direito, visse os dois lados e talvez me fizesse ver que ele não tinha escolha. E, também, eu tinha que dar os parabéns a ele por manter dois tributos vivos. Aquilo era algo de dar orgulho!
Entrei na casa como se fosse minha. Dei dois toquinhos de sempre e fui entrando. Escutava vozes fracas e silenciosas vindo do andar de cima e juro que não iria até lá se uma delas não fosse de Haymicht.
– Deve ter outra escolha... – tinha sido Haymicht.
– Presidente Snow jogou na minha cara. Já sabe de todas as coisas, sabe que foi tudo encenação dentro da arena.
– Não dá para fazer isso, Katniss.
– Ele disse que devemos provar para os outros distritos que estamos loucamente apaixonados um pelo outro, Peeta. Acredite. Estou tão perdida nessa situação quanto você.
– E a única solução é nos casarmos?!
A partir daí, eu já estava longe. Tinha batido o meu corpo em todas as paredes, tendo certeza que fazia o maior barulho do mundo. Na hora, não ouvia e não sentia dor, não sentia mais nada além daquilo que me restava – e que cismava em se regenerar – se quebrar novamente, só que dessa vez mil vezes mais doloroso.
Era assim que eu perdia Peeta para sempre.
Foram apenas alguns dias depois que as coisas ficaram mais estranhas ainda. Haymicht estava mais sóbrio do que nunca. Ele tentava me mostrar que Katniss e Peeta não tinham escolhas, porém eu já sabia daquilo. O difícil era fazer o meu coração aceitar.
Peeta tinha tentado falar comigo várias vezes, mas, sempre que isso acontecia, ou eu o ignorava fortemente, ou era altamente sem educação e dava respostas curtas e grossas, no que resultava que nunca falava com ele.
De repente, tudo ficou literalmente de cabeça para baixo. Notícias corriam por todo distrito que Katniss tinha sumido. O mais engraçado é que tiveram a coragem de colocar o meu nome nisso.
– Claro, Haymicht. Eu a odeio tanto que a levei para a floresta e a matei – disse irônica. – Primeiro que é impossível eu sair do distrito. Algo literalmente fora do meu alcance. Segundo que... Matar Katniss? Se eu quisesse tentar, ela me mataria antes só com o pensamento. Você sabe muito bem disso. E, claro, ela pode ter tido papel para me fazer tão... Brava, mas definitivamente não tenho nada a ver com o desaparecimento dela.
– Sei disso, , porém não deixaram de cogitar a possibilidade.
– Quem cogitou? Peeta? O ego dele está em alta esses tempos.
– Presidente Snow. Ele sabe da sua relação com Peeta.
– O quê? Como?
– Ninguém sabe. Mas o maior problema, pequena , é que ele não acha que você a matou – fiz uma expressão confusa. Se não a matei, o que eu tinha de culpada? – Ele acha que você a ajudou fugir.
Aquilo tinha me pego de surpresa.
– Então ela fugiu mesmo?
– Sim. Gale também está desaparecido.
– Os dois... Fugiram... Juntos?
– É o que parece e o que é mais provável.
– Mas... O que tenho a ver com tudo isso?
– A minha teoria é: digamos que os seus sentimentos foram mal interpretados pelo presidente. Sem Katniss de baixo do nariz dele, ele não pode controlar qualquer tipo de revolução que possa estar acontecendo nos distritos de Panem.
– Revolução? Se estou no meio disso, Haymicht, é melhor me contar cada detalhe dessa história.
Demorou muito, porém finalmente as coisas faziam sentido. A ação de Katniss na arena, com as bagas, serviu como inspiração para parte da população e pequenos grupos de Panem se revoltarem contra Capitol e suas regras mórbidas. Esses mesmos grupos não caíram na encenação como os outros ingênuos dessa nação, então precisavam de alguma prova maior de que era tudo verdade, todo o amor irrevogável entre Peeta e Katniss. O problema é que sem Katniss não existe amor. E é aí que as coisas ficam feias.
Ambos tinham sido ameaçados para que fizessem parecer real, todavia Katniss fez o favor de estragar tudo não só para a família dela, como para todo o Distrito Doze e toda Panem.
Eu entrava naquela confusão toda – injustamente, devo acrescentar – quando a simples idéia de ter Katniss longe daqui seria ótima para reatar com Peeta. Presidente Snow claramente perdeu um ponto aí quando todo o Doze sabia que não conseguia ficar em um raio de dez metros com Peeta. Então, não, eu não ajudaria Katniss fugir para ficar com o meu ex de novo. A possibilidade de matá-la não devia ter passado na cabeça do presidente, penso eu.
Outra idéia para me colocarem no meio seria: se eu não sabia, Peeta obviamente saberia. Mas tão alheio a essa fuga quanto eu, era ameaçado se não contasse. O problema seria matar ou ferir alguém que a nação amava. Peeta teve que fazer o Tour dos Vitoriosos sozinho e fingindo tristeza, alegando que Katniss tinha morrido em um grave acidente ao ajudar alguns mineiros, tudo devidamente planejado a ponto de até o próprio Doze acreditar. Mesmo assim, as supostas revoltas não deram trégua. Sem sucesso, as ameaças voltaram e fui incluída. De repente, fazendo mal àqueles que ele se importava, ele diria alguma coisa.
Era aí que eu entrava.
Pacificadores falavam comigo todo dia, faziam interrogatórios que sempre acabavam do mesmo jeito. As famílias de Katniss e Gale estavam altamente em perigo porque também alegavam não saberem de nada e eu acreditava neles. Duvido que estavam relacionados com a fuga dos filhos. E agora estavam pagando por isso.
Logo as famílias, que eram literalmente o motivo pelo qual sofriam para as manterem vivas, o motivo pelo qual Katniss se voluntariou... Tudo aquilo tinha sido em vão no final. Tudo mesmo, até a encenação. Se fosse Prim como tributo desde o início, quem sabe não seria Peeta o único vencedor? Quer dizer... Se ele quisesse. Em uma dimensão diferente da que vivemos, é claro.
Lembro-me bem de um dia em especial. Estava indo para casa de Haymicht como normalmente ia para mais notícias e mais palpites quando encontrei Peeta e alguns Pacificadores saindo da casa dele. A sua expressão estava aterrorizada enquanto todos olhavam os meus movimentos como se tivessem achado a culpada pelo sumiço da outra, e segurasse um cartaz alegando aquilo.
Alguma coisa deve ter acontecido lá. Algo nada bom que acabou resultando no pior para mim.
Alguns meses depois, vi o meu nome saindo da cúpula, tornando-me um tributo para o 75° Hunger Games. E a minha intuição dizia que não era porque as chances não estavam ao meu favor naquela vez. Naquele dia em que todos os Pacificadores olharam para mim enquanto andava na Vila dos Vitoriosos, veio-me à cabeça na hora... Eu sabia que algo não muito bom tinha acontecido com Peeta.
Só fui descobrir mais tarde que o fato de eu ter sido “aleatoriamente” escolhida para os Jogos tinha sido programado naquele dia com mudanças nas regras. Provavelmente queriam me matar com classe e de um modo menos fácil e trocaram o ano do Quarter Quell para o ano seguinte. Estranho e sem sentido, mas desde quando algo faz nesse mundo?
Cinco meses antes.
A partir do momento em que apenas cogitei a idéia para Haymicht, ele achou bobagem. Quer dizer, tinha dito que era bobagem, mas eu sabia que ele dizia só para me dar conforto. Tudo bem. Eu realmente precisava de um conforto naqueles dias, porém, se eu estivesse certa, teria que pelo menos ter um tipo de treinamento, já que o máximo que sabia fazer era cuidar de alguns ferimentos.
Então, com um pouco de insistência, Haymicht me treinava na sala de sua casa, na privacidade de olheiros e, quem sabe, de Capitol. Aprendi coisas básicas como armadilhas, quais frutos eram comestíveis ou não e algumas táticas de lutas. Ganhei alguns músculos com isso, contudo sabia que ele andava bonzinho comigo. No entanto, já era muita coisa para quem não tinha nenhuma noção.
O dia da Colheita chegou tão rápido que mal pude perceber. Todos temiam esse dia, sem exceção. As crianças tinham mais medo por serem elas as escolhidas, mas não acho que elas pensam em como a família e os amigos ficam com a chamada. Os pais perdem um filho, são obrigados a assistir à sua morte pela TV e sem chance nenhuma de lutar por eles, protegê-los. O máximo a se fazer é desligar a TV e ignorar a tristeza. Para os amigos, seria a mesma coisa que perder um irmão, alguém da família. Por exemplo, quando Peeta foi o escolhido, uma parte se mim se foi com ele e não só porque eu o amava. Ele era como um irmão que nunca tive.
Ironicamente, para deixar o dia como uma celebração, não há aulas, temos eletricidade – algo que é raro aqui no Distrito Doze e contribui muito para termos água quente e um banho decente. Acho que a parte – a única – que a maioria gosta é essa: o fato de ter um banho quente. Para ironizar mais ainda, temos que ter uma refeição caprichada – caprichada para os parâmetros do distrito – e nos vestimos com nossa melhor roupa. Vamos para Praça Central e nos dividimos em um bloco para mulheres e homens, só esperando pelos nomes da vez. E, assim que tudo acabasse, as famílias voltariam para casa e comemorariam mais um ano que os filhos foram poupados da tragédia e duas famílias se trancariam em suas casas e sofreriam pela perda, mal tendo esperanças.
Jantei com a minha família, tomei um banho bom pelo que estava acostumada, vesti-me com o melhor vestido que tinha e fui com meus pais até a praça. Dei um abraço apertado nos dois e disse palavras bonitas de despedida. Se fosse realmente escolhida, teria outra chance para isso, mas, se pudesse ter um maior tempo com eles, melhor.
– Credo, . Até parece que você vai ser a escolhida! É sua última Colheita e você estará intacta, como sempre esteve – minha mãe comentou quando não quis soltá-la.
– De qualquer forma, mamãe... Nunca se sabe de que lado as chances vão ficar.
Abracei o meu pai também e fui para o lado de uma amiga da escola, a filha do prefeito. Olhei ao redor e não encontrei Prim, imaginando que ela só poderia estar em apuros. E pensar que no ano passado a irmã tinha se voluntariado por ela... O mundo realmente dá voltas.
Olhei para o bloco masculino e pensei em quem seria o outro tributo. Nenhum tinha o nome marcado em todos aqueles papéis como eu, então era impossível de se adivinhar.
Como sempre, o palco tinha três cadeiras: uma para Effie, outra para o prefeito e a última para o mentor. Se Peeta nem Katniss tivessem ganhado o ano passado, seria Haymicht que estaria ali e, com absoluta certeza, mais bêbado do que nunca. Acabei descobrindo por que ele fazia isso, especialmente nas Colheitas... Ele não gosta de ver a expressão dos tributos quando está sóbrio. Estando alterado, ele pelo menos enxerga as coisas destorcidas e não vê o sofrimento pelo qual ele passou e sabe como é.
A cerimônia estava para começar quando todos os três subiram o palco. Peeta seria o mentor de um garoto e o meu também e não sabia o que sentir sobre isso. Não duvido em momento algum que ele tentará me manter viva, como se ele tivesse alguma chance, mas ao mesmo tempo é desconfortável e sarcástico. Meu namorado (ou ex) tentando me manter viva. História de romance e daquelas trágicas com um fim sangrento.
– O melhor dia do ano chegou! – Effie bradou. – Adoro essa comemoração. Feliz Hunger Games a todos!
Ela comentou das regras, disse algumas coisas breves e o prefeito também falou algumas palavras antes de dar o microfone a ela de novo.
– Começaremos esse ano pelos cavalheiros. O sortudo do ano será... Steven Richardson – ela disse com empolgação.
Mal falava com Steven. Ele sempre estava ajudando o pai que trabalhava na mina... Mas era uma boa pessoa de um coração muito bom. Uma pena ter sido ele... Assim como seria uma pena qualquer outro ter sido escolhido.
– A nossa sortuda é... – eu torcia, mordia meus lábios. Estava inquieta. Mas todo o trabalho foi em vão. – Bluebonnet.
O meu coração batia tão depressa que achei que ia parar. Estava gelada por inteiro. O meu corpo estava paralisado e, se não fossem as pessoas a abrirem espaço para eu passar e os Pacificadores me escoltarem até o palco, ficaria parada ali para sempre, tamanho o choque.
Eu já sabia que seria a escolhida, porém ainda tinha esperanças de que não.
Enquanto andava, vi a expressão de Peeta morrer como se ele estivesse sofrendo com aquilo. Ok, ele estava sofrendo com aquilo, contudo ainda assim era por causa dele que eu andava para a minha destruição.
O meu erro realmente tinha sido tê-lo amado demais.
O choque só trocou de lugar com o pavor quando me colocaram em uma sala no Edifício da Justiça para as despedidas. Um ano atrás, eu estava ali para dar tchau para alguém que eu me importava. Agora eu era a que receberia as despedidas. Os meus pais entraram, os dois já desabados, e não tive escolha a não ser fazer o mesmo. Acho que nunca tive um momento tão meloso e profundo com eles antes e, se não fosse um adeus, seria até bom. É nessas horas que você realmente vê algo que já nasce sabendo: o significado dos dois na nossa vida. E é só quando os perdemos que a ficha cai.
Reclamei quando o Pacificador abriu a porta e disse que o tempo acabou. Os meus minutos tinham sido transformados em segundos. Não era possível!
Sem surpresas, Haymicht entrou pela porta um pouco depois que meus pais saíram. Abracei-o. Por mais que nunca tenhamos algum contato como abraços e apertos de mão, precisava daquilo. Ninguém me entenderia naquele momento além dele.
– Acho que nunca tive tanto medo antes, Haymicht.
– Seja forte, pequena. Lembre-se do que é capaz. Você é forte e insistente. Não duvido que volte para casa.
– Pode dizer a verdade. Você sabe que eles vão fazer de tudo para me matar... Se não os outros tributos, os Idealizadores cuidarão disso.
– , você foi treinada. Pode ter sido pouco, mas lute para voltar. Os seus pais querem isso, eu quero isso e Peeta também.
– Queria que você fosse o meu mentor.
– Eu não poderia. Você sabe o porquê.
Sabia. Eu era o mais próximo de uma família que ele tinha e, se eu morresse nas mãos dele, não dá para saber o que o cara seria capaz de fazer.
– Obrigada, Haymicht – dei um sorriso fraco.
– Fique viva, – ele respondeu o sorriso antes de sair.
Assim que ele saiu, já estava me preparando para ir para Capitol e alguém entrar na sala e me levar para o trem. Porém quem entrou não foi Effie e nenhum Pacificador, e sim Peeta.
– A gente já vai?
– Daqui a pouco. ... Desculpe-me por isso.
– Peeta, não comece.
Estava triste, aprontando-me para morrer e o cara me aparece pedindo desculpas?!
– Preciso que você entenda isso, ...
– ‘Ta. Já entendi. Não é como se você pudesse fazer algo sobre isso, não é? Já sei. E não é inteiramente culpa sua, então o máximo que você pode fazer é me manter viva. Obrigada.
Só não saí da sala porque quem tinha que me levar para algum lugar era ele.
Peeta suspirou pesadamente.
– Mesmo que seja a última coisa que eu faça.
Dentro do trem, abaixei minha pequena raiva/falta de vontade de ver Peeta e fiquei com ele a maior parte do tempo. Não podia recusar aqueles momentos porque sempre conversávamos sobre como alguma coisa podia ser a chave pra me manter viva, além de ficar sabendo cada etapa que passaria.
– Primeiro, eles vão tirar todas suas “imperfeições”. Acredito que Cinna não esteja envolvido no “Problema Katniss”, então é capaz de que ele seja o seu estilista. Ele realmente gostava dela, mas não duvido de que vá gostar de você – subi as sobrancelhas em forma de resposta. – Quer ver os outros tributos?
– Ver quem vai me matar primeiro seria legal para me manter longe.
– , você não vai morrer.
– Como os vejo? – ignorei-o.
– Com Effie.
Foi só falar nela que a mesma apareceu, toda espalhafatosa e com outra roupa berrante no maior estilo de Capitol. Tinha uma peruca armada em um tom loiro quase branco com mechas laranja. O seu terninho combinava com a mecha e os sapatos dourados tinham asas nas laterais dos saltos. Como alguém se vestia daquele jeito?!
Todos nós assistimos às Colheitas desde o Distrito Um até o Doze, agora com Steven. Meu medo só ia aumentando. Era agora mesmo que eu não tinha esperança nenhuma de voltar para casa. E ainda não sabia de nada.
Como sempre, os Profissionais não só me deram medo. Vê-los um por um me deixou com arrepios por toda espinha e só tinha um pensamento na cabeça: morte. Nenhum dos outros me deixou menos medrosa. Com todos, tinha o mesmo sentimento e o mesmo pensamento.
No fim do vídeo, saí da sala sem mais nem menos e fiquei sozinha no fim do vagão. O barulho era enorme e, se eu precisasse chorar, ninguém escutaria. Não o fiz, no entanto. Eram tantas coisas para pensar que não achei tempo para isso.
Apenas quando fiquei no meu quarto, sozinha de novo, que os sentimentos vieram à tona. O pavor era tanto que não conseguia ficar impressionada com o tamanho do cômodo, as coisas que nele tinham e a qualidade. Eu só queria a minha cama de colchão barulhento, o meu quarto minúsculo, minha mesinha e o pequeno guarda-roupas. Queria os meus pais e o Distrito Doze de novo.
Chorei até tentar dormir, mas era impossível, o que me obrigou a dar outra volta no trem.
– ... Você tem que dormir um pouco – ouvi Peeta atrás de mim.
Estava na sala de TV manuseando o objeto que eu mal sabia da existência de tantos canais assim. Só tínhamos os Jogos e noticias de Capitol em casa.
– Falar é fácil – desliguei o aparelho, olhando para ele, deixando os meus medos aparecerem.
– Venha – ele apenas me conduziu até o meu quarto e me colocou na cama, como se eu estivesse impossibilitada de fazer isso.
Antes que ele pudesse sair de lá, o que falei simplesmente saiu sem eu pensar. Era um costume que, depois de tanto tempo, não tinha sumido por mais que eu tentasse.
– Fique comigo.
Eu normalmente fazia uma expressão dolorida que o fazia vir rastejando, mas dessa vez não precisei fazer nada. Já deveria estar podre o suficiente. Peeta olhou bem por todos os lados e cantos do lado de fora. Supus que ninguém poderia saber que ele estava dentro do meu quarto... Comigo... Enquanto o “amor da vida dele” estava “desaparecido”.
Não era por nada, mas eu estava bem ali.
Logo, ele estava dentro do meu quarto, na minha cama e abraçado a mim daquele jeito que nos sentíamos confortáveis.
-Tente dormir – ele sussurrou.
– Você vai embora se eu dormir.
– Prometo que fico.
Decidi acreditar, já que estava completamente sem escolhas.
O silêncio ficou por alguns minutos enquanto só escutávamos as nossas respirações. Apenas momentos como aquele já me faziam bem pela paz que ele emanava. Peeta podia estar quebrado por dentro e ainda assim sabia como trazer tranqüilidade. E o cheiro dele... Tão comum, tão Peeta.
– Por que isso tinha que acontecer? – perguntei baixinho.
– Não sei, .
– Vou morrer, Peeta – nunca fui tão convicta na vida.
– Não vai. Se você morrer, não tenho outro motivo para ficar aqui.
Aquele tom honesto que ele sempre teve estava de volta. Podia ser um momento sombrio para isso, mas abri um leve sorriso.
– Você viveu. Ganhou outra chance. E não se atreva a fazer besteiras!
– Nunca desejaria isso para alguém – mudou de assunto. – Se eu pudesse impedir a sua ida para os Jogos... Tentei fazer tantas coisas desde que levantei suspeita e nada deu certo.
– Capitol nunca desiste. Você já devia saber disso melhor do que ninguém.
– Sinto muito, .
– Sei que você sente – olhei-o no fundo dos olhos. – Amo você, Peeta.
Recaída. Eu tinha aquela sensação de que tinha feito besteiras, mas não deixava de ser verdade.
– Também a amo. Você sempre soube disso. Nunca e nem ninguém vai mudar isso.
E, depois, os seus lábios se encostaram aos meus e nos beijamos devagar. Como foi o primeiro depois de muito tempo, e com aquele receio de que poderia ser o último, aproveitamos cada momento. Faria o favor de guardar o seu gosto, o seu cheiro e todas as proximidades de sua boca em minha mente. Seria uma boa memória para manter enquanto morro.
– Você vai sair de lá viva – Peeta garantiu.
Não comentamos nada sobre o beijo e nem falamos mais nada depois disso. Finalmente a paz dele me dominou e acabei dormindo. Incrivelmente, dormi super bem desde muito tempo. Provavelmente por ter aquele momento com Peeta ou... Quem eu queria enganar? Era exatamente por isso.
Mais um dia assim e ninguém descobriu que Peeta ia para meu quarto praticamente o tempo inteiro antes de chegarmos. Não nos beijamos de novo, mas só por estarmos perto daquele jeito depois de tanto tempo era o suficiente para me deixar mais calma e melhor.
Tínhamos até montado uma tática, mas não sei se realmente iria funcionar. Apenas tinha a apostar na sorte, porque era só isso que eu tinha restando.
Fui jogada em uma sala com três pessoas que só se importavam em dizer coisas sobre como eu tinha um cabelo lindo, porém mal tratado, unhas sujas e pele ressecada. Não sei se eles tinham essa noção, mas no Distrito Doze não existe a possibilidade de me embelezar mais do que posso. Eles também comentaram sobre Katniss, como a morte dela foi trágica e heróica, e tenho que admitir que quase dei com a boca nos dentes, mas tive que controlar minha raiva. Eu já tinha aprendido minha lição: não falar coisas que não deve para não acabar no Hunger Games. Pena que tinha sido tarde demais...
Assim que minha Equipe de Preparação me deixou sozinha em uma sala, foi questão de tempo até que meu estilista aparecesse. E tenho que admitir. Cinna era legal. Ele meio que sabia sobre a fuga de Katniss, ou tinha uma idéia, e deixou claro que suspeitava que a pessoa mais próxima de Peeta seria punida, então ele deixou como se eu fosse a coitadinha de tudo. Bom... Eu não deixava de ser, ainda assim.
Não sei se levo como lado bom ou ruim quando me vi na roupa pela primeira vez. Não conseguia deixar de me ver. Sério. Não era tão impressionante quanto a que Katniss e Peeta usaram o ano passado, mas chegava lá. Usava um conjunto cor de fogo, a perfeita cor de fogo devidamente definida: um laranja mesclado com o vermelho, preto e amarelo. Havia uma espécie de capa grudada desde minha nuca até meus punhos, como se eu pudesse voar. A blusa era apertadíssima e valorizava partes do meu corpo que nunca pensei nelas antes e a calça da mesma cor era extremamente apertada a ponto de usar uma bota preta de verniz com um salto enorme. O meu cabelo estava preso em um coque de lado com alguns enfeites e acabei descobrindo que a capa estaria em um fogo computadorizado durante a apresentação.
Eu podia morrer de medo de fogo, mas no momento a única coisa que eu queria era ficar em chamas e chamar atenção de quantos patrocinadores possíveis. Não era igual à roupa do ano passado, bem diferente.
Foi questão de alguns pratos de comida antes de esperar a vez do Distrito Doze dar o ar de sua graça. Steven vestia algo diferente de mim, o que tinha sido ótimo não terem copiado as coisas do ano passado. Principalmente o fato de sermos nós mesmos, sem precisar pegar na mão um do outro. Se bem que depois do ano passado, se eu passasse exatamente a mesma coisa que Peeta passou com Katniss dentro da arena, seria uma ótima resposta sobre como me senti.
Se bem que o fato de eu estar aqui por culpa dele já deve ser difícil o bastante.
A apresentação tinha sido mágica. As pessoas gritavam o meu nome ao mesmo tempo em que gritavam “Distrito Doze”. Aquilo já tinha sido algo bom e tinha que agradecer a Peeta e Katniss por terem feito o povo amar o meu Distrito.
– Vamos falar sobre técnicas amanhã. Hoje foi um dia longo, exaustivo e terminado com sucesso.
– Eu que o diga! – Effie gesticulou exageradamente. – Já comecei a procurar patrocinadores! E não será difícil, já que Capitol ama Katniss...
A expressão de todos na mesa mudou, obrigando Effie a trocar o assunto. Peeta era obrigado a fazer uma expressão triste, de perda. Já eu não escondia a raiva no meu rosto. Ela não estava morta. Tinha sido covarde e fugiu. Era tão difícil para esses cabeludos falsos pensarem nisso?
O jantar delicioso passou e fomos dispensados. Dormir tinha sido muito fácil naquela noite. Peeta não passou no meu quarto – eu tinha certeza que éramos observados 100% do tempo. Não podíamos cometer essa gafe.
Minha cama era tão boa e estava no meu melhor sono desde anos atrás, que me decepcionei quando Effie entrou no quarto gritando que era um grande dia. Três vezes. E então, depois do café, estávamos conversando com Peeta.
– Precisamos falar sobre treinamentos. Vão querer separados ou em conjunto?
– Separados – eu e Steven falamos ao mesmo tempo e na mesma intensidade. Não sei se isso deveria me preocupar.
Nunca vi Steven fora da escola. Não sei se ele é bom com alguma coisa.
– Ótimo. Podemos começar com...?
Dei de ombros e acabei indo com Effie. Ela me ensinaria coisas como sorrisos para quebrar o gelo, piadas rápidas, o desfile perfeito e impecável. Coisas de garotas. Admito que não foi tão difícil desde que tinha um sapato de salto em casa e eu sabia muito bem esconder como estava através de um sorriso. Para mim, Effie tinha se mostrado bem legal.
O meu treino com Peeta seria para discutir a nossa tática. Usaria o mesmo artifício que ele usou o ano passado: assim que a contagem regressiva da Cornucópia acabar, eu correria o mais rápido que podia. Discutimos sobre o que podia fazer, como correr bem rápido, um pouco de luta livre e conhecimento sobre remédios, porém isso ele já sabia.
Fui instruída a deixar as minhas habilidades de lado durante os dias de treinamento com os outros tributos para me mostrar aos Idealizadores e quem sabe ganhar algo com isso.
No próximo dia, começaríamos os treinos com os outros tributos e estava no mínimo assustada, para não dizer suando frio por medo. Fiz exatamente o que Peeta pediu e fiquei longe de lutas livres, ervas medicinais e qualquer coisa que mostrasse corrida. Acabei aprendendo a fazer armadilhas, camuflagens, arco e flecha, lutas com faca, e por fim algo que me ajudasse a encontrar alimento na arena.
Assim como os outros tributos, nenhum conversava entre si. O que já era de se esperar, os Profissionais se juntaram, já formando um grupo enquanto, o resto de nós apenas parecia como baratas rodando de um canto ao outro.
Os dias se seguiram desse jeito, sempre na mesma rotina de acordar com os três chamados de Effie, café da manha, uma palavra com o mentor e o resto do dia era treino. Isso é, até o dia da amostra para os Idealizadores e a liberação do ponto que eles lhe dão. Os maiores pontos tinham maior chance de ganhar algum patrocinador e os de menores... Bom, eles não tinham muita diferença quando alguns ganhadores tinham pontos pequenos e não precisaram de patrocinadores para tal título.
Ter que ser a última para me mostrar era simplesmente angustiante. O pior era que eu não ouvia nenhuma animação ou empolgação pelas coisas que os outros tributos faziam, então tinha certeza que seria uma bosta.
Steven entrou e, antes que pude perceber, era minha vez. Mostraria minhas novas técnicas de luta livre e misturaria a corrida nisso. Eu só tinha que fazer tudo certo e não ferrar as coisas, contudo a cara de desapontamento quando entrei na sala tirou a última esperança que tinha. Ainda assim, fiz tudo no maior detalhe possível e só quando acabei recebi duas palmas.
Literalmente duas.
– , você sabe algumas coisas. Não é verdade? – o Idealizador-chefe perguntou, abrindo um sorriso sacana. – Aprendeu com o seu amor, aquele que toda Panem acha que é o coitadinho?
– Não.
– Vou direto ao ponto – o sorriso desapareceu. – Você nos diz onde Katniss está e lhe damos a certeza de que ganhará sem esforço, ou teremos o prazer de vê-la morrer.
Aquilo estava realmente acontecendo?
Não acredito que me esforcei à toa.
– Se eu soubesse, acham que estaria aqui? Quem é o idiota que prefere ficar calado e vir aos Jogos ao falar tudo que sabe?
– Continue blefando, Bluebonnet. A escolha é inteiramente sua.
– Blefando? Se soubesse onde Katniss está, seria a primeira a correr atrás dela e fazê-la pagar pelo que estou passando.
Pude ver alguns Idealizadores trocando olhares cúmplices, mas a decisão sempre era do chefe.
– Essa é sua palavra final? – assenti. – Está dispensada.
Sem acreditar no que tinha acabado de acontecer, saí da sala com o coração a mil. Eu mesma tinha assinado o meu óbito.
Ao chegar ao andar doze, todos voaram para cima de mim, querendo saber como tinha sido.
– Um desastre – soltei, sentando-me. Todos me acompanharam em seguida, Peeta, Effie, Cinna e Portia. – Acabei de assinar a minha morte.
– Não deve ter sido tão ruim, – Effie tentou dar uma força. – Steven chegou segurando lágrimas. Vocês dois estão exagerando...
– Depois de mostrar o que sabia, o Idealizador-chefe usou chantagem para conseguir uma informação que eu adoraria saber.
– Perguntaram sobre Katniss?
– Não só perguntaram, Cinna, como deixaram explícito que sairia como ganhadora se eu contasse onde ela estava.
– Então Katniss não morreu? – Effie e seu... Estilo. – Oh, meu terninho pistache!
– E se você não contasse...
– O que vocês acham? Usaram as palavras “teremos um prazer de vê-la morrer” exatas. E depois me dispensaram.
Fitei Peeta com raiva, ao mesmo tempo em que estava desesperada. Não importaria o que ele conseguisse, todo o esforço que fizesse, eu já tinha um destino escrito.
– Você devia ter dito que sabia onde ela estava! – Portia falou para tentar me animar. Tanto eu quanto ela sabíamos que não adiantaria nada.
– Eu só estaria adiando o dia de minha morte até eles descobrirem que estava mentindo.
Aos poucos, cada um foi saindo da sala, menos Peeta e eu.
– Alguém já lhe mostrou o telhado?
Olhei-o quase que ultrajada até entender o que ele queria dizer com aquilo e só comprovei os meus pensamentos quando vi que era impossível alguém nos escutar pelo barulho da própria Capitol, além de uma vista incrível, quase tão incrível quanto aquela de quando o trem chegou aqui.
– Nunca vou poder me desculpar com você. As coisas que está sofrendo por minha causa... , nunca quis que isso chegasse até aqui.
– Chega de me dizer as mesmas coisas – pedi, educada e praticamente fraca. – Já aconteceu e não tem nada que você possa fazer para mudar. Faz um favor para mim?
– O que você quiser.
– Diga aos meus pais que os amo. E a Haymitch também. Saiba que também amo você, não importa o tamanho da minha raiva nesses últimos meses.
Peeta balançou a cabeça devagar, assentindo.
– Você mesma dirá isso a todos. E vai dizer para mim mais uma vez, assim como vai me ouvir dizer também.
– E o principal: não deixe de tentar me manter viva. Não importa minha situação a partir de depois de amanhã.
– Nunca deixaria de tentar, .
Abraçamo-nos apertado e não dissemos nada. Palavras estragariam o momento.
Saímos do telhado para assistirmos à mostra de pontos e, como sempre, os Profissionais ficaram em sua média de 8 a 11 e o resto fica de 4 a 7. Assistir a todos foi angustiante e horripilante a cada segundo até chegar ao Doze. Steven tinha conseguido 6 pontos, o que não tinha sido tão ruim. Eu esperava no máximo 3 pontos para mim.
Foi quando minha foto apareceu e logo depois a pontuação. O número 12 cobriu a tela e fui obrigada a forçar a visão para ver se era verdade.
Tinha algo de errado ali.
– Eles começaram – Peeta disse. – A maior pontuação é perigosa para a sua reputação com os outros tributos... Eles são os primeiros a serem caçados.
Era só isso que eu precisava ouvir depois daquele dia.
– Sem sombra de dúvidas vão perguntar sobre Katniss na entrevista. Diga sobre o acidente como se você fosse uma das testemunhas. Capitol precisa saber que você sente muito pelo o que aconteceu e precisam de informações diretas sobre isso. Afinal, todos a amavam – Peeta me dava dicas sobre o que falar antes da entrevista de hoje à noite.
– Eles amam você também.
– Mas quem será entrevistado é você, e não eu.
– Pena.
– , só escute o que estou lhe dizendo. Misture todos os tipos de personalidades que conseguir... Diga que você se sente orgulhosa por ser a próxima de Katniss e...
– E se perguntarem sobre... Nós dois?
– Fale do óbvio. Amigos e agora mentor, que sou divertido e o cara mais legal que você já conheceu.
– Modesto também – peguei a piadinha dele.
– Você entendeu. Faça todos a adorarem. Seja tímida, fofa, misteriosa e sexy – ele pausou. – Como quando você me provocava. Exatamente daquele jeito.
Fracassada, tentei esconder um sorriso ao saber que ele ainda se lembrava, então resolvi abrir o jogo.
– Você ainda se lembra.
– Nunca esqueci nada – Peeta abriu um sorriso terno e acariciou a minha bochecha.
Dar tchau para ele seria difícil. Muito mais do que participar dos Jogos.
– Ok. Tímida, sexy... Entendi. Mais alguma coisa?
– Só deixe acontecer. Eles vão adorá-la. Não tem como alguém não adorar – assenti. – Cinna deve estar esperando. Vejo você mais tarde quando estiver com a roupa mais bonita entre os tributos.
Peeta estava certo. Acho que nunca vi uma roupa mais bonita em qualquer pessoa ou qualquer Hunger Games.
Ao me olhar no espelho, deparei-me com um vestido longo, preto como carvão. Tinham duas pequenas alças bem delicadas que davam detalhe na frente do vestido, assim como atrás dele, por toda a extensão. Os meus olhos estavam pretos com uma pitada de vermelho e meus lábios, vermelhos como fogo. A parte mais legal foi quando descobri que, ao me mover, os detalhes da alça do vestido que o percorriam por inteiro soltavam faíscas, deixando-me literalmente pronta para pegar fogo.
Estava tão nervosa pela entrevista e por aquele ser o meu último dia viva que nem vi minha vez chegar. E de repente Caeser Flickman me chamava para subir ao palco.
– Querida , o seu vestido é estonteante. Dê-nos uma volta! – fiz o que ele pediu, vendo e ouvindo as faíscas queimarem. Logo o publico vibrava. – Você está linda.
Ao me sentar, pude ver Cinna e sua expressão satisfatória e Peeta calmo, mas os seus olhos diziam outra coisa. Do mesmo jeito de sua entrevista.
– Obrigada. Você também – sorri simpática. – A gravata lhe cai muito bem.
– Mas olhem só. Ela é uma princesa! – riu, abandando a mão para mim. – Então, querida, diga-nos... Qual a coisa que mais chamou a sua atenção em Capitol?
– Minha cama – fui sincera. – É tão macia e espaçosa! Muito, muito boa!
– Boa escolha. A minha cabe cinco pessoas! – ele conversou mais com a platéia do que comigo. – Como está se sentindo para os Hunger Games depois de saber sua pontuação espetacular de ontem? Podemos saber o que você fez?
– Ah, acabaria com a graça... Tenho certeza de que vão acabar vendo – fiz uma expressão desapontada, mas eu estava certa. Veriam muita corrida de minha parte. – Estou honrada em ter sido a escolhida para seguir os passos de Katniss. Ela se tornou minha esperança, além de minha grande amiga.
– Ela era a esperança de muita gente – Caeser se tornou um pouco sombrio. – Principalmente para o seu mentor. Qual a relação que você tem com ele?
– Peeta e eu fomos à escola juntos. Tínhamos aula de Históiria na mesma sala, eu acho. E agora ele é meu mentor – dei de ombros, como se aquilo não me importasse e não tivesse mais o que acrescentar.
– E Katniss? Pode nos dar mais alguns detalhes sobre como ela se foi? Isso se o seu mentor permitir.
Olhamos para Peeta e ele somente assentiu com a cabeça.
– Estava na praça quando vi um monte de chamas vindo da direção da mina. Eu e um monte de gente fomos ver o que tinha acontecido. Katniss era uma delas. Ao ver que podia haver uma explosão dentro da mina, ela nos dispersou e tentou ajudar a manter o fogo calmo... Mas ele a pegou e, para não comprometer ninguém, correu para dentro da mina... Não saiu de lá.
– Aposto que foi bem triste de se presenciar.
– Horrível. Todo o Distrito Doze está de luto. Katniss era uma boa pessoa que eu adorava. Passávamos horas conversando... Uma grande amiga. Quem sabe a melhor que tive?
– Estaremos com o coração dividido então – suspirou. – Deixou alguém de coração partido ao vir para cá?
– Talvez um. Ou três... Vários – brinquei com a mecha do meu cabelo enquanto fazia uma expressão que eu acreditava ser sexy.
– Uau, garota! Então você voltará para eles?
– Pode apostar – pisquei.
– Essa foi Bluebonnet, do Distrito Doze. Boa sorte, !
No fim das contas, a entrevista não tinha sido ruim. As pessoas se divertiram e realmente ficaram compenetradas no que dizia.
Se minha despedida com Peeta tivesse sido fácil assim... Mesmo a primeira despedida, aquela de um ano atrás.
Era de madrugada quando estava no telhado e ele entrou e se assustou ao me ver ali.
– Achei que estivesse dormindo.
– Como se eu conseguisse...
– Você precisa – apenas mandei um olhar para que ele entendesse. – Lembra-se de quando você foi jantar lá em casa pela primeira vez?
– As perguntas de sua mãe ainda me assustam – ri.
– Ela fez mais perguntas do que seu pai. E nenhuma era sobre “seja gentil com minha garota” e as ameaças dele – Peeta me acompanhou. – Minha mãe é difícil demais. Não sei como o meu pai agüenta.
– O amor é uma coisa doida – olhei-o. Quer coisa mais doida do que o que a gente tem?
– Só se ele a amar muito. Sabe o que ela me disse quando vim para cá como um tributo? – sacudi a cabeça, negando. – Que o Distrito finalmente teria um vencedor.
– Ah, que fofa...
– Não, . Não foi só isso. Ela disse que o Distrito finalmente teria um vencedor porque ela era uma vencedora.
Fiquei com cara de tacho. A mãe dele era uma desgraçada, sim, mas não sabia que chegava a esse ponto.
– Não acredito nisso. Você mostrou para ela que consegue também.
– Corte essa. Se não fosse por Katniss, estaria morto.
– Porque você queria – levantei-me, farta do rumo que aquele assunto tinha levado. – Sabe muito bem que, se tivesse tentado, você seria o único a sair de lá e nada disso estaria acontecendo. Mas você se deixou levar pelas palavras de sua mãe, deu nisso e não acreditou nas minhas. Se tudo estava uma merda para você, Peeta, simplesmente dissesse para mim. Seria mais fácil do que passar por isso tudo ao seu lado.
– , espere...!
– Adeus, Peeta – bati a porta do telhado e corri para o meu quarto, trancando a porta.
Eu me recusava a chorar por ele. Nunca estive tão confusa na vida! Eu o amava ou o odiava? Sentimentos tão opostos, porém tão fáceis de um virar ou outro. Provavelmente o amava pela pessoa, mas o odiava pelos atos e no que eles o transformaram.
Fechei os olhos, desejando nada além do melhor para os meus pais e para todas as pessoas com quem me importava.
Mas, ao contrário de Peeta, eu realmente iria tentar.
Minhas pernas gritavam para parar. Elas nunca tinham doído tanto assim e, no entanto, nunca tinham sido usadas daquele jeito. Ainda assim, só parei quando meus pulmões se cansaram também. Já tinha perdido a conta de quantos canhões tinha escutado e decidi ignorar se mais algum soasse. Algo me fazia tremer ao pensar que o próximo poderia ser o meu. Deixei meu corpo cair assim que encontrei três pedras juntas, grandes o suficiente pra me protegerem.
Os jogos tinham começado e eu estava ali, lutando pra salvar minha vida.
Ao sair da Cornucópia – melhor dizendo, correr –, pude perceber que pelo menos seis tributos estavam atrás de mim. Isso é que o deu para ver, sem contar aqueles que podiam estar nas minhas costas. Por isso corri o máximo que pude, não simplesmente porque Haymicht e Peeta me mandaram. Tinham se passado pelo menos três horas de jogo e eu era o alvo principal de todos aqueles ainda vivos.
Estava escuro quando abri meus olhos. Estava tão exausta que apaguei quando meu corpo relaxou e só ali pude sentir a verdadeira dor das minhas pernas. Mal daria pra andar.
A temperatura só ia abaixando conforme o coração da noite se aproximava e eu tentava manter meus membros em movimento para não morrer de causas naturais. Não demorou para que o símbolo e o hino de Capitol tomassem o céu e o rosto dos tributos mortos aparecessem. Steven tinha morrido, assim como outros dez.
Foi apenas quando encontrei água, no meu último dia sem, aquele que todo mundo diz que seu corpo não passa disso, que encontrei um tributo. Era o garoto do Sete que tentou me atacar por trás quando me ajoelhei na lagoa. Estava tudo parado e muito quieto. Nem os pássaros cantavam e esse era o sinal claro de que havia algo errado. Podia estar praticamente morrendo de sede, mas, ao ver que o garoto de dezesseis anos corria na minha direção com uma faca na mão, só parti para cima. Acho que estava com mais raiva por ter perdido a paz para tomar água.
Rodei com o garoto na beira da lagoa, fazendo o máximo de força possível para que ele não me acertasse com a faca. Levei alguns chutes, alguns socos, porém de alguma forma o derrubei na água e deixei a faca dele do lado de fora. Pelo menos eu tinha uma arma agora.
Não foi preciso usá-la, já que, assim que o garoto subiu as margens, o canhão soou e o sangue dele tingia as águas. O movimento intenso dentro dela me deixou intrigada até ver peixes carnívoros. Só podiam ser mutantes das famosas piranhas de antigamente, aquelas sobre as quais aprendi na escola.
Então, além de ter visto alguém morrer na minha frente de um modo tão brutal, não tinha água pra beber e o relógio não parava. Pensando pelo lado bom, aquilo não aconteceu comigo.
Estava sentindo minha visão ficar cada vez mais preta enquanto praticamente me rastejava entre as duas pernas floresta adentro. Só não desisti ali mesmo porque toquei em uma árvore gelada, tão gelada a ponto de ter gelo nela. Olhei-a bem e lembrei de uma foto em um livro de minha mãe. Cortei seu casco até chegar a seiva e foi questão de segundos até a água escorrer por ali. Usei o casco como ajuda até minha boca e pude sentir a mudança instantânea que um pouco mais de algumas gotas fizeram. Repeti o processo mais algumas vezes até finalmente estar saciada.
Levando em conta minha situação, as coisas estavam bem calmas para quem presenciou a ameaça da própria morte alguns dias antes. Acho que os Idealizadores estavam esperando que morresse de sede ou fome, mas eu aprendo bem. E, como isso não foi o que aconteceu, eles tinham que fazer algo, é claro.
Desde então, não consigo entender como saí de tudo viva.
Ainda não sei quantos dias fiquei sem ver a luz do sol. Jurava que tinha morrido e que o lugar para o qual as almas vão fosse escuro e cheirasse a terra molhada. Ninguém quis me dizer o tempo, mas foi muito.
Lembro-me que estava fugindo de dois Profissionais. Tinha cruzado o caminho do acampamento deles e não podia ser uma presa mais fácil. Porém, corria mais do que eles. Isso era fato. Estava um pouco mais longe quando comecei a sentir a terra tremer, sabendo que algo bom não podia ser.
Antes que pude perceber, já tinha sido levada para longe por um monte de terra e pedras. Então ouvi um canhão.
Não sei como sobrevivi soterrada e, na verdade, achava que estava morta por causa do canhão e não sei quem morreu naquela hora. Meu corpo doía. Tinha certeza de que quebrara uma costela e o ar estava acabando. Se fizesse um buraco para respirar maior do que o existente, era óbvio que a terra se mexeria de novo e aquele seria o fim.
Naquela hora, pensei em desistir de tudo e morrer. Que chance eu tinha contra os Profissionais? Ou melhor, contra os Idealizadores? Eles normalmente “entravam” no jogo quando estava muito “parado”, mas acredite. Não estava.
Porém, prometi a Haymicht que voltaria. Eu tinha que fazer esse favor a ele. Arrisquei as últimas forças que tinha para cavoucar e consegui sair, contudo, por falta de ar, desmaiei quando finalmente estava livre.
Posso dizer que sofri mais pelos atentados dos Idealizadores do que tributos me atacando. Sempre saía extremamente machucada se tivesse que lutar com algum deles, se não quase morria. Só que, depois de ter passado pelo que passei, simplesmente pensava que havia modos piores para se morrer. E, também, se havia lutado com quatro tributos, tinha sido muito.
O dia do banquete chegou e minha mochila devia ter algo para eu ter sacrificado minha vida, mas era nada mais que uma armadilha. Só tinha sobrado eu, dois Profissionais e uma menina do Dez. Saí de lá inteira. Tinha sido difícil, mas no fim deu tudo certo.
Ao abrir minha mochila, encontrei-a vazia e, se não me engano, aquilo era contra as regras. Só podia. A única coisa que saiu de lá foi uma aranha menor que a sujeira da minha unha, mas com uma traseira enorme. Se eu soubesse o que ela podia fazer, não teria nem aberto a mochila. A picada não doeu nada até duas horas depois. Era como se alguém me torturasse. Uma dor não dita e gritante ao mesmo tempo era o que eu achava. Meu corpo ficava se debatendo de uma forma cruel e tensa e as alucinações também não me deixaram em paz. Sempre ouvia gritos horripilantes, os quais provavelmente eram meus, via coisas vindo em minha direção se preparando para minha morte e se deliciando com minha dor. Quando estava livre da maldição, fiquei completamente mudada. Sempre achava que ela começaria de novo. E, se havia algo pior que os Jogos, era essa aranha.
Através de uma enchente, fui forçada a ir a Cornucópia, sabendo que seria a última batalha: eu e o garoto do Distrito Um. Com vários golpes, o rapaz quebrou minha mão esquerda e estava prestes a quebrar meu pescoço, já em cima de mim, deixando-me imobilizada. Antes que isso pudesse acontecer, apostei na chance e levei minha mão direita até a boca dele, depositando uma baga da famosa Nightlock, a planta que causou todo o problema, torcendo para que tivesse sido perto da garganta o suficiente. Se fosse engasgar, eu me soltaria e poderia derrubá-lo de mim, ou simplesmente a baga faria o trabalho por mim. Antes que ele pudesse se soltar, cortou meu rosto de cima a baixo, bem fundo.
Assisti ao menino olhar para mim como se pedisse ajuda ao se engasgar, sendo impossível cuspir e se recusando a engolir. É, eu tinha essa opção também.
Enquanto ele sofria na própria guerra, apenas me sentei e esperei, olhando para qualquer outro ponto que não fosse ele. Já estava perturbada o suficiente para continuar com aquilo e foi o único momento em que pensei que, se o cara acabasse vivo, deixaria com que ele acabasse comigo. Para que viver do jeito que estava?
No entanto, o canhão soou e eu não sabia se tinha sido para mim, pelo tanto de sangue que escorria e eu simplesmente não estava fazendo nada para pará-lo, ou pelo garoto do Um.
Olhei para o lado e o encontrei imóvel, mas nada aconteceu comigo. Era pra eu ter ganhado. Eu ganhei! Por que ainda estava ali? Eu sabia, é claro. Não era para ter sobrevivido. Não era para ter sido a ganhadora. Era pra ter morrido e Peeta ter sofrido com isso.
Foram mais alguns minutos e muito sangue perdido para ter ouvido a música alegre que tocam em todos os Jogos quando alguém ganha. Fechei os olhos e deixei me levar. Se fosse para morrer, Haymicht entenderia que o momento era digno e não ficaria devendo com ninguém.
Durante o tempo que fiquei aqui, não vi nada e nenhum esforço vindo de Peeta. Ele tinha me garantido que faria de tudo para me manter viva, mas não recebi nenhum pára-quedas com as coisas que precisava nas piores horas. Todo o esforço aqui dentro tinha sido inteiramente meu.
– ? – ouvi meu nome sendo chamado e sacudi a cabeça, saindo do transe.
– Oi.
– Você estava apagada de novo.
– É – não tinha mais nada para falar. – Como você faz para não pensar nos Jogos, Haymicht?
Ao invés de responder, ele passou a garrafa de cachaça que bebia. Aquilo era uma boa resposta, bem suficiente.
Cada um tinha um jeito de esconder as memórias. Peeta pintava e Haymicht bebia. O que eu faria? Pensaria em tudo outra vez até me acostumar?
Eu nunca me acostumaria com aquilo. A última coisa que queria era relembrar.
Dois meses depois que ganhei o 75° Hunger Games, ainda tinha problemas com as lembranças. Elas só se tornavam piores e, de acordo com os profissionais no assunto, elas nunca iriam embora.
Assim que saí do hospital de Capitol – já que não tenho memórias desde que apaguei na arena –, quis ficar longe de todos. A única pessoa que permitia perto de mim era Cinna e Effie. Praticamente obriguei os dois a dizerem a Peeta que eu não o queria perto de mim em um raio de cem metros. E eu estava boa em distâncias.
Quando finalmente fui liberada da cidade a que nunca mais queria voltar, fiz o favor de me manter longe do meu mentor. Só pensava em ver meus pais novamente e Haymicht. Assim que saí do trem com o único sorriso verdadeiro desde três meses atrás, vi muitas pessoas do Distrito Doze na plataforma, mas não conseguia encontrar meus pais. Vi Haymicht vindo em minha direção, abraçando-me com força, e algo naquilo não me fez gostar do que estava prestes a vir.
“Seus pais estão mortos”, foi o que ouvi. Haymicht nunca soube ser muito bom com as palavras, mas uma notícia dessas não tinha como ser diferente.
Algumas câmeras me pegaram e logo Effie me tirou delas, levando-me até o Edifício da Justiça, onde me contou a notícia e como eles morreram. Olhei para todos na sala. Ela, Haymicht, o prefeito, e até mesmo Peeta. Acho que depois de tudo que passei, não consegui demonstrar muita coisa pelo acontecido. Me mostrei triste, mas por dentro eu morria de raiva e ela era maior que a tristeza. Capitol tinha matado meus pais e, novamente, por algo que eu não tinha culpa.
Ao sair de lá – todos tinham deixado que fosse sozinha, o que havia sido um erro –, andava até minha antiga casa para relembrar algumas coisas quando escutei Peeta me chamando. Disse que sentia muito e que não esperava que aquilo fosse acontecer e mais um monte de bobagem. A única coisa que respondi foi “não tente falar comigo nem chegar perto, ou o estrangulo”. Ele nem se moveu. Se não fosse por Haymicht ter aparecido e me tirado de lá a força, Peeta não existiria mais.
– Sabe, você deveria começar a cuidar de gansos – falei para Haymicht.
Estávamos sentados em sua varanda, olhando o “movimento” da Vila dos Vitoriosos. Tinha tentado morar sozinha e ter ficado por mim mesma, mas... As coisas não funcionaram da maneira que queria. Minha casa estava lá e pelo menos toda semana arranjava um dia pra limpá-la. Devagar, comecei a assumir a farmácia dos meus pais, porém ficar no mesmo local que eles sempre ficavam... Doía. Era quase tão ruim do que se lembrar das coisas da arena.
Haymicht me deixar na casa dele nos momentos de alucinação fez com que praticamente fizesse da casa dele a minha também.
– Gansos? , você realmente está mal – ele riu.
– É sério! É uma forma de se manter ocupado. Não acha?
– E você vai fazer o quê? Porque já tenho algo para me manter ocupado... – levantou a bebida até a boca.
– Estou mexendo com os negócios de família. Isso me deixa bem ocupada. Tenho livros para ler, tanta coisa para aprender!
– Você mal consegue ficar dentro da farmácia por mais de três quartos de hora. Devia procurar alguém bom que tenha algum tipo de conhecimento em remédios para tomar conta. Pode ensiná-lo a ficar tão boa quanto você.
– Vá sonhando.
– E como vai fazer quando você morrer? Deixar para os seus filhos?
– Não terei filhos – respondi rude.
Eles estariam fadados à arena só por terem o mesmo sangue que o meu.
– Então como vai manter o único suplemento de remédios do Distrito Doze?
– Droga, Haymicht. Odeio quando você está certo. Só tem um problema... – ele me olhou, esperando. – Quem faria isso? Algumas pessoas têm o leve pressentimento de que sou louca.
– Muitas pessoas a acham heróica, no entanto. Eu sou uma delas. Seria o primeiro da fila, se não fosse um bêbado mais velho que você e com mais chances de morrer.
– Cale a boca – gargalhamos. – Procuro alguém amanhã.
Com o silêncio, ficamos os dois observando a Vila. Havia várias casas, mas poucas eram realmente habitadas. Ao lado direito da de Haymicht, estava a de Katniss, mas era raro ver Prim ou a mãe dela saindo de lá. Elas estavam tão perdidas quanto eu. Do lado esquerdo, era a casa de Peeta. Sempre cheia, barulhenta, como uma casa normal deveria ser. Ouvia a mãe sempre reclamando do lado de dentro, porém, assim que saía, eram só sorrisos, principalmente para mim. Ela tinha algo em querer reatar uma conversa comigo... Provavelmente se mostrando que era “boazinha” e não queria nenhuma ameaça igual à que dei para seu filho. E, ao lado da casa de Peeta, era a minha. Vazia como eu.
Para uma mudança na nossa visualização, vimos Peeta adentrando a Vila junto de Prim. Olhava para os lados, como se a escoltasse. Assim que a deixou em sua casa, abanou a mão para nós na varanda. Apenas Haymicht respondeu.
– Peeta, corra aqui.
– Você quer morrer também? – sussurrei.
– Essa é minha casa, .
Droga.
– Achei que estava morando aqui.
– As regras ainda se aplicam. Seja gentil.
Peeta subiu os degraus e parou entre minha cadeira e a de Haymicht. Em momento algum tirei os olhos dele, pronta para qualquer coisa se fosse necessário.
– Então? – tremi ao ouvir a voz dele.
Tinha algum tempo desde que não a ouvia em lugar algum e aquilo fez com que um choque atravessasse o meu corpo. Depois de todo esse tempo, ele ainda tinha esse efeito em mim. O efeito que me fazia amá-lo e querer matá-lo também.
– Qual é a da escolta? – Haymicht apontou o caminho que ele tinha feito até a casa ao lado.
– Os Pacificadores voltaram. Prim estava no Hob e teve a impressão de que eles a seguiam. Foi para a padaria e eu a trouxe.
– Nem um pouco suspeito – respondi irônica. – E agora está falando conosco. Uau! É uma cena um tanto quanto reveladora para Capitol.
– Eles vão querer dar algum passo. Devemos ficar de olhos abertos – Haymicht concluiu. – Está tudo bem com as coisas?
Ver Haymicht sendo amigável desse jeito era no mínimo estranho. Acho que só eu realmente o conhecia fora da embriagues.
– Sim – deu de ombros. Passou alguns segundos em silêncio e olhou para mim. – , pode falar comigo? Dessa vez, sem tentar me matar?
– ...Não – praticamente ri. – Desde que saí de Capitol, deixei mais claro que água... Não tenho nada para falar com você e não vou inventar só para ter.
– , por favor...
– Peeta, só... – Haymicht apontou os degraus da varanda, indicando que era para ele sair. – Tente outro dia.
Ele deu um murro bem forte da madeira da cerca, contudo saiu. Só fui ouvir alguém falando quando ele sumiu de vista.
– Sabe que um dia ou outro vai ter que falar com ele.
– De repente quando eu for morrer ou algo parecido. Assim nada me restará a perder, já que estarei por um fio – ele me olhou indagado. – Toda vez que converso com ele, algo de ruim acontece comigo. Preciso evitar. Não acho que suporto algo parecido aos Hunger Games.
– , o fato de você ter ido não aleatoriamente não é culpa dele. Se alguém tem culpa nisso, é Katniss e ela não está aqui para ser punida.
– É exatamente por isso que estou levando porradas.
– E, agora que acabou, está dando porradas em quem não teve nada a ver com a história e visivelmente ainda tem sentimentos por você.
– Ele podia ter mudado as coisas, Haymicht. Podia ter feito diferente. Foi tudo escolha dele.
– Então no que você está se metendo? Se é uma escolha dele, deveria ter respeitado.
– E deixá-lo morrer? Você me pediu apra tentar três meses atrás e por que isso? – ele não respondeu. – Hein? Por que, Haymicht?
– Você é o mais próximo de uma família que tenho. Importo-me com você.
– Viu?! Tenho o direito de ter um pouco de raiva aqui!
– Sua raiva não está relacionada à escolha dele de preferir a morte. Está relacionada ao fato de ele ter demonstrado sentimentos por Katniss.
– Está relacionada a tudo. Um monte de razoes que estão se transformando em uma massa...
– Que, caso a deixe dominá-la, você sabe o que vai acabar acontecendo.
Fiquei quieta por um instante antes de sair da varanda e bater a porta da frente com raiva.
Raiva. Era tudo que eu sabia sentir nos últimos dias.
Eu corria pela Cornucópia com todo fôlego restante. Tinha algo atrás de mim, mas não sabia o que era e, conforme tentava ver, não conseguia. Só sabia que tinha que correr.
Corria em círculos, porém não via nada e, ainda assim, não conseguia parar. Minhas pernas doíam e ardiam pelo esforço inútil, todavia era impossível mudar minha situação. Era como se não tivesse controle do meu corpo. Já sem agüentar e desejando que eu pudesse parar, forcei um pulo e minhas pernas pararam, mas começaram a sangrar assim que não estavam em movimento. Meu sangue ardia muito, como se fosse veneno. Gritava para mim mesma e tentava parar o sangue, mas ao tocar só piorava. Chamava os tributos vivos para que viessem me matar, qualquer coisa para que aquela dor cessasse, e ainda assim ninguém apareceu. Só escutava meus gritos e seus ecos. Tinha certeza de que estava sozinha.
Aquilo só podia ser um pesadelo e não me lembro de ter ido dormir. Esforcei-me para acordar, o que só doeu mais. Meus olhos ardiam e vazavam sangue juntamente a lágrimas. Desistindo de tentar acordar, voltei a correr. Melhor as pernas doerem do que o veneno que escorria delas.
Todos meus músculos estavam tensos, prontos para estatelarem duros no chão depois do que eu diria duas horas de corrida. Foi exatamente isso o que aconteceu e, instantaneamente, o sangramento envenenado voltou. De tão tensos que meus músculos estavam, não conseguia nem me forçar a levantar e continuar. Precisava acordar, eu tinha que acordar.
Forcei a visão novamente, vendo meu esconderijo na mata. Minha visão estava turva e minha memória, horrível. Foi questão de segundos até meus olhos voltarem a sofrer.
Demorou algum tempo até entender que estava alucinando e mais ainda para entender que tinha sido a picada daquela pequena e indefesa aranha.
Sem forças pra me manter sã, voltei a ter alucinações, mas não as mesmas de antes. Ainda estava na arena e provavelmente acompanhada. Escutava vozes que nunca ouvi antes. Tinha certeza de que não pertenciam aos outros tributos. Depois de tudo que passei, não queria encontrar ninguém, sabendo que seria algo ruim. De qualquer jeito, eles me encontraram. Não tinham cabeças e sim um pano deformado no lugar delas, suas vozes eram agudas e ásperas, mas tinham corpo de seres humanos. Aquilo seria uma mutação?
Assim que me viram, começaram a rir. Corri, porém, a qualquer lado que ia, eles estavam por perto. Foi quando um me tocou meu braço que o membro foi decepado. O rasgo e a dor eram indescritíveis e isso só os fez mais contentes. Cada um tocava em uma parte de mim e essa parte caía em um piscar de olho. Gritava, debatia-me e chorava. A dor era muito mais do que qualquer coisa que podia agüentar.
Senti meus ombros serem apertados e pulei.
– ! – era Peeta. Estava tão em choque que não liguei para a presença dele. – Você estava se contorcendo... Está tudo bem?
Assenti com a cabeça, respirando fundo. Olhei em volta, vendo o lugar em que estava. Tinha ido até ali para pensar nas coisas que Haymicht tinha achado para me dizer todos os dias.
– Se eu me sentar aqui, você vai querer me matar? – sacudi, negando. De novo, ainda estava em choque. – O que veio fazer aqui?
– Pensar.
– E acabou pensando demais – assenti de novo. – Quer compartilhar?
– A picada da aranha na arena – percebi pela feição dele que a memória não era boa nem para ele. E não era ele quem tinha sofrido tudo. – Por que você não fez nada para parar aquilo? E no resto dos Jogos?
– Todos os patrocinadores que conseguimos desistiram na última hora. Ninguém tinha dito o motivo e Cinna descobriu que os Idealizadores tinham mandado uma mensagem a todos que tinham o desejo de patrocinar você – sua voz era sombria. – Mantive minha palavra, . Fiz o possível e o impossível para mantê-la viva.
– Engraçado – dei uma risadinha sarcástica. – Não me lembro de o ver fazendo nada além de assistir a mim morrer.
– Você não viu. Não despreguei os olhos de você em nenhum segundo. Ao contrário do que muitos fariam quando não há mais o que fazer, não desliguei o monitor e esperei acabar.
– Não escuto seu tom da mentira – disse mais para mim mesma.
– Porque não estou mentindo.
– Jurava que tinha desistido de mim.
– Nunca, – deixei que ele me abraçasse. Aquilo era tão bom depois do que tinha passado. – Não tive chance de falar com você sem seu desejo por me ver morto atrapalhar... Sinto muito pelos seus pais. Eles não tinham nada a ver com a situação, igual a você.
– Capitol realmente acha que tenho algo a ver com isso.
– Não. Eles acham que você me obrigaria a contar a eles onde Katniss está.
– Mas você não sabe!
– Exato. Toda noite penso em alguma resposta para dar, algo que vai fazer com que eles nos deixem em paz.
– Você não pode simplesmente dizer algum lugar qualquer. Mais cedo ou mais tarde, Presidente Snow descobriria que você mentiu e não esperaria para matá-lo.
– É por isso que não falei nada até hoje. Quem sabe as pessoas que ele levará primeiro até chegar a mim? – senti aquele arrepio horrível passar pelo meu corpo.
– Ela não lhe disse nada? Nada mesmo?
– Não é bem assim. Você não conheceu Katniss o suficiente a ponto de não entender absolutamente nada do que ela fala.
– Como assim?
Era impressão ou ele sabia?
– Uns dias, antes de desaparecer, ela apareceu na minha casa e me chamou para conversar. Disse todos os problemas e como eles se agravaram. Depois, veio com um assunto sobre o Distrito Treze ainda existir e se eu toparia sair por aí com ela e Gale.
– O... Quê? – não sabia por qual parte começar. Se era o fato de ela ter o chamado para ir junto, de ter dito que o Distrito Treze ainda existia ou Peeta não ter dito nada disso antes. Decidi ir com um de cada vez. – Todos nós sabemos que o Treze deixou de existir setenta e cinco anos atrás... Deram-nos provas disso.
– Você já reparou bem nas filmagens que eles sempre mostram? É sempre o Edifício da Justiça destruído e, se ver bem, verá um Mockingjay voando atrás do prédio.
– E o que isso tem a ver?
– Temos uma anunciação amanhã à noite. Repare bem. É sempre essa mesma imagem e, pelo que sei, sempre foi a mesma desde setenta e cinco anos atrás.
Olhei-o por alguns longos segundos. Só acreditaria vendo. Depois de dezoito anos assistindo àquelas anunciações com a introdução do Dia Tenebroso, aprendi a ignorar sempre a mesma informação. Como forma de punição, todo ano, um menino e uma menina de todos os outros distritos seriam obrigados a lutarem para sobreviverem e blá, blá.
– E como assim ela o chamou para ir junto?! – perguntei. Minha voz saiu mais esganiçada do que planejava.
Peeta até abriu um sorrisinho vitorioso por isso.
– Perguntou se eu estaria confortável com a idéia. Perguntei sobre as famílias, o que seriam delas e Katniss fechou a cara na hora. Nunca imaginaria que ela abandonaria a razão pela qual a fez se voluntariar. Os fins seriam os mesmos.
– Acha que vão matar Prim e a mãe?
– Não duvido que demorará – deu de ombros, querendo não ligar muito.
– E o que você respondeu?
– Estou aqui. Não estou? Perguntei se poderia levar alguém – apontou para mim. – E ela disse que seria mais fácil nos acharem se tivesse alguém sem experiência andando conosco. Então recusei, já que não poderia levá-la.
– Não sei se eu iria – ponderei, mas sabia da resposta.
– Com toda razão. Você não tinha idéia do que estava acontecendo e não deixaria seus pais.
Era por isso que eu gostava dele. Sempre me conhecia bem o suficiente.
– E agora eu provavelmente vou matar você... Por que não disse isso para os Pacificadores? – deixei a raiva brotar.
– E se isso for apenas um palpite de Katniss? É impossível saber o que se passa na cabeça dela... Uma hora você acha que ela vive por Prim, na outra vê que não liga para mais nada além do próprio umbigo. Não quero me arriscar e levar alguém junto sem que tenha certeza.
Tinha sido uma resposta inteligente. Tenho que admitir.
– Ok, não é hoje que você morre – suspirei. – Também não acho que as coisas estariam muito diferentes se você tivesse contado.
– Tem isso também.
Ficamos em silêncio, sem mais nada para falar até eu decidir ir para casa. Peeta me acompanhou e fomos falando de coisas nossas, as antigas, das melhores memórias.
A partir daquele dia, podia ver os laços com Peeta se regenerando e eu gostava disso.
Era estranho como as coisas estavam boas. Por fim, estavam boas!
Capitol tinha deixado nosso pé de lado. Os Pacificadores haviam deixado o Doze – a maioria – e eu tinha abaixado a bola quando se tratava de Peeta. Pensei bastante e decidi esquecer o passado perturbado que tive comigo mesma e com ele. Agora estávamos quase como éramos antes de ele ter ido para os Jogos, com a diferença de que sempre deveria ser entre quatro paredes e nós dois tínhamos algumas “sequelas”. Ficar um ao lado do outro nessas horas fazia com que as memórias ficassem turvas, o que era ótimo. Cada um de nós tinha algum jeito de manter as memórias longe: Peeta pintava e eu escrevia. Por mais que o assunto fosse noventa e nove por cento das vezes sobre os Hunger Games, lembrar para exercer alguma coisa sempre ajudava, por mais irônico que fosse.
Assim, eu já ia para minha casa, mas ficava bastante tempo na de Haymicht ainda. Peeta tinha se tornado uma companhia conforme os meses foram passando. Tínhamos até comentado sobre reatarmos, porém o problema não seria mais nosso. No Distrito Doze, tudo bem. Não haveria delatores, contudo quem podia nos dizer se éramos observados toda vez que saíamos de casa? Todos sabiam que Peeta e eu éramos um casal e os comentários de “sinto muito por você ter que ver isso” que ouvi dois anos atrás foram muitos. O que podia acontecer se Capitol nos pegasse juntos? A verdade seria dita e Panem inteira nos odiaria. Eu estaria inclusa, claro. Com o tanto de pessoas ignorantes que temos aqui – refiro-me a Capitol e a alguns dos Distritos Profissionais – seria capaz que eu fosse a má influência em Peeta que o fez cometer adultério, quando quem realmente sofreu o adultério aqui fui eu!
Haymicht estava um pouco insuportável nos últimos dias, sempre mais bêbado e completamente fora de si. Descobri que o aniversário de minha tia estava chegando e esse era o motivo da mudança. Para as pessoas que o vêem no dia a dia e não conhecem sua história, ele estava sendo pior que já era, mas eu tinha dó. Não tinha nada que eu pudesse fazer, a não ser cuidar dele para que não afogasse no próprio vômito.
Desde a primeira conversa que tive com Peeta, houve pelo menos umas sete anunciações e pude reparar que em todas. O vídeo era o mesmo. Não sabia o que pensar daquilo ainda... Afinal, o que a imagem significava? O local estava tão destruído que não tinha outra coisa para gravarem ou realmente havia o Distrito Treze e Capitol não queria que o resto dos doze distritos soubesse? Por que a última opção soa tão a cara de Capitol? Ainda assim, não dava para ter certeza de nada.
– Peeta! Aonde você está tentando me levar? – perguntei, enquanto ria, correndo atrás dele.
Era fim de tarde. Estávamos andando por aí há horas, rindo e nos divertindo como nos velhos tempos.
– Venha ver!
Já estávamos perto da nossa antiga escola e ele andava em ziguezagues nas ruas só para me confundir.
– Sério mesmo que precisa disso tudo para chegar aqui? – ri quando vi onde paramos.
– Lembra-se desse lugar?
– Não. Imagine – fui irônica.
Só era o lugar onde dei meu primeiro beijo com ele, mil outros e...
– Prometi que ia me casar com você quando estávamos aqui – assenti, sorrindo abobalhada. – Por mais que estejamos em uma situação complicada, vou lutar para manter essa promessa também.
Tinha certeza de que meus olhos brilharam. Peeta abriu um sorriso pequeno e fofo por isso e ficamos nos olhando que nem bobos um para o outro. Eu realmente tinha ódio por ele e o queria morto? Onde estava com a cabeça?
O garoto se aproximou, fechando-me no muro do mesmo jeito que sempre fazia, e, sem nenhuma mudança, me arrepiei de dentro para fora. Não consegui segurar minhas mãos de irem ao encontro da nuca dele. Devagar, Peeta foi ficando próximo de meu pescoço e deu uma leve fungada antes de depositar um pequeno e delicado beijo ali. Fechei meus olhos instantaneamente, gostando da sensação. Levei minhas mãos até o cabelo dele e os puxei de leve, ouvindo um suspiro antes que ele afastasse um pouco a cabeça. Olhamo-nos mais uns segundos. Era como se eu escutasse todas as palavras bonitas dele só pelo olhar. Peeta se aproximou devagar, trocando o olhar entre meus olhos e minha boca, como se pedisse permissão pra me beijar. Acabei com o espaço, respondendo a pergunta mental do garoto, e por alguns segundos ficamos com as bocas coladas. Abri melhor a passagem e encontrei sua língua. Tenho que admitir que a explosão de sentimentos e sensações que tive na hora foram as melhores desde muito tempo atrás. Sentia falta dele. Não só de sua presença, companhia e conversa, mas as carícias dele também eram marcantes. Duvido que tenha uma pessoa tão gentil e ao mesmo tempo tão cheio de segundas intenções como ele.
Era óbvio que Katniss teve pelo menos um pouco de sentimento por ele. Era impossível não ter... Peeta era perfeito sem nem precisar tentar.
O tempo que ficamos ali, não sabemos dizer... Porém, estava completamente escuro quando resolvemos voltar para a Vila dos Vitoriosos.
– Nem venha. Cheguei aqui primeiro que você. Sabe que sempre corri mais rápido.
Era inacreditável que estávamos agindo como bobos apaixonados depois do muro.
– Eu deixei você ganhar, . Sempre deixei.
– O que é isso, Peeta? Medo de perder para uma menina?
– Não fale bes...
– , Peeta, vocês estão aí! Eu falei que eles voltariam mais cedo ou mais tarde, mas vocês têm paciência? Nãããão. Ficam reclamando o tempo todo...
– Calado.
Eu e Peeta nos recompomos no exato segundo em que escutamos o Pacificador ordenar para um Haymicht bêbado.
– Achei que você o odiava – o Pacificador falou comigo, apontando para Peeta.
– Odiar e querer matar são sentimentos diferentes. Posso muito bem me aproximar do inimigo e apunhalá-lo pelas costas – dei de ombros, claramente sem paciência para um deles.
– Sou Orin, o novo Pacificador do Distrito Doze – eu e Peeta não dissemos nada, nem nos movemos. – Queria conversar com vocês dois, em particular.
Nós dois nos sentamos e apontamos o sofá à nossa frente.
– Vá em frente.
– Eu disse vocês dois – ele estreitou os olhos para Haymicht que praticamente babava no sofá.
– Ele está tão bêbado que deve ter apagado – garanti.
– Tenho recados diretamente do Presidente Snow – por dentro, congelei, mas por fora mantive a mesma expressão de tédio. – Ele está de olho em vocês e me deu ordens para mandá-los para o mesmo, caso seja preciso.
– Mais alguma coisa? – Peeta perguntou.
– Não – o homem se levantou e saiu em direção à porta. – Estarei a observar.
Mesmo uns dez minutos depois que ele saiu, eu ainda não conseguia nem respirar direito. Olhava para frente sem saber o que pensar.
Orin tinha dito que Presidente Snow estava de olho em nós, porém o que significava? Literalmente de olho por suas câmeras, ou apenas um aviso para não fazermos nada que acabaria com a sua reputação?
Como se fôssemos estúpidos o suficiente para isso!
– ? – olhei para Peeta, ainda um pouco em choque. Ele não disse nada. Apenas apertou minha mão.
O rapaz estaria ali para qualquer coisa que acontecesse. Eu tinha plena certeza disso.
Capitol podia ter ficado quieta por algum tempo. Os melhores meses desde muito tempo, mas nunca nos deixariam em paz. E aquela felicidade que sentia antes do encontro com Orin... Tinha sido trocada por medo.
– Peeta... – o menino me olhou, esperando. – Provavelmente serei uma completa idiota por dizer isso, mas saiba que, se algo acontecer a você, não vou hesitar em nenhum movimento.
– Sou obrigado a discordar – o resto do que eu podia chamar de mundo quase caiu aos pedaços. – Vou atrás da pessoa que lhe fez mal e lhe dou minha palavra de que ela irá sofrer. Depois, eu não hesito.
Rapidamente pulei em cima dele em um abraço apertado.
– Estou com medo.
– Vamos superar essa, assim como superamos as outras.
Fiquei abraçada nele por muito tempo. Ele fazia carinho em meu rosto e no cabelo, obrigando-me a dormir.
Senti braços fortes e grandes me pegarem e o movimento logo em seguida. Só parou quando fui largada na cama e acordei. Foi o tempo de pegar Peeta saindo do quarto.
Nem com a perfeita noção de que estava perfeitamente segura naquela casa, o medo queria me deixar.
– Fique comigo. Por favor.
Ele deu meia volta e se deitou comigo, abraçando-me para dormir.
Aquela tinha sido de longe a melhor noite que já tive. Nenhum pesadelo, nenhuma insinuação do meu próprio pesadelo. Só uma noite tranqüila e sem sonhos, encaixada ao melhor abraço de Panem.
Depois do aviso de Orin, as coisas realmente ficaram diferentes. Toda população do Distrito Doze andava mais conservada, como se qualquer deslize fosse metê-los em problemas.
Toda vez que saía da Vila dos Vitoriosos e ia à cidade, tinha alguém de olho em todos os tipos de movimento que eu fazia, que fosse para tirar o cabelo do rosto. Quando estava com Peeta, então, as coisas pioravam. Parecia que ficar a menos de cinqüenta centímetros perto dele era algo fora da lei. Pelo menos podíamos conversar e agir normalmente, porém sem nenhuma demonstração de afeto.
Que, devo dizer, aumentou nos últimos dias. Claro que o que tínhamos antes nunca será recuperado, contudo era fato: sentimentos simplesmente não se vão assim. Então era normal eu passar algum tempo na casa dele, ou na padaria... Ele na casa de Haymicht e, depois que encheu o saco, na minha casa. Na maioria das vezes, conversávamos. Tirávamos assuntos do fundo do poço e tínhamos uma regra que não tínhamos dito, mas sabíamos inconscientemente: nada de falar dos Jogos. Essas experiências já eram presenciadas durante a noite enquanto dormíamos. Então, se falássemos alguma coisa, era naquela hora. Só.
Meu humor e estabilidade emocional estavam bem melhores. Tinha poucas viagens e não ficava mais encarando um determinado ponto, pensando no meu pior pesadelo. Por mais que as lembranças nunca me deixassem, chamava aquilo de vitória.
E, agora que estava um pouco estável, ponderei melhor no que Haymicht disse e passei a procurar alguém para me ajudar na farmácia. Estava estudando muito mais os livros que antes pertenciam aos meus pais e devo admitir que, se soubesse apenas metade daquelas coisas na arena, grande parte do meu sofrimento não existiria ou seria amenizado.
– Teve alguma sorte hoje, ?
– Não sei... Há uma ou duas pessoas que tem uma leve noção de como mexer naquilo, porém não sinto que tenho confiança em uma pessoa qualquer do distrito para dar o patrimônio dos meus pais.
– Não seria melhor dar para alguém em quem você já tem confiança?
– Tipo quem? Você já tem a padaria, o Haymicht... Nem vou comentar. Não tenho mais ninguém. Pensei até em falar com Prim.
– Sério? – Peeta indagou, surpreso.
– Sério. Mas, devido às circunstâncias, não acho que seja seguro deixá-la com tudo, quando ela tem tantos problemas quanto eu.
– Arriscado, sim. Por que não tenta com ela e mais alguém? Aí, caso algo acontecer, sempre terá a outra pessoa.
– Isso se essa outra pessoa não morrer antes que eu precise dela – dei de ombros. Essas eram nossas condições por aqui.
– Bom... Não tem por que não tentar. Sei que ela já tem alguma noção dessas coisas por ajudar a mãe, que é curandeira.
– Tento achá-la amanhã – terminei o assunto, ajeitando-me na cama.
– Orin passou na padaria hoje.
Entrei em alerta.
– E o que aconteceu?
– Nada demais. Ele pediu alguns pães e comprou um bolo.
– Aposto que amanhã vai aparecer na farmácia para pegar... Sei lá. Uma atadura.
– Prefiro pensar que ele vai nos deixar em paz – vez de Peeta terminar o assunto. – Preciso dormir.
– Sabe, vou ficar mal acostumada de ter você aqui praticamente toda noite – abracei-o.
– Ótimo.
Não havia visto, mas tinha certeza de que ele abriu um sorriso, assim como eu.
No dia seguinte, estava na frente da casa de Katniss. Toquei a campainha, já pensando se era o certo a se fazer. Sentia-me completamente desconfortável e já não sabia por quem estava fazendo aquilo.
A porta se abriu devagar e apenas metade do rosto de Prim apareceu, olhando se era seguro abrir a porta. Deu um leve sorriso ao me ver e abriu, deixando-me entrar.
Todas as casas da Vila dos Vitoriosos eram iguais, tanto por fora quanto por dentro. Então, ao passar e ver a sala dela lotada de caixas, não pude deixar de perguntar:
– Para que as caixas?
– Mamãe não acha que demorará para que nos mandem embora. Não sei por que não fizeram isso ainda, afinal – realmente. – Essa casa foi Katniss quem ganhou e como ela não está aqui...
– Certo.
– Quer alguma coisa para beber? – aceitei só por ser educada. – Minha mãe não está em casa... É com ela que deseja conversar?
– Na verdade, não. Tenho uma proposta a lhe fazer, se estiver interessada.
– Isso não tem nada a ver com a minha irmã, tem? Porque juro que não faço idéia de onde ela esteja... Já falei isso com os Pacificadores, com Peeta...
– Não é sobre isso, Prim – acalmei-a. Devia ser muita coisa para uma menina que ainda não tinha nem catorze anos completos agüentar. – Você ajuda muito sua mãe nos trabalhos de curandeira, não é?
– Quando aparece alguém. Mas ela não pede mais minha ajuda... Quer que eu me preocupe com outras coisas, como arranjar algo para me manter viva daqui alguns anos – dava para ver que ela estava chateada com isso, porém de repente a mãe dela podia estar certa. – Por quê?
– Sabe que minha família era dona da farmácia, não é? Sem meus pais por lá, é meio difícil cuidar das coisas sozinha e não tenho tanto conhecimento assim. Queria saber se você aceita trabalhar lá... É a única que realmente entende dessas coisas aqui no distrito.
– Uau! – Prim tinha aberto um sorriso. – Obrigada. Posso responder amanhã? Preciso...
– Conversar com sua mãe e pensar no assunto. Eu sei – abanei a mão, mostrando que estava tudo bem.
No fim das contas, não sentia que tinha feito algo errado, e sim bom. Prim sempre foi dócil e gentil. Era impossível não se simpatizar por ela. A aparência infantil que sempre teve foi trocada por uma expressão madura, atenta e responsável. O tipo de expressão que uma criança não deveria ter.
Os últimos tempos não afetaram só a mim e Peeta, mas mudaram a alma boa de uma criança.
Já na manhã do dia seguinte, Prim apareceu na porta de minha casa com a resposta positiva e fomos direto para a farmácia. Estava impressionada com como ela sabia de algumas coisas até mesmo melhor que eu. Aquilo tinha saído melhor do que a encomenda.
– Peeta? O que houve para você me chamar tão repentinamente? – perguntei espantada.
Prim tinha aparecido na farmácia, dizendo que era um caso de vida ou morte e eu deveria encontrar Peeta em sua casa. Deixei-a tomando conta e corri.
– Olhe como ela foi rápida.
Ao ouvir a voz, meu corpo inteiro congelou. Era como se não conseguisse andar e, se me empurrassem, do chão não passaria.
– Presidente Snow queria conversar conosco, .
– E façam o favor de repetirem para o amigo bêbados de vocês – disse em tom de desprezo. – Sente-se, querida .
Se alguém tinha que ser desprezado aqui, era ele. Snow era magro demais, alto demais e branco demais. Seus dedos eram longos e finos, contudo o que dava medo em toda sua aparência era o seu bigode fino – não me pergunte por que. Apenas era – e seus olhos de cobra, que davam a impressão de captarem qualquer movimento.
Fiz o que ele falou, depois de alguns segundos que gastei para me manter sã.
– A que devemos a honra de sua visita? – perguntei, forçando a gentileza.
– Vocês dois sabem, oras – ficamos calados. – Orin viu Katniss cruzar o Distrito Doze. Quero saber onde ela está.
O tamanho do nosso choque era indescritível. Como assim a menina voltou e já sumiu? Sem ninguém saber!
– Não há como nós sabermos, Presidente.
– Ah, não? Ela aparece, fica no distrito por dez minutos sabendo dos riscos e não mantém contato com ninguém?
– Não seria conosco que ela falaria – tentei ajudar.
– E nem com a família dela. Meus Pacificadores falavam com a família Everdeen antes de mandar Primrose chamá-la, Bluebonnet. Só me diga onde ela está e acabará tudo bem.
Se por “bem” ele chama de mortos, ok.
– Mas nós não sabemos... Não temos por que esconder!
Presidente Snow deu um grande suspiro, levantou-se e andou de lá para cá.
– Vocês ainda vão contar – disse sombrio. – Foi uma visita agradável. Não se esqueçam de assistir aos anúncios de Capitol.
Sem mais nem menos, o homem saiu da casa de Peeta, deixando-nos plantados e sem reação do lado de dentro.
Não sabíamos o que era mais assustador: o fato de ele ter se recusado a acreditar ou de ter nos dado um recado que só saberíamos ninguém sabia quando. E tínhamos certeza de que não podia ser coisa boa.
Alguns dias tinham se arrastado. Aquela agonia e insegurança de que algo é oculto de nós e só poderemos saber daqui mais dias... Odeio esperas. Principalmente quando é sobre meu futuro e provavelmente minha vida.
É de se esperar que, quando alguém tem sua vida nas mãos, você só quer adiar ao máximo para saber qual será o seu fim. Porém, para mim e Peeta, não é bem assim que funciona. Passamos pelos Jogos, sabemos que eles são capazes de coisas piores e por isso, quanto mais sabermos do que nos acontecerá, melhor.
Tínhamos palpites. Passávamos praticamente o dia todo criando teorias e discutíamos sobre elas toda noite.
– Eles não podem fazer mal a vocês. Panem ama os dois. Peeta, você é o loverboy e ... Teve uma das melhores performances durante os Jogos. Um símbolo.
– Haymicht, isso não vai importar de nada se eles tiverem a verdade e soltarem-na – falei. – Se disserem que Katniss fugiu mesmo e não morreu, será questão de tempo até ligarem os fatos e entenderem que Peeta e ela fingiram – ponderei. – Até certo ponto.
– , não comece com isso agora.
– Desculpe se isso será impossível de esquecer, loverboy.
– Podemos voltar ao foco? – perguntou Haymicht. – Não posso imaginar o que eles lhes tenham reservado. Na teoria, vocês estão intactos.
Uma risada sarcástica saiu da nossa boca.
– Eu disse “na teoria” – ele reforçou.
– Não temos nada concreto. Não tem como nos prevenir – derrotado, Peeta largou o corpo no sofá.
– Eles podem forjar uma morte para vocês dois... Matá-los e dizer que morreram em um acidente como Katniss. Seria um ato esperto da parte deles e Panem cairia fácil. Menos aqueles que já estão em rebelião.
– Isso é um pensamento – concluí. – As revoluções continuam?
– Sim. Várias pessoas aqui do Doze já sabem, mas são muito...
– Covardes para tomarem parte.
– Exato.
– E o que podemos fazer? – Peeta perguntou.
– Aproveitem o tempo de vocês. Ninguém sabe o que acontecerá daqui alguns dias, então eu diria para fazerem de tudo, o melhor que podem – o olhar de Haymicht se tornou... Terno. – Vocês dois têm as diferenças, agora muito maiores do que antes. Esqueçam-nas e aproveitem.
Olhei para baixo, pensando bem nas palavras de Haymicht. Ele nunca tinha sido tão... Profundo assim. Normalmente, falaria qualquer besteira, como beber até o último segundo. Mas isso... Até eu que o conheço estou surpresa.
Logo, olhei para Peeta. Parecia que ele pensava a mesma coisa que eu. Devagar, ele moveu sua mão e pegou a minha. Estava tão quentinha e macia. Tive que apertar.
Eu amava Peeta. Podia ter meus ataques de raiva contra ele, mas o amava mais do que queria matá-lo. E Haymicht tinha razão... Devíamos aproveitar o tempo juntos.
Isso me fez pensar. Todo o meu ódio era real? Quer dizer, se eu mesma matasse Peeta, conseguiria viver com isso na cabeça? Matar a única pessoa que amei... Não acho que ficaria viva por mais que uma semana e, se ficasse, minha cabeça estaria pior do que já está.
Saímos de Haymicht em silêncio e fomos para minha casa. Algo naquela conversa nos fez mais unidos e eu queria ficar com ele desde já.
– ... – estávamos deitados na cama, prontos para dormir, mas algo não deixava. – Haymicht está certo.
– Era o que ele teria feito, se tivesse a chance – falei depois de pensar. – Não acha que pode ser pior? Caso... Um de nós vá primeiro que o outro.
– Seria mais doloroso, sim, contudo não me arrependeria de nada. Teria você ao meu lado até o último segundo.
Nisso, ele tinha um ponto.
Abracei-o mais apertado. De repente, lágrimas tomaram meus olhos, mas fiz força para não chorar.
De uma vida que eu chamava de boa, passamos por tanta coisa que já não sei mais como elas aconteceram e se algum dia chegará a ser igual como foi.
– Acho que... – ele se sentou, apertando-me um pouco, animado com alguma coisa. – Lembra-se da minha promessa? , devemos nos casar.
– O... quê? Peeta, olhe em que situação estamos... Não podemos fazer isso.
– Devemos aproveitar ao máximo, não é? Eu lhe prometi uma coisa e não vou morrer antes de cumpri-la.
Bom, isso se eu aceitasse.
Mas eu não era tão idiota assim.
– Não era nessa situação que eu queria isso, porém, se isso for me colocar ao seu lado até o último momento...
– Bluebonnet, você me daria a honra de passar os últimos momentos de minha vida ao seu lado, como seu marido?
– Não preciso nem pensar duas vezes.
Sem esperar muito tempo, dentro de dois dias, Peeta e eu estávamos casados.
Não tínhamos feito nada demais nem tinha sido completamente oficial. Se fosse, o Edifício da Justiça teria uma cópia do certificado e, bom, não somos idiotas ao ponto de deixar uma pista daquelas para Capitol.
Pedi a Magde, a filha do prefeito que sempre tinha sido minha amiga, para que arranjasse um certificado de casamento, então eram poucos que sabiam do nosso matrimônio: Madge, Haymitch, a família de Peeta e Prim.
Tínhamos tido uma pequena cerimônia na casa de Peeta. Vestimo-nos melhor. Quem nos juntou oficialmente foi Madge. Depois, tivemos uma pequena janta.
Foi depois desse jantar que eu estava nervosa. É normal ter uma refeição depois do casamento, mas depois disso... Era comum que o casal dormisse junto. Porém, não do jeito que durmo com Peeta, se é que fui clara.
Fomos para minha casa, agora nossa, logo após a ceia.
– Minha esposa – o sorriso dele era o mais sincero e feliz desde que retornou dos Jogos. Aquilo me fez ter um frio na barriga bem gostoso. – Sonho em lhe falar isso desde que a conheci.
– Pode repetir quantas vezes quiser. Gosto de como soa – sorri terna.
Peeta me pegou pelos braços, carregando-me até o quarto.
Antes de decidirmos nos casar realmente, conversamos sobre o “after dinner”. O menino tinha sido extremamente fofo quando disse que não precisaríamos seguir a tradição. Afinal, já tínhamos quebrado muito dela mesmo. Nem tinha cogitado a ideia. Não porque sou pervertida – antes que soe como se fosse –, mas, se estávamos casando justamente para aproveitarmos o tempo que teríamos juntos, qual o motivo de não fazer tudo de uma vez?
Mesmo com a explicação, continua soando como se eu fosse uma pervertida.
Beijei seu pescoço, enquanto era carregada, e fui delicadamente depositada na cama. Fui fitada por alguns longos segundos.
– Desse jeito, eu fico completamente sem graça – já estava.
– Quero deixar seu rosto gravado na minha memória. Hoje em especial – deu-me um selinho. – Tem certeza de que quer continuar?
Assenti devagar.
Então foi tudo bem delicado. Acho que ele nunca me tratou daquele jeito, como se eu fosse uma pluma que poderia ser arruinada a qualquer instante. O garoto me beijava com um desejo indescritível. Se tivesse recebido beijos daqueles antes, certamente não seríamos virgens. Era o tipo de beijo que me deixava gritando por vontade e por mais.
Devo admitir que doeu, contudo não por muito tempo. Tínhamos entrado em sintonia e até então não pensava em mais nada. Só nele.
Peeta era meu e eu era dele.
Os dias iam se passando, semanas, e nada de anúncios novos. Sempre sobre a mesma coisa ou algum recado sem importância de Capitol. Por essa razão, não tínhamos do que reclamar, mas sabíamos que, mais cedo ou mais tarde, algo faria nosso mundo virar de cabeça para baixo.
Não podíamos agir como um casal propriamente dito fora de casa. Não perto de Pacificadores. Fora isso, nunca pensei que podíamos chegar o mais próximo possível de quem éramos antes de ir para os Jogos. Isso está incluído que não falávamos mais sobre Katniss e combinamos que ficaríamos longe de qualquer problema que ela poderia causar.
– Peeta? – abri a porta da padaria. O menino logo apareceu. – Encontrei Haymicht no Hob e ele disse que devíamos passar um tempo na casa dele hoje.
– Anda solitário? Nunca pensei que veria Haymicht assim – riu, abraçando-me pela cintura.
– Você não sabe como ele é... – sorri pensativa. – Encontro-o lá?
– Sim. Não preciso fechar a padaria hoje, então provavelmente chegarei mais cedo que você.
Concordei e fui embora, indo para a farmácia. Prim estava se saindo muito bem ali e, devagar, coloquei Madge para me ajudar. Ela nunca gostara de política e definitivamente não gostava de Capitol. Então, quando comentei que estava precisando de uma ajudinha, fez festa para se voluntariar. A farmácia estava indo bem, ficando no estado que meus pais deixaram devagar, e eu já tinha tudo pronto, se caso algo acontecesse comigo.
Saí de lá um pouco depois do pôr do sol. Estava escuro e um pouco frio e, se não estivesse no Distrito 12, diria que alguém me espiava. Sentia isso pelo que aprendi da arena e, ainda mais que estivesse perto de casa, ninguém gostava daquela sensação.
Decidi passar em casa primeiro para pegar uma garrafa de vinho que Haymicht ia gostar. Abri a porta, acendi a luz e as próximas coisas aconteceram muito rapidamente para acompanhar.
Vi dois Pacificadores voando para cima de mim e por pouco que não me pegaram. Tentando desvencilhar, acabei derrubando várias coisas, como o cabideiro ao lado da porta e uma mesa de enfeite com as flores que estavam no vaso em cima dela. Meu chão estava molhado e cheio de cacos de vidros, enquanto me debatia nos braços de um deles. Dois contra um era covardia e fui pega totalmente desprevenida.
Levei um soco na barriga do outro, porém fui rápida o suficiente para chutar as genitais do rapaz. Como castigo, levei outro soco, mas na cabeça, que me desnorteou. Um pouco zonza, tentei entender o que estava acontecendo.
– , você ainda tenta? – conhecia aquela voz. Era Orin. – Podemos resolver isso na paz. Vamos? Afinal, é exatamente por isso que estou aqui – tentou fazer piada.
– Você não faz jus ao seu cargo – praticamente cuspi.
– Eu não perguntei se faço ou não – deu-me um tapa ardido na bochecha. – Vamos logo com isso.
Tinha dito isso para os outros dois Pacificadores que me seguravam. Em questão de segundos, estava amarrada na cadeira da cozinha.
– O que você quer? – perguntei por fim.
– O que eu quero? Está mais para o que Katniss quer.
– Já disse que não sei da menina. E, se soubesse, seria a primeira a delatar.
– Aquela que deixou o espaço aberto para você reatar com seu loverboy? Aprenda a convencer, Bluebonnet. Você e ele casados... Não é? Quem diria que é a mesma daquela menina que meses atrás estava quase estrangulando o rapaz.
– Katniss é uma covarde. Fugiu e deixou para trás o único motivo pelo qual se voluntariou dois anos atrás. Graças a ela, minha vida é uma merda. Você realmente acha que, quando falo que vou matá-la, é só fingimento?
– Claro. Para que acreditar numa coitadinha? Fizemos isso dois anos atrás e olhe a desgraça que virou Panem. Se tiver alguém aqui que sabe onde ela está, é você.
– Eu... Não... Sei... De... Porra... Nenhuma.
– Hoje você saiu do Hob e foi para a padaria – assenti. – Saiu de lá de mãos vazias, mas com um sorriso no rosto... – ele gargalhou como se tivesse graça naquilo. – Apenas meia hora depois sabe quem apareceu? Katniss.
– E o que eu tenho a ver com isso?!
– Seu maridinho conversou com ela.
As palavras dele ecoaram na minha cabeça pelo que me pareceram horas. Peeta tinha me prometido. Era um trato... Não podíamos falar nada dela, sobre a menina, ou sobre o que ela queria.
– O quê?
– Você parece surpresa, querida – o tom foi irônico. – Não vê como parece suspeito? Você entra na padaria, conversa com Peeta e logo depois o rapaz está conversando com Katniss.
– Mas eu não... Nós não...
– Posso limpar sua ficha, sabe? É só me dizer onde a garota está e sou capaz de limpar seu futuro de agora em diante. Aquela vida medíocre que você teve aqui nesse lixo de distrito pode finalmente voltar ao normal.
A oferta era tentadora, se eu tivesse a informação que ele queria, e sabia que o homem estava blefando. Afinal de contas, se eu soubesse de algo, acabaria como uma avox ou morta por ter a escondido e não ter contado antes.
– Não sei o que Katniss quer, o que anda fazendo, o que vai fazer e nem onde está. Eu realmente queria ajudar, mas sinceramente não posso.
– E se... – Orin se moveu até pegar algo dentro de sua veste. – Isso refrescasse sua memória?
Ele segurava um vidrinho com o pior pesadelo da minha vida: a aranha da arena, a mesma. Patas finas, pequena e de grande abdome.
Remexi-me, completamente indefesa na cadeira, como se pudesse me mover de verdade. Meu ato só serviu para rirem de mim, enquanto eu caía de lado com a cadeira.
– JURO que não sei nada sobre ela – era a primeira vez que tinha mostrado fraqueza e desespero desde o começo da conversa.
– , , ... – sacudiu a cabeça, voltando a guardar o vidrinho no bolso. – Assim você não me deixa escolhas.
Antes que pudesse perguntar o que faria, recebi outro chute no estômago, mais dolorido. Enquanto me contorcia de dor pelo chão, ouvia os três falando entre si.
– Apaguem-na. Tapem sua boca também. Não sabemos ao certo quanto tempo isso tem efeito.
Sem poder reclamar, tive uma fita na minha boca e vi algo roxo ser injetado pela minha veia. Em torno de segundos, estava apagada.
Estava ensolarado. Era um dia quente aqui no Doze e, conforme andava na rua, não encontrava ninguém. Tudo estava intacto como deveria estar, mas não encontrava ninguém nas ruas, dentro das casas... Aquilo era estranho.
Continuei andando pelo distrito e finalmente vi duas pessoas. Aproximei-me e quis vomitar. Reconheceria aquela trança em qualquer lugar, aquelas costas e o cabelo loiro.
Era Katniss, mas Peeta também estava lá.
Os dois falavam normalmente, como se nada estivesse acontecendo. Riam e se tocavam amigavelmente, como bons e velhos colegas. Assim que me viram, Peeta apontou para mim e sinalizou algum outro lugar. Ao olhar, fui pega por uma pedra enorme que foi jogada no meu rosto.
Acordei completamente zonza, ainda na posição desconfortável, presa na cadeira da cozinha. Não importava meu esforço, minha visão continuava sem foco e meu corpo, completamente dolorido. Sem poder falar nada, continuei ali, do único jeito que me restava. Não conseguia tirar o pensamento da aranha que Orin tinha no bolso. Aquilo trazia memórias que eu duramente tentava bloquear.
Nem contei quanto tempo fiquei no chão da minha casa, quando Peeta finalmente apareceu por lá.
– ? – ouvi a porta abrindo. – ? – seu tom mudou provavelmente ao ver a bagunça na frente da casa. – Haymicht! – gritou o outro antes de adentrar a casa. – !
Ele pegou a cadeira e a endireitou, desamarrando-me depois.
– Isso pode doer – referia-se à fita. Aquela seria a mais leve do dia! Como as depilações da minha equipe de preparação, foi bem rápido. – O que aconteceu?
Não respondi de primeira. Tentei me levantar, mas logo me encurvei de dor. Peeta tentou me ajudar, porém não conseguia suportar a ideia de tê-lo me tocando ainda. Estava me sentindo traída e literalmente o saco de pancadas de Capitol.
Haymicht entrou em casa e, ao me ver, aproximou-se, como não deixei Peeta fazer. Fui levada ao sofá, recebi um copo de água, uma toalha molhada para os machucados e espaço.
– O que houve, ? – Haymicht perguntou.
– Orin – quase sussurrei. – Ele trouxe a aranha... Ele a deixou bem na frente do meu rosto... Disse que ia deixar minha memória fresca...
– , o cara não vai fazer nada – Haymicht garantiu.
– Se depender dele, é capaz que amanheça morta! – gritei nervosa, apontando para Peeta.
Aquele muro que tinha criado com tanto esforço depois dos Jogos tinha sido, de certa forma, abalado.
– O que eu fiz?
– Ah, pelo amor de Effie. Apanhei porque você achou que bater um papo com Katniss não ia abalar nada!
– Você falou com Katniss? – Haymicht praticamente voou nele. – Não sabe como isso é arriscado? Precisava de provas?! Devia saber que, se fossem descontar em alguém, Peeta, não seria em você. Afinal, o objetivo é afetá-lo pelos outros.
Ele ficou em silêncio. Estava com tanta raiva que não tive nem tempo de pensar no lado dele, em seus motivos.
– Tentei mandá-la embora, mas ela disse que precisava me pedir um favor e, se desse, me contaria algumas coisas que estavam acontecendo.
– Que belo reencontro! Por que não foram ao Hob? – fui irônica.
– A garota disse que era importante.
– E por isso teve que ouvi-la? Tem coisas maiores que isso, Peeta! Nunca vai aprender? – Haymicht soltou. – , o que Orin fez?
– Perguntou onde ela estava, fez ameaças, bateu-me com mais dois Pacificadores e ele mesmo me contou que você tinha falado com ela. Peeta, sabe que quebrou uma promessa! Tínhamos combinado de não nos envolvermos mais ainda com isso! E o que você fez? Piorou tudo.
– Não era minha intenção... Se a menina tivesse dito onde estava, iria logo delatar.
– Não minta de novo! – esganicei. – Não tente me enganar... Você se sente como se estivesse em divida com ela. Nunca faria isso. Continue assim que daqui a pouco estarei morta.
– Onde eles a machucaram? – meu tio perguntou antes que Peeta pudesse dizer alguma coisa.
– Cabeça, estômago e injetaram alguma coisa roxa que me fez apagar.
Naquela noite, fiquei o mais longe possível de Peeta, bem junto de Haymicht. Além de tio, esse era uma espécie de pai para mim, a única família que me restou.
– ... Vocês são casados... Deviam discutir isso cara a cara.
– Se eu for discutir com ele agora, se o cara não sair morto, sai machucado.
– Sei que está com raiva. Também não entendi por que Peeta arriscou daquele jeito, sendo que ele sabia que algo de ruim aconteceria.
– Tínhamos prometidos não entrarmos mais ainda nos assuntos dela. Também tenho curiosidade em saber o que a garota está fazendo, por que fugiu e onde está, mas sei as consequências que isso traria. Se quisesse morrer, teria ficado na arena.
– Queria saber o que a menina disse a ele. De certa forma, até pode ser bom para nos protegermos.
– Proteger como? Entregar o corpo e a alma para Capitol?
– Soa estranho, eu sei, mas devemos saber todos os lados.
– Não sei se quero saber – desviei o olhar.
Não disse mais nada porque ouvimos a porta bater. Já sabíamos quem era antes de ouvirmos qualquer coisa.
– ... Por favor, fale comigo.
Eu mesma fui abrir a porta de Haymitch e o deixei entrar. Ele era meu marido, apesar de burro. Peguei sua mão e a apertei, recebendo um abraço apertado em seguida.
– Desculpe. Eu não queri...
– Sh – parei-o. – Esqueça isso.
– Lindo o momento – a voz cínica de Haymicht quebrou nosso momento. – Peeta, diga a conversa que teve com a Garota em Chamas.
– Acabei de dizer que não sei se quero saber dela.
– , sem ataques de ciúmes.
– Não são ciúmes, Haymitch. Não sei se quero saber, já que, quanto mais informação disso tenho, mais chances de ser ameaçada possuo. Capitol me tem na mão quando se trata disso... Sabem todos meus pontos fracos – encolhi-me, completamente indefesa. – Não quero ver aquela aranha... Nunca mais, por favor...
Haymicht e Peeta se entreolharam e depois olharam para mim com a maior cara de pena que podiam ter. Os dois sabiam como era ter uma memória da arena.
Os dois decidiram não falar nada... Por um momento. Devo admitir que, por mais que tenha sido sincera quanto a não querer me envolver, de certa forma, já estava envolvida demais. E, se houvesse alguma informação que pudesse jogar para Capitol, estaria mais do que satisfeita.
Nunca pensei que ficaria bem em fazer mal a alguém. Quer dizer, eu não faria, se ela não tivesse me envolvido nisso de uma forma tão drástica. De um jeito ou de outro, queria que a menina sofresse tanto quanto eu estava sofrendo.
E era exatamente por isso que não gostava da pessoa que aquela Bluebonnet, agora Mellark, tinha se tornado. Eu não sabia se tinha me tornado a coitadinha ou se estava me fazendo de uma.
– Não teria notado a presença de Katniss, se ela não tivesse quase me derrubado. Estava no porão da padaria e disse que precisava ser rápida – ele contava. – Tinha voltado para checar a família. Estava pensando em um meio de deslocar todos até onde estava.
– Que é...?
– Ficou uns tempos na floresta, vivendo por lá e andando em direção ao antigo Distrito 13.
– Então...
– Ele existe – Peeta confirmou nossa dúvida.
– Deve haver um motivo sério para que Capitol esconda a existência dele de todo o resto de Panem – Haymicht pensou.
– Isso ela não me disse. Falou que soube dos acontecimentos após a saída dela... Disse que sente muito, .
– É claro que ela sente.
– E que espera que um dia possa perdoá-la por tudo que a fez passar. Sente muito pelos seus pais também...
– Tem mais? – quis encurtar o assunto.
– Não.
– Ótimo – levantei-me devagar por sentir um pouco de dor e fui em direção à porta. – Preciso dormir... O dia foi longo.
Peeta se levantou prontamente para ir comigo, sempre ao meu lado. Abraçou-me e praticamente me carregou até em casa. Sabia que ele estava com o maior peso na consciência pelo o que acontecera comigo.
O rapaz foi para a cama comigo e ficamos lá, agarrados, em silêncio, sem olhar para a cara um do outro.
– Desculpe, . Parece que não consigo mais acertar com você.
– Esqueça isso, Peeta. Sério. Só não me prometa mais nada... Cansei de promessas.
“Não cumpridas”, completei na minha cabeça.
O garoto ficou em silêncio. Não respondeu o que eu disse, mas sabia que, na cabeça dele, promessas eram feitas diariamente. Fossem elas sobre mim ou não.
– As coisas vão mudar de agora em diante... Depois de hoje – afirmei.
– Vão – ele foi sincero. – Arrependo-me por isso.
– Peeta, é sério. Chega – falei, querendo acabar com o assunto anterior. – Seja lá o que aconteça, se for para passarmos separadamente, preciso deixar claro que o amo. Muito.
– Sempre, . E vamos dar a volta por cima, como sempre fizemos.
Olhei-o, sorri e o abracei fortemente. Sentia-me segura em seus braços e o calor que o menino emanava era definitivamente gostoso – algo que eu podia chamar de lar.
Recebi um beijo que me fez pedir por mais – o segundo desde a última vez que o recebi. E, a partir daí, estávamos repetindo a noite de núpcias.
Surpreendentemente, nossas vidas foram poupadas por bastante tempo. Meses tinham se passado e não houve mais ameaças nem sinal de Katniss. Eu estava começando a me acostumar com a vida pós-arena, aprendendo a me controlar quase que por completo. Sempre tinha a ajuda de Haymicht ou Peeta, que pareciam sempre mais fortes que eu quanto a esse aspecto.
Conforme o tempo passava, ficava preocupada com os Jogos que estavam chegando. Seria a mentora de dois tributos e tenho certeza de que não tenho a capacidade de mantê-los vivos. Afinal, mantive-me viva por conta própria e por pura sorte. Nada além disso. E tinha outro motivo pelo qual minha preocupação aumentava, mas isso não podia ser verdade nem devia ser.
Enfim, as regras do 75° Hunger Games deveriam ser outras por ser o ano do terceiro Quarter Quell, porém mudaram – obviamente por minha causa – e o Quarter Quell tinha sido adiado para o ano seguinte. De fato, não estava nada curiosa pelo o que inventariam naquele ano.
Faltava exatamente um mês para o 76° Hunger Games e, como sempre, éramos obrigados a ver o anúncio que Capitol dava na TV. Estava com Peeta e, claro, Haymicht assistindo à mais nova bobagem. Como sempre, começava com a destruição do Distrito 13, a história que nos levou a participar da diversão dos canalhas, e finalmente o presidente Snow.
Esse cara me dá arrepios.
– Saudações, Panem. Venho nesta data de hoje começar a contagem regressiva do terceiro Quarter Quell! Como todos já sabem, é normal aparecermos com regras novas e diferentes do que estamos acostumados. Sinto-me em posição de dizer a mais nova mudança empolgante! Não haverá colheita esse ano – houve um momento de silêncio em que todos nós nos olhamos. – Os tributos serão os dois primeiros ganhadores de cada distrito. Sem mais mudanças a serem ditas, saúdo-os novamente e aguardo ansiosamente para o próximo Hunger Games!
Assim que a tela da TV ficou preta, meu mundo caiu. Tinha ouvido bem? Olhei para o lado e vi Haymicht com a mesma expressão que eu, senão pior. Ele só pegou a garrafa inteira de uísque e a virou goela abaixo. Olhei para o outro e pude perceber que Peeta tentava falar comigo, mas não conseguia escutá-lo.
O pior presente que já recebi? Minha vida. Não era possível que tinha que dar tudo errado assim.
Meu pior pesadelo e ele se repetiria... Isso deveria ser contra as regras, e não falo por mim mesma. Sei que até mesmo os ganhadores dos distritos profissionais nunca desejam voltar. Quer dizer, no começo, aparecem com toda aquela pinta de “vou trazer orgulho ao meu distrito e blá, blá”. Quando veem, apenas no fim, que são instrumentos de Capitol, assim como todos os outros eles estão mortos desde que ouviram os nomes na colheita.
Eu tentava não me abalar mais que já estava. Quando andava pelo Doze, não precisava reparar bem para ver que todos os olhares de pesar estavam em cima de mim. Uma menininha me deu o sinal de luto uma manhã, obrigando-me a segurar as lágrimas. Uma coisa que ando fazendo muito, ultimamente.
Tentava me mostrar um pouco mais forte, mas, quando estava sozinha, quebrava-me em mil pedaços. Haymicht bebia mais. Era impossível ter uma conversa com ele, por mais que elas fossem necessárias.
Sabia que, dessa vez, eu não passaria. E, se tivesse alguém digno de ganhar essa coisa, seria Haymicht. Pela segunda vez, ganharia um Quarter Quell!
Peeta sempre estava lá para me dar o máximo de apoio que podia. Claro. Era a única coisa que podia fazer. Sempre dizia que eu sairia dessa e mais um monte de bobagens, que ele lutaria para me manter viva e esses negócios de sempre. Entendo as intenções dele... Mas, pensando no lado racional, o rapaz ainda tem uma família que se importa com ele e Peeta deveria se focar neles e protegê-los, enquanto tinha tempo, já que eu... Tinha data marcada.
E, se voltar para a arena fosse o único dos meus problemas (dentro daqueles que já estou envolvida pelo rolo da fuga de Katniss, consideremos como apenas um), estaria menos preocupada.
Tomei um banho e fui para o quarto, olhando-me no espelho. Enquanto me olhava, senti meus olhos marejarem ao me virar e notar o maior dos meus problemas.
Chorei copiosamente, da mesma forma que chorei quando soube das notícias que acabariam comigo de vez até Peeta aparecer.
– ... Shh – seu tom de voz era de pena. Ele também se sentia mal pela situação. – Eu já disse que você voltará para casa.
– Peeta – chamei-o, depois de controlar o choro. – Se esse fosse o maior dos meus problemas...
– O que houve então?
Suspirei fundo, sentindo as lágrimas voltarem.
– Estou grávida.
O rapaz manteve silêncio enquanto eu chorava mais um pouco, olhando minha imagem no espelho mais uma vez. Percebi que ele passou o olhar para minha barriga, notando a pequena saliência dali.
– Ao mesmo tempo em que estou extremamente feliz, acho que nunca estive tão triste ante. – passou a mão pelo rosto, nervoso e tenso.
Joguei-me na cama, sem deixar de chorar mais.
– Nada funciona para abortar – soltei.
– Você está louca? Meu maior sonho é ser pai de um filho seu!
– Pai de um filho que nunca vai nascer porque eu estarei morta!
– Cale a boca, ! – ele gritou. Uma das poucas vezes que o cara realmente subia a voz para mim. – Nós daremos um jeito. Nessas condições, você não pode ir para os Jogos.
– Você conhece as regras. Não importa a condição do tributo, ele participará. E outra: suponhamos que dê certo e eu não vá aos Jogos... – até tinha sentido minha barriga gelar. – Como explicaremos um filho que misteriosamente saiu de mim? Dizer que ele é seu não funciona, pois você é apaixonado pela falecida Katniss. Se qualquer pessoa de Capitol ficar sabendo da minha gravidez... É aí mesmo que vou para arena e não volto mais.
Minhas palavras o atingiram de uma forma impressionante. O silêncio predominou como se edstivesse procurando alguma forma de nos safar dessa, mas nada funcionaria. Já tinha pensado em tudo. Ou eu morreria primeiro, ou o bebê.
Quando não tinha argumentos, suspirou pesado, esfregou o rosto e se jogou na cama. Fiz meu caminho até ele e nos abraçamos fortemente. Devo admitir que nem, se estivesse na situação de ir aos Jogos, ficaria contente sobre ter um filho. Teria que aproveitá-lo até os doze anos e por longos seis anos ficar torcendo para que ele/ela não seja escolhido. E, com meu sangue e o de Peeta, as chances definitivamente não estariam ao favor.
– Desculpe.
– Não é sua culpa, . Não sei como você ainda fica comigo... Só lhe trouxe problemas. Nunca quis isso para você. Sou o completo culpado de tudo isso acontecer com você.
– Posso ter tido certo ódio por você um tempo, mas nunca deixei de amá-lo. O sentimento sempre esteve aqui, guardado por um tempo, porém sempre aquecido. Então, se você teve culpa em me arrastar, também tive por não me manter longe.
– Devia saber que pela sua segurança. Deveria ter ficado longe. Tentei, mas...
– É impossível. – respondi por ele.
Sem mais nenhuma palavra, adormecemos dividindo a mesma dor.
– Você tem a perfeita capacidade. Já fez isso antes e pode vencer, Haymicht. Eu não tenho futuro nenhum, caso esse milagre aconteça para mim.
– Futuro nenhum? – ele soltou uma risada mole. – Você só está carregando um filho.
– Que já está manchado pelo resto da vida. Acha que prefiro ver meu filho sofrendo por minhas atitudes quando eu poderia tê-lo poupado de tudo?
– E você acha que prefiro ver a única família que eu tive desde vinte e seis anos atrás se entregar assim? – gesticulava muito, visivelmente bêbado. – Mas é claro. Você só pensa em você. Como as coisas ficariam melhores sem você por aqui e todos os problemas acabariam! É tão difícil colocar nessa cabeça egocêntrica que você não é a fonte dos problemas, e que sem você aqui as coisas continuariam a mesma merda?
– E já parou pra pensar que, se eu não pensar assim, serão duas ou mais vidas perdidas ao invés de uma? Você e Peeta agem com super heróis para cima de mim, oferecendo-se a cada minuto para tomarem cada decisão e passo por mim. Uma vida é melhor do que duas, Haymicht.
– Diga-me como serão as coisas quando você morrer e se eu ganhar.
– Você e Peeta arranjarão um jeito de pegar Katniss e entregá-la para Capitol. Ou, de preferência, encontrarão um jeito de passarem por cima deles e acabar com toda essa repressão. A vida se tornará mais fácil se isso acontecer.
– Claro, porque falar é sempre mais fácil – bêbado, ele girou a taça de uísque como se eu estivesse gozando.
Suspirei derrotada e decidi parar de discutir com ele naquele estado. Dei as costas, ouvindo-o me chamar, e simplesmente segui em frente.
O dia da colheita se aproximava cada dia a mais. Eu podia ver que muitas pessoas não tinham o mesmo comportamento desde que a colheita não existiria para eles e, ainda assim, dava para ver a humildade de cada ao me olharem. Claro que estavam felizes por não perderem outras duas pessoas do distrito, mas acabariam perdendo de qualquer jeito. E, por eu já saber o gostinho da arena, isso que lhes dava mais pena.
Já tinha orientado Prim e Magde sobre tudo na farmácia durante minha ausência (permanente) e tinha me programado para estudar o resto dos livros de meus pais. Se fosse para voltar, que dessa vez eu saiba todos os tipos de ervas que possam me curar e/ou alimentar.
Peeta também estava cada dia mais tenso. Sempre pensativo, calado. Definitivamente não era o Peeta que eu gostava e conhecia. Estava pintando mais também e suas pinturas geralmente não eram dos melhores temas. Apenas um quadro foi realmente bonito – gostava de todos. Eram muito bons. Era apenas o tema que não me agradava muito –: uma mulher carregava um bebê, ambos sorrindo um para o outro. Peguei-me pendurando o mesmo no nosso quarto um dia, sendo um dos únicos em que vi meu marido sorrindo verdadeiramente.
Em uma noite, apenas uma semana antes da colheita, cheguei a casa mais cedo que Peeta, como de costume. Fui até a cozinha, fiz um chá e me sentei, observando ao meu redor, pensativa. Na próxima semana, estaria indo para Capitol naquele horário. É... Inacreditável.
Decidi ignorar o pensamento e fui em direção ao quarto. Precisava de um banho o mais rápido possível para ver se os pensamentos iam embora com a água corrente. Assim que cheguei ao andar de cima, encontrei em cima da pequena bancada uma rosa branca em cima de um papel dobrado perfeitamente.
Congelei na hora e esperei o ataque. Dessa vez, estaria preparada! Mas sabe-se lá quanto tempo esperei algo que nunca viria. Ainda na defensiva, fui em direção à rosa branca. Sempre gostara delas, mas desde que conheci Snow... Não sei se tenho a mesma simpatia por elas.
A rosa era tão perfeita, tão viva e branca que parecia ter vida por si própria. Devia ser falsa. Não era possível. Deixei-a de lado e dei atenção ao bilhete. Deparei-me com uma escrita refinada e bela, bem formulada em uma estrutura claramente organizada. O que li me deixou bem perturbada.
Querida ,
Antes de lhe dizer os reais motivos de minha escrita, devo-lhe desculpas. Não pude deixar de receber a triste notícia de um evento o qual a envolve de meses atrás. Orin agiu sem ordens e já foi punido por isso. Saiba que meus soldados só devem agir de acordo com o que eu mando e, bem, sei que não teve nenhum envolvimento com o aparecimento de Katniss pela segunda vez no Distrito Doze.
Sem mais delongas, escrevo-lhe para desejar um bom Hunger Games. Minha nova regra foi criada especialmente para você e seu distrito. Portanto, espero que entenda a gravidade de nossa situação.
Quero deixar claro que não tenho nenhuma intenção em feri-la – se caso isso acontecer, a imprudência será sua. Sabe minhas intenções com o snhor Mellark e o tipo de informação que quero com ele. Também sabe que farei qualquer coisa para consegui-la.
Aconselho fervorosamente que se despeça daqueles que ainda lhe restaram e agradeça a Peeta por tudo que anda acontecendo com sua inocente pessoa. E pense bem sobre suas escolhas. Por enquanto, Peeta é a razão por endereçar essa carta a você, mas tudo depende de qual lado você está.
Considere o recado dado.
Cordialmente,
Presidente Snow.
Obs: Parabéns pelo casamento.
Não é de hoje que sei que todas as coisas que andam acontecendo comigo tem Peeta como fonte principal, mas ler assim... Devo admitir que me deixou um pouco fora dos limites da razão. Eu sou a única que leva porradas nesse rolo por algo que estou longe de ser culpada.
Larguei a carta e a flor exatamente onde as encontrei e segui meu caminho. Não demorou para que Peeta chegasse e me encontrasse encarando um ponto qualquer do quarto, pensativa.
– Isso estava aqui? – ele perguntou.
Apenas mexi os olhos para ele e assenti com a cabeça. Peeta andou pelo quarto sem dizer nada.
– Em uma semana, estarei a caminho de Capitol.
– Não vamos falar disso agora...
– Então quando? Porque vai chegar um momento em que sairei daqui e, bom, como Snow disse, preciso me despedir daqueles que ainda me restam.
– Ignore a carta. Não vale a pena.
– Mas ele tem razão e não posso ignorar algo que também sei que é verdade. E tem mais: se você estiver escondendo algo para proteger Katniss, por favor, peço que conte tudo aos Pacificadores, porque prefiro morrer de uma vez ao invés de ser torturada.
– , não tem nada que eu possa fazer para que a coloquem fora disso, como deveria ser...
– Exatamente – cortei-o. – Então que tal desembuchar tudo que sabe, já que vamos acabar todos mortos? Como disse, prefiro uma morte rápida a ser torturada.
– Já lhe disse antes que não tenho informações a mais. E combinamos que não diríamos nada do que sabemos.
– A essa altura do jogo, já não sei mais de que lado estou. Por culpa de vocês dois que estou indo pela segunda vez para o lugar que eu nunca mais queria voltar. E o que posso fazer quanto a isso? Agradecer-lhe.
A expressão de Peeta mudou de cansado e sem paciência pela discussão para arrependimento e tristeza. Podia jurar que vi seus olhos marejando.
Meu marido me deu as costas e saiu do quarto, deixando-me sozinha.
Todos estavam vestidos com a melhor roupa, olhando para o palco. A colheita podia estar feita, mas a tradição seria sempre a mesma. Effie estava em cima do palco com seu terno azul turquesa, lotado de flores roxas e amarelas. O prefeito também estava. Só faltava Peeta. Afinal, onde ele estava?
De certo modo, era bom ver Effie de novo. Senti falta dela. Podia ser bem ingênua, porém era uma ótima pessoa e bem engraçada. E ela disse que sou mais legal, simpática e educada que Katniss.
Era bom ter pessoas do meu lado. Há.
Sem mais delongas, ela começou a colheita.
– De acordo com a nova regra desse maravilhoso Quarter Quell, chamo a primeira vencedora do Hunger Games do Distrito Doze: Bluebonnet!
Completamente fria, andei até o palco e parei exatamente no lugar que parei no ano passado.
– Uma salva de palmas! – como sempre, ninguém bateu palmas. – Pois bem, chamo aqui o primeiro vencedor do Distrito: Haymicht Abernathy.
O silêncio reinou e não vimos movimento dele na fileira, para logo ouvirmos:
– Eu me indico como voluntário! – era Peeta.
Minha expressão foi impagável. Eles visivelmente tinham combinado aquilo e não disseram nada?
Effie o mandou subir e eu ainda estava em choque. O que exatamente estava acontecendo ali?
– Os tributos do Distrito Doze! Peeta Mellark e Bluebonnet! E que as chances sempre estejam aos seus favores.
E, assim, a cerimônia se dava como encerrada.
Como não tinha ninguém para me despedir, fiquei sentada na sala do Edifício da Justiça feito uma idiota, brincando com meus dedos e prevendo os eventos pré-morte.
Primeiro, trem até Capitol. Dois dias de luxo extremo e, dessa vez, eu iria me esbaldar. Depois, encontro com a Equipe de Preparação. Estava preparada para ouvir como meu cabelo continuava ressecado, mas dessa vez tiraria qualquer sujeita de minhas unhas. Deixaria que me embelezassem e ainda reclamaria, se não gostasse do trabalho. Estava prestes a morrer. Ia fazer tudo que nunca fiz. Por fim, veria Cinna de novo, outra pessoa de quem estava com saudades. Seria vestida com a roupa mais bonita e extraordinária do Tour dos Tributos, mais uma vez.
E o Distrito Doze arrasaria mais uma vez no quesito roupas.
Quanto à ação na arena... O efeito seria o mesmo, mas o contrário para mim.
Reclamei pela demora, quando um Pacificador me tirou da sala até o trem. Entrei sozinha e provavelmente era a primeira. Sentei-me no sofá mais confortável possível e não pude deixar de aproveitá-lo, enquanto comia algumas frutas que tinham no vagão. Logo, ouvi vozes da porta e supus que seriam os outros.
– Por que vocês vieram juntos e eu fui escoltada por um Pacificador? Vocês demoram muito.
– ! – uma figura azul turquesa se pôs à minha frente. – É tão bom vê-la! É uma situação triste e deplorável, mas é muito bom ver você.
– Digo o mesmo, Effie. Senti sua falta – pude ver que seus olhos brilharam. – Devia ter vindo me visitar.
– Eu tentei, mas estive tão ocupada...!
Logo, a atenção dela foi tirada de mim para uma almofada que não combinava com os enfeites e ficou reclamando para ela mesma que sempre tinha que fazer as coisas por si quando queria que fosse perfeito.
Atrás dela, tinham entrado Peeta e Haymicht.
– Devo saber de alguma coisa?
Assim que acabei de falar, o som do trem ligando nos distraiu um pouco.
– Sente-se. É uma história longa.
De resumo, os dois tinham combinado que Peeta se indicaria no lugar de Haymicht por insistência de meu marido. O acontecimento não mudou nada, desde que um teria que morrer de qualquer jeito. Depois, Haymicht seria o mentor – algo que, de certa forma, fiquei feliz – e estavam bolando uma tática para jogarmos na arena.
Diferentemente do ano passado, era normal estar naquele trem, tirando a razão pela qual estávamos lá, mas bom estar com Peeta, Haymicht e Effie. Éramos simplesmente nós, então não precisaríamos fingir nada. A mulher quase caiu para trás quando eu e Peeta estávamos juntos. Foi mais engraçado ainda quando contamos que estávamos casados. Tinha ficado mais brava por não ter providenciado um casamento digno do que por não ter sido convidada. Outro motivo: ficávamos juntos mesmo... Todas as pessoas de Capitol ali dentro já deviam saber o que nós tínhamos um com o outro, então não havia problema. Bom, havia. Porém, tínhamos certeza de que não fariam nada agora. Deixariam com que os Jogos cuidassem de nós.
E, por fim, Haymicht era Haymicht, sempre bom de ficar ao lado e uma pessoa com a cabeça ótima quando se é para pensar em estratégias e coisas do tipo... Pessoa perfeita para um mentor. A única coisa triste era saber que ele perderia uma pessoa e, independente de quem fosse, ele sofreria.
– Uau – ouvi Peeta dizer. – E eu que achava que você não podia ficar mais bonita.
Tinha acabado de sair do chuveiro – estava cheirando a lírios – e tinha escolhido um vestido maravilhoso que havia no nosso quarto.
– Já que vou morrer, quero aproveitar meus dias com o luxo que nunca tive – mas que também nunca pedi.
Falando assim, eu estava praticamente me vestindo para morrer.
– Você realmente acha que vai morrer?
– Claro. Não sei como escapei viva no ano passado.
– Porque tem capacidade. Sem patrocínio nenhum, você conseguiu passar a perna em Capitol.
– O que me dá certeza de que, dessa vez, não passo.
– Não seja pessimista, ...
– Não sou pessimista. Sou realista.
O silêncio predominou quando eu o esperava deitada na cama, enquanto ele se trocava.
– Pergunto-me como será na arena. Digo... Eu e você – Peeta parou de se trocar e olhou para mim. – Não podemos agir como um casal quando você é apaixonado por uma suposta falecida.
– Eu poderia ter seguido em frente.
– Com seu tributo? Não sei se Capitol é tão ingênua até esse ponto. E outra: todos parariam de venerá-la.
– Daremos um jeito.
Do mesmo jeito que resolvemos os outros problemas?
Resolvi ignorar e bolar alguma coisa por mim mesma, já tendo a noção de que meu casamento acabava no dia em que entraria na arena.
No jantar, enquanto Effie conversava comigo sobre cada estilo de Capitol e como eu estava fazendo tudo errado ao usar o vestido, Peeta e Haymitch sussurravam a ponto de que eu não conseguia pegar quase nenhuma palavra.
Eu disse quase.
– Vão me deixar a par da fofoca ou simplesmente fingir que não consigo escutar que estão discutindo sobre a tão esperada tática?
Tive que cortar o assunto com Effie, batendo na mesa com minhas mãos. Peeta riu e falou que ainda bem que eu não tinha enfiado uma faca na mesa.
– Então escute bem. Andei pensando em algumas coisas para vocês, mas prestem atenção.
Então tínhamos um plano. Deveria estar feliz por isso, mas não é lá o que eu chamo de solução de problemas.
Não que eu conseguisse pensar em algo melhor.
Era por isso que gostava de Haymicht. Ele pensava muito e muito melhor que muita gente, para o espanto de alguns.
Enfim, na nossa situação, qualquer coisa estava boa.
Em resumo, eu teria ficado muito amiga de Peeta, mas apenas amiga. Já tínhamos tido aulas juntos, como disse na minha entrevista, e depois que ele me manteve viva – não pude deixar de dar uma pequena bufada quando ouvi isso –, nossa amizade cresceu. Desde então, sou a pessoa de confiança que ele tem desde Katniss.
Tivemos que inventar historinhas para deixar essa farsa fácil de se acreditar. Isso seria o mais próximo um do outro que chegaríamos. Só tínhamos a permissão de mostrar os verdadeiros sentimentos caso um de nós estivesse no maior caso de morte. Eu não poderia mostrar um sinal de fraqueza e deveria me sentir orgulhosa por estar voltando. Tinha me tornado uma espécie de garota imbatível pela minha performance ano passado e tinha que mostrar que eu continuava a mesma, como se os Jogos não tivessem me mudado.
Peeta explicaria por que se voluntariou: não teria sido para ir comigo, mas, se eu morresse, morreria também, claro. Era o nosso trato. Ele achava que ir no lugar de Haymicht seria sua forma de agradecimento a uma pessoa que o manteve vivo e que de certa forma esperava o mesmo. Estava triste por ter acabado na arena ao meu lado, o que o levava ao mesmo caso de seu ano, tirando que não estaria apaixonado por mim.
Iríamos lutar juntos, como uma aliança e, se por sorte, no final acabarmos vivos, faríamos o que Katniss começou: matar-nos juntos. Capitol nos mataria de um jeito ou de outro. Era nossa forma de revolução.
Essa era nossa pequena tática. Pelo menos até Effie aparecer com o itinerário, o que fez mudar algumas coisas.
Vimos todos os outros tributos antes de dormir. Não pude deixar de notar Johanna Manson, do Distrito Sete. Todos sabiam sua história, até aqueles que não assistiram aos Jogos que ela participou. Fingiu ser uma garotinha indefesa o tempo todo, porém estava apenas enganando a todos. Era uma matadora profissional, sem dúvidas. O jeito com que ela acabava com os outros tributos era mórbido e cruel. Outro tributo que de fato chamou atenção foi Enobaria, do Distrito Dois. Claro, para ter vindo do Dois, só podia fazer parte dos Profissionais. E fez jus ao grupo ao abrir a garganta de outro tributo... Com os próprios dentes. E, por último, não só por talento, Finnick Odair. O rapaz é o mais bonito que já tinha visto na minha vida. Amo Peeta e ele é lindo, mas não possui a mesma beleza que Finnick. Ele é o perfeito estereótipo das aulas de história antiga que costumava ter, aqueles deuses que eram bem poderosos e andavam pela terra em forma de humanos maravilhosos. O rapaz do Distrito Quatro se mostrou poderoso quando recebeu um tridente de presente e ainda fazia redes com nós inacreditáveis. O outro tributo de seu distrito teve voluntários, assim como no meu. Annie Cresta deveria ter ido para arena, mas uma tal de Mags se voluntariou. Annie tinha ficado extremamente louca da cabeça – dava para ver – com os Jogos. Depois, sua filmagem só provou: viu o parceiro do distrito ser decapitado na sua frente.
– Vocês repararam na cara de quando vimos o Distrito Quatro? – Effie quis brincar.
Logo recebi um olhar duvidoso de Peeta e um piadista de Haymicht.
– Ei, tem mais uma fita aqui! – mudei de assunto, pegando o objeto e já colocando na TV.
Fiquei estática ao ver o ano aparecer no aparelho. Vinte e seis anos atrás. Virei-me, já certa de quem se tratava.
– Tire – Haymicht mandou em um tom nada amigável.
Sem nem pensar duas vezes, obedeci quase que com pressa.
O clima ficou frio e bem desconfortável após o acontecimento e tive vontade até de admitir que minha feição realmente mudou quando Finnick apareceu, mas não adiantaria. Effie se mostrava bem desconfortável, porém logo sorriu forçado para nós e disse que deveríamos descansar, pois não tinha dito o novo itinerário e que deveríamos estar preparados para um grande, grande, grande dia.
Nós concordamos e Peeta foi o primeiro a sair, olhando-me como se perguntasse se eu não iria também. Lancei um olhar dizendo que precisava ficar mais um pouco.
Haymicht tinha o olhar frio e vazio. Mal tinha respondido alguma coisa, mas girava o copo de uísque que tinha na mão.
– Desculpe. Se eu soubesse, não teria colocado. Deveria ter lido antes.
– Não se preocupe com isso. Você deve assistir... De repente, tem algo que possa aprender. Eu só... Já tenho minhas memórias. Acho que você entende.
Não só eu, mas provavelmente todos os vencedores dos outros distritos.
– Sim. Obrigada por ter feito qualquer coisa lá que o trouxe de volta. Não sei o que seria sem você, tio.
Um pequeno sorriso estampou o rosto dele.
– Digo o mesmo, pequena – sorri de volta. – Não tão mais “pequena”... O que está pensando em fazer quanto ao bebê?
– Tenho algumas hipóteses – sentei-me novamente, começando. – Acho que, assim que chegar a Capitol, vão descobrir e achar um jeito de entregar toda nossa farsa. Ou vão me matar, ou matar meu filho. Se não for em Capitol, a arena fará isso.
– Se pudesse, ia no seu lugar – ele pegou minha mão e a apertou.
– Eles estão fazendo isso justamente para acabar comigo. Você não conseguiria – dei de ombros, como se não me importasse. – Espero que o plano dê certo.
– Vai dar, se vocês jogarem de acordo – ficamos em silêncio, pensando nas próprias coisas. – Você deve dormir. Peeta provavelmente está esperando e Effie definitivamente a quer pronta para o grande, grande, grande dia.
– Ela sempre foi assim, não foi? – ri.
– E duvido que mudará – rolou os olhos. – A mulher precisa afrouxar o corpete e beber um pouco. Não sente a tensão dela presa quando ela fala?
Ria, enquanto assentia com a cabeça.
Dei um beijo de boa noite em Haymicht e fui até meu vagão, encontrando Peeta na cama, acordado e esperando por mim.
– Precisava me desculpar – dei de ombros pelo olhar dele.
Troquei-me e logo estava ao lado dele na cama.
– Então você curtiu o cara do Quatro.
– Quem? Finnick? – brinquei. – Eu? De jeito nenhum...
– Até sabe o nome dele! Aposto que não sabe o nome do rapaz do Cinco.
– Peeta... Quem está com ciúmes agora? – ri. – Eu pelo menos tenho motivos!
– Que ciúmes?
Ri, pegando a mão dele e colocando na minha barriga. Aquilo foi o suficiente para até a respiração dele mudar. Abraçou-me mais forte, depositou a mão dele ali de um modo mais confortável e me deu um beijo na testa.
Não sabia quanto tempo tinha se passado, mas não conseguia dormir por nada. Não eram pesadelos – até porque, com Peeta junto de mim toda noite, pesadelos quase nunca tomavam minhas noites. Também não estava nervosa por estar voltando. Já tinha colocado na cabeça que meu fim seria ali, então não tinha por que ficar nervosa.
Meu problema de insônia era nada mais, nada menos que curiosidade.
Haymicht me contou o que passou na arena. Eu fui a única com quem ele compartilhou esse tipo de informação, mas, ainda assim, seus detalhes eram tão poucos que não dava nem para se formar uma imagem. Sabia que tinha sido bem brutal e, de certa forma, triste, mas não sei nada detalhadamente.
E aquelas palavras: “Você deve ver... De repente, tem algo que possa aprender” não saíam da minha cabeça. Admito que não queria assistir para aprender algo, e sim para saber o que houve com ele, que, além de terem acabado com qualquer pessoa com quem o cara se importava, o fez virar do jeito que é.
Pensei mais um tempo antes de manobrar pela cama e sair do abraço de Peeta.
Para chegar à sala, tinha que passar pela cozinha, então aproveitei para pegar um bando de comida. Não que eu estivesse com fome. Só sentia que precisava comer. Principalmente chocolate. Coisas boas assim não tinham no Doze.
Deixei tudo preparado para a fita rodar e, assim que vi o ano aparecer, novamente pausei. Deveria mesmo ver aquilo?
Por fim, estava dando play.
Haymicht era incrivelmente bonito há vinte e seis anos. Meu coração se apertou quando consegui ver meus pais na colheita, quando o nome de Haymicht foi chamado. A dor de minha tia tinha sido grande. Assim que a cerimônia acabou, dava para ouvir um grito desesperado e Haymicht se virou e sussurrou um pequeno “Eu amo você” antes das portas do Edifício da Justiça se fecharem.
Durante a exibição dos tributos, ele tinha sido o pior vestido, o que não lhe dava muita chance. Sua reputação não era a das melhores, mas conseguiu um pouco de simpatia na entrevista. Tinha recebido uma nota boa dos Idealizadores e sua fala marcante na entrevista tinha sido que não via diferença entre os Jogos normais e o Quarter Quell que ele estava participando, com o dobro de tributos, e que eles eram tão estúpidos quanto.
Assim como Katniss, ele conseguiu algo da Cornucópia antes de fugir para o meio da floresta. Com a faca que tinha conseguido, praticamente se jogou na frente de três Profissionais. Três. E uma faquinha.
Podia jurar que o cara estava louco por fazer isso, mas foi extremamente bem ao conseguir se safar de dois, matando-os. Porém, com o terceiro não foi bem assim. Qualquer pessoa podia jurar que Haymicht morreria ali. Estava completamente sem chances! Porém, o Profissional caiu morto em cima dele, pois tinha sido atingido pelas costas. Uma dos dois tributos femininos do Doze o tinha ajudado e era claro que, a partir de então, formaram uma aliança. Em uma conversa, decidiram andar até onde fosse possível, caso houvesse algo útil para eles. A menina quebrou a aliança quando ela queria voltar, mas ele não. Era óbvio que não queria matar Haymicht, então simplesmente foi embora.
Fiquei completamente intrigada quando ele estava sozinho na beirada de um morro, completamente sozinho. Tinha chutado uma pedra para o desfiladeiro e, ao se virar, a mesma pedra tinha voltado e atingido sua cabeça.
O que diabos tinha acontecido ali?
Fui obrigada a parar o vídeo e voltar várias vezes para ver se entendia.
– Sabia que acabaria vendo – ouvi a voz do próprio na porta da sala. – Isso é um campo de força.
– O quê?
– É como eles mantêm os tributos em um perímetro sem ter a preocupação de alguns fugirem.
Fiquei estática, olhando Haymicht que nem uma boba.
– Eu já estive perto de um?
– Várias vezes. Você, Peeta e principalmente Katniss.
– O que aconteceria se um de nós tivesse passado por ali?
– A pedra voltou... Então, de certa forma, vocês voltariam também, mas não sei se é bom arriscar. Vai ver que eu não quis tentar.
Assenti, só ligando a filmagem de novo com a permissão dele.
Só estava sobrando ele e mais alguns tributos nesse ponto do Jogo e, da mesma forma que aconteceu com Katniss e Rue, aconteceu com Haymicht. Tinha encontrado a menina que tinha aliança prestes a morrer, sendo atacada por pássaros que abriram a garganta dela. Depois de matar alguns e espantar outros, ficou com ela até morrer.
Ele e uma menina do Distrito Um eram os finalistas. A luta tinha sido incansável. Ambos estavam bem feridos: Haymicht tinha furado o olho dela. Um grito horrível e doloroso, mas não foi isso o que a fez parar. Conseguiu desarmá-lo e golpeá-lo no estômago com o machado que carregava. Sangrando e bem fraco, ele fez seu caminho até o abismo do campo de força e só consegui pensar em uma coisa. O cara disse que não quis tentar saber o que iria acontecer caso pulasse, mas era óbvio que ele tentaria se não tivesse mais opções.
A menina do Um jogou o machado na direção da cabeça dele, mas Haymicht foi rápido o suficiente para abaixar e ficar naquela posição até o machado voltar, coisa que só ele sabia que ia acontecer. A menina logo morreu, surpresa por ver a própria arma contra ela. Desse jeito, Haymicht foi o vencedor.
– Antes que eu pudesse voltar para casa, Presidente Snow matou minha mãe, meu irmão e sua tia.
– Porque você descobriu o...
– Campo de força, é.
Isso que tinha praticamente o forçado a ser fechado, bêbado e ter se isolado do resto do Doze. Também o fato de que os tributos de quem ele foi mentor morreram todos até dois anos atrás. Mas, claro, isso não foi culpa dele. O difícil era colocar isso em sua cabeça.
A única coisa que pude fazer foi abraçá-lo.
– Levantem-se, levantem-se, levantem-se! Hoje será um grande, grande, grande dia!
Quis socar Effie quando ouvi sua voz pela manhã. Não me lembro bem quando voltei para o quarto depois de assistir a Haymicht no segundo Quarter Quell, mas tinha sido razoavelmente tarde.
Novamente, aprontei-me igual a uma princesa, ainda sem seguir os parâmetros de Capitol.
Assim que eu e Peeta cruzamos a porta que nos levava até o café da manhã, já encontramos Effie e Haymicht.
– Pois bem, aí estão vocês! Os anúncios são muitos!
– Acalme-se, mulher! Os dois mal falaram “bom dia”! – Haymicht brigou.
Deixamos os dois discutindo coisas bobas, sem deixar de ouvir. Tínhamos que nos controlar para não rir das coisas que um respondia ao outro, cada vez se tornando mais e mais besta. Por fim, Effie se rendeu e continuou comendo, sempre olhando para nós, caso acabássemos.
Quando isso aconteceu, ela nos conduziu até outro vagão: uma simples sala repleta de sofás macios.
– Estamos atrasados com o itinerário! Não acredito que me deixei levar ontem à noite... – sacudiu a cabeça para si mesma. – Chegaremos à minha Cidade dos Sonhos logo amanhã de manhã e faremos o mesmo procedimento de qualquer outro Hunger Games. Dúvidas até então?
– Nossos estilistas são os mesmos? – perguntei. Seria legal se Cinna tivesse permanecido.
– Sim. Cinna continua seu estilista, . Assim como Portia é sua, Peeta.
Sorrimos em resposta.
– Agora, a partir da apresentação de todos os tributos, teremos um tipo de festa... Está mais para um encontro com os tributos. Não sei se devem saber, mas os dois últimos Idealizadores chefes sofreram acidentes gravíssimos e, bom... Acabaram perdendo suas vidas – a doce Effie altamente ingênua. – E, de acordo com o novo, é importante que um tributo conheça o outro.
Podia saber como seria isso. Todos os tributos olhando para Peeta e eu em sentido de nos matarem ou simplesmente por estarem à frente dos “afortunados do Doze”.
– Quem é esse novo Idealizador? – Haymicht perguntou.
– Plutarch Heavensbee.
Algo no olhar dele me fez ficar curiosa, mas não tive mais tempo de pensar sobre isso.
– Depois teremos pequenas mudanças que direi conforme elas chegarem. E, por fim, diferentemente dos anos anteriores, as entrevistas serão em conjunto. Como foi a sua quando ganhou, Peeta. E, por fim, todos os tributos ficarão no palco assim que a entrevista de vocês acabar – assentimos. – Haymicht, consegue trabalhar com isso?
– Claro. Só preciso de tempo para mudar a tática que tínhamos.
Então, pelo resto do dia, Haymicht só aparecia para pegar um pão e mais meia garrafa de uísque. Pelo fim do dia, ele estava apagado em seu próprio vômito.
– Estou com medo do que pode acontecer quando descobrirem que estou grávida – sussurrei para Peeta. Já podíamos ver os primeiros rastros de Capitol.
– Sua equipe de preparação é fiel a você. Não dirão nada. E, quanto a Cinna, tenho certeza de que fará o máximo para esconder qualquer coisa aparecendo – sussurrou de volta, abraçando-me de lado. – Vai acabar tudo bem, .
Fechei os olhos, querendo acreditar no que ele dizia. Se eu passasse limpa até a arena, não tinha mais nada que pudesse fazer.
Assim que saímos do trem, sorrimos para os habitantes de Capitol como se estivéssemos extremamente felizes em vê-los. Eram acenos para cá, acenos para lá, beijos mandados, sorrisos perfeitos até entrarmos no Edifício dos Tributos e sermos separados um do outro.
Os comentários que ouvi de minha equipe foram melhores assim que me viram. Depois de abraços e muita euforia em me verem de novo, comentaram que estava cheirando a lírios e que minhas unhas estavam boas, mas podiam estar impecáveis.
Fui mandada novamente à sala deles, completamente nua, e deixei que fizessem o resto.
– , você andou ganhando uns quilinhos? – Octavia perguntou, enquanto depilava todas as partes de meu corpo.
– Er...
– Espere... Isso não é barriga de gordura – Flavius parou de cuidar do meu cabelo para falar. Até porque duvido que eles acreditassem que tenho muito o que comer no Doze. – , você está grávida?
Temendo o pior, não consegui guardar as lágrimas para mim mesma. Logo, a sala inteira estava chorando.
De acordo com eles, uma pessoa maravilhosa como eu ter tido a honra de ganhar o 75° Hunger Games, ir para casa, seguir em frente com a vida e ser obrigada a voltar para a arena grávida ainda por cima era a pior das sortes.
Assim que Venia controlou a si mesma, foi capaz de controlar o resto da equipe assim que parei de chorar. Fiz todos prometerem que não diriam nada pelo menos até quando eu morresse.
Deixaram-me impecável para Cinna no silêncio pesado.
Estava sentada, esperando-o sem saber o que pensar. Cinna faria de tudo para ficar ao meu lado. Eu só estava com medo pelo que podia acontecer com ele.
Assim que ele entrou, abraçamo-nos e, durante a primeira hora em que jantamos, contei o que andava acontecendo no Distrito Doze e ele me disse o que sabia sobre Capitol e o que estavam fazendo para conseguirem Katniss.
Ele não era tão ousado, mas, por ter sido o estilista dela e terem esses momentos privados, assim como tenho com ele, é claro que desconfiaram.
Cinna me deu os parabéns por ter ficado com Peeta. Disse que tínhamos feito a coisa certa. Estava até sorrindo, como se tivesse uma coisa boa enfim acontecendo. O sorriso dele se foi assim que, mais uma vez, chorei ao dizer que estava grávida.
Ele não disse nada sobre isso. Ao contrário de todos os outros que sabiam, e isso que era bom. Não ouvir possíveis soluções era melhor do que ouvir mentiras.
– A roupa que tenho vai tampar qualquer coisa, . Não se preocupe.
– No que você me transformará dessa vez?
– Mineira.
Quase caí para trás. Se tinha uma coisa da qual nosso distrito estava cheio, era das roupas inspiradas em mineiros.
– Sério?
– Sim. Ao invés de fazer analogias com o carvão por mais um ano seguido, resolvi transformá-la em um nível diferente de mineira.
– E isso é...?
– Venha se vestir.
Assim que estava pronta, fiquei encantada com meu visual.
– Se mineiros se vestissem assim, eu começaria a trabalhar na mina!
A roupa era preta como carvão e tampava tanto meus braços como minhas pernas, completamente colocado nas mangas e meus seios, assim como as pernas. Para diferenciar, havia uma espécie de saia que não marcava minha pequena barriga avolumada e detalhes na própria roupa que se abriam como se eu usasse um sobretudo, tendo pedaços de tecidos caídos ao lado de minhas coxas em estampas de fogo.
Meus olhos estavam inteiramente pretos com alguns resquícios de vermelho bem delicados e meus lábios, pretos.
– Amei. – rodei em frente ao espelho, quase sem acreditar nas maravilhas que aquele homem fazia. – Peeta estará vestido igual a mim?
– Sim.
Não consegui imaginar o motivo, mas, se eles achassem melhor assim, que assim fosse.
– E não terá fogos dessa vez?
– Sem fogos – ele sorriu.
Tinha sido uma boa ideia não sermos tão chamativos assim. Já tínhamos toda atenção pelos Jogos passados. O Distrito Doze já era o querido de Capitol e a tática dos estilistas dessa vez não era para chamar atenção com coisas extravagantes, e sim ter toda atenção por não ter nada extravagante.
Como Cinna e Portia imaginaram, toda atenção estava em nós por não termos nada que chamasse atenção e ser algo diferente.
Durante o caminho todo até a Praça Central, Peeta me fez rir para que parecêssemos mais amigos do que um casal. Então, enquanto nos mostrávamos, passamos o caminho todo rindo.
Assim que todos nós paramos, o hino de Panem acabou e Presidente Snow tomou os alto-falantes.
– Tributos, Vencedores! Eu e toda população de Capitol damos as boas-vindas a todos vocês! Espero que estejam tão animados quanto nós para o Terceiro Quarter Quell. Todos sabem as regras. Vinte e quatro entram. Apenas um sai – frisou “um”. – Feliz Hunger Games e que a sorte esteja sempre a seu favor.
Estremeci o discurso inteiro e tinha certeza que ele olhava para a nossa carruagem. Por mais que ele estivesse a metros de distância, eu simplesmente sentia.
Fomos levados até o local em que seria realizada a confraternização e, diferentemente de como imaginei, todos os tributos estavam conversando amigavelmente. Era lógico, no entanto. A maioria aqui são mentores e se conhecem de Jogos passados. Até Haymicht se confraternizava!
Provavelmente devíamos fazer isso... Achar alguém para nos aliar, de repente...
– , já chegou a experimentar os pães dos outros distritos?
Eu aqui pensando se devíamos ou não achar aliados, e Peeta me pergunta de pães?!
– Não... São diferentes?
– Sim. Via todos em livros que meu pai possui em casa, mas só quando vim para Capitol pela primeira vez que tive a chance de vê-los e prová-los. Lembra que vivia falando que queria conhecê-los?
– Claro. Você e sua fascinação por pães. – ri. – Pois então me mostre.
Durante bons dez minutos, Peeta me fez experimentar onze pães diferentes, enquanto explicava qual tipo de grão era usado e como mexiam na massa para que ficasse de determinado jeito.
– Se não é o casal do Doze! – a voz me fez tremer. Não de medo, mas definitivamente de choque mesmo.
– Não os chamaria de casal, Finnick. Estão bem mais para amigos... Tem que ver como não calam a boca. Falam o tempo todo! – Haymicht brincou.
– E Peeta só tem olhos para uma – entrei no jogo. – Já eu... Vários. – ri provocante.
Eu não acredito que estava flertando com Finnick Odair.
Na frente de meu marido.
– Pois é. Difícil não ficar sabendo. Sinto muito, Peeta – deu duas palmadas nas costas dele. – Digo a mesma coisa para você – virou-se para mim, com o olhar extremamente sexy. – Sua entrevista o ano passado foi no mínimo... Interessante.
E ele estava flertando de volta!
– Não é? Voltar para casa nunca foi tão bom.
– Sei bem como é – deu uma piscada para mim, obrigando-me a ver se meus joelhos ainda me seguravam em pé. – Bom, vou dar uma rodada por aí. Nós nos falamos depois... .
Assim que nos deixou, finalmente pude respirar normalmente. Peeta nem falava direito e tinha a mão fechada – sinal de que estava com raiva.
– Relaxe, Peeta. Sabe que só estava jogando como planejamos – Haymicht salvou minha pele. – Acho bom começarem a procurar aliados. Quanto mais pessoas que considerarem amigas, melhor. Escolham bem.
Dividimo-nos para que não passássemos nenhum tipo de pista que nos gostávamos, então me parei em um grupo com tributos do Dois, Nove, Cinco e Onze. Em nenhum deles, achei alguém bom o suficiente para nossa confiança. Era óbvio que Enobaria, a louca do Dois, faria alianças com o resto dos Profissionais e eu não queria nenhum deles comigo. Definitivamente, não dava pra se confiar neles.
Cansada de tanta conversa chata e entediante, fui até a mesa de comidas e peguei alguns petiscos. Procurei Peeta discretamente e, ao achá-lo, tive que fazer força para reprimir um sorriso. Ele era tão adorável enquanto sorria... Definitivamente, conseguia engatar em qualquer conversa e, principalmente, faze-la interessante.
– Sabe, se continuar olhando assim, as pessoas até acharão que vocês têm um caso.
Tinha sido pega de surpresa.
– Corte essa. Perder meu tempo com Peeta é desperdiçar a vida inteira.
– Qual é? Dava para sentir a tensão sexual reprimida quando vocês estão lado a lado.
– Isso é porque Finnick Odair estava conosco.
Johanna Manson parou por um instante e me olhou, escapando uma risada medonha por fim.
– Boa resposta, garota – soltei um suspiro de alívio. – Não sei o que ele viu naquela falecida, de qualquer jeito. Toda cheia dos não-me-toque.
Olhei-a bem. Algo me dizia que eu ia gostar muito dela.
– Ah, é. Esqueci você é o braço esquerdo dela, toda orgulhosa por pegar o lugar dela. Achei que puxa-sacos eram dos Distritos Profissionais.
– Até parece. Tive que falar algo que me manteria viva. Da mesma forma que você teve que fingir que não sabia usar um machado, quando na realidade mata melhor que um Profissional.
Tive que abrir o jogo.
– Acho que estou começando a gostar de você, Bluebonnet.
– Só manteremos isso entre nós.
– Por que manteria um segredo?
– Olhe ao redor. Por que acha que estamos aqui? Nós já pagamos nossa “punição”. Não devíamos voltar.
Ela parou de falar por um segundo e pensou. Por fim, olhou para mim e abriu um pequeno sorriso.
– Presidente Snow deve ser muito burro achando que colocar vinte e quatro crianças dentro de uma arena para se matarem vai parar revoluções de acontecerem.
Entendendo o que aquela resposta significava, sorri de volta.
Tinha conseguido uma aliada. Sentia isso.
O tempo foi se passando e acabei conversando com quase todos. Admito que eu e Johanna ficamos muito tempo juntas. Falávamos mais os defeitos dos outros e principalmente falávamos mal de Capitol e do presidente Snow. Acho que nunca estive tão feliz por esses dias.
Pegamos o elevador juntos: eu, Peeta, Johanna e Haymicht.
– Não sei por que não mudam o estilista do Distrito Sete. Todo ano nos vestem como uma árvore... A roupa é feia e nada original – enquanto falava, a mulher se despia. – Por que a minha não podia ser bonita igual à sua? Bonita roupa, afinal.
– Obrigada... – tinha ficado um pouco em choque por ela ter tirado a roupa do nada, mas entendi aquilo como um teste. Então ri, recebendo a mesma risada medonha dela.
Assim que estávamos no andar doze, podíamos ser nós mesmos de novo.
– Você realmente flertou com outro homem na minha frente hoje?
Haymicht ouviu e saiu em direção ao seu quarto, rindo.
– Peeta, você realmente se declarou para uma menina estranha em rede nacional, arriscou sua vida para salvá-la e a beijou? Uau, quer colocar na balança?
– Desde quando anda tão... Sexy assim? – ignorou minha fala. Dava para ver que ele estava um pouco... Tenso.
– Eu não sei... – provoquei, abrindo o zíper da minha roupa, deixando minhas costas nuas. – De repente, Capitol dá esse efeito em mim.
Peeta me abraçou por trás e fomos até nosso quarto.
Precisávamos ficar juntos o máximo que podíamos e enquanto tínhamos tempo.
Logo no café da manhã, Haymicht explicou que devíamos continuar procurando por aliados, qualquer pessoa que seja boa de nossa confiança.
– Johanna Manson já está na lista.
– Aquela louca? Tem certeza? – Peeta perguntou. – Você falou com ela a noite inteira. Nem viu as opções.
– Quer quem? Finnick? – provoquei.
– Ele é uma boa – Haymicht começou. – Um bom rapaz, meu amigão. É de minha confiança.
Fomos direto para o Centro de Treinamento e ficamos lá o tempo todo. Desde que todos tinham visto minha performance na arena e a de Peeta também e, bem, assistimos aos vídeos dos outros, não tinha por que emitir talentos. Porém, fiz de tudo um pouco. Nunca se sabe o que terá lá dentro. Saber de tudo um pouco era de fato uma necessidade.
Tinha ficado muito melhor com ervas medicinais e comestíveis. Estudá-las no painel altamente tecnológico dali era tão fácil quanto criar o próprio remédio. De relance, vi Peeta se entrosando com Finnick, dando-me uma vontade enorme de rir, enquanto mostrava sua habilidade em camuflagem que realmente era incrível.
– Garota, você é boa nisso – ouvi uma voz grossa e não muito jovem.
– Boa, é – outra voz, só que feminina. Não conhecia nenhum dos dois.
– Obrigada.
– Somos Beetee e Wiress. Do Três – apresentei-me também. – Definitivamente a livra de muito trabalho saber tudo isso aí.
– Meus pais eram donos de uma farmácia em casa.
– Eram?
– Morreram por um acidente ao misturarem coisas.
– Sinto muito – a fisionomia dos dois era duvidosa, no entanto. Como se soubessem que não tinha sido assim. – Já se perguntou se eles nos escutam?
Parei para prestar atenção a quem ele se referia. Acima de nós, tinham alguns Pacificadores e poucos Idealizadores. Mal prestavam atenção no que fazíamos.
– Na verdade, não sabia que eles ficavam por aqui antes da apresentação final.
– Podem ter mudado isso com as regras desse Quarter Quell também.
– Não acho que ficariam aqui de boa, sem uma proteção. E não chamo um Pacificador de proteção contra vinte e quatro Vencedores – falei.
– Olhe, a luz pisca – Wiress apontou discretamente para um ponto na parede e logo outros nos cantos da sala.
– Você acha que é...? – Beetee perguntou para ela, que só assentiu. – Interessante. Um campo de força serve de proteção para você, ?
Campo de força.
– Aquele aparelho é um campo de força?
– Definitivamente.
Fiquei conversando com os dois por mais um tempo e devo admitir que os achei bons de confiança, mas é difícil dizer quem é falso e quem não é. Porém, algo me dizia que esses dois não tinham nada de falso. Até porque, Wiress podia ser bem inteligente, mas era de fato louquinha.
Assim que decidi trocar de lição, fui para os nós. Novamente, nunca se sabe.
O que descobri com eles é que era horrível tanto para fazê-los quanto para desfazê-los.
Fui surpreendida quando Finnick apareceu do meu lado propondo uma troca. Ele me ensinava o que podia sobre os nós, contanto que eu lhe ensinasse algumas coisas de luta-livre. No momento, devo admitir que não estou na melhor forma de luta, até porque, quando se junta mais três pessoas maiores e mais fortes que você, não tem muito o que se fazer.
Ainda assim, concordei. Fiquei impressionada com a facilidade que ele tinha com nós. Por vir de um distrito cuja característica é a pesca, obviamente se sabe muito sobre isso, mas, de qualquer forma, o talento que ele tinha para isso era incrível. Até os mais impossíveis o rapaz conseguia.
Para a troca, até que eu mesma não fui tão ruim assim. Ensinei o que Haymicht tinha me ensinado e, se ele confiava em Finnick, eu também confiava. Com a proximidade, meu corpo ficou quase que estático quando encostava a ele. Era como se estivesse tentando destruir um pedaço de arte.
O resto dos dias até a apresentação final foram praticamente iguais ao primeiro. Normalmente, havia o flerte entre eu e Finnick, Johanna e eu falávamos mal de Katniss e conversava com Beetee. Porém, ter certeza de quem seria um bom aliado era algo impossível e, mesmo se tivéssemos, ainda assim não era sempre que minha opinião batia com a de Peeta ou Haymicht.
E, enfim, para nosso desespero, os últimos dias estavam ali. Logo, Peeta e eu esperávamos a vez para a apresentação aos Idealizadores.
Como sempre, a menina do Doze era a última. Enquanto meu parceiro estava lá dentro, eu pensava no que faria. Igualmente ao ano passado, eles não prestariam atenção em mim, então nem perderia meu tempo. O que podiam fazer era me dar uma nota dos dois extremos: alta ou baixa e nenhuma delas faria alguma diferença na situação em que estava. Tinha plena certeza de que as chances de eu ter patrocinadores eram poucas, ainda que estivesse Haymicht cuidando disso – e eu sabia que, quando o cara queria, ele conseguia –, então qual minha nota seria realmente não tinha muita diferença.
Mal percebi minha vez chegando. Pergunto-me o que Peeta tinha feito.
E, pela cara deles, eu sabia que não os agradou.
– Vamos adiantar as coisas por aqui, Bluebonnet – parei em frente a eles, quando Plutarch falou. – Diga-nos sobre Katniss.
– Ela morreu.
– A versão verdadeira.
– Ela fugiu.
– Pois bem. Para onde?
– Se eu soubesse, acha que estaria aqui? – vi-me repetindo as falas do ano passado. – Façam-me o favor? Dois, aliás. Se a querem tanto e me batem até perder a consciência por achar que falei com ela no Distrito Doze, por que não ficam por lá de uma vez? Assim não dependem de uma pessoa que não tem nada a ver para saber do paradeiro da fujona. E o outro: quando a encontrarem, matem-na.
– Sabe que é sua última chance de sobrevivência.
– Ouvi a mesma coisa o ano passado e olhe quem ainda está aqui? – tinha certeza de que brinquei com fogo aí. – E não sou idiota. Se soubesse, estaria tão morta quanto ela.
– ...
– Tenham um bom dia – interrompi-o. – Ah, e que as chances sempre estejam ao seu favor – imitei o mais perfeito sotaque de Capitol antes de sair.
Saí da sala tremendo, mas não era de medo. Adrenalina pulsava por minhas veias e eu mal acreditava que tinha literalmente desafiado Capitol a me matar. Eu só podia ter ficado louca.
Ao contar o desastre ocorrido e a besteira que disse, um silêncio fúnebre tomou conta da sala até Haymicht rir devagar.
– Você pode não gostar de Katniss, mas vocês duas têm algo em comum: adoram desafiar Capitol – bufei. – O que foi que você disse? Ouvi a mesma coisa...?
– ...No ano passado e olhe quem ainda está aqui – não pude deixar de rir também. – O que você fez lá dentro, Peeta? Eles definitivamente não estavam contentes.
– Pintei você no ano passado. Como você sobreviveu.
– Vocês três adoram um desafio. Não é possível! – Effie jogou as mãos para cima e saiu batendo os saltos.
Estava explicada a atitude dos Idealizadores quando entrei.
Apenas nos restando rir da pura desgraça que aquele dia tinha virado, todos nós – menos Effie – ríamos de besteiras daquela cidade.
O próximo dia era o último e queríamos qualquer motivo para continuar sorrindo.
– Esqueça todas as outras roupas que eu disse que eram bonitas, Cinna. Essa definitivamente ganha de todas – dei uma leve girada.
– Olhe isso – ele apareceu com um isqueiro na altura das alças do vestido. O que eu jurava ser apenas um detalhe, de repente se tornou em um tubo que fazia o fogo do isqueiro circular por todos os cantos do vestido em que ele passava.
– Nossa, enterre-me com isso – vi-me dizendo.
O vestido era um pequeno tomara-que-caia preto com as alças desse tubo que até então eram transparentes – um pequeno detalhe que deixava o vestido mais bonito. Assim que o fogo estava nele, eu definitivamente passei a amá-lo mais.
Cinna deixou minha maquiagem mais sexy também, devido à minha personalidade da entrevista o ano passado. Os olhos estavam em um preto provocante e os lábios, vermelhos para fazer o mesmo efeito.
– Se Caeser não pedir que gire, puxe assunto sobre a roupa dele até ele pedir a você. Promete? – assenti, estranhando o comportamento. – Seu vestido se transformará. As pessoas precisam disso. Pelo futuro melhor de Panem. Você faria?
– Claro – então finalmente entendi.
Eu seria quase um ícone da revolução e arriscaria minha vida por isso.
Momentos antes da nossa entrevista, pudemos assistir a dos outros tributos. A que mais me chamou atenção foi a de Finnick, e dessa vez não foi porque ele estava maravilhoso com aquele smoking azul marinho e cabelo perfeito, mas foi o que disse. Quando suas perguntas acabaram, pediu permissão para dar um recado a uma pessoa especial. Capitol entrou em choque, porque, claro. Quem não gostava dele? Mas pelas coisas que ele disse, estava mais do que claro que havia uma pessoa no Distrito Quatro que significava sua vida e isso me fez ter uma maior simpatia pelo rapaz. Quer dizer, ele não era todo galanteador com todos porque queria. Era?
Capitol é repleto de egocêntricos.
– Aqueles que todos veneram, os vencedores por dois anos consecutivos, aqueles que mostraram que todos têm o momento de glória, chamo agora os tributos do Distrito Doze!
Eu e Peeta andamos até o palco, vendo a multidão gritar nossos nomes e as luzes praticamente nos cegarem. Sendo educado, ele me deu lugar para me sentar primeiro. Quando me sentei, mandei um beijo para a plateia que vibrou.
– Eles gostam de você. Viu isso?
– Sem querer ser modesta, Caeser, mas, a esse ponto, quem não gosta?
Eu tinha uma lista de nomes, porém eles não precisavam ficar sabendo.
– Uh! Ela é sempre assim, Peeta?
– Isso não é nem a metade. Devia ver em casa. As pessoas no Distrito quase beijam o chão em que ela pisa.
– Vencer deve ter sido uma coisa boa pra você, de fato – falou comigo.
– Claro! Além de estar viva, o Distrito Doze nunca tinha sido tão animado.
– Acho que já temos informações demais, – Caeser riu, levando a plateia junto. Fui obrigada a soltar uma piscadela antes que ele voltasse à entrevista pra Peeta. – Voltando ao momento da Colheita, não pudemos deixar de notar o seu ato, Peeta. Por que se voluntariou por Haymicht?
– Ora, ele me manteve vivo! Katniss tinha feito todo o trabalho. Tudo bem – o rapaz ponderou de um modo engraçado, fazendo todos rirem. – Mas ele estava através dela também. Senti-me no dever de fazer o mesmo por ele ao poupar a vida dele, quando poupou a minha.
– Ato de um corajoso homem! – o homem do cabelo azul e terno rosa cheio de gliter vibrou. – E você citou Katniss... – o clima ficou cheio de pesar. – Como está desde que...?
– Tento não ficar lembrando – sua expressão se tornou triste. – Claro que os bons momentos sempre estarão guardados e ela se foi em um ato heroico. É de se orgulhar por ter tido o único romance na minha vida.
– Único? – eram óbvias as olhadas que o apresentador trocava entre ele e eu.
– Eu e ele? – gargalhei. – Acredite. Eu tenho mais opções. Não vou me segurar em um só. Além do mais, nunca faria isso com Katniss.
– Acha que ela se sente orgulhosa de você?
– Claro! – era melhor se sentir mesmo! Estava indo para a morte no lugar dela. Se ela não se sentir... – Katniss sempre será meu exemplo.
– E o nosso também – terminou a parte “triste” da entrevista. – E o que rola entre vocês?
– Ela praticamente virou minha parceira de confiança. Katniss confiava muito em e, se era assim, eu também confio.
– Peeta me manteve viva durante o ano passado. Tenho uma dívida eterna com ele por isso. E sei que Katniss ia gostar, se Peeta tivesse uma companhia que ela conhecia.
Eu sentia que a entrevista estava acabando e nada sobre falar das roupas.
– E esse look, ? Fiquei sem ar assim que você entrou.
– Eu também! – rimos. – Cinna fez um ótimo trabalho – levantei-me e abri sua saia para mostrar mais os detalhes do fogo.
– Gire para nós.
Seria agora.
Girei com vontade e a próxima coisa que senti foi meu corpo ficar quente a ponto de estar queimando, mas sabia que Cinna não me queimaria viva. Então só esperei que acabasse.
Assim que aconteceu, reparei no que estava vestindo. O vestido preto tinha se transformado em um azul claro quase branco e sentia algo preso nos meus braços. Quando os abri, asas enormes tomaram grande parte do palco.
Eu era um mockingjay.
A plateia estava em choque de tão mágica que a cena tinha sido. Gritavam e pediam por mais uma vez e eu só podia fazer rir.
– Uau... Isso foi... Esplêndido. Não foi, pessoal?
Mais gritos.
Pela reação de Caeser, eu definitivamente tinha afetado algum ponto proibido.
– Bela roupa, . Cinna realmente fez um bom trabalho – o modo com que Peeta sorriu me fez ter certeza de que ele sabia que algo do tipo ia acontecer, mas agiu tão normal que a plateia realmente acreditou no elogio.
– Obrigada, Peeta.
– Esses foram os tributos do Distrito Doze!
Querendo acabar logo com nossa entrevista, chamou os outros tributos e todos nós trocamos um pequeno olhar. Como se tivéssemos combinados, todos demos as mãos e as levantamos. Para a plateia completamente burra e ingênua, aquilo não era nada mais que um gesto bobo para ganharmos palmas e mostrarmos nossa “força”. Mas, para quem entendia, aquilo era um claro sinal de revolução.
E as coisas ficariam piores a partir dali. Não só para mim, mas para Panem inteira.
Uma horas atrás.
– Esforce-se, . Vou dar um jeito de trazer você e Peeta para casa.
Com os olhos marejados, abracei Haymicht com todas as forças que tinha. Não queria soltar nunca. Sentia-me protegida.
– Prometa que não vai fazer nenhuma burrice, caso eu não volte – pedi convicta. – E, caso eu morra, faça de tudo para trazer Peeta. Capitol precisa cair e Peeta é a chave para a revolução continuar.
– Você é o ícone da revolução. Portanto, você vai voltar.
– Diga a verdade a todos, ache um jeito. Peeta precisará de ajuda – abracei-o de novo. – Amo você. Obrigada por tudo.
Assim que me soltei dele, fui para Cinna e Portia. Agradeci por tudo que eles fizeram para nós. Principalmente ao meu estilista, por ter se arriscado tanto por essa revolução e ter feito o melhor que pôde para que eu e Katniss tivéssemos uma aparência desejada.
Depois, abracei Effie, que estava guardando para não chorar.
– Pare de querer guardar o choro! Vou sentir muita falta de você, Effie – ouvi o chorinho fraco dela, enquanto respondia que eu tinha sido a melhor pessoa de um distrito de fora que ela já conhecera.
Ao me soltar, olhei para Peeta e não aguentei. Abracei-o tão forte que era capaz de me fundir a ele, sendo retribuída da mesma forma. Chorava tanto que mal conseguia falar.
– Eu amo você. Não importa a raiva que tive de você por todas as coisas passadas e não me importo que você viva falando que só estou aqui por sua causa. Estou contente que passei o máximo de tempo que pude com você – funguei. – Desculpe por querer estrangulá-lo o ano passado.
– Desculpe por fazê-la passar por isso. Nunca vou me cansar de dizer isso. Se acontecer alguma coisa com você, vou me sentir responsável. E, antes de morrer, vou buscar vingança. Amo você mais do que possa imaginar. Arrependo-me das coisas que já fiz para magoá-la. E digo: nós vamos sair dessa, juntos e vivos.
Sem querer desgrudar dele, foi preciso que Haymicht fizesse isso para que eu seguisse o meu caminho com Cinna e Peeta com Portia para a batalha final.
Cinco, quatro, três, dois, um.
A contagem regressiva acabou e fui jogada na água.
Assim que caí, notei que não era um simples lago. A água era salgada e se mexia violentamente. Nunca tinha visto o mar, mas aquela não era a melhor hora para isso nem para se estar no meio. Tentei me mover a ponto de que fosse mais fácil respirar, porém nadar naquilo era difícil. Muito difícil. Assim que conseguia manter a minha cabeça na superfície para tentar pegar ar, logo uma onda vinha com tudo para dentro de minha boca, resultando na minha falta de ar.
Os Jogos mal começaram e eu ia morrer por não conseguir nadar no mar?! Os Idealizadores deviam ter pensado nisso no ano passado!
Sem ar e sem forças para continuar tentando buscar oxigênio, sentia que estava afogando. Quase perdendo a consciência, ouvia o meu nome ao longe. Realmente devia estar pronta para morrer.
Prestes a ficar tudo escuro, senti um braço forte me puxar e algumas instruções, que não sei bem se segui, mas logo estava em terra firme e tossindo como nunca tossi antes. Quando recuperei a consciência e o ar, vi as pessoas ao meu redor: Peeta e Finnick.
– Sério que eu quase morri pela água? – estava brava.
– Nadar é trabalho dos fortes – Finnick fez piada.
– Oh, então quem foi o meu herói?
– Finnick – escondi um sorriso ao ver a expressão de Peeta. – Eu tentei, mas esse cara do Seis apareceu e, enquanto eu o matava, Finnick a pegou.
– Obrigada.
– Isso significa que temos um grupo, certo?
Olhei-o bem desconfiada. Fora da arena, ele era uma pessoa. Mas e dentro? Eu podia confiar?
Em um gesto magnífico, o rapaz levou as mãos ao cabelo e percebi uma pulseira que Haymicht estava usando até ontem.
– Claro.
De novo. Se Haymicht confiava, eu também.
Corremos o máximo que conseguimos, sempre bem atentos. Assim que formamos a aliança, vimos o outro grupo vindo até nós: os Profissionais. Não tínhamos outra escolha.
Paramos em um encontro de pedras bem escondido para descansar e pensar em algum lugar para pelo menos passar a noite. Assim que nos acomodamos, um paraquedas estava em nossa visão.
Definitivamente não era para mim ou para Peeta.
Finnick abriu o grande pacote e tirou de lá um tridente, o mesmo que ganhou os seus Jogos.
– Muitas pessoas morreram?
– O maior massacre de todos os antigos Jogos – Peeta praticamente sussurrou. – Bem mais da metade das pessoas se foi.
– Mais da metade? O quê? – para a primeira noite, aquilo era inacreditável.
– É. Mas muitos morreram na água também – Finnick acabou o assunto.
Eu seria uma delas, se não fosse por ele.
Afinal, por que o rapaz me salvou?
– Precisamos seguir em frente. Aqui não é um bom lugar para ficar.
– Onde seria...? – não foi bem uma pergunta o que falei. De fato, não tinha lugar seguro dentro da arena.
Sem dizer mais nada, seguimos em frente, à procura de um lugar melhor.
Finnick se mostrava digno de confiança até então, mas tanto eu quanto Peeta estávamos de olhos abertos para qualquer movimento em falso dele.
A noite estava caindo muito mais rápido do que esperávamos, o que só podia ser obra dos Idealizadores. O hino de Panem tomou o silêncio da mata e o seu símbolo, o céu. Logo, todos os que morreram apareceram. Ao total, não quis contar, mas perdi a conta quando passou de doze que tinham morrido. Nem vinte e quatro horas tinham se passado e mais da metade estava morta.
– Aqui parece um bom lugar – Finnick disse. – Alguém tem alguma ideia de como obter alimento nessas condições? Nunca vi uma mata como essa.
– Posso dar uma volta por aí e ver se encontro algum fruto comestível.
– Vou com você – meu marido, no momento tolo, se voluntariou para ir comigo.
– Não. Você fica – abanei a minha mão, como se não me importasse com a pessoa dele, e saí andando, esperando que ele me obedecesse.
– Mulheres... – ouvi Finnick rindo e abri um sorriso, enquanto me distanciava.
A mata não era muito diferente da do meu Jogo, então não era muito difícil encontrar alguma coisa. Principalmente com o conhecimento que tinha adquirido na farmácia, durante os meses passados.
Reconhecer o que precisava estava mais fácil do que nunca. Tinha pegado alguns frutos e folhas que tinham grande quantidade de água. Sabia que as árvores tinham também, mas por enquanto não tínhamos nenhuma arma para abrir o seu casco.
Fiquei mais atenta, quando ouvi um galho quebrar por perto, sem deixar de me sentir bem inútil. Ia lutar com o quê? Frutas?
Larguei tudo e me virei na hora certa para me proteger, enquanto me tacava em cima de meu inimigo. Rolamos por alguns metros até minhas mãos serem presas.
Eu realmente estava sem sorte naquele ano.
– Nunca saia sem armamento, Bluebonnet – uma mulher loira e bem bronzeada, da mesma forma que Finnick, me disse. – Mas você luta bem.
– Não é sempre que a sorte está conosco – dei de ombros, enquanto ela ainda estava em cima de mim. – Para uma pessoa da sua idade, você não está mal também...
Não tirei os olhos da faca que tinha em sua mão um segundo sequer. Imagino que não deveria ter falado a última coisa, mas já era.
– Tem razão – a mulher enterrou a faca longe de mim e longe dela, saindo de cima. – Desculpe o nosso encontro ter sido desse jeito. Não queria ter subido em cima de você. Está tudo bem?
Aquilo era uma armadilha?! Principalmente porque ela ignorou o que eu disse.
Ao ver que ainda estava praticamente na mesma posição e sem dizer nada, ela continuou.
– Sei que está com Finnick. Sou Mags, tributo do Quatro. Amigos de Finnick são meus amigos também – levantou-se, guardando a faca, mas sem tirar a mão dela. – Isso é, se estiver tudo certo.
Olhei-a bem, sem saber no que acreditar. Ela podia muito bem me apunhalar pelas costas como abrir uma aliança também. Olhei a sua mão que estava bem em cima da faca e percebi a mesma pulseira de Haymicht, a qual Finnick também usava.
O que aquilo significava? Era algum tipo de sinal do nosso mentor para saber em quem podíamos confiar?
Haymicht devia ter sido o meu mentor desde o princípio.
Levantei-me e peguei todos os frutos que tinha deixado cair, recebendo ajuda dela.
– Tome – Mags entregou a faca para mim. – Assim pode confiar mais em mim e sei que você e Peeta precisam mais dela do que eu e Finnick. Ele já recebeu um tridente, não é? – apenas assenti com a cabeça.
Peguei a faca e a guardei, guiando o caminho de volta e carregando poucas coisas, já que Mags se ofereceu para levar a maioria que tinha colhido.
Com a volta, Finnick gostou da pequena... Surpresa. Peeta achou um pouco estranho, mas, ao perceber a pulseira, também não disse nada.
A primeira demonstração de confiança foi durante o coração da noite, quando tínhamos que dormir. Mags ficou de vigia, enquanto o resto dormia. E, pelo que percebi, quase duas horas depois, o que tínhamos ali era realmente uma aliança. Fingi que dormia para ver se teríamos problemas no momento em que caíssemos no sono. Se tinha uma coisa que todos aprendem dentro da arena, é: durma de olhos abertos.
– , Peeta. – ouvi o meu nome sendo sussurrado. Abri os meus olhos levemente e percebi que o sol estava com os seus primeiros raios. – Tem alguém por perto. Temos que ir.
Realmente tinha alguém por aquelas bandas, porém não ficamos para ver quem era. Andamos por um tempo, a ponto de não fazer barulho, e depois corremos praticamente sem rumo, porque tínhamos certeza de que éramos seguidos. Sabia que tínhamos ido muito além do que podíamos, pois passos já eram impossíveis de serem escutados, mas mesmo assim não paramos.
Fomos parando por exaustão até finalmente encontrarmos alguns galhos secos. Olhei em volta e percebi estarmos cercados por campos de forças. Tínhamos ido muito longe mesmo.
– Pessoal, não acho que aqui seja um lugar muito bom para ficarmos...
– Por que não? Vi uns animais por ali, tem arbustos logo lá e esses galhos podem nos servir de abrigo.
– Mas... Não conseguem ouvir isso?
– Isso o quê? – todos ficaram atentos por alguns segundos.
– Isso! Esse zumbido de algo... Não sei, elétrico.
– , sinto lhe dizer, mas ou seu ouvido é muito mais potente que o nosso, ou você escuta demais – Peeta riu, enquanto se afastava.
O problema é que se afastou demais.
– PEETA, NÃO! – mas era tarde demais.
Podia ouvir Haymicht gritar junto comigo. Por mais que não soubéssemos os efeitos daquilo em uma pessoa, sabíamos que não podia ser algo bom para estar ali.
O barulho elétrico que antes não existia se tornou claro quando ele atravessou – ou tentou atravessar – o local preso pelo campo de força, jogando-o para trás depois do corpo dele sacudir feito um peixe fora da água.
Fomos até o rapaz, que não se movia nem um pouco. Nem para respirar.
O meu coração estava disparado e ficava mais forte, conforme chegava mais perto.
– Ele está sem pulso – Mags olhou para mim, desesperada.
Subi em cima de Peeta e fiz estímulos em seu coração para que ele voltasse, contudo não estava adiantando muito.
– Peeta, acorde! – praticamente gritava. – Acorde!
Os meus movimentos já eram bruscos, mas praticamente inúteis.
– Continue com isso – Finnick pediu e logo passava oxigênio a ele.
– O pulso está voltando. , não pare.
Assim que senti o seu coração voltar com força, saí de cima dele, repleta de adrenalina.
– O... Que houve?
– Como o que houve?! – estava histérica. – Você quase morreu!
– Ele tecnicamente morreu – Finnick nos interrompeu.
– Você não deu bola para o que eu disse e simplesmente saiu andando, seu idiota!
– No que eu passei? – a voz dele era fraca.
– Algum tipo rede elétrica que, depois de lhe dar um choque, o empurrou para trás – Mags explicou. – E você morreu.
– , consegue escutar essas “grades”? – assenti, sem saber se deveria pronunciar a palavra “campo de força”. Haymicht não disse e teve todos mortos. – Então você nos guia para um caminho longe deles.
– Não podemos ficar por aqui? – quase avancei em Mags ao ouvir sua sugestão. – Digo, provavelmente somos os únicos que sabem disso. Se alguém tentar nos atacar... Jogamos a pessoa ali e não a animamos.
Até que era uma boa ideia.
– Bom – seu parceiro se referia à ideia. – Temos que manter algum objeto para termos certeza de aonde não podemos ir. ?
Assenti, já pronta para colocar tocos nas proximidades dos campos, quando Peeta pronunciou.
– E eu faço o quê?
– Você senta e nos observa – falei antes que qualquer pessoa. – Está se sentindo melhor?
– Estou – mas sabia que ele sentia dor em algum lugar, pela sua expressão que só eu sabia ler.
– Ainda assim, acho que você deve descansar.
Depois de tudo pronto, saímos para achar comida. Peeta foi comigo e tive que ajudá-lo a andar. Estava extremamente feliz por finalmente pode ficar perto desse jeito de meu próprio marido e principalmente por ele estar vivo.
– , acho que já consigo andar.
– Certeza? – ao assentir, soltei-o e esperei-o me provar. – Bom, nada mal para alguém com uma perna de metal e que quase morreu.
E ele precisaria usar as pernas pelo próximo evento.
Em uma rapidez incrível, Finnick apareceu carregando Mags inconsciente no colo.
– Corra.
Sem perguntas, foi o que fizemos.
Ao olhar para trás, deparamo-nos com insetos do tamanho de minha panturrilha. Com certeza eram uma espécie de mutação. Nunca soube da existência de formigas desse tamanho.
Descemos a montanha sem saber direito em que direção ela nos levaria. Por sorte, não havia nenhum campo de força para atrapalhar.
Mal conseguia controlar a minha velocidade na descida. Eu tinha certeza de que acabaria caindo a qualquer hora, se não tomasse controle. E foi exatamente o que aconteceu.
O tombo foi digno de filmagem. Capitol inteira deveria estar rindo. Rolei alguns metros e bati em pedras e galhos. Além de me machucar, cortei-me bastante. Tinha até esquecido que tinham formigas gigantes atrás de nós.
Porém, isso foi por alguns segundos.
Rastejei o mais rápido que pude, porque estava um pouco zonza para me levantar agora. Além do mais, o medo se apoderou de mim e pensar era a última coisa que conseguia fazer.
Não podia morrer assim. Vá saber o que aquelas formigas podem fazer... Comer-me viva é um palpite. Mas assim que pensei no veneno... Quis chorar.
Bem rápido, fui levantada e tudo começou a se mover. Fechei bem os meus olhos e ouvi um canhão. Tudo estava acontecendo tão rápido que não sabia quem tinha morrido. Eu, Peeta ou qualquer outro tributo.
Senti tudo ficar gelado de repente e só fui perceber que não tinha aberto os meus olhos até então.
– Pode abrir os olhos, . Você está segura.
Ao abri-los, vi-me dentro da água na praia. As formigas que se atreveram a entrar não conseguiam nadar e acabaram morrendo. Com isso, o resto ia embora.
Sabe-se lá quanto tempo ficamos dentro da margem, dando o tempo exato para que todas voltassem para de onde quer que saíram.
Só então percebemos um choro leve. O canhão!
Olhamos Finnick, que carregava o corpo de Mags inteiramente roxo. O canhão tinha sido dela.
– Encontrei dois Profissionais – explicou-se. – Enquanto me livrava deles, pisei em um ninho que eu achava ser de cupins, pelo tamanho. Os Profissionais fugiram a tempo e, se não fosse por Mags, seria eu no... – parou a frase no meio. – Ela foi o meu mentor.
Saí de onde estava e o abracei. A minha imagem era de proteger o mentor, então eu devia entender como a perda dele dói.
Deixamo-la pronta para que o seu corpo fosse pego por alguém de Capitol e levado para o Distrito Quatro.
Naquela noite, Finnick ficou de vigia e não deixou de derramar lágrimas por nenhum segundo. Acordei no meio da noite para trocar de turno com ele. A perda de Mags tinha sido realmente significante para Finnick. Pergunto-me se era para ela que o poema em sua entrevista tinha sido, mas concluí que não. Sua dor seria maior e o poema deixava claro que tinha deixado alguém lá fora, e não que tinha ido com ele.
Tudo isso me fez perguntar como seria que Haymicht estava. É obvio que ele armou um plano e não nos contou, com todo esse lance de alianças e a presença dele pelas pulseiras. Uma coisa bem esperta de se fazer. O que será que deve estar rolando por lá?
Talvez não tão difícil quanto aqui... Capitol estava mesmo disposto a acabar comigo e estão fazendo isso rápido, provavelmente para me terem sozinha.
De repente, a morte estava no arbusto atrás de mim, enquanto eu pensava em várias coisas e... Definitivamente, fui interrompida por passos.
O susto tinha sido desnecessário, no fim das contas.
Silenciosamente, acordei os dois homens e sinalizei o local de onde vinha o barulho. Fomos sorrateiramente até lá e encontramos Beetiee, Wiress e Johanna.
– Até que enfim encontrei vocês! – ela bradou. – Ficar com Nuts e Volts é um saco. Estava difícil não matá-los.
– Bela hora para aparecer, Johanna.
– Quem sabe mais tarde eu estaria morta? – deu de ombros. – E aí, aliança e essa baboseira toda de não nos matarmos? – levantou a mão propositalmente, mostrando-nos a pulseira.
– Chegue aí – chamei.
Ela nos contou onde estava e o que estava fazendo desde que entramos na arena. Em suma, a partir do momento em que foi jogada em água, nadou até a ilha e viu Beetiee tentando ajudar Wiress na água agitada. Trouxe-a para a margem – tirando a parte em que ela pensou em deixá-la para trás. Na verdade, deixar os dois para trás.
Tiveram que fugir da batalha que se prendia na cornucópia e acabaram encontrando alguns enquanto corriam, tendo que matá-los. Disse que sempre tinham a impressão de que estavam perto de nós, mas era como se fossem jogados ao outro lado da arena, demorando o encontro.
E, por fim, não tinha ideia de que estávamos por aqui, até aparecermos com as armas apontadas para todos eles.
Durante aquele dia, não teve mortes, mas foi difícil de chegar até a noite. Galhos caíam “misteriosamente” e praticamente em cima de nós.
O difícil mesmo tinha sido o outro dia.
Enquanto mudávamos nosso abrigo mais uma vez, fomos abordados por metade dos profissionais. Wiress foi nosso problema. Ela podia ser inteligente, mas sua loucura nos colocou em risco. Viu um pássaro e começou a correr até ele, sem deixar de gritar. Como se sentisse responsável, Beetiee correu atrás dela. O fato a seguir que nos preocupou: o grito dela e a volta dele. O canhão não tinha disparado então fomos ver.
Minha intuição era para continuarmos em frente, porém, se soltasse essa informação, provavelmente a única pessoa que me apoiaria ia ser Johanna.
A partir daquele instante, aprendi que, quando tiver alguma intuição, não vou hesitar e nem pensar nos sentimentos dos outros ou se a outra pessoa pode ser salva ou não. Mesmo que essa pessoa seja eu.
O local estava calmo por um momento, silencioso e muito quieto. Quieto demais. E, se tem uma coisa errada com quieto demais, tem problema.
A outra metade dos profissionais apareceu mais como um bônus. Cada um de nós ficou encarregado de brigar com um, praticamente. Estávamos em numero maior, mas o grupo é considerado profissional por um motivo. Sei que um deles morreu... Johanna matou. Ouvi dois canhões. Levei uma pancada na cabeça. Não conseguia achar Peeta. Tudo que fazia era tentar me defender e vacilar meus passos, sempre indo para trás. Meu companheiro de luta estava sempre comigo. Ainda sem nenhum sinal de Peeta. Uma rasteira, estava no chão. O grandalhão subiu em cima de mim. Puxou meus cabelos e pegou uma pedra. Senti o impacto do objeto contra meu rosto. Várias vezes.
Eu não podia morrer. Pelo menos não sem saber do paradeiro de Peeta. Mal sentia meu rosto, tinha certeza de que minha consciência estava por um fio, assim como minha vida. Enrolei minhas pernas na cintura do profissional, como Haymicht me ensinou para meu primeiro Hunger Games. Praticamente o amassei com elas, o que me deu a chance de ficar por cima daquela vez. Tive um pouco de vantagem com esse movimento. Estava claro que ele não esperava por essa. Consegui a pedra dele, mas por pouco tempo. Não tinha forças para contra-atacar, então ele tentava rolar comigo para pegar o comando. E ele o teria, se não tivéssemos caído um penhasco abaixo.
A queda foi grande, mas ainda lutávamos. Foi de repente que ele tirou uma espécie de agulha das mangas e a espetou nas minhas coxas. Logo depois, houve uma pancada tão forte a ponto de nos separar. Eu parei em um lado e ele, em outro. Depois disso, tudo ficou preto.
Abri meus olhos e me vi no mesmo lugar de antes, com a diferença do tempo. Estava de madrugada, muito, muito frio. Tinha caído ali o sol que estava no seu pico. Afinal, por quanto tempo eu tinha dormido ainda é um mistério. Dias? Quem tinha morrido? Peeta estava vivo ainda? O que tinha acontecido?
Ao tentar me mover, senti a maior dor que um dia já senti. Começava na minha cintura e ficava por ali. Não tinha movimentos nas minhas pernas. Gritei, enquanto tentava me movimentar, ficar sentada. Não tinha ninguém perto de mim, então supus que o profissional tinha morrido de alguma forma... Porque ele não me matou.
A queda tinha sido grande. Olhando ali de baixo, eu mal conseguia achar o chão do penhasco. Estava no fim sem movimentos, faminta e morrendo de frio.
Então devia ser ali que eu morria.
Dois dias se passaram e eu estava na mesma posição. Faminta, morrendo de sede e com uma dor indescritível nas pernas, as quais ainda estavam sem movimento algum.
Perguntei-me qual era a razão disso. Digo, da imobilidade. Seria pela queda enorme? E, bom... Não teria movimentos pelo resto da minha vida? Não que eu vá durar nas minhas condições. Ou seria pelo líquido que o profissional injetou em mim? E, se fosse, por quanto tempo durava? Isso é, se eu fosse ter meus movimentos de volta algum dia.
Eu tentava rastejar para qualquer lugar em busca de água ou de alguma fruta que pudesse comer, mas toda hora que tentava minha cintura ardia como se estivesse pegando fogo. Já não tinha mais vontade de lutar para rastejar. De repente, era preferível que eu morresse de causas naturais ao invés de uma dor incalculável.
O problema é que, de certa forma, ainda tinha certa afeição pelo feto que crescia dentro de mim. E, se fosse para manter alguém vivo, que fosse ele.
Por dois dias fiquei sem fazer nada – claro. O que mais eu poderia? –, apenas tentando rolar, girar, rastejar. Quando cansava, ficava pensando.
Meus pensamentos, no começo, eram todos macabros. Sempre pensando no pior para mim e para todos, tentando imaginar como seria morrer do jeito que estava. Pensava também se Peeta estava vivo. Pelo tempo que fiquei parada aqui igual uma idiota, não houve nenhum canhão, o que seria de se surpreender. Porém, lembrei que o alvo desses Jogos era eu. Então, se estava na reta final, Capitol seguiria com as regras da matança de forma normal.
E, se Peeta estivesse vivo... Bem, não vejo onde isso acaba melhor. Ele ainda tem uma família que pode sofrer nas mãos de Snow. Podem machucá-lo ainda mais. Ele não merece isso, eu não mereço isso, nenhum dos que foram obrigados a jogar essa injustiça merecem.
E, claro, pensei em Katniss. Afinal, não tinha como não pensar na menina. Ela literalmente estragou a última linha de paz que tínhamos. Agora Panem inteira estava em guerra, a segurança de muitos estava em risco e pessoas que não tinham nada a ver com a história acabaram levando o pato. Sim, estou me referindo a mim mesma.
Se por um milagre conseguir sair daqui, corro atrás dela, onde quer que esteja, e abro a garganta dela com minhas unhas. Será a única matança que me fará bem de verdade.
Isso tudo me fez pensar em mais duas coisas. E se o Distrito 13 realmente existir? E se é lá onde ela está? Como chego lá? As únicas vezes que saí do Doze foram para cá e durante o tour dos Vitoriosos. E é meio difícil prestar atenção em cada detalhe naquele trem que viaja perto da velocidade da luz. De qualquer jeito, por que Katniss iria para lá? Quem está lá? E por que Capitol esconderia o fato de que o Treze se reergueu? Ou será que eles não sabem? Devem ter uma ideia, no mínimo. Não tenho muitas notícias sobre as revoluções, mas acredito que elas tenham a ver com esse Distrito. Ou não. Vá saber... É tudo muito confuso.
Por último, pensava em como seria minha vida se nada disso tivesse acontecido. Os Jogos ainda existiriam, sofreríamos um bocado, haveria muitas mortes no Doze, desigualdade entre Panem inteira, exploração, miséria e tristeza. E, por mais que isso soe bastante egoísta, eu estaria feliz. Por mais que Peeta ainda viesse para cá e passasse tudo que passou com Katniss, fui capaz de perdoá-lo mais de uma vez. Nós poderíamos ter ficado juntos, batalhado para tentar chegar aonde tínhamos parado. Seria difícil, mas não impossível. Não como é agora.
Supondo que Katniss não tivesse fugido, que ela ficasse lá... Na vida dela, como era antes. Com Gale, quem sabe? O mais importante é que nada dessa desgraça estaria acontecendo. Eu teria minha vida com Peeta, nós dois nos apoiando no que fosse necessário. Nós nos casaríamos no tempo certo, e não com dezoito anos. Não reclamo de ter me casado, mas fazer as coisas sem ser às pressas acabaria sendo melhor. E sei que falei que não teria filhos para eles não precisarem viver a tragédia do Hunger Games, mas, desde que passei a namorar Peeta, quando realmente ficamos grudados, ele comentou que adoraria ter filhos. Comigo. Além do arrepio gostoso que essa frase fez passar pelo meu corpo, não pude deixar de imaginar como seria. Eu queria, sim, constituir uma família com ele. Dois filhos. Ser filho único é solitário demais, principalmente no Doze.
Pensava em ter uma menina e um menino, se pudesse escolher. Imaginava nós dois sentados nas escadinhas da varanda, observando os dois correndo um atrás do outro. Os dois com traços de nós dois, do tipo que dá para saber de quem são filhos. E o mais importante: eles teriam sorrisos no rosto. Sempre. Correriam para o colo dos avós, meus pais vivos. E para o avô, o pai de Peeta. Depois para Haymicht, quando não estivesse bebendo tanto. E não acredito que a mãe de Peeta se aproximaria tanto assim.
Enfim, as coisas podiam não ser tão boas, mas seriam melhores do que são agora.
Mais uma vez, fiquei perdida em pensamentos até o cansaço e a fome me dominarem. Dava para sentir a mudança do meu corpo: o feto implorando por comida, meus órgãos suplicando por energia e tudo que eu conseguia fazer era ficar deitada no barro.
Desculpe, pequeno feto. Por favor, me desculpe.
– ...Não parece ter ninguém aqui – ouvi uma voz um pouco longe de mim. – Não sabemos o tamanho desse lugar. Ela pode estar em qualquer lugar.
Ela? Ela quem?
– Tem um barranco logo ali. Ela deve ter caído por aqui.
– Da mesma forma que tem um barranco em qualquer lugar no meio dessa arena. – essa voz era feminina e zangada. – Devemos ir embora.
Algo na minha turva consciência me dizia que eu conhecia aquela voz.
– Vamos procurar. Se recebi uma espécie de remédio e Beetiee diz que esse é dos bravos, está machucada e não consegue se mover. Se caiu aqui, não pode estar longe.
Aquela voz eu definitivamente conhecia.
– Afinal, por que você quer tanto achá-la? – Johanna queria provocá-lo. Dava para ver pelo tom.
– Por alguns motivos que não tenho a necessidade de compartilhá-los – Peeta foi curto e grosso. – Procurem.
Ele se importava comigo! Sorri fraco com o pensamento de ser querida por ele. Claro, eu sabia que era. Mas qual garota não gosta de ser paparicada?!
Eu tinha que achar um jeito de chamar a atenção deles para o lado que estava. Pelos passos, eles sempre se afastavam de mim e não podia deixá-los ir embora sem passar por aqui. O problema é que estava tão, mas tão fraca, que era quase impossível me mover. Os meus braços, dessa vez. As pernas não contam.
Olhei ao redor, tentando achar qualquer coisa que pudesse jogar. Achei uma pedrinha e fiz o maior esforço para pegá-la e tacá-la. Acabei ofegante quando a joguei contra um paredão de pedra. O barulho não foi tão alto como esperava que fosse, mas Wiress deve ter sido a única que prestou atenção.
– O que foi, Nuts? O que tem lá?
– Pock – imitou o som da pedra com a boca.
– E quando eu pensava que não podia ser mais doida... – riu, afatando-se.
Não!
– Pock – Wiress repetiu.
– É um barulho, Wiress? – silêncio. – De onde veio?
Era Beetiee que conversava com ela. Pelo menos alguém ali tinha paciência para entendê-la! Se me achassem, deveria minha vida a ela.
– Er... Pessoal, acho melhor nos prepararmos para correr, se for o caso – Beetiee os alertou.
Não! Não era essa a intenção! Ok. Reformulando a frase: se eu saísse viva de alguma forma, Wiress ia trocar de lugar comigo. Mas as pernas dela ficariam sem movimentos de tanto que eu bateria na mulher!
– Um profissional caiu com ela – Finnick falou.
– Ele morreu. Vimos seu rosto naquela noite. Os outros estão no acampamento – Peeta pensou. – Deve ser ela!
E então, os passos começaram a ficar mais barulhentos. Peeta realmente não tinha sutileza nenhuma quando se tratava de silêncio. Se eu fosse um predador? Ele seria uma vítima fácil.
Conseguia escutar no mínimo três pessoas se aproximando e eu tentava me forçar a gritar, mexer, qualquer coisa para mostrar onde estava, mas, além de doer fazer esforço, minhas energias estavam no fim do tanque reserva e, se fizesse algo muito brusco, era capaz de adormecer novamente.
– ? – ouvi Finnick. – Precisamos saber se você está aqui – disse mais alto e depois abaixou o tom. – Precisamos fazer silêncio. Se ela está aqui machucada, provavelmente não consegue se comunicar.
– , por favor, por favor! Arranje um jeito de nos mostrar onde você está – era Peeta. – Levante o braço, talvez – hum, não dá. – As pernas? – pior ainda. – Tente assobiar, faça algum barulho!
Até que não era uma má ideia.
Na medida que conseguia, puxei o ar para dentro de meus pulmões e me esforcei para assobiar. Não foi dos melhores, mas deu para fazer algum efeito.
Logo, Wiress me imitou e ouvi passos se aproximando. Soprei mais duas vezes até eles me acharem.
Ver Peeta tão alto ali do chão era quase como ver Jesus. Minha salvação, minha vida.
Ele se abaixou, praticamente se jogando em cima de mim. Não pude reclamar, por mais que não quisesse, porque ele estava fazendo parecer que éramos mais do que amigos. Mas que se foda. Vamos todos morrer nessa merda mesmo!
Estava feliz em vê-lo, extremamente feliz, mas tão fraca que mal conseguia deixar meus olhos abertos. Imagine sorrir!
Vendo que precisava de cuidados, a primeira coisa que fez foi colocar água dentro de meu corpo. A sensação era magnífica e o efeito dela no meu organismo foi quase imediato. Claro que não me fez melhor de um segundo ao outro. Tive que tomar quase duas garrafas inteiras para ter minha respiração normal mais uma vez e manter meus olhos abertos já era mais fácil.
– Uau, quem diria?! A Bluebonnet é feita de aço! – Johanna brincou.
– Quem dera... – sussurrei. – Obrigada por me acharem.
– Levante-se logo daí. Temos que voltar antes que escureça.
De nada para você também.
– Você consegue andar? – Peeta perguntou e neguei com a cabeça. – O que houve?
– Não sinto nada da cintura para baixo – senti meus olhos marejarem.
Não queria chorar para todos verem a desgraça que estava vivendo e fazer daquilo uma hora de comoção para os fúteis de Capitol.
– Você teve sorte de não ter nenhuma lesão na cabeça, – Beetiee se abaixou do meu outro lado. – Sua cintura dói?
– Arde. Dói. Os dois.
– Quando você mexe ou quando está parada?
– Mexo – aonde ele queria chegar com isso?
– Temos que levá-la de volta, Peeta.
Meus olhos encontraram os dele mais uma vez. Ele estava visivelmente preocupado. Eu estava desesperada e triste. Dava para ver que não estava preocupado só comigo, mas com o filho dele também. Com nós dois.
Ainda assim, algo no olhar dele mostrava esperança. Como se dissessem que estava ali por mim e faria de tudo para me manter segura.
Bom, os meus diziam a mesma coisa.
– , tente manter seus olhos abertos. Ok? – ele falou, enquanto me pegava no colo. – Tome mais água.
– Estou cansada.
– Eu sei, mas não pode cair no sono agora. Como vou saber que vai acordar?
– Prometo que acordo. Não é assim que deveria ser – referia-me ao fato de que faria de tudo pra mantê-lo vivo.
– Promete? – assenti, já fechando os olhos. – Mas tente deixá-los abertos.
Não deu muito certo. Logo, estava dormindo de novo.
Acordei não sei quando. Não tinha muita luz onde estava e o ar estava abafado. Estava bem melhor desde a última vez que abri meus olhos, mas ainda não conseguia me mover.
Fiz esforços com meus braços para tentar me sentar, mas a cintura ardia e doía, obrigando-me a ficar deitada. Acabei arfando pela tentativa.
– Você acordou – era Peeta.
– Oi – brinquei.
– Você ganhou comida – mostrou um pequeno baú metálico preso com poucas cordinhas de um paraquedas.
Só a palavra fazia meu estômago gritar.
Peguei meu presente e o abri, recebendo um recado breve de Haymicht: “Katniss”. Eu praticamente tinha acabado de ressuscitar e o cara já me manda mensagens com o nome da única pessoa que eu queria morta! Mas, sim, entendi o que ele queria.
– Onde estamos? – perguntei, enquanto trabalhava para conseguir comer sem me machucar. Não podia deixar Peeta cuidar de mim e dar trela sobre nossa relação.
– Em uma caverna.
– Uma caverna? Que irônico, não acha? – ri. Foi mais para um riso ácido.
– Eu gosto delas – abriu um sorriso falso.
– Cadê o Finnick? – sabia que aquilo ia doer nele, mas tinha que tirar a impressão de que tínhamos um caso.
– Voltando – deu de ombros sem soar muito sem importância. – Coma, . Beetiee disse que você precisa de força para ganhar seus movimentos de volta.
– Então o que eu tenho na perna, exatamente?
– O remédio que recebi não foi à toa. Você não deve ter perdido seus movimentos para sempre. É um tipo de anestesia que o profissional injetou.
– Anestesia que não passa?
– Nunca – meu corpo inteiro gelou. – A menos que tenha a cura.
– E temos?
– Presente de Haymicht – sorri abertamente e agradeci mil vezes.
– Ela acordou! – Beetiee apareceu junto com os outros.
Ele estava todo fofinho com sua aparência de nerd idoso. Wiress o seguia, olhando sempre para cima, sem expressão nenhuma, como se estivesse focada em outra coisa. Johanna bufava o tempo todo, mas eu sabia que ela estava feliz por me ver. E, por fim, Finnick estava... Bem, Finnick.
Beetiee me fez comer toda minha comida e mais um pouco para que pudesse aplicar a cura nas minhas pernas. Ele disse que ia doer e me deu um pedaço de roupa de tributo morto para morder, caso fosse demais.
Eu não sei o que seria pior. A roupa de uma pessoa morta ou o fato de que a dor podia ficar pior.
Assim que acabei, começamos. O líquido dentro de uma agulha nas mãos dele era amarelo. Por precaução, coloquei o tecido na boca e esperei por qualquer coisa.
E não é que aquilo realmente doía? Era como se ele estivesse sugando toda minha dor por uma agulha minúscula. Só que, para isso, era necessário uma dor três vezes pior.
Tentava guardar o grito de dor e agradeci ao tributo por morrer e ceder sua vestimenta extra para eu mordê-la. Não conseguia explicar o que estava acontecendo ali, como a dor era. Só sei que, alguns minutos depois que ele retirou a agulha de meu membro e meus batimentos cardíacos voltaram ao normal, foi questão de segundos para que sentisse outro tipo de dor, uma mais amena, uma leve pontada na minha barriga. E de repente eu estava coberta de sangue. E ele saía de meu ventre.
Tinha perdido meu filho.
– Er... O sangramento é normal, – Beetiee tentou deixar sua voz o mais normal possível.
Não, não era normal.
Eles não sabiam que eu estava grávida. Então, ao me verem sangrar de forma grotesca na frente de todos, era um susto. Pela feição de todos, eu conseguia ver a dó estampada, aquele olhar de pena que eu não conseguia suportar.
O pior era Peeta, definitivamente. Ter que fingir que aquilo devia ser uma consequência do antídoto para minhas pernas e engolir a dor de ver o próprio filho perder a vida espontaneamente e não poder fazer nada para parar ou voltar atrás.
Eu mal conseguia olhá-lo. Doía mais. Não minha perna, não meus ferimentos, mas a perda.
Antes que pudesse perceber, lágrimas caíam de meu rosto e tive que fazer um esforço para não chorar copiosamente, sem muitas conquistas.
– É normal a dor depois do sangramento da injeção, – a voz de Beetiee mal era forte.
E eu mal o ouvi. Sabia que estava falando aquilo para não dar na cara de Capitol inteira e nem o resto de Panem que estava grávida e que tinha acabado de perder o filho.
Eu tinha perdido a razão principal pela qual ainda me mantinha forte. E eu mesma tinha causado a própria morte do meu filho. Um feto que eu não sabia e nunca saberia se era menino ou menina. Nunca olharia para o seu rosto, nunca saberia quais traços de Peeta estariam nele ou mesmo o nome dele.
Capitol tinha me tirado o meu namorado, meus pais, minha vida e agora meu filho. O pior disso tudo é que não sei mais por que ainda estou lutando. As únicas pessoas que me sobraram foram Haymicht e Peeta – as únicas que se importavam comigo também.
Não tinha alma que conseguisse me fazer parar de chorar. Por isso me deixaram sozinha por praticamente o resto do dia. Menos Peeta. Doía saber que o único apoio que conseguiria dele era sua mão em meu ombro. Por mais que seu abraço fosse mil vezes melhor, suas palavras de conforto, sua mão era a única coisa que eu podia pedir nas dadas circunstâncias. Pelo seu toque forte e firme, conseguia sentir que ele compartilhava a mesma perda que eu.
No fim das contas, o que pude fazer, e me senti na obrigação disso, foi colocar a minha mão por cima da dele, sabendo que melhor que aquilo não ficava.
Ficamos por ali até meu choro se tornar silencioso, porém com lágrimas. Nunca nos desfizemos de nossos laços com as mãos. Se ele me soltasse, desmoronaria de novo, e acredito que ele também. De repente, até pior do que eu por guardar todos aqueles sentimentos para ele mesmo, sempre aumentando a cada tragédia.
De repente, percebi que, por mais que as chances fatalmente não estivessem ao meu favor, deveria continuar lutando. Meus pais não me criaram para ser uma perdedora que desiste a cada derrota, mas me ensinaram a ser persistente. E, se era isso que precisava ser para dar a volta por cima, seria isso o que eu seria.
Se Snow quer guerra, ele terá uma.
Batalhei por muito tempo entre Peeta e Finnick para que os dois deixassem de bobagem e me deixassem procurar mantimentos. Os dois gritaram na minha cara que eu precisava descansar e me recuperar dos traumas que passei. De certa forma, os dois estavam certos, mas eu não queria ficar sem fazer nada, deitada no chão da caverna, olhando para o teto marrom dela, enquanto os outros traziam coisas e arriscavam suas vidas lá fora.
Tínhamos pouco tempo até o fim dos Jogos. Logo começariam com mar de sangue de novo e aposto que vão piorar o processo quatro vezes mais, ficando impossível de sobreviver. Desse modo, tínhamos que arranjar um modo de fugir dali ou... Quem eu quero enganar? É impossível sair dos campos de força.
Se pelo menos tivéssemos um plano...
Fui tirada dos meus pensamentos por um raio que atingiu o chão perto da caverna. Andei sorrateiramente até a entrada, feliz por poder andar de verdade, mas curiosa e com o pior dos pressentimentos.
O sol estava no pico, estava calor, não havia nenhuma nuvem no céu. Então de onde saiu aquele raio? Pássaros voavam para fugir do susto e alguns animais corriam. Não havia sinal nenhum de humanos. Nem mesmo de Beetee e Wiress, que deveriam estar perto daqui.
Continuei escondida, tentando captar a presença de alguém, escutar algum canhão ou até mesmo ver de onde veio o raio. Porém, nada disso aconteceu por aproximadamente quinze minutos. Pelo menos não naquela área.
Os pássaros, que antes voaram daqui para o lado direito da floresta, voltaram para cá ainda mais assustados. De onde eu estava não dava pra ver nada, então saí da caverna e subi o rochedo de pedras, deitando-me nele para me proteger ao mesmo tempo em que observava a movimentação. Era estranha a movimentação daquele lado. Era um pouco longe da nossa área, então era difícil de dizer se o que estava lá viria para cá. As árvores se mexiam em círculos, como se tivesse uma corrente de ar extremamente forte por ali. E o barulho era suave do meu lado, mas dava para sentir a brisa indo para aquelas bordas. Durou aproximadamente oito minutos. Eu contei. E, de repente, literalmente do nada, a suposta ventania parou e os pássaros voltaram ao normal.
Essa ocorrência dos fatos foi, no mínimo, estranha.
Não voltei para a caverna depois disso. Aquele sol estava gostoso, mas não me aproveitei do tempo de paz porque, sendo o alvo ali, os Idealizadores podiam muito bem jogar um meteoro em cima da minha cabeça.
Os primeiros que voltaram foram Peeta, Finnick e Johanna. Eu tinha ido ao rio, pegado um pouco de água, procurado algumas ervas e levado para a caverna no caso de algum ferimento.
– , aonde você foi? – Peeta praticamente gritava. – Parece que você gosta de brincar com a morte!
– Eu tenho certeza que é o contrário, Mellark – rolei os olhos. – Não conseguiria ficar aqui sem fazer nada, olhando para o teto.
– Eu consegui. Por que você não consegue?
– Por vários motivos: você estava gravemente ferido. Eu estou bem – com o emocional fodido, mas estou bem. – Depois, você é um bundão, e eu não.
Peeta abriu a boca e eu sorri, fazendo com que ele bufasse e saísse para arrumar uma pequena fogueira.
Decidi não ir atrás dele. O fato de que não podíamos nos mostrar relacionados começava a ficar muito difícil. Qualquer problema que eu tinha, qualquer coisa que precisava, meu marido sempre estava ali para me ajudar. E agora... Tinha que jogá-lo de lado e zoar da cara dele.
Fui até onde Johanna e Finnick estavam. A primeira comentava qualquer coisa sobre um ferimento e como seria melhor tratá-lo e o outro dizia que precisava de um pouco de água salgada.
– Alguém se machucou? – entrei no assunto.
– Finnick cortou o braço enquanto corríamos da ventania.
– Não é nada – ele abanou a mão, afastando-se um pouco.
– Ventania? O lado oeste estava muito estranho. As árvores balançando anormalmente... Mas aqui estava normal.
– Você quer dizer que não foi na arena inteira? – Finnick perguntou, tentando captar o que eu tinha acabado de dizer.
– Exatamente.
– Ei, alguém viu Beetee e Wiress? Está escurecendo. Os dois não vão conseguir chegar aqui se estiver muito escuro – Peeta nos interrompeu.
– Aposto que foi a Nuts que enfiou os dois no...
Johanna parou de falar porque foi interrompida. Afinal, todos nós fomos. O barulho do raio ecoou dentro da caverna, tirando toda a nossa atenção.
– O que significa esse raio? – perguntei. – É o segundo de hoje.
Sem mais nem menos, voltei para o lugar em que estava, em cima do rochedo da caverna.
Quando viu que saí da caverna, Peeta tentou me impedir, mas, ao ver que não ia nada longe, foi cuidar dos problemas dele. Fiquei observando de onde poderia ter vindo o raio e o que ele significava. Para aproveitar, fiquei de tocaia para ver se Beetee aparecia.
O tempo foi se passando e novamente nada. Não até os quinze minutos de diferença. Do nada, uma luz vermelha iluminou a floresta no canto esquerdo. Uma luz que vinha do céu, tão fina que mal podia vê-la direito. Porém, era óbvio que essa luz estava rastreando alguma coisa – ou alguém –, pois vasculhou cada canto, até na mesma longitude que estava.
Até pensei em voltar para a caverna e me esconder, mas, ao perceber que aquela luz estava destinada a apenas aquele canto da arena, congelei meu corpo. Continuei observando até a luz parar em um canto e ficar mais forte, por duas vezes. E, em questão de segundos de diferença, consegui escutar dois canhões. A luz rodou mais alguns minutos antes de sumir de vez. Oito minutos, mais uma vez.
Que diabos aquilo significava?
– O que foi aquilo?
– Uma luz vermelha matou alguém. Vamos ver quem foi hoje à noite.
– Foram dois canhões, . E se foi Beetee e Wiress?
– Eles foram tão longe assim? – perguntei um pouco preocupada.
– Do jeito que aquela mulher é doida, não duvido de nada – Johanna abanou as mãos. – Bom, não será uma perda significante.
– Johanna! – todos nós a advertimos.
– O quê? O ponto agora é entender o que está acontecendo dentro dessa arena.
Em uma coisa ela tinha razão, pelo menos.
– Um raio cai em algum ponto da arena e, quinze minutos depois, acontece alguma coisa fatal – comecei. – E ela dura oito minutos.
– Oito? Em oito dá para matar todos os tributos. Afinal, como sabe do espaço de tempo?
– Contei – dei de ombros. Isso era a última das nossas preocupações.
– E de quanto em quanto tempo ele se repete? Porque é a segunda vez que acontece hoje. – agora todos entravam no mesmo raciocínio.
– E quanto aos lugares? É certo que dividiram a arena em algumas partes. O lado esquerdo foi pego e o direito também. O próximo é...
– Aqui – terminamos o pensamento alto de Peeta.
– Então temos o quê? Até o amanhecer para nos movimentarmos? – Finnick falava. – E como vamos saber se estamos em zona de perigo ou não? A ordem que vão usar amanhã?
– Não sabemos. É exatamente por isso que estamos aqui, garoto-tridente – Johanna rolou os olhos. – O objetivo deles é um só e todos nós sabemos qual é.
Por um segundo, todos nós ficamos em silêncio, olhando um para o outro. Mas, dessa vez, um arrepio horrível varreu o meu corpo inteiro. Nossos olhares significavam mais do que deveriam. Era como se aquele olhar significasse que nossa aliança estava acabada e que estávamos procurando a vítima mais fácil. Aquele olhar de desconfiança.
Porque é claro... No fim das contas, seja quem for ficar, vamos acabar com dois na aliança e os dois últimos terão que lidar um com o outro. Foi nesse momento que me senti, só que com mais pessoas.
– Aqui deve ser um lugar a salvo. O suficiente, no mínimo. Decidiremos o que fazer amanhã – Finnick acabou com a tensão. – Johanna, hoje a noite é sua?
– Infelizmente – ela bufou, indo um pouco mais perto da entrada da caverna, sentando-se e se apertando com a sua jaqueta.
Já eu fiquei em uma situação desconfortável. Dava para perceber que tinha um “triângulo amoroso” rolando entre mim, Peeta e Finnick. Quer dizer, não é bem assim, mas Peeta é meu marido. Não podemos ter sinais de amor, e Finnick... Bem, eu e ele trocamos uma paquera praticamente sempre que nos falamos. Não tem sentimentos, tanto por ele quanto por mim. Dá para diferenciar o Finnick de sua entrevista, aquele que é perdidamente apaixonado por uma pessoa em seu Distrito, e o Finnick que finge ser o mulherengo. Porém, só aqueles que têm o coração dominado conseguem notar essa diferença. E os que têm uma capacidade mental mais avançada também. Duvido que Capitol consiga ser racional quando o olha.
Não que eles conseguissem ser racionais de um jeito ou de outro.
Mas, enfim, para os idiotas que assistem a nós, eu e Finnick temos algo rolando dentro da arena, como se seguíssemos os passos de Katniss e Peeta. Isto é, pelo o que consegui pensar. Na verdade, não sei se a falsa paquera é convicta o bastante a ponto de enganarmos os outros. Eu espero que seja. Isso nos dá mais tempo de vida.
Ainda pensando, segui meu caminho até onde dormia, ao lado de minhas coisas. Propositalmente, durante a tarde, coloquei minhas coisas no meio dos dois homens, mais perto de Finnick, e me forcei a dormir.
Dormir era difícil agora. Sem ser forçada a isso pelo meu próprio corpo, eu tinha pesadelos sempre que fechava meus olhos. Não tinha Peeta para me abraçar e sabia que ele também não estava bom com isso. Ele tinha mais pesadelos que eu...
No meio da noite, como eu já previa, comecei a me mexer incansavelmente por me ver no meio de centenas de aranhas pequenas e com o abdome grande. Só não gritei porque minha mão foi apertada. Acabei acordando de supetão, largando a mão de quem quer que fosse.
Não era de Peeta. A dele era mais fofa, delicada nos termos de não haver nenhum calo além dos superficiais. A mão que me tocou era repleta de calos grossos. Também era fofa, mas não era a mão de com quem eu tinha me casado.
Ao abrir os olhos, vi que era Finnick.
– Você estava tendo um pesadelo – sussurrou tão, tão baixo, que acho que as câmeras não eram capazes de captar o som. Apenas assenti. – Eu sei como é difícil, .
E, de repente, eu sabia que ele não se referia aos Jogos, mas à situação do triângulo amoroso.
– Dói. É complicado.
– Eu sei – ficamos um tempo em silêncio até ele sussurrar tão baixo que quase não escutei. – Sinto muito pela perda do seu bebê.
Apenas sacudi a cabeça. Não estava nem um pouco a fim de falar aquilo.
– Qual é o nome dela?
– Annie – respondeu com um ar de solidão, compaixão e amor.
– Nome bonito.
– Ela é maravilhosa – o modo com que ele disse aquilo me fez sorrir. – Tem certeza de que quer fazer isso? – mudou de assunto, apontando para nossas mãos, uma perto da outra.
– É isso que vai nos manter vivos por mais algum tempo.
– Então vamos pedir a eles mais um tempo – sorriu triste, passando seu braço pelas minhas costas. – Espero que Peeta não me mate.
– Eu também – sorri de verdade para ele antes de nós dois fecharmos os olhos.
Não me sentia confortável quanto me sentia com Peeta, mas não podia reclamar. Estava fazendo aquilo não só por ele, mas por todos nós. Só espero não ser odiada por Capitol por ter um romance (falso) com Finnick, o desejo de todas as aberrações de lá.
Pelo menos ter alguém ali ao meu lado me fez ter uma noite sem sonhos até ser acordada novamente.
Era Johanna dizendo que deveríamos sair o mais rápido possível dali, com Beetee atrás e Peeta acordado, olhando diretamente para mim. Estava como se tivesse levado um soco no estômago e fui obrigada a ter a mesma feição. Fazê-lo sofrer tinha virado um limite que eu não gostava de ultrapassar, mesmo que eu estivesse assim para pior antes de saber que tudo aquilo que ele passou com Katniss era mentira também. Até lá, eu sofri bastante.
Espreguicei-me e sorri para Finnick, como se agradecesse. Como resposta, ele sorriu de volta e deu um beijo em minha testa.
Logo, estávamos nós cinco andando pela arena mais uma vez.
– Desde o primeiro raio, Wiress se assustou e começou a correr...
– Eu disse – Johanna murmurou, mas a ignoramos.
– Fui atrás dela porque... Bem, éramos amigos no Distrito. Tinha que mantê-la perto de mim – os olhos deles não se encontravam com os nossos. – Acabei a achando, mas estávamos bem longe da nossa área. Demoramos um tempo para voltar. Ela ajudou bastante, sempre apontando por onde tinha passado. Quando escureceu, decidi montar guarda em um local seguro para voltarmos na manhã seguinte, mas o segundo raio a assustou de novo e, mais uma vez, saiu correndo. Antes que eu pudesse chegar até ela, uma luz vermelha fez dela pó.
Ninguém disse nada. Ela tinha morrido com uma das luzes que vi.
– Quem foi o segundo que morreu? – perguntei.
– Glom. Ele estava perto de nós, longe do grupo. Vocês não ficaram acordados para ver quem morreu?
– Tínhamos que descansar. Estávamos pensando em sair antes do amanhecer – Peeta explicou. – É difícil entender o que esse raio significa.
– Wiress ficava repetindo o tempo todo “tick tock”, enquanto voltávamos.
– Um relógio?
– Sim, Johanna – Beetee continuou. – Depois de quinze minutos que o raio caiu, alguma coisa aconteceu nas duas vezes. E durou oito minutos. Só pode ter algo a ver com um relógio.
– Mas de quanto em quanto tempo o raio cai? – perguntei.
– Não sei bem. Eu diria umas doze horas.
Todos nós nos olhamos com caras de desesperados. O sol ainda não tinha nascido, mas estava perto. Tínhamos pelo menos uma hora e meia para sair da zona de perigo. Da qual não tínhamos ideia de onde era o limite.
Aumentamos nosso passo e andamos bastante.
Esforçava-me ao máximo para não atrasar ninguém, já que meu útero doía um pouco. Claro, eu provavelmente tinha um feto apodrecido ali.
Por mais irônico que seja, lembrei-me de um conselho de Venia: para ficar bonita, não importa a dor que esteja sentindo por qualquer sapato ou roupa. Eu ainda tinha que manter um sorriso no rosto e não parar nunca. Tomei aquilo como um incentivo e continuei andando, ignorando a pontada de dor que sentia. Só não precisava de sorriso nenhum.
A cada momento em que víamos os primeiros raios de sol, um choque começava a nos atravessar e andávamos mais rápido. Não podíamos correr também, já que chamaríamos a atenção dos Profissionais e isso não era uma coisa que queríamos. De certa forma, estava gostando de que não precisava correr. Definitivamente ficaria para trás.
Para ajudar na distração, fiquei imaginando o que aconteceu na noite passada. Tinha sido um passo e tanto entre eu e Finnick. Um passo falso, mas ainda assim um passo para quem assiste. Pensei que, se as coisas ficassem mais... Sérias, acabaria ferindo os sentimentos da tal Annie, a mulher por quem Finnick era extremamente apaixonado. Lembrei-me do vídeo da colheita do Distrito Quatro. Mags se voluntariou no lugar de Annie Cresta, uma moça maravilhosa, mas que tinha o olhar perdido em qualquer ponto não reconhecido. Annie. Era ela! Ela era a escolhida de Finnick!
Meu coração se apertou, fazendo-me parar por um segundo meus passos e minha respiração também. Se as coisas ficassem mais sérias, eu seria a Katniss, Finnick seria o Peeta e Annie seria eu. Ela, como mentor do Distrito Quatro, estaria vendo todas nossas ações assim como eu vi o romance de Peeta e Katniss. Ela sentiria a dor que senti quando os dois se beijaram, as palavras trocadas entre eles... Ugh, eu seria uma bruxa e completamente contrária ao que acreditava. Ninguém merecia assistir à pessoa que ama ter um relacionamento com outra.
E, fato, eu não estava animada em continuar aquilo. Se fosse para deixar claro a Capitol que eu não tinha nada com Peeta, que pelo menos ficasse só nas bases em que estamos agora.
– ? – Johanna me chamou, tirando-me dos pensamentos. – Não precisamos de ninguém lerdo aqui.
Mal tinha percebido que tinha diminuído a velocidade.
– Você está bem? – Peeta e Finnick perguntaram ao mesmo tempo, olhando de um para o outro.
Ok, eu fui obrigada a sorrir nesse momento.
– Estou. Estava só pensando – respirei fundo, deixando de lado o nó formado na minha barriga, e corri até eles.
– Você está bem mesmo? – Peeta sussurrou assim que cheguei até eles.
– Isso não importa. Temos que continuar – suspirei.
Estava com saudades de abraçá-lo, beijá-lo, tocar em seus cabelos, seus braços... Tinha saudades de qualquer coisa relacionada a ele e não podia fazer nada. Aquilo doía também. Desde que os Jogos começaram, tentei esquecer aquela voz do meu subconsciente que ficava repetindo incessantemente: “você vai morrer sem nunca mais tocá-lo. Nem vai lembrar como era”.
Meu subconsciente era uma merda.
– Onde acham que é um território seguro? – perguntei para tirar a possibilidade de Peeta se preocupar comigo em voz alta.
– Vamos descobrir depois de quinze minutos que o raio cair.
Eu não precisava da atitude de Johanna em cima de mim, mas, dado ao fato de que ela odiava Katniss, e eu supostamente era o braço direito dela, a garota tinha esse direito. Mais ou menos.
– E se... Atacarem em um território repetido? Tipo o que estamos indo agora?
– , cale sua boca. Não podemos ficar parados e fugir na hora que acontecer.
– Pois vai ser exatamente isso que vai acontecer se o território for repetido. De repente, onde estávamos era uma área neutra.
– ... Fique quietinha – Finnick pediu com cuidado.
Sim, eu também estava assustando a mim mesma.
– Ok, é só um pensamento.
– Você pensa demais.
Sim, eu também sei disso.
Andamos mais um pouco e ouvimos o raio cair. Foi questão de segundos em que nos entreolhamos e corremos em linha reta. Que se danem dores. Eu não iria desistir até o meu último suspiro.
Tínhamos corrido muito, sem contar o que já tínhamos andado. Quer dizer, tínhamos que estar em um território a salvo. Por favor.
Os quinze minutos se passaram como se fossem cinco. Eu desejaria que tivesse sido mais tempo, ou pelo menos que tivéssemos andado um pouco mais.
Estávamos no meio de uma floresta praticamente densa. Os raios de sol chegavam até nós através das poucas aberturas entre as folhas e os troncos que nos cercavam, deixando o caminho impossível para correr.
Por esse fato, quando a terra começou a tremer de um jeito que nunca presenciei antes, correr e não esbarrar nos troncos era algo humanamente impossível. A trepidação era tão grande que rachaduras se formavam entre nós, a estrutura das árvores era comprometida e, assim, elas caíam.
Foram poucos de nós que conseguiram “escapar” ilesos. Tentávamos correr sem cair no chão, o que significava morte na certa. Finnick conseguiu passar para a área segura, já que não estávamos tão longe, e se salvou com apenas alguns arranhões e batimentos cardíacos acelerados. Beetee estava mais perto dele, então foi capaz de receber uma ajudinha. O pior mesmo ficou para mim, Peeta e Johanna.
Claro, eu tinha que estar inclusa no desastre.
Tudo aconteceu rápido demais. Quando o local se tornou impossível para locomoção, Peeta perdeu o equilíbrio e caiu, tentando rastejar. Eu acabei obrigada a fazer o mesmo. Johanna lutava contra galhos que caíam em cima dela e tentava manter o equilíbrio, tendo mais sucesso que nós dois.
O principal problema foi quando as árvores começaram a cair. Dali em diante, eu tinha certeza de que aquilo tinha mãos dos Idealizadores. Apenas as árvores que rodeavam a mim e Peeta caíram. Johanna estava intacta dessa.
Por estarmos fadados a rastejar, éramos alvos fáceis. Galhos caíam em cima de nós verticalmente, obrigando-nos a desviar deles, se quiséssemos deixar de sofrer com um galho atravessando alguma parte do nosso corpo.
E os oito minutos não acabavam nunca. Os quinze passaram tão rápido e os oito não passavam de jeito nenhum.
Escutei o famoso barulho de árvores se desprendendo do chão e, ao olhar para de onde ele vinha, a única coisa que consegui enxergar foi um tronco imenso caindo na direção em que Peeta estava, bem atrás de mim. Não sei o que deu em mim. Foi um tipo de instinto maternal, ou simplesmente o instinto de esposa, mas, com toda minha força, me virei até ele e o puxei para longe da caída. Nós dois gritamos. Eu porque senti um ardido no braço e ele, eu não sei. Estava de olhos fechados.
Qual é? Se não conseguisse salvá-lo do desmoronamento da madeira, não queria vê-lo todo amassado.
Antes de precisar lutar mais, o terremoto parou tão do nada como ele começou. Os oito minutos tinham acabado.
– Peeta? Peeta? Você está bem? – levantei-me repentinamente e me virei para ele, encontrando um galho imenso o impedindo de se movimentar.
Ele estava acordado e vivo, mas em claro estado de choque. Eu também ficaria se estivesse a segundos de ser amassado por uma árvore.
Estava claro que o galho o machucou, pois esse o prendia com força no chão. Só ele mesmo não seria capaz de se ajudar. E, pelo impacto que fez um vergão vermelho e ardido no meu braço, me preocupo com o que tenha feito com Peeta.
– Eu... Eu estou bem. Eu acho.
– Por que “eu acho”? O que você está sentindo? – fiz força para mover o galho de cima dele. – Não se mova. Ow! Posso ter uma mãozinha aqui? – gritei aos outros, que nos olhavam como se fôssemos uma figura do além.
Logo, Johanna e Finnick se aproximaram e me ajudaram a mover o galho de cima de Peeta.
Fiquei brava com ele quando tentou se levantar. Eu não o deixaria fazer nada até descobrir qual era o grau do ferimento dele.
Levantei a blusa dele até o seu peitoral e aquilo teve um efeito contrário do que imaginei. Eu queria Peeta, e o queria naquele momento. Nunca pensei que ficaria com tanto... Desejo desse jeito. Foquei-me no que precisava antes que o atacasse na frente das câmeras.
Um pouco abaixo do estômago dele, estava com uma região avermelhada. Certamente por causa da pancada. Bom, eu espero que tenha sido por causa da pancada. Era um vermelho mais vivo, mais do que meu braço, e foi aquilo que me fez preocupar um pouco mais. Não sabia o que era, mas algo me dizia que não era bom.
– Não escutei nenhum canhão, Cash – a voz estava longe, mas não podíamos nos arriscar.
Cash só podia ser do Distrito um, a irmã do falecido Glom.
– Temos que sair daqui agora – Johanna nos avisou.
– Então vamos fazer os canhões explodirem, Enobária.
Tínhamos que sair dali e tínhamos que fazer isso rápido.
Peeta ia se levantando, mas os meus instintos diziam que era melhor eu pará-lo. Deitei-o de novo e fiz o meu melhor para carregá-lo. Ele protestou baixinho, mas o ignorei.
Deus, Peeta era pesado. Claro, eu já sabia disso. Mas, sempre que sentia seu peso sobre o meu, eu tinha uma cama pelas minhas costas.
Pegando o conselho de Venia novamente, tentei seguir o passo do resto do grupo o mais rápido que pude.
– O que eu tenho de tão grave assim que você não me deixa andar? , você não me aguenta.
– Cale a boca. Não é porque não carrego sacos de farinha de um lado para o outro que não tenho força para aguentá-lo.
– E o que eu tenho?
– Não sei.
– É grave?
– Não sei – e era isso o que mais me preocupava. – Em todo caso, disse que o protegeria até o fim. É isso que estou fazendo.
– Você me salvou de ser esmagado. Obrigado.
– Nada mais do que prometi, Mellark – sorri para ele, controlando meu repentino choro que subiu minha garganta.
Peeta decidiu parar com as perguntas e praticamente se enroscou nos meus braços. Tive que me segurar para não chorar mais uma vez e para guardar um sorriso. Não podia mostrar para ninguém que estava gostando.
Saímos da floresta e achamos um pequeno lago com várias pedras e um pequeno declive, perfeito para um esconderijo.
Assim que larguei Peeta ainda deitado, ele estava dormindo. Preocupei-me a ponto de checar os sinais vitais dele, mas estavam bem. Depois, fui ao encontro dos outros três, que conversavam baixo.
– O que houve com ele? – Beetee perguntou.
– É difícil saber agora. Não tem sintoma de nada ainda.
– E ainda assim você não o deixou andar por si mesmo – Johanna apontou.
Jeez, boa observação, Sherlock.
– Algo me diz que é sério. A barriga dele não deveria estar vermelha como está. De repente, quando ele acordar, vai parecer melhor.
– Estávamos pensando em como isso vai acabar – Finnick falou e o olhei intrigada.
Ele se referia a que, exatamente?
– Acho que consigo parar o relógio.
– Como? Não é como se ele funcionasse com pilhas. Afinal, é Capitol que o controla.
– Sim, mas tudo que eles controlam tem algo que espalha a energia.
– Cabos – Finnick se pronunciou e Beetee assentiu.
– Eu sei onde é que o raio cai. Se pudermos causar um curto nele...
– Causaria uma explosão bonita – comentei e ele assentiu mais uma vez.
– O local deve ser altamente protegido.
– E é, Johanna. Por isso a explosão vem a ser útil.
Na hora, todos nós entendemos. Campos de forças mais explosão igual a liberdade.
– Tudo bem, mas como faremos isso? Não temos nada que possa explodir aqui dentro.
– Temos a natureza e, por si só, ela já é um campo minado, . Vou pensar em alguma coisa. O mais rápido possível. – olhou bem no fundo de meus olhos e depois para Peeta.
De novo, eu sabia o que ele queria dizer. Eu tinha um feto parcialmente desenvolvido e morto preso em meu útero. Era necessária a remoção dele antes que meu próprio filho causasse uma infecção interna. E Peeta... Bem, o que quer que ele tenha, não deve ser bom.
Em momento algum, deixei Peeta sozinho. Não é que não confiava em ninguém mais para olhá-lo, mas eu queria e precisava. Se ele estivesse mal, a culpa seria minha e teria falhado no que prometi a mim mesma. Se ele morresse... Tudo que passei seria em vão.
Sua situação me preocupava um pouco. O vermelho de sua barriga se transformava em um roxo intenso com algumas veias bem fortes em volta. Aquilo era algo pra se preocupar. Era como se todo seu sangue estivesse indo para aquele lugar. Ou melhor, saindo...
De repente, o que ele tinha veio direto para a minha cabeça. Uma resposta instantânea. Saber do que se tratava não ajudou em nada, já que eu não podia fazer nada com o que tinha aqui.
Percebendo bem, agora que sabia, Peeta tinha todos os sintomas visíveis. Eu só precisava falar com ele para ter certeza.
– Você está aqui.
– Se não estivesse, estaria quebrando minha promessa, Peeta – cortei o assunto. – Como você está?
– Bem, eu acho. Um pouco zonzo, parece. Com sede.
Meus olhos marejaram com a resposta dele. Mais sintomas.
– Posso ver um negócio? – ele concordou e me pus a examiná-lo.
Seu olho estava branco, extremamente branco. Nenhuma veia pulsava de lá. Suas mucosas não tinham coloração também, o que me preocupava mais ainda. Precisava de um médico ali urgente.
– O que foi?
– Você me promete que não vai se levantar?
– , o que eu tenho? – e fez exatamente o contrário do que eu pedi.
Fui obrigada a empurrá-lo para baixo de novo.
– PROMETA-ME! – gritei. – Você NÃO VAI se levantar POR NADA!
– Ok. Eu prometo... , diga-me o que eu tenho.
Fiquei no dilema de falar ou não falar. Se falasse, conhecendo Peeta do jeito que conheço, ele já vai entrar em estado de morte. Começar a fazer planos, dizer-me o que fazer pra fugir daqui e blá, blá, blá. O problema é que, depois de tanto tempo, tantos acontecimentos que passamos juntos, eu não conseguiria seguir em frente sem ele.
– Depois eu falo. Você precisa descansar.
– Estou com sede.
– Não posso lhe dar nada, Peeta – mordi meus lábios, escondendo o choro estridente, mas duas lágrimas caíram rapidamente.
Nessa hora, ele entendeu que aquilo que eu não disse era grave, bem grave. Sua expressão se tornou derrotada e, sem poder fazer mais nada, pegou minha mão.
– Tudo bem, . Você já fez o suficiente. Obrigado – apertou-a, fazendo-me chorar mais.
– Desculpe-me, Peeta. Eu falhei com você.
– Pelo contrário. Você me salvou de tantas coisas... Fez muito mais do que o necessário. Agora você tem seguir em frente. Prometa-me que vai ganhar essa coisa. Você me fez prometer que eu não me levantaria. Agora me prometa que vai ganhar isso.
– Prometo – mas não ia. Não estava falando a verdade e ele sabia disso.
Tinha perdido todo mundo. Meus pais, minha vida, minha segurança, meu filho e agora estava perdendo Peeta. Só estava faltando Haymicht para acabar com tudo.
Levantei-me, dizendo que faria alguma coisa sobre a sede dele.
Encontrei os outros e disse o que Peeta tinha. Todos me olharam com cara de pena, mas ninguém disse nada. Finnick me abraçou, porém não me senti muito confortável. Agradeci pelo gesto, mesmo querendo que ele fosse Peeta.
Naquela noite, eu mal dormi. Pedi para ficar de vigia e observei ao redor o tempo todo. Beetee olhava para um ponto, esperando o raio a qualquer momento. Assim que ele caiu, fiquei com medo de uma tragédia nos pegar desprevenidos, mas não foi o que ocorreu. Da mesma forma que ontem, nosso lado esquerdo sofria com gritos de todos os tipos de coisas e um canhão soou. Brutus tinha morrido. Bom, isso significava menos um Profissional para lidarmos depois. Fiquei imaginando como sairíamos da arena sem sermos pegos por Capitol depois. Fugiríamos para algum Distrito, se fosse possível, e... Não acredito que direi isso, mas iríamos para o Treze depois. Porém, não antes de tratarmos de Peeta, que vai viver até lá.
Ou eu não sou Bluebonnet. Ou melhor, Mellark. Peeta não vai morrer tão fácil assim nas minhas mãos.
Deixei um pano úmido para a língua dele – algo para melhorar a sensação de sede dele, o que era um sintoma horrível da hemorragia interna.
No meio da noite, ouvi alguns gemidos e tremedeiras vindos de Finnick. De repente, o rapaz acordou assustado com os olhos claros bem abertos.
– O que você tem? – coloquei a mão na testa dele, que fervia como uma panela de ferro. – Por Cristo, Finnick! Você não está resfriado. Por que isso? – de repente, lembrei-me da conversa na caverna: “É um corte bobo. Não é nada”. – Cadê seu braço?
O corte não era nada bobo e estava para lá de infeccionado. Não tão feio quanto estava a perna de Peeta dois anos atrás, mas estava bem feio.
Tirei uma compota de argila moída da minha mochila e a misturei com água por alguns minutos. Depois, coloquei a pomada formada em cima da ferida, trocando por uma nova a cada meia hora.
Já para a febre, fiz um chá de algumas ervas que ajudavam a controlar a temperatura do corpo e coloquei um pano em cima da cabeça dele. Aquilo não duraria muito. Ele precisava de remédios.
Parece que foi só pensar nisso que um paraquedas desceu em minha direção. Esse estava cheio de antibióticos e analgésicos com uma notinha “Cuide deles” com uma letra feminina. Annie.
Olhei para cima e murmurei os agradecimentos com um sorriso aliviado. O plural significava que ela se referia a Peeta também. Por mais que ela tenha enviado, ele não usará nada.
Depois de acordar Finnick, dar os devidos remédios ao rapaz e vê-lo voltar a dormir instantaneamente, pedi a Haymicht um pouco de ajuda. Ele precisava me ajudar a salvar Peeta. E, se os Idealizadores estivessem tirando toda ajuda que ele podia conseguir, eu sabia que o cara daria um jeito de brigar com eles.
Estava quase caindo no sono quando outro paraquedas me tirou a atenção. Ao abri-lo, me deparei com uma mensagem de Haymicht: “Seja corajosa”. O que aquilo significava só fui descobrir quando tirei o presente de lá. Duas seringas.
Gargalhei, tamanho o meu susto. Eu teria que injetar isso em Peeta e parar o sangramento?! Claro, porque eu sou médica profissional.
Porra, eu só sei o que os livros me ensinaram! E a maioria era sobre remédios, e nada sobre seringas que param sangramentos. Aliás, elas não param o sangramento para sempre. Afinal, não fecham o órgão que foi lesado. Então ela deve retardar o processo, apenas, mas por quanto tempo? E, pelo tamanho da agulha, até onde devo enfiar isso? E eu nem sei qual foi o órgão que ele machucou!
– – ouvi sussurrarem meu nome. Era Peeta. – O que foi?
– Haymicht mandou um presente – ri de novo. – Ele pretende que eu salve você.
– Você sempre faz isso – vez de ele rir.
E, se não estivesse sentada, eu derreteria.
– Não sei se consigo.
– O que tem que fazer?
– Aplicar isso aqui – mostrei a seringa.
Peeta ficou quieto por uns segundos, apenas olhando para os objetos.
– Vá em frente – puxou sua blusa.
– O quê?! Você está louco? Qualquer coisa errada que eu faço aqui, você já era.
– Confio em você. Sei que sabe do assunto.
– Não sei a profundidade com que devo colocar isso aqui.
– Sim, você sabe.
– Peeta, você sabe que eu não sei...
– Se não for você, vou acabar morrendo de um jeito ou de outro. E, sinceramente, , não estou muito a fim de morrer. Então, se quiser agilizar o processo, agradeceria – abri minha boca pelo jeito com que ele falou. – Se Haymicht acha que você consegue, eu também acho. Comece logo com isso.
– Mas...
– Ande logo! – acabou falando mais alto.
– O que foi isso? – Beetee acordou.
– Eu meio que preciso salvar a vida de Peeta – disse de uma vez. – Adoraria se pudesse vigiar o local, Beetee.
Antes de tudo, acalmei-me e estudei o local ferido dele. Parecia o baço. Ou o pâncreas. Ou... Vai saber. Acabei concluindo que era o baço porque, se fosse o pâncreas, provavelmente Peeta estaria morto e enterrado a uma hora dessas.
O pior foi ver a expressão dele. É claro que doeu mais do que... Não sei. Eu não senti a dor por ele, mas, por sua expressão, doía muito. Tanto que acabou mordendo sua camiseta e eu ouvi seus dentes rangendo. Por fim, tremendo, eu só esperava que desse certo.
Maravilhada com as invenções de Capitol, quase chorei de alívio ao ver as veias ao redor da lesão deixarem de ficar daquela cor necrosada. Era como se o que tivesse dentro daquela injeção congelasse o sangramento, como imaginei. Só precisaria checar por quanto tempo isso duraria.
– Você vai sobreviver – quase sussurrei, mal acreditando em mim mesma. – Espero que isso dure. E não faça nada brusco. Não coma nada grosso. Você tem... – decidi falar de uma vez. – Um sangramento interno e o que Haymicht deu só vai retardá-lo por um tempo. Então não abuse, Mellark.
– Você é quem manda, Bluebonnet – acabou dizendo meu sobrenome com um tom um pouco irônico.
Foi a primeira vez que sorri de verdade naquele dia inteiro!
Peeta voltou a dormir e fui checar Finnick. A febre dele tinha abaixado completamente, a tremedeira tinha parado e a infecção já parecia melhor. Não sabia se era pela argila ou pelos remédios. Bom, pelos dois, eu acho.
Fui até onde Beetee vigiava por mim para agradecê-lo.
– Pode voltar a dormir, Beetee. Já está tudo sob controle de novo.
– O que fez com Peeta?
– É um remédio que retarda o sangramento, mas não fecha o ferimento. Temos algum tempo até descobrirmos quando sua situação piorará de novo.
– Você tem mais desse remédio?
– Só mais um – falei mais baixo, quase falhando. – Eu volto a vigiar daqui em diante, Beetee. Obrigada.
– Não. Vá dormir, . Afinal, estou descansado e tenho um plano.
– O quê?!
– É. Você precisa dormir bem para que ele dê certo, . Ainda preciso rever todos os passos para que ele realmente dê certo. Vamos explodir a arena, garota.
Era isso. Tínhamos um jeito de explodir tudo ali e fugir. Só que, claro, Capitol a que nos assistia não sabia disso. Achava que só queríamos fazer uma matança.
Durante um bom tempo da manhã, Beetee nos obrigou a tirar um fio que estava em nossos tênis e ele mexeu neles por um bom tempo, até não dar para adiar a caminhada até a árvore. Para mim, aqueles negócios eram enfeites, mas aparentemente estava errada. Fiquei impressionada com a agilidade e o talento que ele tinha ao manuseá-los. O tamanho que os pares de nós cinco fizeram foi incrível. Não sei explicar o que ele fez... Começou a dizer algo sobre fios maleáveis a certas temperaturas, mais tecnologia da qual só ele entendia e voilá. Tínhamos metros e metros de um condutor de eletricidade. Juntamente com aquele que já havia no chão em que pisávamos, o estrago prometia ser grande.
Nossa caminhada foi um pouco tensa. Não sabíamos qual lado sofreria o ataque, já que a ilha estava dividida em três partes e todas já tinham sofrido ataques. Não dava para saber se fariam uma sequência repetida ou uma nova. Além disso, estava preocupada com Peeta. A injeção tinha funcionado muito bem, mas ficar no branco sobre sua duração era horrível. Ele não podia fazer muito esforço. Não queria ver a cor roxa quase necrosada na barriga dele de novo. A qualquer momento, ele podia cair, desmaiar ou, pior, morrer. Claro, sem contar também que eu tinha que esconder a minha dor no útero, sem contar os outros hematomas que adquiri até o momento. E, óbvio, o perigo que corríamos com os Profissionais ainda vivos.
A prioridade no momento era manter Beetee vivo pelo menos até chegarmos à região da árvore. Ele era o único que sabia fazer nosso único meio de escapar dali vivos e, por mais que eu tivesse concordado em ser uma espécie de guarda-costas dele, minha prioridade era Peeta. Se ele caísse, eu também cairia.
Não tínhamos chegado nem à metade do caminho quando meu marido resolveu cair no chão. Não estava muito longe dele. Afinal, tinha que manter distância, mas fui em uma velocidade incrível até o rapaz.
– Argh, por que fui me meter com vocês? Só tem atraso! – Johanna reclamou.
Todos nós a ignoramos.
– Vão indo. Não percam tempo. Eu e Peeta alcançamos vocês.
– Os dois estão feridos. Não vão nos alcançar tão fácil – Finnick tinha um ponto. – Eu fico para ajudá-los.
– Não. Eu preciso ficar vivo. Lembram-se? Ela pode ser boa com um machado, mas, além de doida da cabeça, é só uma pessoa. Estaremos em desvantagem.
– Eu devia era arrancar sua cabeça agora mesmo.
– Faça isso e a chance de acabar viva nisso aqui acaba – Beetee devolveu um sorriso cínico.
– Ei! – intrometi-me antes que cabeças começassem a rolar por ali. – Eu e Peeta vamos nos esforçar. Beetee está certo, Finnick, por mais que sua ajuda fosse super bem-vinda. Vão indo. Estamos perdendo tempo. Eu e o saco de farinhas estaremos logo atrás de vocês.
Sem poderem discutir por falta de tempo e argumento, prosseguiram com a caminhada, deixando eu e Peeta sozinhos.
– Saco de farinha? – ele me perguntou.
– Pareceu-me totalmente apropriado, levando em conta o jeito com que você caiu – dei de ombros, mudando de assunto. – O que está sentindo?
– Tontura. Cansaço – suspirou fundo, derrotado. – Deixe-me aqui, .
– Cale a boca.
– Não. Falo sério – pegou meu rosto, fazendo-me olhar bem nos olhos dele. A aproximação era muito, muito perigosa e eu esperava que ele soubesse disso, porque se dependesse de mim... – Você já fez muito por mim. Agradeço todo seu apoio e confiança, mas não precisa fazer o que prometeu. Não vou me sentir traído.
Fiquei em silêncio, olhando para o rosto perfeito, machucado e sujo dele, sem saber por onde começar a reclamar. Peeta era muito bom com palavras, sempre fora, então sabia que não tinha chances de contra-argumentar.
Então parti para o plano B.
Tirei uma faca que guardava na minha cintura e o empurrei com mais impacto do que força para parecer que machucou. Apertei o pescoço dele com ela, enquanto esperava que os olhos dele saíssem do transe do susto.
– Se eu mandei você calar a boca, acho melhor aceitar a sugestão. Já disse que não vai morrer, não enquanto eu estiver viva. Então acho melhor se acostumar com a ideia de não dar soluções idiotas, enquanto ainda estiver por aqui. Entendeu? – demorou um pouco, mas ele assentiu. – Ótimo.
Finalmente tirei a faca da garganta dele e voltei a agir normalmente.
Está certo que os Jogos me mudaram e que me tornei agressiva e mórbida de um jeito inexplicável... E admito que não foi difícil fazer essa encenação. Peeta realmente estava me irritando com a falta de fé nele mesmo. Precisava parar com isso. De repente, se o assustasse, funcionaria.
Subi a blusa dele para ver como estava e não estava tão ruim. O remédio se mostrou eficiente em torno de poucas horas e acredito que, se aplicasse a outra dose agora, não chegaríamos a tempo a árvore. A menos que eu levasse o corpo praticamente sem vida dele.
Por isso tomei a decisão mais difícil de minha vida: arriscaria a vida dele para ver se dava para salvar depois, se é que isso fazia algum sentido. Contei minha ideia a ele, que concordou sem pestanejar. Assim, ajudei-o a se levantar mais uma vez e, praticamente tendo todo peso dele em cima de mim, fomos andando até a árvore.
Peeta era pesado e difícil de carregar. Em momentos em que a adrenalina está bombando, era muito fácil de fazer esse trabalho, mas não era o caso. Eu só ficava mais e mais preocupada em como saber se estava piorando cada vez mais com a andada ou se ainda dava para aguentar mais um pouco.
Apesar da dificuldade, conseguimos andar uma boa distância. Não tínhamos nos encontrado com os outros ainda e não parecia que o faríamos tão cedo. Durante o caminho, não falávamos nada. Eu sentia mais dor e me cansava mais fácil, mas não podia desistir tão facilmente. Tenho certeza de que Peeta não desistiria de mim. Andávamos perto das árvores para termos mais apoios, porém o relevo não ajudava muito, já que não era completamente plano e tínhamos que nos esforçar mais ainda para andar. E, no meio disso tudo, a cada dez minutos olhava o ferimento dele. O fato de não falarmos me ajudava a contar até seiscentos. Às vezes passando, às vezes faltando, porque não dava para manter minha atenção somente em números. A porcaria da arena era um relógio, mas eu não tinha nenhum para me ajudar a cronometrar o tempo.
Paramos duas vezes no caminho para descansarmos. Devíamos ter andado pelo menos uns três quilômetros e eu estava exausta. Quase não conseguia ser delicada com Peeta quando o deixava deitado no chão. Assim que seu peso saía de meus ombros, meus músculos gritavam de felicidade e eu perdia meus movimentos a ponto de me fazer cair para trás. Quando ele estava prestes a reclamar, achava forças para mandá-lo calar a boca. Além dos números, o que mais falei foi isso.
Não éramos nem um pouco silenciosos – afinal, era algo impossível na situação em que nos encontrávamos – e um dos meus maiores medos era que um dos Profissionais aparecesse de surpresa e fizesse cabo de nós dois. Não só isso, vulneráveis como estávamos, os Idealizadores podem muito bem brincar conosco. Só que não sei... Já estávamos em uma enrascada. Nossa chance de vida era extremamente baixa e o que estávamos fazendo trazia audiência, pelo visto.
Só sei que estava cansada. O sol estava forte, quase tão forte que eu não achava que poderia ficar pior. Não estava com sede, não estava com fome e, apesar do calor, sentia calafrios. Meu corpo tremia vez ou outra e minha respiração ficava cada vez mais ofegante. Estávamos perto? Eu precisava mesmo me deitar no chão e dar uma descansada... A sombra estava bonita.
Segurei qualquer coisa que sentia, qualquer vontade que meu corpo gritava e continuei em frente por sabe-se lá quanto tempo. Olhei os ferimentos de Peeta e ainda estavam relativamente bons, então continuamos.
Quando vi Finnick de longe, achei que fosse algo próximo de Deus. Ele estava olhando para nós, segurando o tridente e, do jeito que estava, sorri feito boba. Parecia algum deus do mar com todos aqueles músculos definidos e delineados, os traços perfeitos e o cabelo queimado de sol... Foi uma visão maravilhosa, antes de eu e Peeta cairmos no chão com tudo.
Só então percebi como estava mal. Não conseguia respirar direito, meu corpo doía e meu estômago estava se contorcendo junto com os calafrios. Por mais que tentasse, não conseguia ficar em pé de novo. Sempre caía por tontura ou falta de força. Olhei para o lado, à procura de Peeta, e ele estava na mesma posição em que tinha caído e desesperei. O que diabos estava acontecendo conosco?!
Finnick vinha correndo nos ajudar e vi Johanna ficar de guarda no lugar dele, sem dar muita atenção a nós.
Engatinhei até Peeta e, com o ultimo resquício de força que tinha, o virei de lado, colocando-o de barriga para cima. Ele estava desacordado e as cores tinham desaparecido de seu rosto. O rapaz já era branco demais. Sem cores ainda era assustador... Pálido como a morte.
Subi a blusa dele, encontrando o roxo quase podre na região estomacal de meu marido. Só que agora se encontrava pior. Era como se eu tocasse ali e o sangue sairia todo apenas com o mais gentil dos toques.
Então Finnick chegou e me ajudou a me colocar de pé, mas daquela vez me joguei ao chão de novo e comecei a gritar com ele coisas que nem eu mesma sei. Sei que falei: “Peeta, sangramento, morrendo, ajuda”, tudo sem fazer uma ordem certa, portanto sem sentido algum. Só que de, alguma forma, ele entendeu e foi o herói do momento. O remédio estava na minha mochila. O rapaz pegou e o deixou pronto, mas não sabia como fazer aquilo, então era minha vez de ajudar.
O mais simples dos movimentos foi o suficiente para me fazer vomitar todo o tipo de alimento que tinha no estômago. Deve ter sido o calor que fez isso mais o esforço excessivo. Só sei que a tontura não passava e eu não parava de vomitar. Nem mesmo para falar o que Finnick deveria fazer.
– Ponto... Mais perto – falei entre uma gorfada e outra.
Aquilo pareceu o suficiente para ele, já que foi com tudo na barriga dele. Ouvi-o murmurando algo como “incrível”, talvez pela rapidez com que o remédio agia, e se apoiando nos joelhos, mais calmo. Em seguida, tomou os batimentos cardíacos dele e relaxou mais uma vez, antes de dar dois tapinhas na bochecha de Peeta.
– E você? O que houve com você?
Eu? Eu estava deitada, ofegante, ao lado de meu próprio vômito sem cor, ainda tremendo feito um animal com medo.
– , você está fervendo de febre! – tirou o remédio que recebeu de Annie, o cantil dele e me deu o remédio. – E tente não vomitar isso também.
E eu juro que nunca fiz um esforço tão grande quanto aquele para mim mesma.
– Peeta está bem?
– Nada que um tapinha não o acorde agora – riu. – Devemos ir.
Respirei fundo e assenti. Antes, peguei uma folha dentro da minha bolsa que eu sabia ser eficiente para enjoos, que colhi assim que paramos pela primeira vez no começo dos Jogos. Ainda estava grávida quando as peguei e sabia que elas poderiam ser úteis em algum momento. Só não imaginava que as usaria mesmo quando tivesse perdido o bebê.
Apoiando em uma árvore, consegui ficar de pé e logo as coisas voltaram ao normal. Bem, na medida do possível. Não conseguia fazer muitos esforços, como carregar um rapaz duas vezes o meu peso, mas fora isso eu estava bem.
Finnick deu o tal do tapinha no rosto de Peeta e ele acordou como se nada tivesse acontecido. E, para ele, realmente nada tinha acontecido. Abriu os olhos e perguntou se já era manhã e o que deveríamos fazer em seguida. Aparentemente, alguém tinha tido uma experiência pré-morte relativamente boa.
Peeta foi com a ajuda de Finnick e eu fui com a ajuda de árvores até conseguir andar por mim mesma até onde Beetee estava. Johanna vigiava ao redor com seu machado na mão. Uma cena bem perturbadora, para falar a verdade. Ela parecia louca de verdade.
– Bela performance ali, Bluebonnet, jogando todas as suas tripas para fora. Assusta qualquer um – Johanna tirou sarro comigo.
– Cada um faz o que pode – dei de ombros, sorrindo.
Beetee já estava nos detalhes finais de sua artimanha e tudo que devíamos fazer era ficar de guarda até ele acabar para seguirmos com a armadilha. Peeta dava um jeito de tampá-la, deixando-a segura, caso algo nos atrapalhasse e atrasasse tudo para o próximo dia. Era uma forma de ele se sentir útil e, ao mesmo tempo, não colocar a vida em risco mais do que já estava.
– Bem, acho que não poderia ter feito isso melhor.
– Tem certeza de que vai funcionar? – Johanna perguntou, recebendo um olhar nada amigável.
– Não duvido de suas capacidades de assassinato a mão armada, não duvide da minha de construir algo que exploda.
Johanna sorriu amarelo e levou as mãos para cima em sinal de inocência.
– Foi mal aí, Volts.
– Alguém precisa levar esse fio até o lago e deixá-lo bem fixo lá com os outros. Assim, teremos mais potência na explosão.
– E vai explodir tudo? Como não afetará a nós?
– Conectei a cabos que afetam a arena inteira, menos esse lugar. Seria interessante que, quando acabassem de colocar o fio na água, voltem para cá. Caso contrário, estaremos fritos.
Ponderamos sobre aquilo por alguns segundos. Estar no lugar errado na hora certa seria morte então. Ok, sem pressão.
– E quem vai lá? – perguntei.
Logo, quase todos olharam para mim. Ótimo. Sempre quem pergunta! Rolei os olhos, já soltando minhas coisas no chão, mas segurando minhas armas.
– Terei companhia ou farei tudo isso sozinha?
– Eu vou com você – Peeta falou, já se levantando.
– Não. Você vai ficar aqui – fui mais rápida. – Você quase morreu várias vezes! Qual é o seu lance com a morte? Dizem que, se brincar muito com ela, ela acaba perdendo a paciência.
– , estou bem. Aliás, não tenho muito a perder, se isso der errado.
Eu entendi o que ele quis dizer. O rapaz disse que, se caso acontecesse algo comigo, ele não ficaria para trás. Bem, nem eu, caso fosse o contrário.
Mordi meus lábios, tentada a deixá-lo vir comigo, mas Johanna foi mais rápida.
– Não. Eu vou com você. Se o perna-de-pau com um sangramento interno for com você, teremos chances de adiar isso para amanhã e, sinceramente, estou com uma vontade de acabar logo com isso – fez uma cara maníaca. – Vamos, Katniss 2.0.
Aquele apelido era a pior ofensa da história.
Bufei baixo e mordi minha língua para não falar o que não devia para segui-la com o rolo de fios na mão, deixando-o cair conforme andávamos. Dei um sorriso convincente a Peeta que esperava que falasse que eu voltaria para ele e que sairíamos juntos daquilo.
Só que desde quando as coisas aconteciam como eu queria?
O caminho até o lago foi tranquilo. Não fizemos barulho, tampávamos o fio vez ou outra conforme andávamos e tentávamos deixá-lo o menos chamativo possível no meio de uma floresta.
Sabíamos que a hora se aproximava, então devíamos ser rápidas, principalmente quando não sabíamos o tamanho do estrago que água mais eletricidade poderia fazer. Devia ser feio, mas não queríamos estar ali para ver. Entrei na água e estiquei o fio até sua extremidade, deixando-a até minha cintura. Fiquei aliviada que não precisava ir até mais que aquilo. Desde que quase morri afogada no começo desses Jogos, águas fundas não eram algo convidativo e reconfortante para mim.
Johanna deixou o fio bem preso entre algumas grandes pedras na areia até me ajudar a prender dentro da água com outras pedras. Por fim, permitimo-nos sorrir uma para outra antes de sairmos da água, em direção a árvore.
Tentávamos correr o mais silenciosamente possível, visto que não tínhamos muito tempo. Seguíamos o fio como ninjas, pulando de um lado ao outro sem muitos ruídos, mas com rapidez e destreza. Nós não sabemos qual tinha sido nosso erro até então, antes de vermos a trupe Profissional se aproximando. Tanto eles quanto nós estávamos tão perto, mas tão perto, que qualquer barulho de qualquer uma das partes era o fim de um plano – o único – que poderia nos tirar daqui sem um massacre.
Eu e Johanna nos escondemos e nem respirávamos direito com medo de delatarmos nossa posição. O barulho veio da árvore mesmo, acompanhada pelo fio.
O raio caiu na tal e tudo que consegui ver depois era fumaça acompanhada de explosões por todos os lados, até que a área bem na nossa frente explodiu, levando-nos a metros de onde estávamos.
Meus ouvidos doíam tanto que só faltava sangrar com a altura do zumbido. Mas sangue não era o que faltava: ele escorria da minha cabeça pela pancada que nem senti, dos machucados do meu braço e também do Profissional morto no galho em cima de mim. Não consegui saber quem era. Não tinha traços conhecidos nem certos pelo estrago que estava em seu rosto.
As explosões continuavam, mas eu me levantei mesmo assim. Não conseguia ver Johanna em lugar algum naquela fumaça e nem mesmo sabia o quão longe tinha sido jogada quando estávamos juntas. Andei à esmo, esperando achar os outros, e pela primeira vez a sorte estava ao meu favor. Conseguia ver Finnick, Peeta e Beetee sem nenhum arranhão, mas não significava que estavam bem. Meu marido, por exemplo, estava no chão, desacordado e provavelmente sem cor. O remédio não deveria estar fazendo mais efeito.
Corri o mais rápido que pude, mas tudo que consegui ver foi Johanna se jogando na minha frente com seu punho e, logo em seguida, esse entre meus olhos.
A próxima coisa que enxerguei foi o machado dela voando em cima de mim e um corpo caindo do meu lado morto. Fechei meus olhos de novo por alguns segundos e, quando os abri, as árvores voavam como loucas. Então cheguei à conclusão de que a louca ali era eu. Como árvores poderiam voar?
Mais uma vez fechei meus olhos e, ao abri-los, vi um aerobarco se aproximando deles com escadas e algumas pessoas. Johanna estava ao meu lado, desacordada, e do outro lado Enobaria também se encontrava desacordada, mas não consegui fazer ligação nenhuma com os últimos acontecimentos, visto que também estava prestes a apagar.
E a última coisa que ouvi antes de perder completamente minha consciência foi Peeta gritando meu nome.
Ao acordar, estava em um lugar escuro, em cima de um colchão fino e fedido com a maior dor de cabeça do mundo. Parecia que tinha levado uma pancada no rosto.
Olhei ao redor, tentando entender como tinha ido parar lá e onde estava, mas nada fazia sentido algum. Parecia um lugar velho, com grades de metal e bem fortificadas. Precisei de um tempo para pelo menos entender uma coisa: eu estava dentro desse lugar velho com grades de metal fortificado.
Arrastei-me até a grade e tentei sacudi-la para ver se abria, mas tudo que consegui foi cansar.
– Nem precisa tentar – ouvi uma voz do escuro. – Isso aqui é dos tempos de antes das guerras milenares. Nunca seriam abertas facilmente. Principalmente por você.
Nunca tinha ouvido essa voz antes. Pelo menos não diretamente a mim.
– Onde estamos?
– Uma prisão. Um calabouço, uma masmorra. Chame do que quiser. Só saiba que não temos escapatória.
– Já tentou, pelo menos?
– Garota, enquanto você dormia como se não estivesse acontecendo uma guerra lá fora, como se não tivessem pessoas loucas por nossas cabeças, eu tentei arrancar essas grades com todas as forças que eu tinha e ainda com meus dentes. E, se tivesse conseguido, não estaria aqui para lhe contar.
Com os dentes?
Aquilo me deu pistas o suficiente para eu saber que Enobaria era minha companheira de cela, mas onde estávamos?
– Somos prisioneiras de Capitol, – ouvi a voz de Johanna.
– Ah, e Snow deixou um presentinho para você – a outra falou. – Está ao lado de sua cama.
Tateei o local até achar uma rosa que não precisava estar escuro para saber que era branca. Se tivesse olhado direito, teria certeza de que poderia enxergá-la perfeitamente sua cor. Só que não prestei atenção nisso porque a rosa estava em cima de algo pegajoso.
Levei a mão até o nariz para saber do que se tratava e senti o cheiro de sangue. Meu coração começou a palpitar como nunca e minha respiração estava quase alcançando o desespero. Voltei minhas mãos até o local e senti meu presente. Não tinha mais que dez centímetros, mas tinha formas... Uma cabeça, braços, pernas, mal tinha dedos, boca, nariz e olho. Comecei a chorar quando entendi o que era e pus a mão no meu ventre. Não sentia a dor de antes, não me sentia doente e minha barriga não estava levemente avantajada. Não mais.
Capitol tinha tirado meu filho e deixado seu corpo sem vida comigo.
Gritei com todas as forças, enquanto chutava e batia na grade que me prendia ali até que alguns Pacificadores entraram com cassetetes e me batessem até dormir de novo.
Acordei com uma luz branca na minha cara, perturbando minha visão ofuscada por um tempo até tê-la de volta cem por cento. Estava deitada em uma maca igual à que deitei por duas vezes quando cheguei do Distrito 12, enquanto era limpa pela minha equipe de preparação.
Minha cabeça latejava de dor e minha mandíbula estava um pouco travada e inchada. Sentia um gosto metálico e amargo de sangue, mas tinha certeza de que não havia nenhum sangramento ali.
Pensar em sangue me fez lembrar na hora de Peeta. Onde quer que ele esteja, será que estava vivo? Curado da maldita ferida interna? Preso em Capitol comigo, mas em algum outro lugar como refém? E onde estariam os outros? Finnick, Beetee, Hamitch... Não ouvi nada sobre eles.
Não que tenha ouvido muito. A última coisa de que me lembro com clareza era estar em presa em uma cela, ao mesmo tempo em que Enobaria e Johanna estavam presas em outras também. E ter meu filho retirado de mim e de seu corpo estar jogado ali às traças. Lembro-me também de que gritei, e gritei muito. Aí uma porta se abriu, o primeiro vestígio de claridade que tinha, e logo uns cinco Pacificadores apareceram. Abriram minha cela e a espancaria começou. Depois disso, tive vagos momentos de lucidez, os quais não sei se realmente aconteceram, como alguns rostos desconhecidos dando tapinhas no meu, alguns instrumentos afiados, algumas linhas, máscaras e panos brancos umedecidos. E então estou aqui... Em algum lugar... Com alguns pontos pelo corpo, alguns roxos que já desapareciam e o cheiro forte de iodo que vinha de mim. Cheguei à conclusão de que estava em uma espécie de enfermaria, mas qual o ponto de apanhar e receber tratamentos depois?! Bem, certamente não poderia reclamar.
Tentei me levantar, mas me encontrei presa pelos calcanhares e pelos pulsos, mesmo que levemente soubesse que não conseguiria me soltar daquele material forte facilmente. Além do mais, era extremamente difícil ficar sentada com a tontura que sentia. Imagine andar por aí, procurando um meio de escapar. Ao cair com tudo na maca, minhas costas sentiram o impacto, porém o barulho foi maior do que a dor que senti.
Em torno de cinco segundos, alguém entrou no cômodo. Muito provavelmente porque fiz barulho.
Essa pessoa estava vestida toda de branco, mas não era um Pacificador, apesar de cobrir a cabeça inteira. Primeiro de tudo, ele não estava armado e usava uma máscara para cobrir o nariz e a boca, além de óculos estranhos que lhe tampavam os olhos da mesma forma que a touca branca lhe tampava o cabelo. Era impossível saber se o ser ali era homem ou mulher, quanto mais humano. Depois de saber o que Capitol conseguia fazer, tudo era possível.
Fiquei em silêncio, enquanto a pessoa me examinava. Certamente era um médico, um enfermeiro... Vá saber. Em momento algum ela soltou alguma informação ou sequer falou comigo, então a deixa era para mim.
– Onde estou?
Não obtive resposta, como imaginei que seria, mas a pessoa hesitou um pouco antes de voltar a me examinar.
– O que eu tenho? O que querem de mim? O que está acontecendo? Dá para responder pelo menos alguma coisa?
– Você vai ficar bem, senhora Mellark – foi a única coisa que a pessoa disse.
Apesar das perguntas não respondidas, pude notar uma das minhas dúvidas: meu médico era um homem e, por sua voz, deveria ter entre vinte e cinco e trinta anos.
Juro por tudo quanto é mais sagrado que tentei não mostrar nenhuma reação quanto ao nome que me foi dirigido... Quem sabe até uma pontada de confusão? Na altura do campeonato, não havia motivo para esconder a verdade. Estava grávida quando me tiraram da arena, muito provavelmente descobriram que aquele filho era do Peeta – claro. De mais quem seria? – e Panem inteira deveria saber de toda a farsa. Ou simplesmente só aqueles que tinham acesso a mim. De um jeito ou de outro, não sabia se era algo bom ou ruim.
Se Panem sabia, estaria revoltada comigo e com Peeta ou, pelo contrário, mais bravos ainda por saberem que nossos sentimentos tiveram que ser controlados para que a situação no país pudesse ser mantida? Por outro lado, se não soubessem e só aqueles que tinham acesso a mim tivessem essa informação, quão pior podia ficar minha situação? Estão cuidando de mim agora, mas tudo tem um preço. Obviamente não estão fazendo essa caridade à toa e querem algo em troca, algo de mim. Chutaria minha vida de uma vez, porém as opções são tantas que não posso nem pensar em somente uma, porque todas as possibilidades são válidas. Só que também, por seguirem ordens, estão avaliando minhas reações ao soltarem palpites não confirmados ainda e estudando para saber se a informação é valida ou não. Posso dizer que falhei nessa.
O homem fez um sinal para a porta e quatro Pacificadores entraram com seus cacetes. Dois deles ainda tinham armas nas mãos.
– Eu vou desamarrá-la – o médico falava devagar, como se eu fosse uma criança. – Se tentar correr ou me ferir, eles farão o trabalho deles e você terá que ficar nessa cama por mais um tempo. Mais do que gostaria.
– Para onde vão me levar? – ele não respondeu, mas se aproximou para me desamarrar. – Ei! Se não me responder, pode me deixar aqui mesmo, porque vou chutá-lo tanto que essa máscara não vai proteger o seu rosto.
– De volta para onde estava antes de vir aqui – falou, depois de alguns segundos pensando.
Afinal, eu tinha outro lugar para ir?!
Acabou que obedeci ao rapaz. Não queria mais problemas para mim – não quando meu rosto começava a desinchar – e também não queria confusão para o médico. Certamente ele fez um bom trabalho comigo. Não precisava que eu desse uma de maluca.
Fui escoltada pelos quatro Pacificadores: dois segurando meus braços, enquanto os que usavam as armas se dividiram em andar na frente e atrás de mim.
A situação era até cômica. Eu contra um Pacificador sairia muito machucada, sendo muito otimista em uma luta. Era realmente necessário quatro deles para me locomover de um lugar a outro? Estava me coçando para caçoar deles, mas sabia que, se fizesse isso, as chances de voltar à enfermaria eram grandes e estava muito bem sem dores, pela primeira vez em muito tempo.
O caminho todo eu estava vendada. Só via o chão branco em que pisava e meus pés descalços. Escutava alguma coisa ou outra, mas nada muito relevante, até pararmos algumas vezes para passarmos por umas portas até o meu destino final. A porta definitivamente era diferente das outras, tanto pelo o seu jeito de manusear como o som que fazia. Não era nada moderno, nada tecnológico e avançado. Fazia barulhos de metal, algumas coisas destrancando à moda antiga, correntes girando para os lados, seu impacto com o metal e o rangido agudo de alguma coisa se abrindo. O mesmo processo para que ela fosse fechada e mais uma vez para abrirem outra mais na frente.
Finalmente retiraram minha venda e me vi na minha sala, enquanto os Pacificadores saíam e trancavam tudo ali. Estava claro, pela primeira vez. Uma pequena luz artificial saía de um buraco não tão grande do teto e dava uma iluminação relativa ali. Havia quatro celas e todas estavam ocupadas: Johanna, eu, Enobaria e... Annie.
Todas estavam diferentes do que me lembrava. Nenhuma usava a roupa da arena. Usavam algo mais parecido com o que eu trajava: um conjunto de uma camiseta e uma calça da mesma cor, pés descalços e sem cortes no rosto. Apesar disso, seus olhos mostravam cansaço e desistência. Depois daquilo, perguntava-me como eu estava.
– Achei que tinha morrido – Johanna falou, quando ficamos só nós quatro.
– Deveria ter feito isso na primeira vez que foi para a arena.
– Você poderia estar aqui de um jeito ou de outro – retruquei para Enobaria, ácida. – Sabe tão bem quanto eu quem eles querem.
– Diga logo onde estão todos. Eu só quero ir para casa.
– Se eu soubesse de alguma coisa... A última coisa que lembro é que explodimos a arena e você... – apontei para Johanna. – Você quase me matou.
– Não me venha com essa. Salvei sua vida ali. Essa aí do seu lado quase a mataria, se não fosse eu ter dado uma mãozinha. Não sou vira-casaca.
– E por quanto tempo fiquei fora?
– Tenho cara de quem tem um relógio? – ela perguntou irônica, mas acabou respondendo mesmo assim. – Depois que apanhou feio, as luzes se acenderam e você ficou perdendo sangue, desacordada por uns quinze minutos, até que a tiraram daqui e a trouxeram de volta três horas depois nova em folha.
Minha cela ainda tinha o colchão fino, mas estava limpa como se nunca houvesse sangue ali.
– E aí, qual é o itinerário aqui? – tentei fazer o melhor da situação.
– Não sabemos. Ninguém entrou ou saiu desde que você foi levada daqui junto com seu sangue e seu defunto – Enobaria respondeu. – Não recebemos comida nem água alguma. Apenas algumas curas para depois da arena.
– Com ou sem comida, não encosto em nada que Capitol me der. E acho que, se quiserem sobreviver, deveriam fazer o mesmo.
– Não acho que nos envenenariam, Johanna. Pelo menos não agora – ela me olhou duvidosa. – Se quisessem que morremos logo, para que se darem o trabalho de nos prenderem, em primeiro lugar? Depois, por que bater para cuidarem, como se nada tivesse acontecido? Eles querem algo de nós primeiro.
– Informações – completou Enobaria.
– Mas, levando em conta que não sabemos de porra nenhuma que aconteceu conosco, temo que morreremos intoxicadas em breve – franzi meu semblante, preocupada.
Ficar encarcerada era um saco. Não tinha o que fazer, as pessoas não queriam conversar e eu não era do tipo que gostava de ficar quieta em companhia. Costumava meditar no Distrito 12, mas não durava mais do que uma hora. Dormir também não estava nos planos e não tínhamos muito o que falar. Quer dizer, que tipo de conversa teríamos? As duas que tinham capacidade de falar estavam bem sem fazer isso e nosso assunto seria nossa atual situação – que não levaria a nada – e a anterior – que também não levaria a nada.
Então tudo que me restou foi me sentar no meu colchão e olhar para o buraco de luz que começava a ficar escuro mais uma vez, pensando em qualquer coisa. Tudo que eu queria saber era sobre Peeta. Precisava saber se ele estava vivo ou morto, onde estava e o que fazia. Seria impossível relaxar sem saber disso primeiro.
Quando estava prestes a soltar esse assunto, a porta se abriu e quatro Pacificadores entraram com bandejas na mão e uma garrafa também. Era nossa primeira refeição e talvez a única... E a última. Cada um se dirigiu para cada cela e abriu uma portinhola para deixá-la ali, sem ter que abri-la inteira. Sem uma palavra, ou mesmo som além dos metais, os quatro entraram e saíram.
Olhamos para o prato e para a garrafa sem sabermos exatamente o que fazer. Admito que estava morrendo de fome e sede, mas prefiro ter uns dias a mais de vida a morrer envenenada, se essa fosse a opção.
– Então, Bluebonnet, não é você que disse não nos matariam ainda? Vá em frente e experimente – Enobaria gozou.
– Não estou com fome – sorri falsa. – Se quiser, descubra por você mesma.
Mas ninguém se moveu. Apenas olhávamos para o embrulho com olhos famintos, porém com receio por um tempo relativamente grande.
A primeira movimentação que houve na cela, desde que os Pacificadores entraram, veio de Annie. Justamente ela. A mulher sempre se mantinha extremamente calada e praticamente sem piscar, olhando para um ponto qualquer da parede. Tê-la ali era quase que o mesmo que não ter. Ela engatinhou até o embrulho e o abriu devagar, olhando-o por poucos segundos antes de devorá-lo. Todas só olhamos para ela com certa admiração e medo pelo o que podia acontecer, até que ela acabou com o conteúdo da bandeja e tomou o líquido da garrafa.
Mesmo sabendo que era seguro, ainda esperamos para ver se não teria um efeito contrário, após alguns minutos de digestão. Johanna até tentou perguntar. Era a primeira vez que eu a via falar com jeito com uma pessoa, sem toda aquela raiva e ironia carregada, mas nem assim obteve resposta. Annie simplesmente esticou as pernas e respirou fundo, voltando a olhar para o teto.
Desse jeito, Johanna foi a próxima a comer. Depois Enobaria xingou e fez o mesmo, sobrando para mim fazer o mesmo por último. Não queria morrer. Não estava feliz com a ideia de partir sem ter ideia do que estava acontecendo, mas uma hora ou outra isso aconteceria, querendo ou não. Então decidi jogar na sorte e me alimentar.
A nossa comida, se é que podíamos chamar assim, era um caldo verde bem ralo e frio com um pedaço ou outro de pão ou carne. Tudo tinha o mesmo gosto e a mesma textura. Sim, estava como refém e não podia pedir por coisa melhor do que já tinha. Eu sabia. Na garrafa, descobri que era água e nunca fiquei tão agradecida antes. Ainda assim, tomei poucos goles da pequena garrafa para que pudesse guardar para depois. Assim que acabei de me alimentar, os quatro Pacificadores entraram de novo e pegaram a bandeja.
Quando saíram, nós três nos olhamos e tentamos rodear a sala em busca de uma câmera porque, depois daquilo, tínhamos a certeza de que éramos observadas. Não tivemos muita sorte, visto que nosso período de luz estava no fim.
– Ok, somos observadas. Pelo o quê?
– Estamos em Capitol, sua estúpida. Eles possuem câmeras do tamanho de um grão de areia.
– Amiga, quer dar uma passada pelo Distrito 12? Mudou bastante desde que passou por lá no seu Tour dos Vitoriosos – respondi irônica para a assassina do Distrito 2.
– O ponto não é esse – Johanna nos cortou da discussão. – Por que somos observadas e muito provavelmente escutadas, quando não temos o que fazer aqui? Estamos trancafiadas aqui dentro, sem jeito de bolar algum plano infalível e sem conseguirmos fugir. Qual o ponto de isso tudo?
– Pense bem... Temos aqui dentro quatro Vitoriosas de distritos diferentes que conseguiram não só matar grande parte de vinte e quatro pessoas, mas burlar os contratempos dos Idealizadores. Sendo assim, somos mais perigosas do que qualquer pessoa. Se fosse um deles, eu nos prenderia no lugar mais poderoso que temos e não tiraria os olhos de nós quatro.
– Gosto do jeito que pensa às vezes, Bluebonnet.
Aquilo era um elogio que recebi de Enobaria?! E eu estava orgulhosa de mim mesma?! Uau. Algumas horas em cativeiro me mudaram bastante.
– Mas isso não responde o que querem de nós. Certo, manterem-nos presas é uma questão de segurança para eles, mas o que vão fazer conosco? Querem alguma informação de nós e farão de tudo para consegui-la.
– Você tem alguma informação? – perguntei. – Eu só sei que, assim como vocês, fui injustamente chamada de volta à arena e simplesmente procuramos um meio de nos livrarmos de tudo aquilo. Não sei nem se deu certo.
– Deve ter dado. Somos as únicas aqui – Enobaria deu de ombros. – Fomos jogadas da arena até aqui.
– Nem todas. Annie não estava na arena conosco.
Johanna falou algo que nenhuma de nós tinha pensado antes. Ficamos em um silêncio mortal, enquanto digeríamos aquela informação. Ela não estava na arena nem mesmo tinha condições de agir por si mesma, pelo que parecia. Por que, então, ela estava aqui?
– Annie? – tentei. – Sei que prefere ficar no silêncio, mas como você veio parar aqui? – como esperava, não obtive resposta. – Temos algumas dúvidas... Vamos morrer de um jeito ou de outro. Se pudesse responder o que aconteceu...
Ficamos em silêncio por alguns minutos, dando tempo a ela. Contei até trezentos, quando estava prestes a desistir de esperar, mas fui surpreendida com uma voz doce e fina.
– Fuga. Aerobarco. Capitol. Só nós aqui. Sem chance. É tudo que sei – e repetiu a última frase baixinho várias vezes.
Apesar das poucas palavras, entendemos algumas coisas delas. Não sei se me desesperava... Se só nós estávamos aqui, significava duas coisas: só nós estávamos vivas ou só nós fomos pegas pelo lado errado.
Afinal, quantos lados tinham? A revolução não era feita por nós, meros plebeus cansados de viver na miséria e desigualdade, que ralam a pele e o sangue todo dia para abastecer uma minoria ignorante e sem escrúpulos? Desde quando tínhamos aerobarcos? Não tínhamos como comer, mas possuíamos um aerobarco? Tinha muita coisa errada ali.
Preferi acreditar no fato de que Peeta estava vivo e longe dali, preferencialmente com Hamitch, ambos fugindo daquela vida horrível.
Agora, o que era sem chance? Nós não tínhamos chance de sair vivas dali? Novidade. Os outros, os fugitivos, não tinham chance de contra-atacar? Sinceramente, não faço ideia. Sem chance de derrubar Capitol? Também não sei. Não sabia de muitas coisas e isso era a pior sensação do mundo. Tudo que queria era um pouco de resposta!
– Isso só criou mais mil perguntas, mas obrigada por falar – respondi por fim.
– Que tipo de plano idiota vocês tinham, afinal? – Enobaria perguntou.
Então alguma coisa na minha cabeça se acendeu.
– E se você estiver do lado deles? – indaguei. – Presa aqui como fachada para arrancar informações... Vou logo lhe avisando: não sei de nada.
– Garota, agradeça que tem uma grade entre nós. A primeira coisa que farei quando ficar livre daqui será rasgar sua garganta com meus dentes.
– Ah, tão catorze anos atrás – falei de saco cheio. – Mesmo se tivesse alguma informação, como confiar em você? Afinal, em vocês?
– Ei, o que tem eu nisso tudo? Estava do seu lado desde o começo! – a moça do outro lado da minha cela se indignou.
– Estava? Que eu saiba, você nunca deu uma resposta até aparecer na arena do meu lado. Se for tudo um plano? De repente, até a coitada da Annie está nessa!
– , cale a sua boca antes que eu arranje um jeito de fechá-la para você.
– Em que parte eu errei, Johanna? Vocês todos de repente apareceram com uma pulseirinha da amizade e ficou por isso mesmo. Confiei em vocês!
– De quem era essa pulseirinha, querida? – ela estava brava. – Quem você acha que bolou todas as coisas, a mente disso tudo?
Hamitch, sim. Ele era o dono das pulseiras. Era por isso que sabíamos em quem confiar. Mas por que estávamos ali, então?
– Sacrifiquei-me para manter você e o Loverboy vivos! Não entende, ? Katniss pode ter sido a pólvora para a revolução, mas você é o fogo. Se você ou Peeta morressem ali, tudo iria por água abaixo.
– Tudo o quê?!
– A esperança.
Naquele exato momento, cinco Pacificadores entraram na sala e a luz branca que entrava lá de fora quase nos cegou com a escuridão mórbida do nosso cômodo. Eles seguiram em minha direção e achei que aquele seria o meu fim. Até tinha me preparado para lutar, mas eles seguiram para a cela do lado. Abriram a porta de Johanna, aproximaram-se dela com seus cassetetes e a levaram para fora aos gritos, até ouvir uma última pancada e sua cabeça cair.
Fiquei com medo de ser a última vez que a vi.
Com todo o silêncio e escuridão, fiz o possível para não cair no sono, mas ele acabou me vencendo. Quando acordei, o primeiro vestígio de luz entrava pelo buraco, deixando o quarto parcialmente visível. Ao lado, Enobaria estava deitada. E do outro... A cela de Johanna continuava vazia. Nunca me senti tão culpada antes. Ela definitivamente fora pega porque falou demais... Mas eu a fiz falar. Podia estar morta e o sangue dela estava nas minhas mãos.
Annie também estava deitada, provavelmente dormindo. Também me sentia culpada por ela. Tudo bem que o fato de a garota estar ali não era inteiramente minha culpa, mas toda aquela encenação na arena com Finnick... Sim, não fora para frente, porém não significava que não deve tê-la machucado de alguma forma. Podia não ter nenhum sentimento por ele, mas ainda assim... Peeta também não tinha por Katniss até as coisas ficarem mais sérias, o que nunca chegou a ficar entre mim e Finnick. Ainda assim, doía e eu queria me desculpar.
– Annie? Annie, não sei se está acordada, mas preciso dizer isso – falei em alto e bom som. – Desculpe-me por Finnick. Quer dizer, pelas... Ações na arena. Você sabe – não queria falar aquilo em voz alta – Eu sei que não chegou a nada, ainda bem. E não nutro sentimentos por ele, mesmo que seja muito, muito bonito – percebi que estava enrolando. – O negócio é que eu sei como dói assistir a alguém que você ama ter alguma coisa com outra garota. Passei os dois últimos anos com raiva de Peeta e de Katniss e até de mim mesma por isso, tanto que prometi que, se fosse necessário, não faria a mesma coisa. Mas acabei fazendo e, por isso, espero que me perdoe.
Não recebi resposta, mas sabia que ela tinha ouvido, então já era alguma coisa. Era fácil acordar com qualquer barulho ali dentro e percebi que ela cruzou as pernas logo que acabei de falar. Enobaria também bufou e riu um pouco, mas essa eu ignorei.
Parei para prestar atenção mais uma vez, quando a luz do quarto já iluminava até meus poros. Um Pacificador abriu a porta e a cela de Johanna, antes de ela passar pela porta sem nenhum corte ou inchaço. Estava acordada e viva, mas seus olhos mostravam tanta raiva que agradeci pela grade entre nós.
Assim que éramos nós quatro mais uma vez, fiquei em silêncio de novo, tentando arranjar coragem para falar alguma coisa para ela.
– Desculpe – disse de uma vez, olhando para a garota.
Johanna, que olhava para os próprios pés enquanto estava sentada, passou a olhar para mim. Rolou os olhos e bufou.
– Acha que isso foi culpa sua? Não a culpo por isso. Culpo Katniss. Você já deveria saber disso há tempos antes de entrar na arena, .
– O que fizeram com você?
– Além de me darem uma surra para me consertarem de novo? – foi irônica. – Snow me interrogou.
– Snow?! Em pessoa?
– Ao vivo e em cores. Perguntou o que eu sabia e mandava me bater, quando não dizia o que ele queria que respondesse. Então digamos que só apanhei, porque tudo que eu sabia aparentemente não adiantava para o que ele queria. Falei tudo o que sabia, então acho que não vou apanhar mais uma vez por repetir minhas palavras.
– Então, o que você sabe?
Johanna me contou tudo. Disse que se tornou uma aliada por causa de Hamitch e só um pouco por minha causa. Queria alguém que não gostasse de Katniss. Era tudo que ela exigia. Sorte a dela que eu era essa pessoa do pacote. Disse que fora avisada da minha desconfiança, então meu mentor teve que bolar algum jeito para que eu soubesse que aquilo era armação dele, e deu certo. E, por fim, disse que ele tinha um plano de nos tirar dali com vida para um lugar melhor, mas que não sabia qual era. Sempre pensou que fosse algum distrito qualquer, ou alguma selva, ou que simplesmente sairíamos por aí até ficarmos fora de Panem, se desse tudo certo. Se é que havia algum lugar, além de Panem.
Depois de dizer o que sabia, pediu licença para dormir porque estava cansada e eu, é claro, a deixei. Fiquei pensando várias vezes nas palavras dela e no que tinha acabado de ouvir. Eu era a gasolina da revolução? Não parecia. Parecia que era uma bonequinha de Capitol que tentava controlar o amor exacerbado que eles tinham por Katniss, enquanto fazia o que eles mandavam para que pudesse ficar viva.
Aparentemente, algumas pessoas conseguiam ler bem as outras e suas intenções. Entendiam que eu só estava ali por um erro e não havia nada mais orgulhoso do que lutar pelo o que é certo, por vingança e por algo melhor.
Só que eu lutava pela minha vida, para que me deixassem em paz, apenas. Eu sei que isso soa muito egoísta, porque, se não sou eu, é algum outro otário azarado de algum distrito. Em poucos momentos, pensava nos outros, em como poderia acabar com todo aquele homicídio que eram os Jogos, mas isso porque eu nunca fui uma líder, alguém que conseguia bolar as coisas, sair de situações, consertar outras visando ao melhor. Não. Eu empurrava todos os meus problemas com a barriga, esperando que no final desse tudo certo.
Como podia alimentar a raiva de alguns apenas jogando o jogo de Capitol? Eu lutava pela minha vida lá dentro, o que é apenas o natural de um ser humano na mesma situação. E, ok, digamos que eu sou tudo isso que Johanna disse. Agora que estou presa aqui, o que o mundo lá fora acha? Que estou morta? Então tudo fora por água abaixo. Que sou uma fugitiva? Então tudo fora por água abaixo. Ou que sou uma traidora? Então tudo fora por água abaixo.
Tinha milhões de perguntas rodando minha cabeça e nem todas eram sobre Peeta ou onde ele estaria, mas sobre o que acontecia em Panem. Deve ter sido uma reviravolta verem a arena se desmanchar pedaço por pedaço. Imagino que não falaram nada sobre nós ou, se falaram, disseram que somos traidores da “paz”. Ainda haveria gente lutando? Revoltosos por aí? Contra-ataque de Panem e seus súditos? Que eu saiba, o Distrito 1 e 2 mais Capitol já seriam o suficiente para destruírem o resto de nós, mas obviamente precisam das coisas que esse mesmo resto produz.
Queria bolar várias reviravoltas para minhas teorias, respostas para todas minhas perguntas, porém aí a ficha caiu. Para que faria isso? Qual seria a utilidade disso tudo, sendo que em breve poderia estar morta? Snow interrogou Johanna e sinto que daqui a pouco será a minha vez. Como não sei de nada, para que sirvo? Não vou sair gritando para ele me escolher mais cedo, como aconteceu sem querer com Johanna, então preciso me manter quieta e reservada, sem criar problemas para ninguém, principalmente para mim.
Não teria chance alguma.
Tínhamos comido a mesma bororoca do dia anterior, só que dessa vez duas vezes por dia, o que eu considerava um sucesso.
Enobaria ainda não dizia nada conosco. Apenas olhava para a porta, enquanto estava sentada, ou para o teto, quando estava deitada.
Para passar o tempo, Johanna me disse todas as coisas que gostava de fazer quando não estava matando ninguém, o que incluía seus hobbies no Distrito 7. Depois chegou minha vez e contei com pesar de tudo que gostava do Distrito 12 desde que nasci, mas não contei nada sobre Peeta. Pelo menos não ainda. Aquela parte Capitol não sabia: aquela depois que ele e Katniss voltaram para casa.
Quando a noite desceu, comemos mais uma vez e fui a primeira a dormir. Estava tendo um sonho bom, o que era um milagre acontecer. Sempre que fechava os olhos, a aranha voltava e meus gritos acordavam a todos. Se não fosse eu, um dos outros faria esse favor.
Mas naquela noite fora diferente. Não tinha nada a ver com Jogos, com Capitol, presidente Snow ou Peeta. Eu estava com meus pais em casa, todos cozinhando nossa janta daquele dia, rindo um para o outro da nossa pacata felicidade e satisfeitos com o que tínhamos. Era pouco, mas o suficiente. Senti um calor no meu peito, um sentimento gostoso de alegria, amor e carinho. Nada podia ser melhor do que aquilo. Enquanto sonhava, nada podia estragar que minha vida não era mais assim. Então só gostava de aproveitar as poucas horas que tinha de sono e curtir o que pareciam segundos, até que esquecesse assim que abrisse os meus olhos.
– Querida, você precisa ter cuidado – meu pai comentou. – O mundo todo está a olhando.
– E nem todos desejam o melhor para você – mamãe completou. – Mantenha os olhos abertos e nunca baixe a guarda... Mesmo enquanto dorme.
Olhei para eles, sem saber direito o que aquilo significava. Quer dizer, aquilo era só um sonho.
– , você não é mais criança. O mundo é cruel... Especialmente o que vivemos. Há sempre alguém que está olhando, só esperando que você caia e desista.
– Mas, pai... O que eu posso fazer? Não estou com as chances em meu favor.
– Então faça com que elas fiquem. Cada desafio forma uma cicatriz e lhe garanto que ninguém esperava que fosse chegar tão longe.
– Estou presa. Cheguei tão longe para nada? Ninguém vem me salvar. Não dessa vez.
– Você tem algo que os outros não têm. Só mantenha os seus olhos abertos – mamãe sorriu para mim e apertou minha mão.
– E lembre-se: fique preparada. Pode chegar um momento em que vai precisar correr, então mantenha seus pés prontos, assim como o seu coração. A noite é escura. Mantenha os seus segredos com você e as melhores memórias também.
– Não quero decepcioná-los.
– Você nunca nos decepcionou. – papai sorriu, enquanto abraçava minha mãe de lado. – Seja forte.
Diziam que sonhos eram representações dos nossos maiores desejos ou lapsos de memórias e, de repente, uma forma de aviso, como um déjà vu... Mas aquilo estava longe de ser um sonho normal.
Sendo sonho ou não, vou leva-lo a sério e tentar viver da melhor forma possível. Meus pais acreditariam em mim, na minha capacidade. E, até meu último suspiro, não vou desistir de ficar viva e ajudar os outros como posso. Tive muita ajuda até hoje e chegou a hora de retribuir o favor.
Como meus pais pediram, eu precisava manter meus olhos abertos, mesmo enquanto dormia.
Abri meus olhos, despertando do sonho mais estranho, real e não perturbador que já tive desde que eles morreram.
Só que, por estar tudo escuro, não vi que não estava sozinha dentro da minha cela e foi impossível prever qualquer ataque para o que estava por vir.
Minha boca e meu nariz foram tampados com uma mão na mesma hora que meus braços e minhas pernas foram segurados, enquanto outra pessoa passava uma venda nos meus olhos. Não apanhei, mas fui transportada e fortemente amarrada a uma cadeira. Quando tiraram a venda de meus olhos, percebi que o cômodo tinha poucas e pequenas janelas apenas no alto da parede, luzes fracas e paredes de concreto. Havia outra cadeira na minha frente – claramente uma mais confortável do que a que eu sentava justamente por ter um almofadado branco. Olhei ao redor e notei que havia uma grande bacia no chão com uma pia em cima e uma mesa com algumas coisas ali em cima que não conseguia enxergar. Ao meu lado, dois Pacificadores olhavam para frente e um perdido andava pelos cantos do pequeno quarto, como se estivesse examinando tudo ao redor, uma forma de escapatória. Só parou de fazer isso quando viu que não havia meios de eu escapar – agradeci mentalmente por me achar tão magra que passaria por uma janela tão pequena, sem contar como eu chegaria até ela, quatro metros além do que eu tinha.
Dessa forma, abriu-se a porta e presidente Snow sorriu para mim, entrando no cômodo.
– Boa noite, senhora Mellark.
– Não vai dizer nada?
– O que quer que eu diga? – falei, depois de um cutucão na cabeça. – Foi sempre assim, de qualquer jeito.
Ele abriu um sorriso esperto e se sentou na cadeira à minha frente, cruzando as pernas.
– Exatamente. Gosto da dupla que fazemos, – suspirou. – Que tal começarmos do começo?
– Do quê?
– Da pequena artimanha que você, seu marido e seu mentor estavam bolando.
– Era para ficarmos vivos. Só isso. Haymitch não abriu muito a boca sobre a parte dele, sabe? Tanto que eu mesma não sabia que eu era... Como é mesmo? A esperança.
Vi o bigode de Snow se mover – um claro sinal de que ele não estava contente com nosso papo.
– Pelo menos até o Quarter Quell, sim. Agora, você é só mais uma.
Com um aceno, um holograma se abriu na parede ao meu lado, mostrando imagens de Katniss. “Estou viva. Capitol me usou e ameaçou. Usou inocentes pelas minhas ações, mas estou aqui para lutar com vocês”. Algumas cenas de alguns distritos em caos, Pacificadores caindo, símbolos de Capitol e Panem caindo, e finalmente voltou a ela. “Se precisa de mais incentivo para lutar pelo o que merece, pense nas pessoas que você perdeu pelos Hunger Games, pense no seu filho que viu ser morto brutalmente ao vivo sem poder fazer nada, pense nos dias que não comeu ou dormiu temendo pela segurança da sua família, pense naqueles que estão presos nesse exato momento porque ajudaram na nossa libertação, a sua libertação”. E uma foto minha, de Johanna e de Annie apareceram por alguns segundos cada. “Estou com vocês. Eu sou o Mockingjay”. E o símbolo que tanto eu quanto ela usávamos na arena tomou a tela antes de ela aparecer.
Katniss tinha tirado até meu orgulho de ser a esperança de alguém, o Mockingjay de tudo aquilo, mas eu não me importava. A garota poderia facilmente ficar com aquele título para ela e, se quisesse muito, teria até dois. Eu não precisava ser a esperança de Panem inteira. Somente a minha e de Peeta já era o suficiente.
– Ainda bem que sou só mais uma – falei. – É uma boa filmagem. Não achou? Você já ficava bem de tirano. Agora está melhor ainda.
Com outro aceno, mas um diferente, levei um soco no rosto e senti o gosto de sangue na boca. Porém, ainda não tirei a expressão de pegadinha do rosto.
– Podemos ficar nessa a noite inteira, Mellark – se eu pudesse cruzar as pernas para intimidar mais, eu teria cruzado. – Continue com os detalhes do seu mentor.
– É tudo que eu sei. E falo a verdade. Tanto que, se soubesse, acredite: eu não estaria aqui agora.
– Então está dizendo que, durante o tempo que ficou na arena, foi uma jogada de sorte? Que tudo que estava fazendo ali não foi previamente programado?
– Não por mim – dei de ombros.
– E me diga... Se você estivesse lá fora, aonde iria?
– É uma boa pergunta. Eu nunca realmente acreditei que conseguiríamos sair de lá, então não fiz muitos planos. Cheguei a pensar em rodar cada distrito procurando um lugar para ficar, mas nunca por muito tempo, claro.
– E nada de Distrito 13?
– Ele foi destruído. Você sabe disso tão bem quanto eu – olhei-o profundamente nos olhos.
– É – acenou mais uma vez e mais uma vez levei um soco, só que do outro lado. – Então me diga de onde vem essa filmagem que acabou de ver?
– Não sei. O meu distrito mexe com carvão, e não tecnologia.
Mais um soco.
– A cada resposta que se achar espertinha, você apanha.
– Então já me deem uma surra de uma vez, porque eu sinceramente não sei o que estou fazendo aqui.
– Está esperando eu tocar no assunto “Peeta”.
Foi a primeira vez que mudei minha expressão. Queria não tê-la feito, mas eu realmente precisava saber daquilo e tinha certeza de que, se não colaborasse, não receberia notícia nenhuma.
– Já que falou... Onde ele está?
– A posição de responder perguntas aqui é a sua. Aonde você iria depois que saísse da arena?
– Eu não sei! Juro! Se dependesse de mim, rodaria os distritos até eventualmente acabar no 12. Quem sabe sair de Panem, se houvesse um jeito?
– Katniss não está lá.
– Não quero saber de Katniss.
– Peeta também não. Essa gravação a que assistiu era de depois de alguns dias que eu explodi o Distrito 12.
Ele... Ele o quê?
Nunca gostei do Distrito 12, admito, mas não significa que ele merecia ser explodido. As pessoas mais humildes e necessitadas moravam ali. Pessoas com o coração bom e dispostas a ajudar, mesmo quando elas também passavam por dificuldade. Famílias, pais, mães, crianças, bebês... Tudo aquilo... Boom!
– Sabe... Eu também tive esse pensamento – ele falava. – De voltar ao Distrito 12. Então fui mais rápido. Assim que vi a explosão na arena, ordenei que fossem buscá-los. Mas, quando meus homens chegaram lá, encontraram alguns corpos. Fiquei decepcionado com os vivos que estavam ali. Seu querido marido não está morto e também não está aqui.
A onda de alívio que passou por mim foi incrivelmente indescritível. Parece até que respirava melhor depois daquilo e a dor na minha bochecha já não importava mais.
– Aquele aerobarco...
– Sim, o aerobarco roubado da nossa garagem. Revoltosos da sua laia – um aceno, um soco. – A primeira coisa que falei foi para que o seu distrito cheio de oprimidos fosse reduzido a pó, coisa que já era. Foi uma visão bonita.
E o holograma começou. Snow me fez assistir à explosão do Doze do começo ao fim. Bombas que caíam de aerobarcos e iam a todas as direções: no Hob, nas vilas, na Vila dos Vitoriosos – mesmo que o estrago ali não fosse tão grande – e o pior de todos, que foi na mina. Assim que uma bomba bateu ali, a explosão foi tão grande que a câmera até parou de funcionar. Todos os meus vizinhos, colegas e conhecidos correndo desesperados por todos os cantos e muito, muito sangue. Era horrível. Uma das piores cenas que fui obrigada a ver.
– Ter que passar de corpo em corpo para achar um conhecido foi difícil, mas nem assim conseguimos encontrar quem queríamos.
– Onde Peeta está? – fui firme.
– Espero que me diga o mesmo.
– Se ainda não percebeu, eu não sei.
– Bem, nem eu, se vai ser assim. Quem sabe isso a ajuda um pouco?
Mais uma vez o holograma apareceu na parede e Peeta tomou a tela, fazendo meu coração acelerar. Ele estava de roupa de combate, carregando uma arma bem atrás de Katniss. Sim, estava bem, porque ele estava vivo e aparentava ter saúde, mas o que houve com ele? Peeta nunca matou alguém. Nunca aceitaria tocar em uma arma de fogo e de repente estava pronto para um combate.
– Então, obrigada pelo ato de caridade, mas veja bem... Eu não sei de nada – falei pausadamente para ver se finalmente ele entendia que EU NÃO SABIA DE NADA.
Levei um soco na barriga que me deixou sem ar por alguns longos segundos desesperadores.
– Tenho que cuidar de traidores agora. É mais fácil explodir doze distritos de uma vez, não acha? Ou melhor, onze, já que o Doze não existe mais. E fazer uma limpeza aqui dentro de Capitol também. Quem diria que meus próprios homens dariam as costas a mim?
– Só porque trabalham para você não significa que não possuem coração... Ou que são frios como você.
– Sim, esse foi meu erro. Olhe essa lista de traidores...
E os nomes apareceram no holograma juntamente com as fotos de cada um e o estado atual deles. Pessoas de que nunca ouvi falar ou que nunca tinha visto antes, mas poucos se sobressaíram ali: minha equipe de preparação, viva e presa em cativeiro. A equipe de Peeta juntamente com sua estilista... Todos mortos. E, por fim, o último nome que me fez ficar com tanta raiva... Cinna estava morto.
Se eu pudesse me soltar dessas cordas...
– Achei que poderíamos ser amigos – voltou a falar. – Trabalhar juntos. Mas cometi o mesmo erro com Katniss. Confiei nela e a garota fez com que meu país inteiro se rebelasse. E você, o que fez? Incitou mais a vontade deles.
Respirei fundo, tentando controlar minha raiva.
– Snow, se me permite dizer... A sua guerra pode ter funcionado anos atrás. Pode ter saído o vencedor e, como aviso, criou o Hunger Games. Por algum tempo, sua ideia pode até ter funcionado, porém, com o tempo, as pessoas ficaram bravas, loucas de ódio pela sua ideia idiota. Tanto que cobriu o medo. E, durante anos, você alimentou a raiva de Panem e a estupidez de Capitol com morte de filhos, irmãos, esposas, maridos e amigos. Katniss não o desafiou, eu não o desafiei. Só deixamos claro o óbvio: estamos cansados dessa porcaria de Hunger Games e da situação fora daqui. Sua revolução não é nossa culpa. É inteiramente sua.
Apanhei tanto que minha cadeira caiu. Eram chutes no rosto, no estômago, na cabeça... Tantos que quase desmaiei. Mas pude perceber que a minha conversa não tinha acabado ainda.
– Oprimidos. Sabe o problema com eles? Não sabem lutar, não possuem ordem e não obedecem. Não tem como derrubarem Capitol.
– Realmente, eu concordo com você – sussurrei. – Mas aprendemos rápido. Somos obrigados a isso. E o estopim que foi esse Quarter Quell... Colocar vinte e quatro leões raivosos juntos em uma jaula... Eles não vão se atacar. Vão atacar o mestre.
– Não vejo a hora de poder matar você.
Ele saiu da sala, mas não antes de ordenar que era para me baterem tanto que deveria desmaiar.
E assim foi feito.
Quando abri os olhos, estava escuro e meu corpo inteiro doía, mas não tanto quanto imaginei que seria pela surra que levei.
Xinguei, enquanto passava a mão em minha cabeça, como se aquilo fosse amenizar o latejo que sentia ali. Não estava presa, não estava conectada a nenhum fio, então não estava mais na ala hospitalar.
– ? – ouvi meu nome.
– Eu.
– Tem comida e água para você na porta. Disseram que deveria beber tudo.
– Veneno?
– Certeza – Johanna concordou. – Nossa comida não está envenenada ainda. Guardei um pouco de água para você.
Uau. Aproximei-me da cela dela e encontrei a garrafa, tomando o resto do conteúdo. Minha alma agradeceu por aquilo tanto quanto eu.
– Você não pode morrer – ela sussurrou. – Fiz uma promessa. Não posso deixar de cumpri-la.
– O que acontece comigo não é sua culpa nem problema seu. Não tem como nos protegermos agora... Estamos por conta própria.
– Achei que tinha morrido.
– Eu também. Snow me pegou no meio da noite.
– Sim. Ninguém os ouviu. Você ficou quase um dia inteiro apagada.
E, ainda assim, não me sinto nem um pouco bem.
– Precisamos ficar de vigia. Aqui é pior que na arena.
– Eu não sei por que ainda não nos mataram.
– Acham que estamos mentindo. Ele lhe mostrou o vídeo de Katniss? – assentiu. – Peeta não está aqui.
– O lugar onde o Mockingjay bate asas é melhor do que aqui.
Fiquei em silêncio, tentando entender aquilo. Ela estava se referindo a Katniss ou a um lugar específico?
Não conversamos mais até amanhecer, exceto para dizer a ela que eu ficaria acordada e pronta para qualquer coisa. Então, por isso, tive muito tempo para pensar no que ela quis dizer com a frase do Mockingjay. Katniss era o tordo da revolução... Ela quis dizer que onde ela estava era o melhor lugar para ficar? Acho que os dois lugares, com ela e comigo, são perigosos o suficiente para qualquer pessoa ficar. Se bem que o resto de Panem não estava tão bem assim também. E outra: Johanna odeia Katniss tanto quanto eu. Não acho que ela seria capaz de admitir sem ao menos fazer uma voz diferente, ou uma careta, ou quem sabe vomitar?
Então onde o Mockingjay bate asas?
Pensei em todos os distritos de Panem... Todos nós estamos familiarizados com aves, mas não são todos que tem a sorte de vê-las. O Distrito Um produz os artigos de luxo para Capitol. Não tem nada a ver com pássaros, apesar das penas que usam como enfeite. O Distrito Dois é dos empreiteiros, os construtores, então definitivamente sem pássaros. Distrito Três é tecnologia – o distrito de Beetee. Além de ser bem perto de Capitol, ele me garantiu que nunca vira um pássaro parecido com um Mockingjay. O Distrito Quatro, de Finnick e Annie, era a pesca, onde existiam mais peixes do que pessoas e principalmente pássaros modificados. Distrito Cinco é energia. Mais uma vez, nada de pássaros. O Distrito Seis, por ser principal em transporte, também não me garantia que seria o melhor lugar para pássaros. O Sete, o de Johanna, me fazia pensar um pouco. Primeiro, ela quem disse. Depois, era conhecido por ser a base de madeira de Panem. Pássaros gostam de madeira. Os Distritos Oito, Nove e Dez não tocavam nenhum sino por serem de têxtil, grãos e pecuária, respectivamente. O Onze, de Rue, é de agricultura e, onde tem agricultura, tem pássaros. E todos nós sabemos que fora ela quem ensinou a Katniss o canto do Mockingjay. Mais uma vez, grandes chances. O Distrito Doze... Não existia mais, então não haveria forma de ser um bom lugar. E, bem, o Treze...
O Treze!
A conversa que tive com Peeta há o que me parecia anos atrás atropelou todo meu raciocínio e eu pude ter certeza de que ele estava no Treze junto com o resto.
“Você já reparou bem nas filmagens que eles sempre mostram? É sempre o Edifício da Justiça destruído e, se ver bem, vai ver um Mockingjay voando atrás do prédio”, foi o que ele me disse, exatamente nessas palavras. Onde o Mockingjar bate asas!
Snow deveria saber disso já, claramente. Ele tem olhos em Panem inteira. Só quer uma prova dita do lado da resistência. Bem, eu não sabia, ou pelo menos não tinha toda certeza, mas agora... Nunca tive tanta certeza.
Era bom saber onde Peeta estava, mas o quão seguro ele estava lá? Não sei todos os detalhes da guerra, mas ela destruiu o distrito inteiro e os níveis de radiação estavam bem altos para uma vida normal e saudável. E, que eu saiba, radiação não é uma coisa boa.
Ainda assim, provavelmente deve ser melhor do que aqui.
Acho que nunca fiquei tão agradecida por ter dois dias em que não apanhei ao que ao menos me movia. Johanna e – pasmei – Annie dividiam seus alimentos e água comigo, conforme recebíamos. Era claro que minhas refeições estavam adulteradas, nem que fossem para me fazer passar um pouco mal ou coisa do tipo, então não as toquei uma vez.
Era tarde de um dia. Eu dormia, enquanto Johanna ficava acordada, e fora a primeira vez que ela precisou gritar para que eu acordasse na hora, mas não foi pelo motivo que eu pensei que seria – outra seção de interrogação e surra – e sim um anúncio de Capitol. Até encarceradas éramos obrigadas a assistir àquela porcaria?!
Ela não começou normalmente, com o Distrito Treze destruído, o hino de Panem e a voz de Snow atrás. O hino ainda estava lá com o símbolo de Panem, até que Snow em pessoa estava ali.
– Cidadãos de Panem, saudações – sorriu frio. – Sempre nos gabamos de como nossa nação é ótima. Temos amor, sorrisos, ordem e paz. Porém, o que é tudo isso sem os estraga-festas? Se você é um dos que pretende destruir todos os sonhos de Panem, saiba que não vamos mais tolerar ações de vândalos que visam à destruição da paz de Panem. E, se você é um cidadão preocupado, estamos dando recompensas para aqueles que souberem de grupos de guerrilha...
Eu mal podia acreditar no que ouvia. Como alguém podia acreditar naquilo? Cada palavra transmitia medo e mentiras. Era horrível!
Eu achei que estava acabando, porque a imagem começou a falhar, mas não era o fim do anúncio, e sim a entrada de outro. Contudo, não vinha de Capitol e muito menos de Snow.
– A Revolução continua. E o Mockingjay está vivo. Resistam e viveremos a verdadeira paz, e não o medo infiltrado. Snow é um tirano mentiroso e sanguinário. Não acreditem nele. Capitol deve cair e nós devemos lutar.
Tão rápido quanto começou, a imagem de Katniss desapareceu.
Como uma simples ouvinte, devo admitir que ela falava bem, apesar de também saber que aquelas não eram palavras dela, mesmo que ache que a menina concorde com elas. Sendo uma cidadã oprimida, eu acreditava nela.
Presidente Snow não se atreveu a voltar ao ar depois daquilo e a imagem à nossa frente estava com interferência.
Ouvi Annie rir. Um som adorável e fofo. Logo, Johanna fez o mesmo e eu. Sem perceber, fazia o mesmo: ri até chorar! Estava precisando daquilo e não sei bem o motivo. Acho que, pela primeira vez, nosso lado tinha feito algo tão grande em nível nacional, tirando a explosão na arena, que também tinha sido grande, mas ninguém sabia direito o que aquilo significava. A invasão no anúncio de Capitol era novo e maravilhoso – um sinal de que tínhamos força para aquilo.
Logo, o holograma saiu e o escuro da cela voltou. Era o único dia em que estava contente por ficar acordada.
Devia ser de madrugada quando escutei a porta sendo aberta e gritei uma saudação para que quem estivesse dormindo acordasse. Assim, uma luz forte e branca foi acesa, cegando todas nós por alguns segundos.
– Mellark, Snow quer falar com você.
Eu conhecia aquela voz.
– Pacificador Orin! Que prazer revê-lo.
– Ande logo.
– Você viu a explosão? Tão... Boom. Não achou? Algo lindo.
– Mellark, não banque a espertinha. Ande logo.
– Ora, como posso “andar logo”, se estou presa aqui dentro? – falei em uma voz afetada.
Vi a raiva em Orin – nos olhos e no rosto dele. Ele estava quase tão puto quanto no Doze, mas a culpa não era minha. Eu só estava provocando. Sei disso. Porém, ele é quem deveria abrir a porta! Se fosse fácil assim para mim, já estaria longe há tempos.
Ele se aproximou e abriu a cela, de onde eu saí com um sorrisinho esperto. Assim que passei do lado dele, recebi uma joelhada na barriga que me fez ficar de joelhos e depois uma cotovelada nas costas que me derrubou no chão, sem ar.
Do tanto que andava apanhando, achava que podia ficar imune à dor.
– Quando essa história acabar, Mellark, vou lhe mostrar o que é fazer um filho.
Notei o que aquilo significava, então não me deixei derrubada.
– O dia em que tentar ficar entre as minhas pernas será o dia em que estará fodendo um cadáver. Isso, se você não estiver morto antes.
Ele bufou e me puxou pelos braços para que eu pudesse ficar de pé, colocando o saco na cabeça de forma que eu não visse nada. Antes que eu pudesse sair, ele gritou para Johanna, dizendo que ela era a próxima.
Andamos por um longo corredor em silêncio. Passamos por algumas portas e finalmente retiraram o saco do meu rosto. Estava de volta à sala em que fui interrogada na primeira vez.
– Deixe-nos, Orin.
Não era Snow. Era um Pacificador qualquer. Percebi que Snow deveria estar ocupado demais, tentando consertar o que pudesse do fiasco de seu anúncio.
Minhas mãos foram amarradas nas minhas costas e tanto meus joelhos quanto meus pés também foram. Não preciso dizer o quão desconfortável eu estava sentada naquela cadeira.
– , , . Tenho que admitir que é um prazer finalmente conhecê-la.
– Quer um autografo?
Ele sorriu.
– Não será necessário. Não é esse o tipo de lembrança que quero de você – fiquei quieta. Não estava esperando aquele tipo de resposta. – Sabe, Snow nunca foi muito bom em conseguir respostas... Ele prefere usar outros meios.
– Cachorrinhos que seguem ordens? Eu sei como se sente.
– Ah, mas eu gosto. Sabe que o sangue não é totalmente homogêneo, apesar de alguns livros o considerarem assim? Eu gosto de sangue. Talvez até demais. Nós, humanos, somos tão frágeis. Um bando de carne crua e mole junta com alguns ossos para manter tudo isso unido. Passar uma faca é... Bem, tenho certeza de que você sabe. Uma grande vitória a sua, devo dizer. O que a motivou no ano passado? Dor? Tristeza?
– Raiva.
– Raiva. Também é uma boa forma de motivação e, às vezes, bem efetivada. Eu prefiro dor. Súplica. E choro. Ah, todos esses juntos são quase tão bons quanto uma boa mulher – suspirou como se estivesse satisfeito consigo mesmo. – Já deve saber por que está aqui.
– Na verdade, não, mas deve ter algo a ver com o anúncio de hoje.
– Bingo. Agora podemos jogar isso de duas formas: a limpa e rápida, mas tenho que dizer que essa não é minha favorita, e a outra... Ah, a outra demora e é difícil, quase sempre uma sujeira. É com você.
– Veremos como andamos aqui. Deixaremos para o destino escolher – ele sorriu mais uma vez.
Eu não sabia o nome do rapaz ainda e algo me dizia que não saberia de jeito algum. E algo me dizia também que nossa conversa seria pelo meio demorada e difícil, e não estava nem um pouco animada com aquilo.
– Eu gosto de você – pegou a cadeira e a virou de frente para mim. – Onde seus amiguinhos estão?
– Eu não sei. Onde você acha que eles estão?
Levei um tapa ardido.
– Sou eu quem faz as perguntas aqui. Mas, já que perguntou, meu melhor palpite seria no Treze, naquela imundice. Sabia que foi meu avô quem pilotou o avião que levava as bombas? Você devia ver toda aquela fumaça... Parecia que a radiação dançava no meio das pessoas... Ah, aqueles eram os dias. Era apenas uma criança quando ele me mostrou as imagens. Acho que nunca vi algo tão belo de novo – seu rosto mostrava uma paz bizarra. – Voltando ao nosso assunto, como fizeram aquilo hoje?
– Como vou saber? Estava cuidando da minha vida quando aquela TV gigante apareceu na parede. Não tenho acesso a nenhuma tecnologia e, mesmo se tivesse, não saberia mexer em nada.
– É, eu sei disso, mas é legal perguntar para ouvir o que eu não quero – aquele cara era maluco. – Assim, posso fazer o que quiser.
Então levei um soco na mandíbula.
– Se não tivesse passado pelo hospital, quando ganhou o ano passado, seus dentes estariam no chão agora. Não concorda? – assenti. – Mas descobri que, com um pouco de mais força, eles ainda podem sair. Só que sua mandíbula sairia também – deu de ombros. – Adoraria tentar.
Oh, meu Deus. Eu estava sendo interrogada por um sádico... Snow finalmente conseguiu se superar.
– Olhe, ... Posso chamá-la assim? – neguei. – Não? Que pena...
Levei um soco no estômago.
– , querida, estamos indo para o jeito que eu adoro! – comemorou. – Vejo que não vou obter respostas.
– Não... Mas é porque eu não sei de nada, além do que já falei para o Snow.
– Ah, quantas vezes escuto isso? “Eu não sei de nada... Nunca ouvi falar disso. Sou inocente. Não faço ideia do que está falando”... Não sou novo nisso, se é que me entende. Eu tenho minhas formas de fazer os outros falarem. É por isso que está aqui comigo hoje. E, se reclamar, estará amanhã também.
– Eu... Eu não tenho respostas. Eu queria ter, mas não as tenho!
– Resposta errada.
Então ele se levantou e tudo aconteceu muito rápido depois. Suas mãos vieram em direção ao meu rosto, mas pararam no meu cabelo, enquanto ele o puxava com todas as forças até me fazer levantar. Eu tentava não gritar de dor, porém ele me arrastava pelos meus cabelos e já podia sentir meu couro cabeludo sendo rasgado de mim, até que parei ajoelhada na frente da grande bacia que vi na última vez que estive ali.
Não... Não... Tudo menos o que estava pensando.
– Olhando sua performance esse ano, jurei que ia morrer a cada coisa que passava.
– Eu também – fui sincera e aquilo o fez rir.
– Se soubéssemos, teríamos a colocado dentro da água mais cedo.
Com minhas mãos e membros amarrados, mas posicionados exatamente para aquele tipo de coisa, não pude fazer nada quando a mão dele forçou minha cabeça para dentro da bacia.
A água estava extremamente fria e o tempo que fiquei lá embaixo era quase o tanto que eu conseguia ficar sem respirar. Voltei para a superfície quase morta.
– O que achou? Dizem que a água fria faz bem para a pele, para os nervos e para a circulação sanguínea. A sensação de falta, aquele desespero, a água entrando por todos os orifícios do rosto, tampando a passagem do ar que você já não tem... Ótimo, não é?
Não consegui responder. Antes mesmo de recuperar o fôlego, já estava lá embaixo de novo e, dessa vez, não consegui segurar. Engoli tanta água que subi tossindo e mais preocupada em me manter viva do que prestar atenção ao que o maluco sádico dizia, antes que pudesse voltar mais uma vez.
Aquela foi a suficiente para me fazer desmaiar. Não queria morrer daquele jeito, mas, mesmo com minha luta, não era o suficiente. Apaguei e só fui acordar com uma dor no estômago tão grande que me fez cuspir e tossir toda água que tinha em meu organismo.
Ainda meio grogue, fui colocada na cadeira de novo.
– Entenda, Bluebonnet, que é esse meu meio de conseguir respostas e não vou descansar até consegui-las. Acredito que estudou algo sobre o século XIV, os meios de tortura usados naquela época, tão puros... Não é sempre que posso colocá-los em prática. Vou deixar uma lembrança sobre como eles são mais tarde para você. Dê uma lida neles.
Passei na enfermaria, porém não fiquei lá por muito tempo. O médico aplicou uma seringa no meu rosto e tanto a dor quanto o roxo foram desaparecendo gradativamente.
Era a primeira vez que só cuidavam dos meus ferimentos aparentes, mas não dos que realmente faziam mal. Meus pulmões estavam gritando por dor, respirar doía e meu tórax estava praticamente travado.
Fui escoltada de volta à cela e Johanna não estava lá. Ainda estava encharcada e morrendo de frio. Sem mais, fui deixada sozinha com minhas dores.
Percebi que, dali em diante, as coisas ficariam piores e mais tensas, para não dizer mais dolorosas ou mortais.
Minha cama tinha um papel que somente pela manhã, quando Johanna apareceu com o rosto intacto, mas mancando, pude ler.
“Realmente achou que eu ia acabar com minha diversão e lhe dar um spoiler sobre nosso próximo encontro?”
Maldito!
Dormi por algumas horas até que acordei com minha cela se abrindo. Mais uma vez, Johanna não estava lá ainda, mesmo tendo ficado menos tempo conosco. Tínhamos conversado sobre o que haviam feito com a gente e, por mais que o dela fosse tão pesado quanto o meu, não era com o Doutor Sádico.
Por falar nele, fui visitá-lo antes mesmo do que eu queria. Alguns Pacificadores me levaram até a sala e ele entrou para começarmos com a sessão de dor. Daquela vez, não havia água nenhuma, então agradeci por aquilo por alguns segundos, até que ele disse que a dor que eu sentiria não era nada, comparado ao que ainda estava me aguardando.
– Imagino que, para uma menina do Doze, a primeira vez que depilou foi aqui. A dor é um pouco estranha, não é? Ardida. Não é realmente uma dor de verdade... Passa rápido, por mais que você pense que não. Jura que não tem nada para me falar?
– Juro – engoli em seco.
Ele acenou e alguns Pacificadores se aproximaram de mim e, sem pudor algum, tiraram minhas calças. Eu não gostava da peça que vestíamos, mas não era por isso que queria ficar sem ela. Principalmente na frente daquelas pessoas todas e de um sádico maluco que era capaz de qualquer coisa.
– Snow garantiu que não quer nada no seu rostinho nem algo que vá lhe debilitar tanto assim, mas veja bem: eu não sei qual é o seu limite... Por isso só vou parar quando achar que não vai desmaiar.
Meu coração batia tão rápido, como se eu tivesse corrido a arena ou Panem inteira. Nunca senti tanto medo na minha vida. Acho que nem mesmo a aranha poderia fazer algo igual ao que eu sentia. Não queria que ninguém me tocasse... Não, não, não!
Doutor Sádico pegou minhas pernas e as colocou para cima, colocando-me na mesa metálica que tinha ali e amarrando meus membros em seguida.
– Sabe sua colega de cela, Annie Cresta? Sabe como ela ficou biruta daquele jeito?
– Pelas coisas que ela viu durante os Jogos.
– Ah, é? – ele riu. – Se fosse só isso, por que você ou qualquer outra pessoa não está da mesma forma? E não me venha com a bobagem de que cada pessoa reage diferente. Annie teria reagido muito melhor, se tivesse parado por aí. Seu amiguinho Finnick deixou Snow bem bravo, então que forma melhor ele tinha de machucá-lo, se não fosse mexendo com ela? Os sinos estão tocando agora?
Exatamente a minha história. Mas Snow tinha outros planos, além de me traumatizar pra vida.
– O que aconteceu com ela?
– Digamos que os Pacificadores ficaram muito satisfeitos, se você me entende.
Eu queria vomitar. Nunca senti tanta pena por outra pessoa antes. Nem mesmo os inocentes que morreram na arena. Eles, pelo menos, tinham um final menos triste.
Ele pegou um espeto e passou um pano nele.
– Não será hoje que meus amigos vão experimentar uma garota do Doze – senti o peso da preocupação sair de mim, podendo respirar mais uma vez.
Sem avisos prévios, ele passou o espeto que mais parecia um garfo pela minha coxa, arranhando tudo. A dor era bastante, mas suportável. Pelo menos na primeira vez. Ele repetiu o processo na outra perna e sorriu, largando o espeto e pegando um pote de vidro, o sorriso ficando cada vez maior.
– Isso aqui é... Bem, você vai descobrir.
Uma pequena gota do negócio foi o suficiente para me fazer gritar tão alto e tentar me esquivar em uma tentativa de passar a dor, mas nada ajudava.
Assisti ao homem colocar luvas para tocar no produto com um pano para passar no garfo afiado com um prazer doentio e horripilante. Comecei a gritar antes mesmo de sentir a dor de verdade.
Acho que ficamos nessa situação por horas, mas o sol ainda estava lá fora. Quando minhas pernas estavam abertas, sangrando e quase roxas, ele parou. Eu tremia de cima a baixo, quase querendo desistir da vida ali. Nem mesmo quando ele parou que aquilo melhorou.
– Chamem os médicos para darem um jeitinho aqui. Acho que fiz um pouco de bagunça – riu.
Tanto os médicos quanto alguns estilistas entraram para ajudar a me lavar, enquanto o Doutor Sádico saía. A dor ficou suportável com um remédio e outra pomada, mas nada além disso. O milagre de Capitol desaparecia fácil comigo, a partir daqueles dias. Fizeram-me tomar um líquido que achei que fosse remédio, porém o efeito não foi imediato.
Quando eu achei que tinha acabado, meu pior pesadelo voltou à sala.
– Espero que esteja aprendendo, porque eu adoro ensinar. Fale. Se falar hoje, amanhã não nos encontraremos – e foi embora.
Fui colocada em um vestido maravilhoso, branco e cheio de movimento, mesmo que minhas pernas ainda sangrassem um pouco. Para isso, os médicos colocaram uma atadura mais apertada do que o necessário, só para fazer doer mais.
Fui deixada sozinha na sala, desamarrada pela primeira vez. Mas isso tinha um motivo: não conseguia parar de tremer de dor ainda. A porta se abriu mais uma vez e quase tive um infarto quando vi Snow ali.
– Vamos, . Temos um anúncio surpresa para fazer.
Capitol inteira estava na minha frente antes de entrarmos ao ar. As pessoas olhavam para mim com uma pitada de esperança. Pergunto-me o que disseram a eles sobre a minha parada ali, se eu era um dos bonzinhos ou dos malvados.
Estava me sentindo tonta. Minha visão estava maluca. Nada em foco e as vozes estavam confusas. Estava com vontade de falar, de gritar para que me tirassem dali, mas nada saía. Não era como se não tivesse força para isso. Era como se não quisesse falar aquilo. Desesperei-me por dentro. O que estava acontecendo comigo?!
Snow entrou e se sentou na cadeira no centro do palco.
– Venha, . Fique do meu lado.
Não, não. De jeito nenhum!
Só que minhas pernas andaram, ignorando a dor que sentia ao arrastar uma atrás da outra.
– Agora sorria. Você vai concordar com tudo o que eu disser.
Assenti desesperada. Eu não queria assentir. Aquilo era completamente contra a minha vontade! Meus músculos já estavam malucos porque não obedeciam ao meu cérebro, aos meus comandos. Eu era uma bonequinha controlada por Snow.
Logo, o hino de Panem começou e milhões de câmeras se aproximaram de nós. Foi então que percebi por que a preocupação dele em curar a nós, as prisioneiras. Se fosse necessário um anúncio, queria mostrar que estávamos bem, saudáveis e fortes, que éramos bem cuidadas. Era por isso que o Doutor Sádico tinha dito para não fazer nada no meu rosto...
Queria gritar por socorro, sair correndo ou pelo menos mostrar a verdade. Meu rosto podia estar limpo, sem nenhum arranhão, mas por de baixo das roupas eu estava sangrando ainda, para não dizer o estrago psicológico. Porém tudo o que eu conseguia fazer era sorrir fraco e olhar para frente.
Rezei para que quem estivesse assistindo a mim fosse esperto o suficiente para saber que aquilo era uma farsa e completamente contra a minha vontade. Snow fora esperto ao me drogar antes de fazer algo do tipo. Sabia que, por pura e espontânea vontade, eu nunca o faria.
– Saudações, Panem. Temos alguns aliados, no fim das contas – Capitol gritou. – Bluebonnet, vitoriosa do Distrito Doze, está aqui conosco para fazer um pedido a Panem. Não é?
NÃO.
Concordei.
– Repita comigo.
Então, a próxima coisa que falei quase me fez querer morrer ali na frente.
– Panem! Somos uma nação unida e feliz – pausa dramática, enquanto eu os olhava, pedindo socorro. – Lutas nos desestabilizam! Larguem suas armas e parem a revolução. Parem a revolução!
Capitol batia palmas e fazia festa com minhas palavras, até que a situação entre eles ficou fora de controle de tanta algazarra que faziam pela concordância com o que eu havia dito.
Notei que minha voz não saíra perfeitamente normal, como se eu realmente fosse uma boneca e minha voz tivesse sido gravada em pedaços dentro do corpo. Se tinha alguém esperto ali, notaria isso. Se fosse para incentivar algo, certamente não falaria nesse tom nem na completa falta de empolgação que tive. Eu só não queria que Panem me odiasse por algo do qual eu não era culpada.
As câmeras saíram do ar e Snow acenou para a plateia. Ouvi meu nome, mas não pude fazer nada. Ainda era controlada por aquele homem frio na minha frente.
– Ótimo. Vamos ver o quanto você é efetiva depois de hoje, minha querida. Esteve brilhante. – ele sorriu sacana. – Agora volte para os Pacificadores. Você voltará a ser insolente em alguns minutos.
Dois dos soldados apareceram e colocaram o saco na minha cabeça mais uma vez, enquanto me levavam de volta para a cela. Assim que notei que chegamos, eles me empurraram com tudo para dentro dela e nem pude gritar de dor pela minha perna.
Ainda vestia aquele vestido branco e logo o sangue passou para ele. E ainda assim não pude gritar.
– ! O que foi que fizeram com você? Lavagem cerebral?
Não respondi a Johanna. Não iria responder até que ela pedisse ou o efeito daquela porcaria acabasse. Arrastei-me até meu colchão e me deitei nele, olhando para cima.
– ! Fale!
– Fale – repeti.
– O que está fazendo?
– O que está fazendo?
– Está me imitando?
– Está me imitando?
– Pare com isso! – então parei, porque ela me mandou parar.
Johanna me deixou em paz por um tempo e bufou qualquer coisa à qual não quis prestar atenção. Já estava escuro e não tinha mais o que poderíamos fazer. Eu, principalmente.
Queria ver o estado das minhas pernas, mas ao mesmo tempo acho que seria uma má ideia.
Por todo tempo, eu me forcei a falar, o que aconteceu somente meia hora depois. Já estava xingando em pensamentos e foi justamente um palavrão a minha primeira palavra. Com toda certeza, acordei todos os que estavam dormindo ali e somente Johanna respondeu algo. Expliquei todo o motivo daquele anúncio e minhas hipóteses de como tinha sido facilmente enganada daquela forma.
Estava decidido: a partir daquele dia, eu não aceitaria nada para comer ou beber se fosse me dado de Capitol. Mesmo remédios.
Nem acreditei quando vi três noites sem que fosse torturada mais uma vez. Eu podia viver assim... Pelo menos não tinha dor.
Quando a manhã tomou o local, vi Enobaria se alongando e fui pega espionando.
– Quer um pedaço, Bluebonnet? Dizem que, quando mulheres ficam muito tempo juntas, é normal sentirem desejo sexual uma pela outra.
– Não sei quanto a você, mas eu estou bem – rolei os olhos.
– É uma pena estarmos tão longe uma da outra.
– Você consegue ser mais estranha?
Ela sorriu gozada.
– Consigo ser qualquer coisa.
– Ela só quer provocá-la, – Johanna riu. – Ignore-a e ficará bem.
– Provocar é exatamente o que quero.
– Meu Deus, alguém dê algo para ela brincar quando a levarem daqui.
Parece que foi só eu falar. Um Pacificador entrou e a tirou de lá. Eu e Johanna nos entreolhamos, sem saber exatamente como nos sentirmos com aquilo. Se era bom ela ser levada dali? Não sabemos. A garota pode estar aqui como uma de nós ou como uma espiã – ou um, ou outro – e, de fato, era a que menos voltava machucada.
Falando em machucada, era difícil mexer as minhas pernas, então ficava a maior parte do tempo sentada ou deitada. Olhei o estado das minhas coxas quando havia luz o suficiente para isso. Mesmo que ainda um pouco ofuscado, definitivamente cometi o maior erro de todos. Mesmo sem nada no estômago, vomitei ácido depois de ver o marrom esverdeado, algumas partes roxas e vermelhas e os arranhados profundos da minha perna. Não havia nenhum sinal de que a ferida estava aberta, apesar de que não estava se cicatrizando.
Ainda tive que ouvir o tanto que era idiota por ter olhado. Não só Johanna, mas Enobaria também me criticou por ter sido tão burra a ponto de fazer aquilo. Tudo bem. Realmente fui idiota, ainda mais quando sabia que a situação não estava muito boa ali embaixo, mas de que outra forma eu saberia se aquilo estava melhorando, senão olhando? Tocar era impossível. Era pedir por gritos e gemidos de dor... Então me restou olhar.
Voltando à rotina de sempre, não me restou nada além de pensar. E, com um pouco de resposta, eu tinha muito o que pensar.
Será que meu fiasco tinha funcionado alguma coisa? Realmente espero que não. Quer dizer, estou com data marcada, mas a luta não. Capitol tem que cair a qualquer custo. Tem muita gente morrendo para uma causa ótima, um futuro melhor, e não uma ditadura horrível. Nem imagino qual será a punição que Snow criará por isso, caso percamos. Se os Hunger Games já são ruins o bastante, não quero saber o que ele poderia inventar que seria pior.
E como deve ser o Distrito Treze? Ou as gravações que Capitol tem são desatualizadas, ou estão nos escondendo algo – e não ficaria surpresa por isso. Por outro lado, não acho que, se o Treze estivesse se levantando lentamente durante os anos, Snow ia deixar aquilo acontecer. Ele não me deixa em paz. Imagine um distrito inteiro que se rebelou contra ele?
Queria saber como seria a vida sem Capitol... Ou pelo menos com outro governo, talvez? Melhor, pior, justa, horrível? Gosto de pensar que seria boa. O Doze definitivamente não seria descartado facilmente. Mesmo com todas as formas de energia que possuem hoje, o carvão continua sendo um meio energético importante como fora milhões de anos atrás. Se não, por que outra razão continuariam sua exploração? Os meios são rústicos, sim, a reserva é escassa, sim, mas continuaram o fazendo até que Snow teve a brilhante ideia de explodir o distrito inteiro. Teríamos o livre arbítrio de ir e vir, viajar pelos distritos, conhecer pessoas novas, coisas e lugares novos. O mais importante... Estaríamos vivos. Sem Hunger Games, sem matanças desnecessárias, sem tristeza desnecessária.
Caso a revolução dê certo, seria legal ver Panem diferente... Mas eu sei que não vou. E, de certa forma, estou feliz que esteja fazendo parte desse processo, mesmo que meu tempo acabe antes de eu realmente querer.
Não sei quando aconteceu, mas acabei dormindo e, quando acordei, não foi por pura e espontânea vontade.
Era a primeira vez que ouvia uma reação de Annie e a primeira vez que vi a pegarem. Ela gritou tão alto que achei que alguém estava morrendo ou pronto para matar. Não havia nenhum despertador melhor do que aquele.
Dois Pacificadores pegaram os braços dela e a arrastaram para fora da cela, enquanto ela se debatia. Devo admitir que não dava muita coisa para a garota, mas ela era forte. Deu alguns belos chutes que realmente machucaram os dois, porém não adiantou muita coisa. Eles apertaram o braço, enquanto a levavam. Naquela hora, tudo que me veio à cabeça foi o que Doutor Sádico disse sobre o motivo da maluquice dela. Pergunto-me se Finnick sabia daquilo. Não era à toa que a garota gritava tanto assim. Tendo passado o que passou, até eu gritaria e, se fosse para morrer, melhor então.
– Parem! – vi-me dizendo. – Ela é a mais inocente entre nós todas. Deixem-na em paz!
Os Pacificadores pararam, olharam para mim e para um ponto no alto da sala e voltaram com Annie até a cela dela para a tacarem de volta, antes de saírem.
Aquilo foi muito, muito estranho, para não dizer assustador. O que significava? Eu pagaria o pato, com certeza, mas como? E isso não incluía Annie? Não estava nem um pouco curiosa para saber nem dormi o resto do dia.
Johanna tentou conversar por olhares, com receio de dizer algo que não devia pelo nosso bem, mas não fomos muito longe. No fim das contas, estávamos sozinhas.
Foi no começo da tarde que acabei pagando pela minha grande boca e pelas palavras de salvação. Os Pacificadores vieram e me tiraram da cela pelo mesmo meio de antes, agora forçando minhas pernas que sabiam que estavam machucadas. Mas não dei o prazer a eles de me ouvirem gritando e, achando que eu estava bem fazendo aquilo, acabei sendo jogada no chinelo por causa disso.
Já devidamente presa – mais presa ainda – e sentada, Doutor Sádico entrou.
– Adoro saber que sou o único que consegue fazê-la gritar – ele sorriu de forma nojenta, antes de atacar minhas coxas com um cassetete com força.
Bem, eu tentei não gritar tão alto e acabei fazendo meus lábios sangrarem.
– Não vamos nos divertir tanto assim hoje. Presidente Snow me disse que meus tratos com você foram bons demais, a ponto de a deixarem um pouco... Fora de si. Sabe por que está aqui?
– Pelo mesmo motivo de todas as vezes que estive aqui.
– Também, mas não só. Que falta de educação, querida ! Sinto-me magoado agora... Foram... O quê? Quatro dias desde que não nos vemos? Não sentiu minha falta?
– Não.
O cassetete voou para minhas costelas.
– Definitivamente, uma puta mal educada – cuspiu. – Estava de bom humor, mas você conseguiu estragar meu dia. Consigo ser bonzinho nos dias em que acordo bem, mas foi você quem pediu.
– Imagino que não faria muita diferença.
– Pode ser – deu de ombros. – Você teve quatro longos e intermináveis dias para pensar na primeira coisa para abrir a boca. O que vai ser?
– Você já pensou no que acontecerá com os Pacificadores como você quando Capitol cair?
Ok. Eu sabia que estava pedindo para apanhar mais do que o necessário, mas queria me dar o luxo de ver a cara de repugnância dele.
– Não vai colaborar mesmo? Estou lhe dando essa chance, mesmo não querendo.
– Eu adoraria, mas já falei tudo que sei.
– Foi tão boazinha no anúncio aquele dia... – claro. Estava drogada! – Está na hora da lição de abrir o pensamento, querida.
Ele deu as costas e outros Pacificadores entraram e me desamarraram da cadeira. Foi muito rápido o que aconteceu a seguir, então não tive muito tempo nem esforço para me defender. Fiquei com minhas calças, mas minha blusa foi praticamente arrancada de mim. Gritava e esperneava tanto que chutei algum deles e quase fiquei livre, até levar um golpe na cabeça que me deixou um pouco desnorteada. Apenas a ponto de me deixar tonta o suficiente para não lutar, mas acordada. Com mais Pacificadores, prenderam minhas mãos no alto de uma algema que descia do teto e meus pés no chão, em algumas correntes nesse. Agora eu sabia a utilização delas.
Mesmo com o sutiã ainda, senti-me completamente exposta e com tanto medo que não podia nem imaginar coisa pior. Apesar de nenhum deles ter me tocado além do necessário para me prenderem ali, não gostava da sensação de ficar seminua na frente de monstros.
Quando foram embora, ouvi a risada do Doutor Sádico, porém não consegui ver o que ele fazia, visto que estava completamente imóvel e minha cabeça não dava um giro de 360 graus. Aquela posição não era nada confortável e as algemas machucavam muito.
– Antigamente, usavam essas belezuras para o prazer... Bem, aí vai depender do seu ponto de vista para saber que tipo de prazer é. Imagino que possa ser de todos eles, claro, mas eu só vejo um – andou até minha frente. – Você está tão vulnerável agora... Eles podiam vir aqui e fazer o que quisessem com você. É só eu deixar... Mas quero a diversão para mim, só para mim.
Ele passava os dedos pela minha barriga de forma lenta e suave. Eu estava completamente enojada e fazia de tudo para me mover, o que piorava ainda mais a situação. Não saía do lugar, ficava balançando em giros idiotas que me levavam para o mesmo lugar, além de machucar os meus pulsos. Então ele tocou nos meus seios.
– Não me toque – falei com raiva.
– Ah, é? – riu. – Vai fazer o quê? Tente me impedir.
Cuspi na cara dele com tudo que tinha dentro da boca. A visão foi satisfatória para mim, aquela nojeira toda escorrendo pelo rosto feio dele, mas acabou que foi pior pra mim. Claro.
Com movimentos bruscos, ele abaixou o tecido, libertando os meus seios. Enquanto falava coisas que me forçava a não ouvir e ignorar, já que o xingava de todas as palavras que sabia, ele os apertava com força, tanta força que doía.
– Estou começando a me perguntar como ficaria sem seus mamilos. É uma prática interessante cortá-los... Não imagina a bagunça que faz... Sangue para todos os lados... Uma beleza. Bom, para mim pelo menos. Você provavelmente desmaiaria de dor – levantou meu sutiã, desistindo de meus seios finalmente. – Mas isso é diversão para outro dia. Tenho um brinquedo melhor.
Então ele desapareceu atrás de mim mais uma vez e ficou em um silêncio muito desconfortável. Tudo o que eu queria era saber o que ele estava aprontando, o que ia acontecer comigo. Mas claro... Eu ia descobrir mais cedo ou mais tarde.
Doutor Sádico perguntou mais uma vez se eu tinha algo pra falar e, conforme disse que não, senti um ardido interminável nas costas, bem na espinha, perto do bumbum.
Mesmo sem perguntas, ele colocava qualquer coisa que fosse por toda minhas costas sem pudor algum. Quando parou na minha frente, eu já estava ofegante de tentar suportar tanta dor. Gritar era o de menos... Não queria me mover muito para que meus pulsos não ficassem tão danificados, já que eu já podia sentir e ver o sangue escorrendo por ali.
Finalmente vi como ele me torturava daquela vez. Era um bastão de marcar couro. Vi um desse uma vez, quando era pequena no Doze, e um civil tinha quebrado alguma regra e era punido na praça principal. A ponta era vermelha de tão quente que estava e o bastão era longo para que ele não precisasse se machucar com o calor.
Minha barriga não suportou tanto quanto minhas costas – principalmente porque ele havia dito que, a cada grito que eu desse, era uma encostada. Digamos que falhei nessa parte.
Esforcei-me para pensar que aquilo valia a pena e que acabaria rápido, mas não foi tão rápido quanto eu queria. Em meio de meus gritos, ouvi baterem na porta e Doutor Sádico xingou.
– Droga. Nossa sessão acabou por hoje, querida.
E, sem mais, ele saiu da sala.
Alguns médicos e um Pacificador entraram para me tirarem dali. Assim que minhas mãos foram libertas, caí no colo do Pacificador que, com uma delicadeza estranha, me colocou na mesa da sala antes de ficar guardando a porta.
Os médicos fizeram o mínimo com meus machucados. Algumas pomadas que, em minha opinião, pioraram a dor e foram embora, deixando-me com um líquido em um copo transparente. Na minha mão, só fecharam o corte e limparam o sangue, mas a dor continuava. Alguns estilistas que nunca vi antes entraram e me limparam para me colocarem em outro vestido branco.
Vi que eles apontaram para o copo, enquanto conversavam com o Pacificador. Daquela vez, me sentia um pouco mais forte do que a última, mas não o suficiente para sair lutando e correr para longe dali. Sabia que não sairia longe.
O Pacificador olhou o corredor, trancou a porta e se aproximou de mim.
– Faça algo direito, Bluebonnet – ele falou, antes de beber o líquido. – Pelo menos finja que foi drogada. Pode ser?
Olhei para ele como se esse fosse um tipo de monstro, sem acreditar no que tinha acabado de ver e ouvir.
– Isso é algum tipo de truque? – tive que perguntar.
– Vingue-os – destrancou a porta. – Vamos.
Um Pacificador vira-casaca? Aquilo era algo novo.
E devo dizer: muito bom.
– Ajude-me a sair daqui. – sussurrei, enquanto tentava manter a mesma expressão da última vez que fui para a TV.
– Aí está delirando. Não duraria nem cinco minutos e, sinceramente, não quer saber o que os outros fariam com você.
– Por que está me ajudando?
Ele mordeu os lábios e vacilou.
– Só não seja estupida.
– O que sabe de lá fora? – não obtive resposta. – Fale!
– Fale!
Então notei que a droga começava a fazer efeito nele. Mordi meus lábios e assenti como se dissesse “obrigada”, quando ele me deixou posicionada no centro do palco, enquanto Capitol já batia palmas pra mim.
Pessoas da produção iam e vinham, passavam por mim como se fosse mais um objeto do palco, como de certa forma eu era. Percebi mais tarde que somente eu estaria ali em cima naquela noite, mas podia ver Snow se aproximar e pegar seu lugar nos bastidores atrás da cortina. Vi-o também entregar um papel a um rapaz da produção e ele olhou para mim. Como estava com cara de idiota, concordou – mas não sem antes hesitar um pouco – em me entregar o tal e dizer nas palavras exatas que fora dito para dizer. “É para ler isso, decorar, amassá-lo e jogá-lo fora. Quando entrarmos no ar, repita o que decorou”. O papel era uma baboseira mentirosa sobre como éramos fortes com o exército e as armas que possuíamos como introdução, um reforço de que os delatores receberiam recompensas e um aviso novo de que qualquer menção ou imagem relacionada ao mockingjay seria notável de pena de morte. Por fim, eu diria como estava feliz, satisfeita e orgulhosa com Panem sendo como sempre fora. Juntamente com as palavras, havia alguns gestos que eu deveria fazer enquanto falava, de forma que não ficasse muito falso.
Fiquei um tempo segurando o papel como idiota e com os olhos fixos na frase “pena de morte”. Nem mesmo precisei fingir que decorei aquele ultraje. Estava com raiva e ultimamente funcionava melhor quando me sentia assim. Amassei o papel e o joguei longe, voltando à posição de antes.
Não demorou para ouvir alguém fazer uma contagem de vinte segundos antes de entrarmos no ar. Quando a contagem chegou ao zero, comecei.
– Olá, Panem. – sorri. – Sou Bluebonnet, vencedora do 75º Hunger Games e estou contente de estar aqui mais uma vez para lhes repassar um recado. Nós, cidadãos de Panem, somos fortes. Temos exércitos, armas, estratégias e somos persistentes. Não iremos destruir a nós mesmos, não é? – fazia exatamente como fui pedida até mudar. – Nosso objetivo é destruir Capitol e o seu líder. Não parem de lutar, façam alguma coisa... A revolução precisa continuar.
Eu sabia que tinha pouco tempo, desde que mostrasse que não estava drogada, então tinha que ser breve.
De soslaio, vi a reação impagável de Snow: um velho já branco ficar mais branco ainda. Por poucos segundos, mas ótimo. Logo, ele já ordenava para os seus Pacificadores darem um jeito em mim.
Esquivei de um, mas um contra cinco era covardia e desarmada não era nada. Um chute na minha barriga já machucada foi o suficiente para me deixar sem ar e o soco nas costas só piorou a situação, mas ainda nada se comparou com o soco que recebi no pé do ouvido. O mundo inteiro girou, a visão ficou turva e ouvia meu coração pelo meu cérebro. Ou era meu cérebro que batucava daquele jeito? Só sei que caí no chão. Quando tentei me levantar, a própria tontura me deixou ali, mas não sem ver o sangue respingado no chão.
No meio dessa bagunça toda, ouvi alguém gritar que tínhamos saído do ar naquele momento – alguém além de mim iria morrer ali –, além dos gritos que o povo de Capitol dava. A maioria dava pra notar que estava com medo ou dó – algo parecido com isso – e poucos realmente torciam. Sabiam que aquilo não era nenhum Hunger Games. Não tão perto deles. Tentei me imaginar um deles, qual seria minha reação, mas apaguei antes que conseguisse.
Ao acordar, nunca estive tão dolorida antes. Minha cabeça latejava, meus olhos estavam apertados e minha mandíbula estava inchada. Respirar também doía e doía muito. Acho que tinha uma costela quebrada. Não era possível. Além dos machucados na barriga, ainda tinha que sustentar a dor da costela. Sem falar nas minhas pernas arrebentadas. Se não morresse logo, era capaz de ser mutilada daqui a pouco.
A cela estava clara, só que não tanto quanto o normal. Imagino que, com o tempo, simplesmente vão nos deixar no escuro para sempre. Olhei ao redor e Enobaria olhava de frente para mim.
– Seu rosto está uma beleza – ela apontou para a bochecha inchada. – Parece que provocou um exercito inteiro.
E depois riu. Sim, porque ela sabia que eu havia provocado um exército inteiro.
– Obrigada.
– Sua amiga ali ficou tão animada com o que você falou mais cedo que os outros entraram aqui e deram uma lição, enquanto ela ria e cuspia na cara deles. Foi uma visão interessante, mas perturbadora. Acho que Johanna é louca. O que você acha?
Não respondi e virei para o canto, tentando dormir de novo. Minha cabeça doía tanto a ponto de querer vomitar e a tontura não me deixava por nada. Focalizar em algum objeto era impossível, então mantive meus olhos fechados pela primeira vez desde que sonhei com meus pais. E esse tinha sido um erro, descobri mais tarde.
Acho que desmaiei em algum momento em que voltei a dormir ou estava tão mal que não consegui abrir os olhos por nada. Tenho vagas memórias de ser carregada sem nem mesmo precisar de um saco na cabeça ou venda nos olhos. Vi o buraco da luz do local, uma expressão desesperadora de uma Johanna machucada e com a boca sangrando, o olhar amedrontado de Annie e uma expressão vazia de Enobaria. Quando acordei, finalmente me sentindo um pouco melhor – minha cabeça doía ainda, mas a tontura tinha passado –, não estava na cela, e sim na maca da ala hospitalar em que acordei nos meus primeiros dias como cárcere em Capitol.
Assim que tentei me mover, um médico entrou no quarto e me impediu de levantar – ele só me empurrou de volta para a cama, já que estava amarrada, e começou a me examinar.
Depois de um tempo, acabei descobrindo que estava ali há dois dias.
– O que vão fazer comigo? – gritei, exigindo resposta.
À toa, provavelmente. Os médicos me olharam, mas não perderam muito tempo antes de voltarem a mexer em alguma coisa na mesa.
– Você vai aprender, – Doutor Sádico disse, sentado do outro lado da sala, apenas me olhando e falando com calma, como se fosse uma criança. – Não quis colaborar comigo, então não tive outra escolha.
– O que você quer? Eu já disse tudo que sei.
– Ah, nós sabemos disso – abanou a mão. – Então, como não presta mais para nós, vamos acabar com você. Tão devagar que nem mesmo os seus sussurros terão força para implorar para parar. Isto é... Até a próxima ordem... Se você ainda estiver viva até lá.
Por um lado, eu sinceramente não me importava de morrer. Uma pessoa que já sofreu demais por uma vida merece ir embora para finalmente descansar. Por outro... Eu adoraria morrer de qualquer outro jeito.
Fiquei sem saber o que responder, mas meu corpo dizia o contrário. Remexia até as extremidades dos meus braços e pés ficarem vermelhas e doerem de tanto que estavam apertadas. Quanto mais me mexia, mais difícil ficava e mais apertada eu estava.
– Pare de passar vergonha, . Não vai a lugar algum. Alguém dê um jeito nessa menina insolente.
Um dos médicos pegou dois pequenos tubos de ensaio e os abriu, virando em cima de mim. Quando olhei bem, vi-as andando em cima de mim. Duas aranhas que eu conhecia bem: pernas finas e longas, cabeça minúscula, grande abdome, aparência inofensiva e estrago insanamente grande.
– Não, não, não... Por favor, não – comecei a implorar, tentando ao máximo não me mover. Qualquer movimento as faria me picar. – TIRE ISSO DE MIM, TIRE ISSO DE MIM! PARE, POR FAVOR!
Os meus gritos eram abafados pela risada do cárcere, que finalmente parecia satisfeito em me ver daquele jeito.
– Bons sonhos, pequena – abriu um sorriso maligno e balançou a maca em que estava presa.
Sem mesmo um segundo de espera, as duas aranhas encravaram o ferrão em mim, fazendo-me gritar, espernear e chorar ao mesmo tempo. O médico as tirou de cima de mim e outro achou uma veia em meu braço e inseriu alguma coisa que me fez dormir na hora, fazendo com que os pesadelos e as dores causadas pelo veneno começassem.
Não sabia mais o que era estar acordada ou não. Para mim era tudo uma coisa só. Se o que eu sonhava estava acontecendo ou não, se o que acontecia era sonho ou realidade... Era impossível saber por um momento. Sonhava com minha casa pegando fogo comigo lá dentro tentando achar uma saída que não existia. Cada porta que abria me levava para outro cômodo em chamas e tinha que me virar para pular as vigas que caíam, o calor insuportável e tentar não morrer intoxicada. E, quando isso acontecia, retomava parte da minha consciência, desejando que não. Sentia dor e queimação em todas as partes do corpo, inclusive nas quais nem imagina que seria possível sentir dor. Quando abria os olhos, via pessoas com máscaras segurando seringas com um liquido de cor engraçada, então apagava de novo com outro sonho estranho que variava entre o incêndio e outros em que estava presa em algum lugar. Conforme dormia, toda vez os sonhos tinham uma espécie de continuação diferente do ultimo. Uma pessoa era acrescentada e começava a lutar comigo e a queimação no corpo nunca parava. Não teria problemas com isso, caso não fosse alguém que eu amava ou ainda amo. Gritei horrores quando matei minha mãe na primeira vez e gritei mais ainda da dor física que aquilo me causou. Só que, quando não vencia o combate, a dor tanto emocional quanto física era pior ainda.
Quando Peeta apareceu nos sonhos... Eu sabia que não conseguiria fazer nada. E não sei quantos sonhos diferentes tive com ele até que a dor fosse mais forte do que eu conseguia aguentar. Sei que foram muitos. Precisei parar de contar antes que ficasse maluca. Quando o acertava, a dor ia melhorando. Era como uma anestesia. A cada golpe, uma onda de alívio percorria o meu corpo inteiro. Cada vez que o vaporizava de meus sonhos era uma benção para mim, até que a dor começasse de novo com outras pessoas. Peeta aparecia para aliviar a tensão, então me acostumei a simplesmente a dominá-lo e torturá-lo devagar e de todas as formas possíveis. Fui descobrindo que, quanto mais demorava, quanto mais bruta era, mais paz me era proporcionada, então não tinha nem um pouco de dó com ele. Tudo o que eu queria era um pouco de alivio e matar Peeta se tornou um vicio que eu precisava sanar cada vez mais.
Ainda assim, quando Katniss aparecia, eu não precisava nem ter dó. O alívio que ela trazia era tão maior que eu ansiava por ela. Nunca gostei dela, nunca tive motivos para ter remorsos com a menina. Matá-la era mais do que a melhor sensação do mundo. Dava-me prazer.
Os dois juntos então... Dose extra de morfina e uma boa matança.
Remorso... Eu nem sabia mais o que era essa palavra.
A próxima coisa que ouvi, eu não sabia se era outro sonho diferente, por mais que me parecesse muito.
– ...Está consciente e treinada.
– , querida – ouvi a voz de alguém conhecido. – Ouvi dizer que anda sendo uma boa garota ultimamente. Viu como Peeta é mau com você?
Peeta? Mau comigo? Não... Quer dizer... Sim. Ultimamente, ele tem sido muito mau, querendo me acertar. O que eu fiz para o rapaz? Eu tinha que fazê-lo parar. Era o único jeito. Peeta tem sido mau.
– Você devia ter medo dele, mas lutar por você. Pará-lo. Você nunca pôde ser parada, . Por que deixar com que ele faça isso com você?
Ele tem que ser parado. Essa voz tem razão. Nunca fui parada, nunca deixei de desistir, então por que deixar que Peeta faça essas coisas comigo? Isso acaba agora.
– Na próxima vez que vê-lo, mate-o.
Eu vou.
– Deixo uma rosa branca de presente a você, querida... Como uma lembrança de quem a ajudou a encontrar o caminho certo.
Narrado por outro ponto de vista
Depois do primeiro anúncio da garota Bluebonnet, o Distrito 13 ficou maluco. Uma vitoriosa que não enxergava os problemas embaixo do próprio nariz? Que não estava nem aí com os outros ou com a situação em que vivia, contanto que estivesse bem e protegida? A menina literalmente lutou pela vida, viveu as injustiças e ainda assim apoiava a contrarrevolução? Ela estava bem, sendo bem tratada, parecia. Não sofria nada. Do que ela sabia sobre más condições de vida?
Era só o que faltava para Panem.
Ninguém sequer dava ouvidos a Peeta e Haymitch que lutavam e teimavam que a garota nunca falaria aquilo, a menos que estivesse sob o controle de alguma droga ou ameaças. Até mesmo usaram como argumento a linguagem corporal dela, que não mostrava que acreditava no que dizia. Ainda assim, todas as campanhas a favor dela eram ignoradas e até mesmo menosprezadas. Ninguém sequer acreditava que aquela garota poderia estar do lado deles.
Afinal de contas, era uma pessoa influente em Panem e muitas pessoas davam bola para o que uma vencedora falava. Se ela dizia para abaixarem as armas porque as cosias estavam boas e não havia necessidade para luta e tanta matança, por que não fazer o que a menina dizia? Sim, não foram muitas pessoas que realmente deram ouvidos a ela, mas, na situação em que estavam, cada pessoa contava.
Já que não tinham tantos meios de trazerem pessoas para a causa deles como Capitol tinha, suaram mais do que o normal e, com o empurrão que deu, ficou mais difícil ainda. Mesmo assim, sempre acabavam com o contato em algum outro Distrito com a ajuda de Beetee.
Katniss era o símbolo da revolução e as pessoas a escutavam, mas nada do que fizeram teria dado certo se não fosse por . Peeta fazia questão de enfatizar esse ponto, tendo o apoio de Haymitch e até mesmo da própria Katniss. A garota estava ali injustamente... Mesmo se não estivesse falando aquelas coisas sem ser forçada a isso, conseguia entender os motivos que a levaram. Afinal, a garota perdeu tudo e todos que amava por um equívoco, por culpa dela.
Presidente Coin não queria saber. estava atrapalhando seus planos e não ia escutar nem uma palavra de quem fosse para salvá-la.
Isso mudou quando teve com um pouco de apelo de Peeta – diga-se: a primeira vez que ele ficou extremamente possesso, jogando toda essa bagunça em cima de uma única pessoa – para Katniss, deixando-a culpada pelo sofrimento tanto do rapaz quanto da menina presa em Capitol. O símbolo da revolução, já lotada de pressão pela responsabilidade que tinha, falou suas condições para continuar fazendo seu trabalho desajeitado – mas que, de alguma forma, funcionava. Uma dessas condições era salvar Bluebonnet.
Distrito 13 não ficou nem um pouco feliz com isso. Reclamaram, gritaram e discordaram e, ainda assim, não conseguiram desfazer a mente de Coin, para a felicidade de Peeta.
Só que, quanto mais tempo se passava, não tinham notícias de ninguém e deixou de aparecer em rede nacional. Se ela ainda estava viva ninguém sabia. O que acontecia por lá? Também não sabiam. Quanto mais tempo se passava, tudo podia ir por água abaixo.
O povo do Distrito até que estava feliz com esse fato. Se a menina estivesse morta, melhor ainda. Panem não precisava de mesquinhos como ela.
Era outro dia normal, como qualquer outro desde que receberam visitantes para viver no 13. Um grande grupo de pessoas estava reunido no refeitório para o almoço, quando o hino de Panem tomou a sala. Todos, instintivamente, olharam para as telas que tinham ali e bufaram ao ver . Alguns xingaram, outros rolaram os olhos, mas poucos notaram como ela havia mudado. A menina fazia esforço para andar, havia roxo em seu rosto e seus olhos pareciam com menos vida do que a última vez.
Peeta só estava grato que ela estava viva. Machucada, bem mais machucada do que da última vez que a vira na TV, mas viva. Algumas coisas não podiam ser tão boas quanto queríamos.
Conforme a garota falava seu discurso, as pessoas já começaram a zombar e gritar para que quebrassem a tela, porém então tudo mudou. Ela gesticulava mais, olhava mais ao seu lado, parecia até que estudava seu território... Definitivamente, não estava a mesma da última vez. E aí veio o seu verdadeiro discurso, sua verdadeira opinião. “Continuem a revolução”, ela disse. “Lutem!”,
Os moradores do Distrito 13 se entreolharam e alguns olharam até mesmo Peeta, que em momento algum deixou de acreditar nela. Devagar, uma salva de palmas começou na sala e todos batiam palmas e concordavam com as poucas palavras que ela disse. Até que os Pacificadores apareceram e a jogaram no chão impiedosamente, enquanto ainda mantinham a imagem ao ar. Viram o chute que ela recebeu no estômago, fazendo-a cair de joelhos, e logo o outro no rosto que a jogou de vez no chão. Viram também a força que ela ainda fez para tentar se manter de pé, mas caindo em seguida, inconsciente. Em seguida, a imagem ficou preta e branca – a típica situação de interferência quando o programa sai do ar.
O refeitório estava em um silencio mortal. Olhavam o telão abobados, sem reação pelo que acabaram de ver. Por serem soldados, estavam acostumados a verem coisa do tipo, mas tão repentino e tão cruel como aquilo? Ela era uma garota. Só uma garota tentando sobreviver.
Peeta estava em choque. O alivio de vê-la viva tinha sido substituído pela agonia de não saber se, depois daquilo, ela continuava viva, agora com muito mais intensidade do que antes. Estava parado, vendo a interferência da TV, sem nenhuma reação. Ao seu redor, as pessoas não existiam e o som que ouvia era nada mais do que uma nota contínua que tocava em seu cérebro até recobrar o juízo e correr até a sala de reuniões.
Chegou literalmente quebrando tudo. Virou mesas, derrubou cadeiras e quebrou copos e algumas peças tecnológicas. Tudo isso enquanto gritava para irem salvá-la naquele exato momento.
Agora, o Distrito 13 estava maluco como antes, mas agora pelas razões contrárias. Queriam a garota a salvo. Ela seria importante para a causa deles. Isto é, se ainda estivesse viva.
Demorou cerca de uma semana e meia desde a última vez que apareceu nas telas de toda Panem. Desde então, Distrito 13 havia ganhado mais pessoas para a revolução e as coisas finalmente pareciam andar. Um dos Distritos havia destruído os meios de distribuição de energia para o país e o sinal de Beetee abrangia uma área incrivelmente maior, inclusive Capitol. Com várias propagandas apelando para a revolução, mais pessoas se juntavam às guerrilhas.
Só que, mesmo assim, era mais tempo em que ninguém sabia se a garota estava viva. Peeta estava ficando louco. Brigava com todos, todos os dias, e sempre tinha que ser controlado para que não explodisse e saísse por conta própria. Além disso, era sempre garantido que estavam bolando a expedição – não era algo para ser feito tão nas pressas e sem planejamento – e que seria avisado do dia em que ela ocorreria.
E realmente fora avisado... Um minuto antes de um aerobarco partir para Capitol. Sem ele.
Tinha sido avisado de que, se o rapaz fosse, as coisas poderiam ficar emocionais demais e a equipe devia ser o mais fria o possível. Além do mais, não sabiam qual seria o estado de e como isso afetaria Peeta. Nem mesmo Katniss tinha ido, já que ela devia ser protegida a todo custo.
Beetee avisou que a expedição estaria segura enquanto o sinal de Capitol estivesse morto, o que lhes dava vantagem não só nisso, mas para hackear e jogar informações sobre cada vitorioso e como sofreram na mão do Presidente Snow. Finnick contava como tinha tido seu corpo vendido para que pudesse acalmar as chantagens de Snow para que as pessoas que amasse ficassem a salvo, dentre outras histórias repugnantes.
“Estamos recebendo sinal dos rastreadores dos prisioneiros vindo do edifício de treinamento”, escutavam o comandante daquela missão falar no rádio.
Peeta rezava para que desse tudo certo, ficando tenso a cada minuto.
“Área livre. Desceremos em dez segundos”.
A contagem regressiva durou muito mais que isso. Ele tinha certeza. Ou pelo menos era o que parecia. Não conseguiam ver nada, mas apenas ouvir o que o capitão dizia, além dos barulhos de bomba que tacavam e a conversa de Finnick na TV.
“Estamos dentro”.
Não obtiveram resposta pelo que pareceram horas, minutos tensos e arriscados que deixavam todos roendo as unhas.
“Achamos três das prisioneiras. Mason, Cresta e Dentões. Desacordadas”.
– Onde está ? – Peeta sussurrou mais para si mesmo.
– Procurem Bluebonnet – Beetee pediu. – Qualquer sinal de Pacificadores, já sabem o que fazer.
Ele se referia a fugir.
– Ela pode estar em qualquer lugar... – começou a falar, mas foi cortado por um dos outros do grupo. – Acho que...
Porém, o sinal foi cortado. Beetee sabia que as chances de saírem dali vivos eram poucas e fazia o possível para corromper o sinal mais uma vez, falhando todas as vezes.
– Onde está ? – Peeta perguntou, dessa vez mais alto.
– Quem se importa onde ela está, garoto? Podemos ter mandado nossos homens para a morte eminente! – um dos homens que cuidava dos programas gritou de volta.
– Quem se importa? Panem se importa! Você não sabe as pontas que ela aguentou para tentar mudar alguma coisa. Se não fosse ela, não estaríamos aqui agora! – voltou-se a Beetee. – Diga que consegue o sinal de volta.
– Estou fazendo o possível, rapaz... – e dava para ver que sim. Beetee suava, enquanto apertava vários botões freneticamente até soltar um grito exasperado. – Não dá! Eles fecharam completamente o alcance. Estamos no escuro.
Peeta não aguentou e saiu de lá às pressas. Não tinha para onde ir, não podia sair de lá e, mesmo que pudesse, aonde iria? Panem era um mundo perigoso, sempre fora, e não tinham ideia de se havia algo além deles. Por fim, correu até as tubulações onde podia sofrer em paz, sem Haymitch dizendo para ter mais fé ou para beber e esquecer... Sendo que ele compartilhava a mesma dor. Sem Effie para animá-lo com coisas fúteis que não faziam o menor sentido a ele, por mais que seus conselhos tenham sido bons no começo. Nada poderia tapar a dor que sentia. Nem mesmo Katniss, que sempre o ajudava.
Depois do que tiveram na arena, os dois de fato estavam mais unidos, mas não na forma romântica da palavra e, sim, como amigos que falavam coisas boas um para o outro quando precisavam ouvir. Quando Katniss recebeu o trabalho de ser o Mockingjay, ela também se escondeu nas tubulações e ficou lá por um bom tempo. E ninguém conseguia tirá-la de lá, até que Peeta entrou. Conversaram por horas sem nem tocar no assunto de revolução. Ficaram retomando boas lembranças do Distrito 12, tirando sarro de Haymitch e Effie, sendo garotos pela primeira vez desde muito tempo. Quando finalmente falaram sobre a guerra, foi fácil para que ele a convencesse de fazer o que era preciso. Não necessariamente a coisa certa, mas o que era preciso.
Agora era ele quem estava ali, segurando seu coração. Teve muito tempo e muito pouco tempo com , arrependia-se amargamente de ter dito sobre seus sentimentos a ela tão tarde, quando gostava dela há anos. Culpava-se por não ter feito muito pela garota quando podia, por tê-la colocado em perigo mortal desde que voltou dos Jogos. Culpava-se por não tê-la protegido quando dava, deixando-a cuidar de si mesmo e dela também. Se não fosse o esforço que a esposa tinha feito na arena para movê-lo de um lugar a outro, estaria morto. Escutou os médicos dizendo como ela tinha feito um ótimo trabalho com ele não apenas com os remédios, mas todos os outros cuidados. Ela daria uma ótima curandeira.
Peeta vira voltar para a árvore de soslaio. A explosão tinha derrubado a todos, poucos estavam em pé como Finnick. Tudo tinha acontecido muito rápido. Aquilo não estava nos planos. Quando voou três metros, não conseguiu se levantar, tamanha a dor que sentia no corpo, mas não estava acordado, apesar de achar que estava. Quando se levantou, viu a esposa e Johanna voltarem e, de repente, a primeira levou um soco tão forte que a deixou zonza. Nesse momento, Peeta entendeu que a aliança entre eles estava quebrada, mas viu, a tempo que caiu no chão, Enobaria aparecer por trás para tentar acertá-la. Por sorte, ela tinha sido nocauteada antes. Havia uma luta entre Johanna e Enobaria, porém não conseguia captar o que estava acontecendo. Ele precisava chegar a o mais rápido possível. Só que, quando tanto Enobaria quanto Johanna caíram, o rapaz apagou.
Acabou descobrindo mais tarde que havia sido Finnick quem o impediu de se aproximar, porque, nesse caso, seriam os dois possivelmente mortos na arena. O tanto que ficou possesso ao saber que ela não estava com ele no aerobarco, que havia sido deixada para trás, não foi brincadeira. Bateu em Finnick – uma surra que finalmente conseguiu ter dado – e quase fez o mesmo com Plutarch Heavensbee e Haymitch, mas foi dopado antes que pudesse se aproximar.
Desde então, sonhava com a garota e seus mínimos detalhes que colocavam um sorriso no rosto dele. Seus pesadelos passaram a ser reais e seu medo aumentou ainda mais ao pensar que tinha a possibilidade de nunca afagá-los, porque a pessoa que fazia isso poderia estar morta.
tinha que estar viva. Àquela altura do jogo, ela não podia ter morrido e desistido de tudo, dos dois. Não sem ele.
Foi então que escutou alguém entrando ali com ele.
– Depois que você saiu, o sinal não voltou, mas consegui contatar Snow – Peeta olhou para Katniss esperançoso. – Ele não falou nada sobre . Desculpe. Somente disse o que já sabemos e que sabia que íamos tentar resgatá-la.
– Foi uma armadilha, não foi? Por isso não a achavam.
– Não sei, Peeta. Parece. Vou ser sincera com você... Porém quero acreditar que não. ajudou muito a todos e eu devo muito a ela. Não só um pedido de desculpas, mas minha vida esteve nas mãos dela sem nem mesmo a garota saber. Vou lutar tanto quanto você, Peeta.
– E ainda assim não sei se vai valer a pena. Eu só queria saber se ela está viva ou não.
Katniss ficou em silêncio, pois não tinha o que falar naquela situação. Já o vira chorar várias vezes, mas nunca o vira tão devastado assim.
– Ela fez tanto por mim – disse após vários minutos em silêncio. – Ajudou-me a entender história, aturou minha mãe, entendeu e superou a nossa trama, engoliu tudo que eu a fiz passar com um sorriso no rosto. Quando mais quero ajudá-la, não posso fazer nada.
A garota não tinha o que responder. Amava Gale também, mas nunca esteve na mesma situação que o amigo estava no momento e nunca fora boa com palavras. Esse era o trabalho de Peeta Mellark, e não dela. Tudo que podia fazer era demonstrar que estava ali para apoiá-lo.
– Mellark, Everdeen, Haymitch os chama – um dos soldados falou. – Parece que tem notícias sobre a expedição.
Os dois correram para a sala de expedição como se fosse uma retirada de segurança, que nem na última vez. Até mesmo nisso ajudou a prevenir um ataque de Capitol, depois do segundo anúncio bombástico que fez.
Haymitch estava sentado na mesa, parecendo mais sóbrio do que nunca. Ele havia parado de beber. Era uma das regras para ficar no Distrito 13.
– É sobre ? – Peeta já queria saber.
Que se dane o resto. Ele só queria saber dela.
– É... Também. Conseguimos contato com o aerobarco que foi em missão a Capitol e estão voltando sem nenhuma baixa. Apenas alguns feridos.
– ? – perguntou de novo.
– Estão com ela. Está viva, mas desacordada. Vamos fazer algo sobre isso quando chegarem aqui.
– Em pouco tempo chegarão, Peeta.
– Mais ou menos. Tememos ter sido uma armadilha... Gale disse que foi muito fácil tudo que fizeram. Fácil de mais. Chega a ser errado. Então vão rodear Panem por um tempo para terem certeza de que vai ser seguro aterrissar aqui.
Peeta mordeu os lábios e assentiu. Grande parte de sua preocupação era que ela estivesse morta e, agora que sabia que não, sentiu um alívio enorme percorrendo o seu corpo. Só que, ainda assim, a parte do desacordada continuava a ser era preocupante. O que Capitol tinha feito a ela para deixá-la assim?
As três horas que se passaram foram uma agonia sem fim. O rapaz não tinha ideia de quando o maldito aerobarco chegaria ali e não podia ficar esperando na base de aterrissagem.
Quando finalmente outro soldado bateu em sua porta, dizendo que os passageiros já estavam em terra, Peeta correu para a ala hospitalar. Prim estava ali também, observando os médicos e ajudando como podia. Achou estranho Enobaria estar ali também, mas ela não parecia nem contente, nem brava por isso. Somente médicos a examinavam. Ninguém mais falava com ela. Depois viu Annie, já de braços dados com Finnick, e a cena o fez sentir saudades de . Mal podia esperar para abraçá-la daquela forma também. Em seguida, Johanna brigava com dois médicos que tentavam examiná-la e medicá-la. Tão típico. Katniss estava ali também, juntamente com Gale, que fazia um curativo na sobrancelha.
– Cara, obrigado – Peeta agradeceu ao rapaz como podia. Gale sempre teve desconfiança dele perto de Katniss. – Sei que trazer para cá não deve ter sido fácil.
– Foi quase que... Muito fácil, Peeta. Cuidado. Algo não parece bem.
Aquilo deixou suas preocupações mais acentuadas ainda.
Por fim, mais à frente, Haymitch estava fora de uma sala, olhando Peeta. Quando notou, foi até ele.
– O médico disse que queria falar conosco.
A sala estava inteira escura. Mal dava para ver algo direito até o médico passar por ali e acender mais as luzes. Era a primeira vez, em torno de várias semanas que via pela primeira vez, e a pessoa deitada naquela cama se parecia com ela, mas pelo menos quatrocentas vezes machucada. Tanto Peeta quanto Haymitch sabiam que era mesmo, porém seu rosto não era o mesmo. Tinha perdido muito peso a ponto de suas bochechas murcharem e seus ossos aparecerem com uma facilidade extrema. Além disso, a quantidade de roxos e inchados que havia ali era exorbitante. Seu olho direito estava roxo, o esquerdo estava inchado, seu lábio estava cortado e o sangue seco ainda estava ali, da mesma forma que o corte que provavelmente tinha sido proveniente do chute que levou em rede nacional.
O resto de seu corpo parecia desproporcional, tamanha a quantidade de ossos quebrados ou machucados dali. Suas coxas estavam na carne viva em uma cor quase preta, sua barriga com marcas feias de queimaduras e os pulsos na carne viva.
Peeta sentiu as lágrimas tomando os seus olhos. A quantidade de dor que ela suportou devia ter sido imensa apenas pelo o que ele via. Depois de algo como aquilo, não sabia se sua seria a mesma.
– é a garota mais forte que já vi – Haymitch disse, – Dói-me muito ver isso, mas preciso admitir que ela estar viva depois disso é... Incrível.
– Senhores? O estado da senhora Mellark é indecifrável, por enquanto. Fizemos alguns testes com ela e, como dá para ver, a garota sofreu severos casos de tortura tanto física quanto psicológica. Estamos tentando limpar o sangue, mas não sabemos quais serão as seque...
– Limpar o sangue? – Peeta tirou os olhos de pela primeira vez. – O que tem de errado com ele?
– Achamos uma l. tredecimguttatus morta no seu corpo... A aranha que a menina suportou em seu primeiro Hunger Games – os olhares de Peeta e Haymitch caíram sobre o médico, mais preocupados do que nunca, – Descobrimos que, além do veneno dela, tem também o veneno de Tracker Jackers.
– Quer dizer que, enquanto dorme, ela está em uma alucinação?
– Ela não está dormindo. As doses em seu corpo estão tão altas que não a deixam abrir os olhos e, se os abre, não sabe diferenciar o que é real e o que não é. Enquanto os venenos estiverem circulando, ela continuará assim.
Mesmo dormindo, a menina ainda estava em uma dor sem fim.
– Essas... Aranhas. Elas trazem dor, não trazem? estava quase morrendo na arena por conta dela.
– O veneno da Tracker Jacker a impede de demonstrar a dor, mas ela está presente. Conforme os venenos saírem, os sintomas aparecerão – explicou. – Ela está com queimaduras de primeiro a segundo grau, três costelas quebradas e alguns ossos do braço esfolados. Alguns órgãos internos apresentam mau funcionamento e lesão primária causada por golpes muito fortes.
– Ela vai ficar bem?
Era só isso que queriam saber.
– A parte física sim. Conseguiremos reparar em torno de poucos dias. Seria menos, se tivéssemos o material e remédios suficientes aqui – falou convicto antes de continuar, mudando a expressão para preocupado. – Mas a parte mental... Não sabemos por quanto tempo ela foi induzida aos venenos e que tipo de “tratamento” fizeram nela. Não é tarde demais, mas também não podemos garantir que será a mesma de antes. Pode haver sequelas desde perda de fala até estado vegetativo.
Aquela informação foi um pouco pesada demais para digerirem. Ela nunca será a mesma nem sabiam qual o grau de mudança que teriam. O pior de tudo era saber que a menina, mesmo parecendo em paz, estava tão longe disso como Panem estava longe de ter um momento sem guerra.
Dois dias. Peeta não dormia enquanto não tivesse algumas notícias sobre a esposa, se houve alguma melhora ou piora... Qualquer coisa. Tudo que ouvia era sobre sua parte física que, graças aos médicos vindos de Capitol e à tecnologia que trouxeram com eles, eram capazes de curar um osso quebrado em poucos dias. As costelas dela estavam em ordem, assim como os ossos de seus braços e de qualquer outra parte quebrada. Suas queimaduras e cortes horripilantes também tinham sido consertados, apesar de algumas cicatrizes ficarem, principalmente nas pernas.
No começo do terceiro dia, Prim correu para encontrá-lo, fazendo seu trabalho para dizer que acordaria em torno de meia hora.
Ao chegar ao hospital, já encontrou Katniss e alguns outros, todos olhando pela janela do quarto dela. Haymitch estava lá dentro, já com mais dois médicos que averiguavam a situação dela, fazendo-a acordar. Podiam escutar tudo que acontecia lá dentro também, mas ele não queria ficar do lado de fora, apesar de lhe ter sido pedido isso. Como não sabiam qual seria a reação dela, decidiram começar devagar.
– Os batimentos estão normais e a pressão está estável – um dos médicos falou.
– Ela vai abrir os olhos em três... Dois...
E realmente abriu. Sua expressão era de perdida, mas não muito confusa.
– ? Mellark? Sou seu médico – o homem dizia. – Como você está?
Ela não respondeu. Olhou para ele com uma expressão vazia, então ele tentou de novo.
– Não vou fazer nada de mal a você. Qual a última coisa da qual se lembra? – sem resposta de novo, mas, dessa vez, o outro médico disse que não havia nada de errado com a parte da fala dela. – , você está longe de Capitol. Ninguém mais vai fazer mal a você.
Aquilo pareceu acender alguma coisa.
– Longe... Longe de Capitol? Essa... Esse sonho. Não acaba nunca. Faça-o parar... Por favor – quase sussurrou com desespero na voz, que causou ao coração de Peeta se dobrar em mil pedaços.
– Que sonho?
– Esse... Aqui... Agora. Eu só quero descansar. Mate-me de uma vez. É isso que queria ouvir? Quero morrer.
– , você está acordada e não terá mais sonhos. Você não está mais no controle de Capitol. Ok? – falavam com carinho até que ela olhou ao redor, vendo tantas pessoas diferentes, diferentes das de Capitol. Parecia que, aos poucos, ia entendendo tudo.
– Então eu... Acabou? Sem Doutor Sádico?
Os médicos se entreolharam em pavor. Outro até gravou no aparelho que usava: “Refém de Uther, medidas extremas”.
– Sem Doutor Sádico – o médico garantiu com pena. Uma lágrima solitária até caiu do rosto dela. – Você está viva e longe dele.
– Estou viva – repetiu.
Então o médico se virou para Haymitch e assentiu. Ele se aproximou a ponto de ficar na visão de . Ao vê-lo, a menina abriu a boca surpresa.
– T-tio?
– Pequena – ele falou quase que com a voz embargada. Não chorou na frente dela, mas estava tão feliz por vê-la ali de novo... – Nunca mais vai ficar longe de mim. Entendeu? Vou protegê-la como se fosse minha própria filha.
A menina apenas assentiu e o abraçou, tremendo por saber que aquilo realmente era real. Seus sonhos eram falsos, então. Aqueles em que ele tentava maltratá-la. Haymitch nunca a enganara neles... Era essa a forma com que podia confiar nele.
Os médicos conversaram entre si, achando melhor trazer uma pessoa de cada vez para que não ficasse muito sobrecarregada.
Enquanto faziam exames de rotina na garota, deixaram-na de costas para a porta, sempre perguntando se ela sentia dor, como estava e, se sim, onde. Foi então que deixaram Peeta entrar. Ele mal podia esperar para abraçá-la e pedir desculpas, dizer tantas coisas que precisaria de horas para falar, ao mesmo tempo em que só queria ficar do lado dela depois de tanto tempo.
– ? – ele a chamou. Instantaneamente, o corpo dela endureceu e ela não estava mais tão relaxada. A garota não respondeu, então ele andou até ela, finalmente notando a expressão da menina.
Não conseguia ver nada além de um medo anormal para ela, uma pessoa que conhecia há anos. Nos olhos dela, não parecia que ela o conhecia além de alguém que lhe tinha feito muito mal.
– N-não chegue perto de mim! – gritou e pulou da cama para ficar longe dele. – Ou eu o mato.
– Mas... , sou eu! Peeta! Seu amigo, seu marido!
– Você é um monstro.
– ... – e cometeu o pior erro ao tentar se aproximar.
Ela pulou em cima dele e encheu o rapaz de socos e todos os golpes que podia dar. Peeta estava tão em choque que não fazia nada. Nem mesmo tentava pará-la. Até que sentiu o peso dela sair de cima dele com a ajuda de Katniss.
– Você... Você estragou a minha vida. Você! – ela gritou para a garota e pulou nela, dessa vez seguindo para as partes fatais.
Quem diria que uma pessoa tão fraca como ela estava, tão atordoada e sensível, viraria aquele monstro do combate. Com as mãos no pescoço de Katniss, fazia força ao enforcá-la e prender as mãos dela. O rosto da menina já estava ficando vermelho e os olhos dela, inchados, conforme não conseguia fazer nenhuma troca de oxigênios nem mesmo sair dali. As pessoas que estavam ali dentro tentavam separar as duas, mas estava focada em apenas uma ação: matar. Dessa forma, qualquer pessoa que tentava se aproximar acabava levando também, até Peeta se concentrar em tirá-la dali. Com a aproximação, ela pareceu assustada e isso vacilou para que Haymitch tirasse Katniss dali completamente desacordada, quase morta.
– Você... Você me traz dor – desceu ao chão e abraçou seus joelhos, de forma que não ficasse nem um pouco perto de Peeta. – Dor! Façam isso parar... Ele quer me matar, ele quer me ver sofrer, ele só quer que eu morra... Peeta... Só quer que eu morra – chorou. – Eu... Eu o amo, mas ele... – soluçou. – Ele quer que eu morra.
Ficava repetindo as mesmas palavras, fazendo com que o peito de Peeta se quebrasse ao meio. tinha medo dele, e não raiva. Não era a mesma coisa que tinha por Katniss e, sinceramente, não sabia o que era mais assustador.
Os médicos o tiraram do quarto e retiraram toda a atenção que tinha a ela para medicá-la mais uma vez. Aparentemente, ela ainda não estava curada. Apenas com menos veneno para que entendesse as coisas direito.
O estrago que ela tinha feito em Katniss fora muito e, se realmente soubesse o que estava fazendo, teria ficado orgulhosa e ressentida ao mesmo tempo. Por pouco que o Mockingjay morre, deixando um país inteiro sem esperança e um grupo de loucos no Distrito 13.
Peeta não deixou o hospital por horas até que os médicos dela falassem com ele. Além disso, ela o atacou também e tinha feito bons machucados nele.
– Peeta? – um dos médicos o chamou. – está dormindo. Dormindo de verdade.
– O que aconteceu? O que ela tem? Parecia tão bem quando acordou.
– A parte mental dela está danificada, mas menos do que esperávamos. Snow foi esperto ao treiná-la para fazer o trabalho sujo para eles. tem a capacidade de acabar com você e com Katniss com as próprias mãos. Deve ter sido para isso que foi treinada pelos venenos. Com a indução certa, é fácil manipular a cabeça de qualquer um.
– Por isso foi fácil tira-la de lá – chegou à conclusão, vendo o médico assentir. – Snow a queria perto de nós. Quem é Uther?
– Um médico que foi expulso do hospital por tratar os pacientes à... Morte. Ele gostava de ver o sofrimento dos outros e, quanto mais devagar, melhor. Nosso grupo sabia disso e decidimos fugir de lá antes que acabássemos nas mãos dele. Sinto muito por .
Parecia que ouvir aquilo de um médico era pior do que escutar de qualquer outra pessoa.
– Ela vai voltar ao normal?
– Reações emocionais a outras pessoas são difíceis de serem curadas. Como vimos hoje... vai precisar de toda ajuda, se quiser se lembrar de como as coisas eram. Só resta esperar.
Se era real ou não, ainda não tinha certeza. Aquelas pessoas eram muito iguais às de Capitol, mas, aparentemente, eu não estava mais lá. Seria isso possível ou mais um dos meus sonhos? A última coisa de que me lembro era minha conversa com o Doutor Sádico – um momento em que sabia que estava lúcida. Agora, a história é outra.
Esses médicos me ensinaram técnicas que dizem se é sonho ou realidade e elas parecem funcionar bem. Tenho que usá-las todas as vezes que abro os olhos e me encontro na frente de um médico.
Se for sonho, devo admitir que é o melhor que tive há dias. Ou meses? Talvez até um ano. Sem mais torturas, sem mais sofrimento, sem aranhas, sem Tracker Jackers. O melhor disso tudo, apesar de que estar sem dor é ótimo, era ver Haymitch de novo. Ele passava uma hora comigo todos os dias conversando sobre qualquer coisa que não fosse relacionado à minha experiência nos dias anteriores. Era como se realmente as coisas estivessem mudando.
Effie também apareceu e pareceu chocada com minha aparência. Dessa vez, eu não achei ruim, porque a dela também não estava nem um pouco boa, então tive minha revanche ao poder retrucar. Aparentemente, algumas pessoas gostavam de Capitol.
E, bem... Já me contaram de... De Peeta. Que sou casada com aquele monstro, que estava para ter uma família com ele. Todos dizem boas coisas sobre o rapaz, memórias de quando éramos crianças, adolescentes apaixonados, mas elas se transformam em nuvem quando tento me lembrar. Quer dizer, sempre que penso em Peeta, meu coração bate mais rápido por medo. Disseram-me que esse fora um medo induzido por Snow, que toda a dor que ele me proporcionou fazia parte de alucinações treinadas, porém que, com ajuda, ele desapareceria. Mas eu teria que ser forte. O Peeta que conheço só me fez mal. Por culpa dele eu fui para a arena duas vezes. Por culpa dele fui deixada para trás para sofrer. Por culpa dele eu não sei controlar mais minha própria mente.
Também tem Katniss. Pensar no seu nome me causa uma urgência de correr por todos os lugares atrás dela com um único proposito: acabar com ela. Seria capaz de correr todos os distritos sem me preocupar com dores, cansaço, sede. Eu queria vê-la sem vida, queria sangue. Quando me disseram que eu a perdoei, não pude fazer nada além de rir. Perdoar alguém que estragou minha vida? Ela e Peeta se merecem mesmo! Um começa o estrago e o outro o modela.
Só sei que nenhum dos dois tinha autorização de me ver e eu não tinha autorização de sair. Não que tenha tentado, mas, por experiência, sabia que a porta era lacrada por fora. Além disso, não consigo fazer muita coisa ainda, além de me sentar na cama, mexer alguns músculos – para não estagnarem, fui dita –, mas isso me deixa extremamente cansada. Eles me tacavam comida, comida de verdade. Era até bom ouvir de Haymitch que eu começava a ter cor novamente, um pouco mais de carne no corpo, além de ossos e pele.
Pelo lado bom de estar trancada no hospital, era bom ter Johanna como companhia. Ela sempre tirava minha intravenosa de morfina e acordava com mais dor do que o necessário até notar o que tinha acontecido. Tirando isso, a garota foi a única que bateu palmas de pé sobre meu ato em cima de Katniss e disse que faria o mesmo ou pior, se ela fosse eu. Além disso, era mais uma certeza de que aquilo era real, de que estávamos a salvo de Capitol... Pelo menos por enquanto.
Também víamos Finnick, o que era ótimo. Eu estava com saudades dele. Não sabia o que tinha acontecido com ele nem agora que Annie estava ali. Era como se o rapaz trouxesse mais paz, a paz que eu podia chamar assim, antes de tudo recomeçar. Ele também havia mudado, claro. Era raro quando o víamos de roupa e, enquanto Johanna ria sua alma para fora e fazia piadas sobre... O tamanho dele, eu só conseguia corar e rir por vergonha. Podia estar com a cabeça toda maluca, mas continuava uma garota com bom gosto.
Eu me sentia muito melhor com o passar dos dias. Já podia andar pelo hospital, fazer alguns exercícios e estava completamente consciente do que era real ou não, apesar de ainda sofrer alguns problemas sobre isso. Algumas vezes eu tinha recaídas e não era uma cena bonita. Era capaz de quebrar um cômodo inteiro a ponto de deixar as pessoas longe de mim ou fazer aquela dor mental passar. Os médicos disseram que isso seria algo que eu teria que lutar contra antes que ficasse literalmente maluca.
Minha memória começava a trabalhar melhor também. Já havia conversado com os responsáveis por batalhas do Distrito 13, contando o que sabia e o que tinha acontecido comigo enquanto estava em Capitol. Pediam-me detalhes sobre como eram os cômodos, se eu fazia ideia de onde estava ou mesmo o que fazia. Se os ajudei, não sei, mas não era confortável ter essas lembranças.
Era confuso em relação a Peeta. Eu... Eu o amava. Mas ainda morria de medo dele. Como isso podia acontecer? Era normal? Sei que se apaixonar é assustador, porém a esse ponto? Tinha o visto duas vezes desde a primeira vez que o vi e quase o matei, mas sempre com um vidro entre nós. Ao mesmo tempo em que aquilo me deixava muito mais calma, parte de mim ficava de coração partido ao ver o rosto dele quando tentava ficar o mais longe possível dele.
Ficar deitada o tempo todo estava começando a ficar um saco, quando completei sabe-se lá quantos dias no hospital. Traziam-me livros, papéis e canetas, qualquer coisa que pudesse me ajudar a manter a cabeça limpa e ainda ocupada, mas... Que saco. Já tinha lido tudo, não estava nem um pouco a fim de escrever e os médicos não mantinham uma conversa animada comigo. No máximo perguntavam como eu estava, se precisava de algum remédio, onde doía e o que estava pensando. Sempre que estava de mau humor, dizia exatamente o que estava pensando: tédio. Queria sair dali. Mas, aparentemente, eu ainda era um risco e uma ameaça à paz do Distrito 13. Eu só queria uma companhia que não me roubasse minhas doses de morfina. Quer dizer, eu também sentia dores... Era bom ficar entorpecida por um momento, ajudava bastante a relaxar e deixar os pensamentos certos, mas Johanna não queria saber de nada disso. Problema meu que ainda tinha dores. Ela tinha mais. Porém, afinal, tinha mesmo? Fisicamente, ela estava melhor do eu. Mentalmente... A garota já estava pior do que eu quando nos conhecemos – quem em sã consciência tira a roupa no meio do elevador? – e não sei se recebeu algum tipo de tratamento tipo o meu quando estávamos em Capitol. Só que, pelo o que os médicos diziam... Não. Eu fui a escolhida por lá. Mas aí Johanna dava um ataque dentro do quarto de repouso dela e se machucava toda. Bem, deve ser por isso a necessidade de roubar morfina dos outros.
Tenho que admitir que ficar ali me deixava um pouco como quando voltei para a arena na segunda vez, nos primeiros dias. Quando fiquei com as pernas paralisadas depois de ter caído do penhasco e não conseguia me mover, fiquei pensando, e pensando, e pensando, e pensando... Não tinha mais o que fazer. Eu não estava de volta àquele ambiente hostil, contudo me sentia presa de novo.
Haymitch parou de aparecer todos os dias, o que ajudou a piorar o meu caso de depressão e tédio. Quando aparecia, ficava pouco porque tinha que ajudar a bolar planos e estudar táticas. Aparentemente, havia uma batalha se aproximando, mas quem me contava delas passou a ser a salvação da minha mente já bagunçada.
Às vezes, Annie aparecia confusa na ala hospitalar, sem saber direito o que estava fazendo ali, e, quando uma das enfermeiras tocava nela, parecia que o mundo tinha desmoronado para a menina. Os gritos eram a pior parte. Eles eram estridentes, agudos e realmente entravam na sua cabeça como agulhas. Já que ela tem que gritar tanto assim, não podia ser mais baixo pelo menos? Tem pessoas ali dentro com problemas mentais em que qualquer coisa podia ser a chave para voltar a como estava antes!
Assim, com Annie ali, Finnick aparecia várias vezes – até mesmo por ele, que virava e mexia ainda andava pelado por aí – para visitá-la, mas, com sedativos, ela passava mais tempo dormindo do que acordada.
– Toc-toc – ouvi depois de grunhir de tédio. – Posso entrar ou vai me matar?
– Depende. Peeta ou Katniss estão com você?
– Não. Estou sozinho.
– Então entre.
– Por que a cena toda? – referia-se ao meu desespero por fazer alguma coisa.
– Porque, se eu ficar mais um dia nessa cama sem ter o que fazer, juro por Panem que vou ficar louca mais uma vez. A única coisa que me dá um pouco de entretenimento aqui é o show da sua namorada, mas os gritos dela... Por que tem que gritar tanto?! Quer dizer, não tenho nada contra gritos, eu grito também, mas são muito agudos!
– , respire – Finnick riu sem graça. – Você precisa mesmo sair desse hospital. Parece-me muito bem.
– Aparentemente, eu ainda sou uma ameaça ao Mockingjay e uma arma mortal a Peeta.
– E quando não vai ser?
– É uma boa pergunta. Às vezes, eles trazem um dos dois, colocam-nos em cômodos diferentes e fazem testes da minha reação. Fora isso, não sou medicada, não falam o que tenho que fazer... Dizem que tenho que descobrir por mim mesma.
– Como vai fazer isso, se está incondicionalmente treinada a machucá-los?
– Exatamente! É o que tento dizer. Quando vejo Katniss, é como se tudo ao meu redor desaparecesse e tudo que conseguisse ver fossem meios de me aproximar dela.
– Parece que está apaixonada por ela.
– ...Para matá-la.
– É, agora não mais – riu. Eu entendi qual era a dele e agradeci mentalmente pelo esforço. – E quanto a Peeta?
– Não sei. Eu morro de medo dele. A menção do nome já me dava calafrios. Agora não mais. Antes, eu tinha medo de vê-lo porque achava que ele podia me machucar e eu teria que me defender. Quer dizer, não cheguei até aqui para morrer tão fácil, não é? E aqueles sonhos... Peeta nunca me machucou e, quando encostou a mão em mim... – estremeci. – Mas agora... Eu não sinto tanto medo assim. Parece que é só... Receio. Tipo, se ele tentar algo, estarei preparada, sabe? Só que algo me diz que o garoto não vai tentar nada. Que nunca iria.
– Então você está melhorando, , e por conta própria.
– Mas não acho isso. Digo, eu sentia por Peeta uma paixão incrível desde que me conheço por gente e sei que o que sentia por ele era bom. Eu gostava de ficar com o rapaz, sabia que estaria segura contanto que ele estivesse comigo, então uma parte do meu inconsciente ainda tenta buscar isso quando o olho. É como se duas partes completamente diferentes de mim brigassem entre elas para ver quem ganha, mas não é como se eu pudesse me forçar a escolher uma das duas, entende? Eu já tentei. Lembro-me de cada coisa que passei com ele, cada toque, cada beijo, porém não consigo me segurar nessas lembranças para fazer as outras irem embora. E temo que elas nunca irão.
– Você precisa de outro tipo de tratamento, se realmente quer melhorar.
– Falou o expert no assunto! – ri, mas não pude deixar de concordar. – Tudo que eu digo aqui é considerado como baboseira ou algo que a maluca torturada disse. Afinal, eles são médicos ou não?
– Annie estava assim... – falou de repente. – No começo de tudo. Não da mesma forma que você, claro, Capitol consegue mexer com nossas cabeças de diversas maneiras, mas, de certa forma, vocês têm uma semelhança. Diziam que eu não podia chegar perto dela, porém as únicas melhoras que ela teve foram quando ficava ao redor. Você só vai melhorar quando ficar no mesmo cômodo que eles, falar com eles. Quem sabe até toca-los.
– Você acha?
– É o que melhorou com Annie – mexeu os ombros. – E vai ser bom para você e para o Peeta.
– Morro de dó ao ver a cara dele quando ele percebe que estou com medo.
– Apesar de ser um pouco confuso seguir seus sentimentos em relação a ele, acho que entendo o que quer dizer. O cara... Não está feliz. Não devia dizer isso, mas a situação de vocês dois não está fazendo bem a ele. Ele mal come, não conversa direito, não quer saber de planos para derrubar Capitol...
Olhei para baixo, sentindo-me extremamente culpada. Olhá-lo e saber que aquilo o machucava já doía o suficiente sem saber disso. Agora que sabia, a história era completamente diferente. Eu estava disposta a tentar lutar por aquilo.
– Você acha que poderia... Falar com os médicos? Não sei. Talvez comparar a situação com você e Annie? Eu não quero que ele sofra. Mesmo que eu nunca mais saia dessa, Peeta tem que...
– Imagino que sabe o que aconteceu com Annie... A essa altura – olhei para baixo, sentindo-me extremamente culpada. – Poucas pessoas sabem e me sinto... Um lixo todos os dias por não ter tido a oportunidade de ajudá-la. Ou matar os que a machucaram. Então farei meu possível para que você saia daqui para poder nos ajudar – prometeu.
– E quanto à revolução? Qual é a história? – assenti e mudei de assunto.
Finnick suspirou e deixou de olhar para mim. Demorou um tempo, mas acabou falando.
– Estão nos ensinando a usar armas de verdades. Armas de fogo. Beetee está criando coisas a cada segundo. Armas para Gale, flechas especiais para Katniss...
– Por que vocês?
– Nós nos oferecemos para lutar, assim como muitos outros – mais uma vez, olhei para baixo, sem saber o que dizer. – Enquanto isso, os outros bolam propagandas. Sabe como é... Incentivando a chamar os outros distritos e coisas do tipo. Temos todos, menos o Um e o Dois.
– Claro que não temos. Eles são os primogênitos de Capitol, os cachorrinhos de Snow.
– Mas deve haver um ponto fraco. Passam pelas mesmas coisas que nós. Não é possível que achem aquilo certo, que realmente achem que é um prazer ir para a arena.
– É por isso que estão fazendo as coisas erradas. Propagandas são intencionadas a um grupo maior de pessoas que sofrem opressão. Quando a maioria acredita que não faz parte daquele grupo, a propaganda não funciona... Eles acreditam que é o certo se vangloriarem por serem escolhidos para a matança porque escutaram isso dos pais, dos avós, irmãos, tios e primos. Ninguém disse o contrário. Por isso não caem no papo da propaganda. Algumas pessoas só aprendem quando estão lá no “vamos ver”, Finnick. Não se lembra de Cato?
– Você deveria estar lá fora dizendo isso para quem bola essas coisas com presidente Coin, e não aqui dentro – ele sorriu, sem acreditar no que eu disse. – Como você se lembra dele?
– O único momento em que eu poderia agradecer a Katniss por suas ações. Ele ia matar Peeta e ela o salvou – dei de ombros. – O ponto não é esse. Vocês têm que focar nas famílias que perderam tributos. Eu sei que o Um e o Dois não perderam tantos assim, mas ainda existe um número e essas famílias sempre estarão de luto pelo parente. Pode ser que acreditem que foi uma luta justa e que o tal morreu por honra e orgulho, porém existe uma grande chance de que tenha pelo menos uma família que entenda o que aconteceu e não ache nada justo. Temos de exemplo Enobaria.
– Ela? Você jura? Ela é completamente excluída de todo mundo aqui. Soldados a escoltam para todos os lados quando precisa andar... Ninguém confia nela.
– E estão certos em não confiar. Ela pode ser tanto uma armadilha quanto uma vítima e não há como sabermos, mas algo me diz que não posso ignorar que a garota estava lá conosco de mãos dadas na nossa entrevista e comigo nesse pesadelo todo. De todos os Profissionais, ela não é a mais esperta para ser uma espiã. É por isso que acho que ela tem alguma coisa rebelde... É perigosa, mas para qual lado?
– Você definitivamente deveria estar lá fora, e não aqui.
– Não é um pensamento tão difícil, Finnick, sinceramente. De repente vocês precisam de um pouco de descanso e uns dias em um lugar fechado sem porcaria nenhuma para fazer – acabei gritando a última parte para que alguém do hospital escutasse. Acabei recebendo olhadelas feias das enfermeiras, enquanto Finnick ria.
– Achei que era a minha namorada quem gritava por aqui – brincou.
– Deve ser a proximidade... Deve ser contagioso – ri abertamente. – Obrigada... Por passar esse tempo comigo.
– Foi tão bom para mim quanto para você. Não foi nada, sério. Vejo que terei que passar mais um tempo por aqui também – referia-se a Annie.
– Pelo menos não é ela ou eu que anda por aí sem as calças.
– Qual o problema com isso, afinal? É libertador. A brisa certamente é boa e não é sempre que lembro que calça é um item necessário para ser aceito publicamente – quis brincar.
Nós todos brincávamos sobre nossas próprias dificuldades e problemas adquiridos depois de tudo que passamos. Ou brincávamos, ou enlouquecíamos. Não havia outra opção.
Dois dias se passaram de tédio mortal. Eu realmente achei que ia morrer de não fazer nada. Finnick não voltou depois que Annie pôde ir embora e ela também não teve nenhum ataque aparente para ter que voltar para cá.
Somente no terceiro dia que as coisas mudaram. O médico responsável pela minha recuperação entrou no meu quarto, disse que ia mudar o tratamento como tinha sido recomendado e me levou para outro quarto – um em que havia apenas duas cadeiras e nada mais. Sentei-me em uma e o médico disse o que aconteceria. Ele traria Peeta para ficar na outra cadeira, mas apenas se eu estivesse absolutamente confortável a respeito disso. Sabia que tinha conversado com Finnick sobre isso e como seria uma mudança naquilo tudo, porém a prática era aterrorizante. Acabei concordando. Sabia que, se ficasse na mesmice de antes, não ia mudar em nada. Mas com uma condição: que eu ficasse presa naquela cadeira sem meios de escapar daquilo.
O médico me olhou nos olhos, querendo entender aonde eu queria chegar, mas aparentemente compreendeu antes de eu ter que falar e acabou mexendo a cabeça, murmurando algo para si mesmo e anotando coisas em sua prancheta. Saiu da sala e voltou em torno de um minuto com quatro elásticos que, no começo de tudo, me prendiam na minha própria cama. Meus pulsos e minhas canelas foram amarrados de tal forma que nem que eu quisesse eu sairia. De certa forma, aquilo me lembrou de ter sido interrogada por Snow em Capitol, mas forcei minha cabeça a tirar aquilo de cena. Essa situação não tinha nada a ver e fui eu quem pediu.
Assim que ele saiu, explicou que em torno de segundos Peeta entraria pela outra porta e se sentaria na cadeira posicionada no outro canto da sala. Assenti depois que engoli em seco e respirei fundo diversas vezes para controlar aquele sentimento que eu não sabia bem o que era. Ansiedade? Medo? Animação?
Não sei. Só sei que a porta teve um “clique” e se abriu, mostrando Peeta que tomou seu lugar em passos pequenos e incertos. Arregalei meus olhos e quase gritei e esperneei para me tirarem dali, mas me esforcei. Sabia que estava presa e tinha que me forçar a entender que Peeta não queria me machucar, nunca quis.
– Oi, – ele falou depois de um tempo calado. Durante todo esse tempo, meu coração batia a mil por hora, tanto que mal acreditava ser possível. Sua voz causou arrepios em meu corpo e eu não sei se eram bons ou ruins. – Disseram que isso foi ideia sua. Bem, Finnick disse. Estou feliz por você... Por... Tentar.
Eu só queria que ele calasse a boca. Estava aterrorizada, mas a expressão dele não me deixava mais calma porque mostrava que ele estava triste.
– Não posso imaginar o que você está pensando, porém, pelo que disseram, não deve ser coisa boa. Disseram que eu devia tentar acalmá-la, provar que nunca faria algo ruim com você. Só que você já sabe disso... Passei minha vida inteira mostrando isso para você. Por mais que as coisas não tenham andado como eu queria, tudo que fiz foi mantê-la segura. Você sabe, não é? – fiquei sem responder de novo. Estava fazendo o possível para controlar minha respiração. – Isso que Snow fez com você... Ele vai pagar. Não sei como, mas vai. É como se ele tivesse apagado quem você é e colocado uma pessoa completamente diferente no lugar.
Concordava com ele, mas não conseguia demonstrar. Como eu queria me matar por isso.
– Eu tenho todo tempo do mundo para lhe mostrar que ainda sou o mesmo cara por quem você se apaixonou quando éramos adolescentes, o mesmo cara com quem você se casou e o mesmo cara que lutou ao seu lado para sobreviver. O mundo está acabando lá fora, porém pouco isso me importa, contanto que aqui dentro eu consiga lhe provar, e não vou descansar até que isso aconteça – parou de falar novamente por um tempo maior e quase agradeci por isso. Dessa forma, minha respiração voltou ao normal e consegui ficar no mesmo cômodo que ele, até mesmo deixar de arregalar os olhos. – Queria deixar claro também... Devia ter dito isso antes. Como sou idiota... Queria deixar claro que, se quiser que eu vá, é só olhar para janela e o médico vai me tirar daqui. Eu só... Só... Eu sei que você não me machucaria. Não agora. E, se machucar, isso não vai me fazer desistir de você. Sei que mereço uns tapas ou outros – riu sem jeito e vi as lágrimas nos olhos dele. – Mas eu precisava que você relaxasse. Tenho certeza de que não vai me machucar, até porque está presa, mas mesmo se não estivesse... E já lhe disse milhões de vezes e nunca vou deixar de dizer de novo: não vou machucá-la. Eu amo você e...
Foi então que pateticamente comecei a chorar. Não por medo – não dessa vez –, mas acho que por ouvir isso? Saber que ele não se preocupava com o fato de eu sofrer aquele problema, da certeza que o rapaz tinha de que eu ia melhorar e da insistência dele em poder me ajudar. E também pelo fato de que ele também estava chorando. Só não demonstrava como eu. Isso quebrava o meu coração.
– ? – ele quis se mover, mas parou em segundos, temendo que eu ficasse pior. – Não chore. Por que está chorando? Odeio vê-la chorar. Eu... Queria abraçá-la agora e fazer parar. Parar tudo... Mas...
O que aconteceu depois eu não sei bem o que foi. Era como se uma parte do meu cérebro ficasse preta. Lembranças foram apagadas por um tempo enquanto chorava. Todos os meus sentimentos foram de certa forma reprimidos e algo que me machucava de forma incrível há tempos saiu.
– Depois da arena – chorei mais. – Quando acordei... Estava escuro. Não via nada. Mas Enobaria estava lá... Ela falou comigo. Disse que tinha um presente de Capitol para mim – chorava tanto que minha voz mal saía direito. – Eles... Eles deixaram nosso filho morto na minha frente... Ainda sujo. Morto. Morto. Uma bolinha de poucos centímetros que mataram ainda dentro de mim e... Deixaram-no jogado como se... Como se não fosse nada – funguei. – Odeio Capitol, odeio Capitol...
Peeta engoliu em seco várias vezes, arregalando os olhos a cada palavra que eu soltava. No começo, certamente surpreso que eu tinha falado algo, mas depois era uma mistura de ódio e tristeza que eu via ali. Suas mãos estavam fortemente agarradas à cadeira, suas veias completamente à mostra, tamanha a força que fazia para se controlar, e os olhos... Lágrimas escorriam livremente deles, dor e ódio esvaindo de seu corpo. Por fim, escondeu o rosto entre as mãos e fungou alto.
Nós dois ficamos assim por sabe-se lá quanto tempo. Nenhum médico entrou. Não havia nenhum outro som ali dentro, além de nosso choro, e devo dizer que há tempos que não me sentia bem assim. Parecia que um peso havia saído de meus ombros. O fato de que eu não consegui proteger nosso filho, o fruto do nosso amor, e a culpa que sentia por isso, além do ódio de ter sido colocada naquela situação injusta.
– Eles vão pagar – ele disse, por fim. – O tempo está chegando. Eles vão pagar da forma que devem. A culpa não é sua. Você fez o seu melhor e eu não poderia estar mais orgulhoso por se manter forte.
– Não fui – engoli seco para não voltar ao estado de medo de antes. Tinha que aproveitar e lutar contra esse sentimento. – Não fui forte para mantê-lo vivo, por não protegê-lo quando pude. Não fui forte para pararem o que fizeram comigo. Esses nós no meu cérebro quando vejo você...
– Você não poderia ter feito nada. Você está viva, , e nada mais importa. Você vai conseguir vencê-los, nós vamos, juntos.
– Não consigo vencer nem a mim mesma! – gritei exasperada.
– Não? Quando entrei aqui, você não conseguia nem olhar na minha direção. Agora está falando comigo. Você está ganhando a batalha mais importante agora.
Eu estava, não estava? Aquilo devia significar alguma coisa, por menor que fosse.
– Vou ajudá-la a superar isso. Você vai ver.
– Estou com medo.
– De mim? – senti pela voz dele que o mundo de Peeta tinha desmoronado. – Posso ir embora...
– Não – fui mais rápida, antes que ele pudesse se levantar. – Bem... Também, mas um pouco. Estou com medo da situação. Não confio em minha própria cabeça. Como posso...?
– Lembra-se de um jogo que costumávamos fazer quando tínhamos quinze anos? Eu o achava bobo, mas você o adorava – riu com a lembrança.
– Verdadeiro ou falso?
– Lembra como prometemos um ao outro que poderíamos mentir em qualquer outra situação, se fosse o caso, mas que aquele jogo deveria ser completamente honesto? Era uma forma de reconciliarmos depois de brigas e, de alguma forma, funcionou – fiquei calada, tentando entender aonde ele queria chegar. – Dessa forma, posso ajudá-la a não ter medo. Não importa o tempo que demore. Confie nisso e poderemos ter algum sucesso. Se não funcionar, acharemos outro meio.
Mas algo dizia que aquilo funcionaria. Eu sempre levei aquele jogo a sério e, se Peeta achava que era algo para me prender e tentar, faria isso por nós.
Ele ia falar algo mais, mas o médico abriu a porta com um sorriso no rosto e acenou para Peeta. Era hora de ir.
O aparente sucesso que aquilo causou fez todos os médicos dizerem que eu tinha um futuro promissor, mas tinha mesmo?
Na próxima vez, tentaram com Katniss e os resultados foram piores do que se não tivessem tentado. Antes mesmo de ela entrar na sala, eu já estava tentando me soltar com os olhos doentios por uma matança.
Dessa forma, os procedimentos mudaram um pouco. Com Peeta, tentaram pôr a cadeira dele mais perto, porém quase tive um ataque de pânico. Mas pelo menos conseguimos conversar quando havia uma boa distância entre nós. Com Katniss, amarraram-me mais e me deixaram na sala com ela por uma eternidade até eu me cansar de tentar sair e só olhar para ela até morrer de tédio. De acordo com os médicos, isso foi um sucesso. De acordo comigo, só me cansei.
E, da mesma forma que meus resultados foram promissores nas primeiras vezes, não evoluí para melhor nem para pior. Era como Effie dizia... Estacionar em uma dieta e não conseguir sair do lugar. Precisava de métodos novos.
Por mais que os médicos parecessem preocupados com isso, eu estava mais do que bem. Sim, poderia estar melhor, mas não imaginava que conseguiria chegar tão longe e, para mim, é meu sucesso pessoal. Conseguia conversar com Peeta quase que normal – eu disse quase – há alguns metros de distância e conseguia ficar no mesmo cômodo que Katniss sem tentar matá-la. Isso era quase como que sair da arena viva milhões de vezes.
Em torno de alguns dias, eu percebi que as coisas ali dentro começavam a mudar. Não necessariamente comigo, não no hospital, mas no distrito inteiro. As pessoas estavam mais sérias, mais atentas e com mais... Medo?
Notei também que um dia, do nada, o hospital estava extremamente cheio, mais cheio que o normal. Pessoas com todos os tipos de ferimentos, fossem cortes, danos psicológicos, febre, fraturas e até mesmo membros perdidos. Ouvi sussurros de que haviam tentando entrar no Distrito Dois e as coisas não terminaram muito bem – terminaram pelo o que estava vendo.
Então os médicos passaram a dar atenção ao meu quarto, mas não necessariamente a mim. Olhavam-me como quem se perguntasse se eu deveria realmente estar ali. Minha resposta era óbvia: SIM. Nem eu mesma confiava em mim para ficar a solta por aí pelo Distrito Treze. Imagine pessoas com formação para esse tipo de decisão por mim! Elas não conheciam meu mundo pelos meus olhos. Não podiam tomar esse tipo de escolha.
Mas obviamente tomaram.
Um dia, ao acordar, uma enfermeira entrou no meu quarto e deixou uma troca de roupas como todos ali dentro usavam: fardas verdes escuras, quase azuladas, um par de botas e um pingente de identificação traçado às pressas. Nunca vi “ Bluebonnet” tão mal escrito antes. Não que fosse precisar disso. Eu tinha mais do que a absoluta certeza de que o local inteiro sabia quem eu era. De repente tinham minha ficha inteira, quem sabe? Eu era a louca do local, ou melhor, a louca-mor do local. A Traidora, a Vira-Casaca, a Egoísta e, depois, a Salvadora, a Lutadora e, por fim, dividindo o título com Katniss, a Esperança. Particularmente, eu gostava de a Egoísta porque era o que eu era, assim como 99% das pessoas em Panem inteira, mas era a única com cara o suficiente para admitir.
Assim que me troquei, ainda sem saber o que fazer, Haymitch apareceu junto com um homem que nunca tinha visto na vida e meu tio me explicou que, de acordo com o hospital, estava preparada para deixar o local e seguir como um membro do Distrito Treze, o acolhedor de revoltosos.
– Cara, sinceramente, eu sei me virar daqui. Você não precisa ficar nos seguindo o tempo todo.
– Presidente Coin deu ordens restritas a mim de escoltar senhorita Mellark até seus novos aposentos...
– Bluebonnet – falei de repente e puxei o colar de identificação no bolso. – É o que diz aqui.
– Senhorita, é de suma importância que use esse colar em volta do pescoço...
– Ah, porque ninguém aqui faz ideia de quem ela é – Haymitch rolou os olhos e eu ri. – Diga para Coin que tenho perfeito controle da situação, ao contrário de você que só a conhece pelo que ela fez e por apelidos idiotas.
– A Egoísta é meu favorito – falei de novo. Estava gostando da sensação de estar livre. – E acho que ele tem razão, Senhor Identificação. Se eu desse a louca agora, a única pessoa capaz de colocar um senso em mim seria ele. Isso é, sem me fazer voltar para o hospital, claro. Só que tenho certeza de que o ponto é me tirar de lá, não é?
Finalmente o homem nos deixou – não sem antes morder os lábios com raiva – e andei com Haymitch ao meu lado, deixando que ele me guiasse.
– Aqui é seu novo quarto – abriu a porta. – Não é nada incrível, mas tem uma cama relativamente confortável, seu próprio banheiro, roupas no armário... E uma lista de afazeres ao lado da sua cama.
– Haymitch, você sabe que eu não estou pronta para ficar livre, leve e solta por aí – ignorei-o completamente.
– Eu tenho certeza de que está mais do que pronta – voltou a atenção às coisas do quarto. – Você tem que se apresentar todos os dias para um pequeno serviço para recompensar sua estadia. Vai ter treinamentos tanto psicológicos quanto físicos e vai participar do conselho quando for necessário.
– Pare de falar como o soldado de antes ou eu o expulso daqui também – ele sorriu. – E pare de sorrir também. Isso não é nada divertido. É perigoso.
– , pare de choramingar e escute as instruções. O povo daqui é muito rígido com essas regras malditas.
– Terei escoltas, imagino – decidi obedecer.
– Finnick, Johanna e eu, sim. Todos os dias, todas as horas.
– Viu como isso prova que eu não estou pronta para estar aqui? – disse de repente, extremamente cansada de tudo. Suspirei fundo e sacudi a cabeça.
– Pronta ou não, pequena, é como as coisas são agora. Então, se não estiver pronta, é melhor ficar.
Mordi os lábios e sacudi a cabeça. Ele não entendia!
– Só... Deixe-me em paz. Vá embora! – gritei e segurei a porta do meu novo quarto para ele ir embora.
Assim que Haymitch saiu dali, bati a porta com força e corri para a cama. Meu pesadelo e talvez o do resto de Panem estava prestes a começar.
Estava impressionada com o itinerário do Distrito Treze. Todos os dias eram: acordar, café da manhã, atividade, almoço, atividade, jantar e dormir. Não que no Doze não fosse assim também, mas pelo menos tínhamos a opção de jogar tudo para cima – caso quiséssemos morrer de fome. Mas devo dizer que estava mais impressionada comigo mesma por não ter nenhuma recaída em uma semana. Todas as manhãs, quando saía de meu quarto, Finnick estava na porta junto com Annie e íamos juntos para o café da manhã. Depois me levavam para a nossa atividade que aparentemente estava regulada para a nossa capacidade mental. Dessa forma, fui escalada para lavar louça com Annie.
Ninguém falava comigo, Annie não era de falar quase nada, as pessoas pareciam ter medo de mim e, sinceramente, deviam. Soldados ficavam de olho em mim o tempo todo, fingindo que olhavam os outros, enquanto olhavam para mim mesmo. Quando notei isso, ri e sacudi a cabeça, mas continuei com meu trabalho. Pelo menos não ficava deitada em um lugar branco esperando a hora passar. Nunca gostei de lavar a louça, porém pelo menos estava fazendo alguma coisa e, se chamavam aquilo de ajudar a derrubar um governo tirano, tudo bem, eu o faria.
Um alarme soava para dizer que era hora do almoço e, no primeiro dia, Haymitch e Finnick apareceram ao mesmo tempo para tal fato e ergui as sobrancelhas, perguntando-me o motivo daquilo. Acabei descobrindo que era porque Katniss e Peeta almoçavam no mesmo lugar que eu e, se fosse para ter um ataque, teria duas pessoas para me parar. Tremi o corpo inteiro ao ver os dois por várias razões diferentes, mas consegui comer sem matar ninguém e sem fazer uma bagunça – apenas um garfo quebrado. Chamava aquilo de vitória.
Com o passar dos dias, conseguia ver que meu autocontrole estava muito melhor, apesar de não me sentar no mesmo lugar que um dos dois ainda. Cada dia era mais perto e eu sabia que, um dia, os dois estariam na mesma mesa que eu. Estava até me acostumando com a rotina até ser chamada para participar de uma das reuniões do conselho. Seria a primeira vez que seria apresentada a Presidente Coin, a única que se opôs a Presidente Snow em toda essa revolução. Gostava do fato de ela ser mulher, apesar de nunca tê-la visto na vida. Era interessante ver que uma de nós tinha peito o suficiente para liderar algo tão grande.
Johanna entrou na sala primeiro que eu e, assim que pus meus pés lá dentro, o lugar inteiro ficou em silêncio.
– Eu posso sair para que possam conversar de novo. Não é como se eu me interessasse pela opinião que vocês têm de mim – dei de ombros e puxei uma cadeira para me sentar, enquanto sorria de lado. Estava dando a mínima para o que eles pensavam sobre minha presença ali. Se eu tinha que estar, estaria.
Muita gente estava ali e, entre os conhecidos, os de sempre: Katniss, Gale, Peeta, Finnick, Johanna, Beetee, Haymitch e... Plutarch Heavensbee. Decidi ignorar a presença dele ali. Muito provavelmente era por causa dele que muitos aqui estavam vivos. Por fim, havia uma mulher de cabelos brancos e uma estranha mecha mais grisalha entre eles. Parecia que todas as cores foram sugadas de seu corpo, como se não tivesse sangue, bronzeado, manchas... Até mesmo os seus olhos eram quase tão claros como água. De uma forma assustadora e muito estranha, ela se parecia com uma irmã ou prima distante de Snow. Esse pensamento me fez ter calafrios dos pés à cabeça e foi por isso que sabia que aquela era a tão famosa Presidente Alma Coin.
– Seja bem-vinda, Bluebonnet – Plutarch foi o primeiro a dizer e entortei o nariz pela escolha do sobrenome. – Estamos felizes que tenha se recuperado bem. Espero que esteja confortável em se juntar a nós...
– Ela está – Coin falou por mim e eu arqueei as sobrancelhas. – Não temos tempo para esperar a cabeça de uma pessoa se organizar.
– Podemos pelo menos fazê-la se sentir melhor. Afinal depois de tudo que ela passou como refém, temos que agradecê-la pela grande ajuda que acabou dando.
Coin mordeu os lábios e fechou os olhos com certa força.
– Espero que esteja melhor, , e seja bem-vinda.
Dei de ombros. Não estava ruim, mas não estava boa também, então para que mentir e dizer que estava me sentindo fenomenal no mesmo cômodo que duas pessoas por quem não me sentia tão bem assim?
– Obrigada.
Peguei uns amendoins na mesa e comecei a comê-los sem quebrar o olhar com Coin. Ela, por outro lado, me olhou com certo desgosto e começou a falar sobre os principais avanços da semana, perguntando aos outros sobre como as tarefas deles estavam indo. Novamente, estava ficando com um tédio absurdo porque ainda não sabia qual era o meu papel naquele conselho. No momento, estava muito bem ficando no escuro sobre como andavam as coisas... Precisava de um tempo para me recuperar.
– ...Quanto a recrutar os dois últimos distritos, quero ouvir suas ideias, .
– Acredito que Finnick já as tenha contado, Presidente.
– Sim e, apesar de fazer sentido, não vejo como nós, os opressores, vamos chamar a atenção de um grupo específico como eles.
Rolei os olhos. Aquilo estava começando a ficar chato.
– Por que está perguntando para mim? Sou do bombardeado Doze, pisei apenas uma vez no Um e no Dois, não os conheço e não sei mais do que você sabe sobre eles.
Coin se irritou e olhou para os lados.
– Por que deixamos essa garota fazer parte mesmo?
– O negócio é que... – recomecei. – Não deviam perguntar para mim e, sim, para uma pessoa de lá... Que por acaso divide o mesmo teto que nós e, até um tempo atrás, a mesma cela que eu e Johanna. Trouxeram Enobaria junto conosco quando nos tiraram de Capitol e não deve ter sido por bobeira. Aliás, ela ter sido capturada por eles também não deve ter sido por bobeira – dei de ombros. – Posso estar errada, mas o que custa tentar? Ninguém conhece tão bem o povo do Dois como ela.
Gale estava com as sobrancelhas arqueadas, pensando no que tinha falado, Finnick, Haymitch e Johanna sorriam de lado, como se eu tivesse matado a questão inteira. Katniss mexia levemente a cabeça, ainda pensando, Plutarch sorria e Peeta também, só que adoravelmente.
Coin rabiscou algo em um papel, mas não disse mais nada.
– Eu só... – comecei a falar de novo e a atenção de todos voltou para mim de uma vez só, de forma que tive que parar. Não queria causar mais problemas que o meu comportamento teimoso já estava fazendo.
– Você? – Plutarch me incentivou a continuar.
– Eu entendo o motivo de querer todos os distritos para nossa causa e principalmente o Um e o Dois, que de longe são os mais fortes e, de certa forma, unidos a Capitol. Mas e depois disso? Vamos forçar nossa entrada triunfante para o coração de Panem? Snow não aceitará isso numa boa. Nem mesmo a população vai, mesmo sendo burra feito pedra... Sem ofensas – disse aos moradores de lá.
– Não esperamos que ele aceite numa boa – Gale respondeu.
– Então está dizendo que vão lutar contra ele e os poderes que esse tem? Mesmo com toda a força que temos do nosso lado, Snow ainda tem mais só por ser quem ele é.
– O que está sugerindo então? Uma conversa? Quem sabe um chá? – ele retrucou irônico.
– Algo que não coloque tantas vidas inocentes em risco por um tiro no escuro – respondi direta. – Capitol vive das coisas que nós produzimos, colhemos e extraímos, nossa mão de obra. Energia? Distrito Cinco, nosso. Alimentos? Distritos Quatro, Nove, Dez, Onze, todos nossos. Roupas? Distrito Oito, nosso. Transportes, aerobarcos? Distrito Seis, nosso. Tecnologia? Distrito Três, nosso. Matéria-prima? Distrito Sete, também nosso. Sem nós e nossas coisas, eles não são nada. Parando completamente a produção e exportação das coisas, deixaremos Capitol fraca e vulnerável. Digamos que conseguimos o Um e o Dois, isso deixa Capitol ainda mais vulnerável.
– Já fizemos isso, mas existem mais Pacificadores do que antes em cada distrito, mantendo a ordem para que pelo menos uma parte seja enviada para lá – Coin explicou.
– Acredito que, se Katniss vestir suas penas de Mockingjay e incentivá-los, vai ficar muito mais difícil para Capitol ter recursos – argumentei. – Além disso, Capitol é como o Um e o Dois: acham que os Hunger Games é certo e divertido porque ninguém disse o contrário. Mas, se procurarmos, achamos os que concordam com nossa causa e teriam prazer em nos ajudar – apontei para as pessoas que eram de lá e já tinham se rebelado. – Pode ser arriscado, mas pode funcionar também.
Eles ficaram em silêncio e, mais uma vez, Coin parou para escrever algo.
– Mais alguma coisa? – Plutarch perguntou para todos.
– Chamem o grupo da estratégia. Haymitch, você fica com Katniss e faça isso funcionar. Gale, traga Enobaria para uma conversa. Beete... Suas coisas. O resto está dispensado – Coin deu as ordens e nos levantamos para sair dali.
– Você não foi nada mal lá dentro – Johanna falou. – Até que sua mente maluca consegue pensar com nexo.
– Achei que ela ia me tirar de lá.
– Também achei isso um momento e ia ser muito engraçado. Sinto até pena que não aconteceu – rimos. – Ei, acho que você podia tentar uma coisa diferente hoje.
– Tipo? – arqueei as sobrancelhas.
– Aproximar-se de Peeta. Eu totalmente curto vocês dois juntos – parou-me e olhou psra trás. – Ei, Peeta, venha aqui.
– Johanna, não. Não faça isso... Por favor, não.
– Relaxe. Se você enlouquecer, eu dou um soco na sua cabeça que você vai parar no Distrito Dez.
Do jeito que ela falava, parecia que ia dar tudo certo. Fiquei tensa o caminho todo que Peeta fez até nós, tomando o cuidado de ficar a mais de cinco passos de mim.
– Que é isso, garoto? Ela não vai morder você, não.
– Estou respeitando o espaço dela. Sei que não vai me machucar.
– Peeta... – comecei.
– Você não quer me machucar. Verdadeiro ou falso?
– Não se trata de querer ou não...
– Verdadeiro ou falso?
– Verdadeiro – disse de uma vez. Eu não queria machucá-lo mesmo nem fazê-lo sofrer pelos meus ataques, mas não era fácil assim controlar minha cabeça.
– Ótimo. Podemos andar agora? – Johanna começou a andar completamente desatenta a mim, deixando tudo sob meu controle maluco.
Peeta andou ao lado dela, enquanto eu andava do outro, talvez um pouco tensa demais.
Paramos perto dos meus aposentos, onde normalmente não havia ninguém – acho que de propósito – e, mais uma vez, somente um ou outro passava por ali.
– Ok, se ela quiser quebrar a sua cabeça, eu já prometi que vou dar um soco que vai levá-la longe e você deveria se defender também...
– Se me defender, ela vai ter certeza de que quero machucá-la, então isso não rola – Peeta bufou. – Afinal, o que você quer conosco, Johanna? Estamos indo bem devagar.
– Bem?! Vocês chamam ficar a uma distância de dois metros um do outro de bem? Por céus, vocês são casados! Deviam estar um ao lado do outro, juntos. Lutaram para sobreviver dentro da arena, torraram meu saco porque se preocupavam mais em proteger um ao outro do que a si mesmos e não fazem o mínimo de esforço para voltarem a como era antes! Como pretendem viver depois que essa guerra acabar?
– Meio que não pensamos depois disso... Tem a opção de morrermos, Mason – esclareci.
– Eu sabia que era pessimista, , mas dessa forma? – riu alto. – Tudo bem. Sim, nós temos uma grande chance de morrer, então que tal aproveitarem até lá? Vocês não vão querer morrer sem se abraçarem de novo, não é?
Ficamos quietos. Johanna estava muito mais do que certa, mas ela não entendia como era! Quer dizer, sou uma bomba-relógio... De repente podíamos aproveitar, porém aí eu explodo e todo o esforço vai por água abaixo.
– Estou disposto a tentar se estiver tudo bem para você, .
Suspirei fundo, sabendo que eu devia fazer a coisa certa e correr dali.
– Se eu bater nele, Johanna, eu juro que vou canalizar minha força para você e quem vai parar no Distrito Dez é você.
Ela sorriu vitoriosa e se afastou uns dez passos de nós. Meu coração já batia acelerado bem antes do vamos ver. Agora eu conseguia comparar.
– Vou me aproximar, ok? – ele começou. – Aí vou pegar a sua mão. Se achar demais, fale.
Só tive forças para assentir.
Preciso dizer: estava até que ansiosa por isso. Eu não o sentia há tempos, desde a arena, e estava com saudades dele, apesar de apreensiva. Perdi a noção do espaço quando olhei para cima e vi Peeta a meio passo de mim. Dava até para sentir o cheiro dele e não mudou nadinha. Senti um frio subindo pelo meu corpo e, pela primeira vez, não era de medo e, sim, de saudade e... Amor. Eu estava gostando daquela sensação. Sentia falta dele e, mesmo com a mistura estranha de sentimentos que tinha por ele, estava animada por tentar. Quer dizer, precisávamos disso.
Comecei a respirar tão rápido que quase dei um passo pra trás e Peeta notou.
– Você não quer me machucar. Verdadeiro ou falso?
– Verdadeiro – suspirei fundo e assenti para ele continuar.
Peeta pegou minhas mãos e instantaneamente senti choques saindo de lá e passando por meu corpo inteiro. Comecei a tremer igual a uma louca e meus olhos se arregalaram. Nem mesmo conseguia sentir a sensação.
– , respire. Está tudo bem. Não vou fazer mal algum a você e você também não quer fazer mal a mim. Eu sei disso.
– Eu não quero, mas... Não é bem assim que funciona minha cabeça.
– Se quiser parar, podemos tentar outro dia.
– Não – fui mais rápida e suspirei fundo para me controlar.
Fechei os olhos, ouvindo apenas minha respiração, até que comecei a sentir a mão dele na minha. Tão fofa, tão quentinha... Sempre falei que a mão dele parecia um pãozinho por essas características. Depois dos Jogos, elas voltaram calejadas e, por mais que aquilo me doesse um pouco, aprendi a amá-las da mesma forma de antes a ponto de que os calos não eram um incômodo. Agora elas estavam do mesmo jeito de que lembrava e aquilo me fez sorrir ao expirar o ar que tinha puxado.
Abri meus olhos e encarei os de Peeta. Nós dois sorríamos com uma mistura vitoriosa e outra adorável da saudade e do amor.
– Você conseguiu – ele sussurrou.
– Nós conseguimos. – corrigi. – Obrigada, Johanna.
– É ótimo, não é? Sou uma ótima professora. Podem se beijar agora.
– Er... Não – soltei as mãos dele, de repente sentindo todo o desespero do que estava fazendo só por pensar em ficar mais íntima.
– Acalme-se, . Não vamos fazer nada que não quiser. Mãos dadas é um avanço incrível, não acha?
Lentamente, assenti até ter confiança de me aproximar de novo e pegá-las mais uma vez.
De repente, com o tempo, poderíamos quebrar todas as barreiras.
Só que não. Todas as minhas esperanças foram jogadas fora quando alguém ficou sabendo desse pequeno avanço na minha saúde e tentou interferir, mas não necessariamente com Peeta.
Em um belo de um dia, ao levantar da cama, fiz minha rotina normal até o fim do café da manhã para descobrir que os pratos não seriam lavados aquele dia. Pelo menos não por mim. Fui escoltada por Finnick até as profundezas do Treze, onde me parecia um campo de batalha interno. Não só parecia. Era. Acabei descobrindo do pior jeito.
Ninguém me explicou o que estava acontecendo ali – e acho que não concordaria se tivesse explicado –, mas, de repente, ouvi o som de uma bomba sendo jogada ao meu lado e meu primeiro instinto foi correr para me proteger, o que eu fiz. Mas depois...
Tiveram que me apagar para me tirar de lá.
O barulho ou a surpresa, de repente os dois, foram a chave para que a minha cabeça entrasse em um transe esquisito. Eu só queria sair dali. Era tudo de que me lembrava, porém o que me contaram foi o contrário. Bem, eu realmente aparentava querer sair dali, mas isso não me impedia de tentar machucar qualquer pessoa que viesse na minha frente e gritar como uma maluca. Escutei vários “tirem Peeta daqui” e “mantenham Katniss a salvo”, contudo minha cabeça não estava programada para correr atrás de sons ou seguir nomes. O meu alvo não era nenhum dos dois. Era qualquer pessoa que se atrevesse a encostar em mim.
Foram precisos três grandalhões para me pararem – e no sufoco ainda. Quebrei o nariz de um – sangrava como o inferno –, atingi as costelas de outro e quebrei os dedos do último antes de eles me imobilizarem por fim e me levarem de volta para o meu doce e lindo quarto hospitalar.
Quando voltei a mim, Haymitch estava lá para me contar o que houve. Apesar de rir sobre isso, eu podia ver a preocupação em seus olhos. Eu não era a mesma. A garotinha inofensiva que ele conheceu a vida inteira tinha virado um monstro mortífero que não tinha aviso prévio de quando ia enlouquecer. Agora não só Peeta e Katniss eram ameaças em potencial. Qualquer um era.
Assim que voltei à rotina normal, voltei a ser a fofoca do Treze. Ninguém mesmo ousava me olhar nos olhos. Apenas os que me conheciam. Eu mesma tinha medo de mim. Não gostava de ouvir depois sobre minhas ações, sendo que nem tinha noção sobre elas, e, se já não gostava de não ter controle sobre meu cérebro, as coisas ficaram ainda piores. Decidi me fechar ao mundo exterior e somente olhar e falar quando a palavra era dirigida a mim. Dessa forma, talvez as coisas fossem mais fáceis para os outros do que seria para mim.
Cortei os meus meios de comunicação com Peeta e os olhares com Katniss para que não ocorresse nada errado. Sempre que um dos dois aparecia, eu desaparecia e foi assim até que o único lugar que conhecia que era a salvo para mim era meu próprio quarto e nem lá me sentia bem. O Distrito Treze inteiro me deixava angustiada.
Tanto que, com apenas alguns dias nessa rotina, tive mais ataques do que gostaria e mais do que pude contar. No fim, não queria que ninguém me dissesse nada, principalmente depois que disseram que eu machuquei Peeta.
Desde que voltei de Capitol, não derramei uma lágrima, sem contar minha ruína quando conversei com Peeta sobre nosso filho na primeira vez que tentamos o método novo de recuperação. Agora ali estava eu, mais patética do que tudo, chorando rios em meu quarto e abraçada ao meu travesseiro, quando tudo que eu mais queria era um abraço e palavras de encorajamento. Queria ouvir que tudo ia acabar bem, que logo eu ficaria melhor, que essa guerra ia acabar e finalmente teria a tão aclamada paz, mas isso não aconteceu. Ninguém bateu minha porta, ninguém tentou entrar, ninguém além de mim mesma podia me confortar.
Aquelas paredes metálicas estavam me angustiando de forma absurda. De repente, arregalei os olhos com um pensamento e engoli o choro na hora. É óbvio que estou tendo ataques... Ficar fechada era o pior que podia fazer, mas não digo apenas em meu quarto. Digo o distrito inteiro. Precisava de ar, precisava sentir o sol no rosto, precisava de qualquer coisa que me lembrasse de como era ser livre, fosse de alguém ou de mim mesma.
Eu sabia que Coin se “preocupava” comigo. Bem, se preocupava com o que eu podia fazer com a esperança dela – e não digo Katniss – do jeito que as coisas estavam andando. Andava machucando mais os homens dela do que aprendendo algo ou melhorando... Fosse o que fosse, eu era uma pedra no sapato dela. Era por isso que eu precisava falar com ela antes que machucasse mais duas pessoas que impediam a minha “liberdade”.
– Senhorita Bluebonnet, temo que Presidente Coin esteja em reunião agora... – uma moça que aparentava minha idade, só que com o físico delicado, tentou me impedir de entrar.
– Estou me fodendo se ela está em reunião ou se coçando. Preciso falar com ela agora – olhava ao redor, tentando arranjar um jeito de passar por ali. – Olhe, ando com minha paciência um pouco acima do limite esses dias. Tenho certeza de que ouviu falar – vi-a engolindo em seco. – Então, se me der licença, preciso falar com ela. Por bem ou por mal.
Ela deu um passo para o lado, mas ainda tentou falar.
– Senhorita Bluebonnet, eu ainda insisto que...
Mas era tarde. Já havia aberto a porta com tudo e entrado na sala. Todos estavam lá, para a minha surpresa. Ótimo, mais pessoas para o grande show.
– O que está acontecendo aqui? – Presidente Coin me fuzilou com os olhos.
– Eu tentei impedir a senhorita Bluebo...
– É Mellark, mulher. Mellark! Sou casada, criatura! Acerte o nome de uma vez! – perdi a paciência com ela e me virei para Coin – Preciso sair daqui. Ir lá para cima. Ar. Qualquer coisa que não seja ficar trancafiada em um labirinto de fofoqueiros e vitimas potenciais!
Ela mordeu os lábios e pude ver a raiva até pelas rugas do rosto dela.
– Estava presa desde que entrei na arena pela segunda vez, talvez até antes. Desde então, não vi a luz do sol. Não sei mais o que é brisa e me sinto cada vez mais presa aqui embaixo. É quase como Capitol, se me perguntar. Tudo que eu peço é meia hora lá fora – quase sussurrei. – Meia hora.
– Não.
Juro por tudo que é mais sagrado que comecei a tremer tanto que tive que morder minha língua até sangrar para não pular nela.
– Por deuses, deixe a menina ir – Plutarch falou. – Ela se sente claustrofóbica aqui e não posso culpá-la. Ar vai fazer a cabeça dela, Coin.
Por fim, ela suspirou fundo e disse:
– Vá. Se me interromper mais uma vez em uma reunião, você vai lá fora, sim... Mas não vai mais voltar.
Era a minha vez de respirar fundo, aliviada. Bati continência e sai de lá completamente satisfeita.
Quando vi o sol pela primeira vez depois de tanto tempo, quase não lembrava que era assim tão... Gostoso. Sempre gostei mais de chuva e frio, mas, quando você quase morre por isso, aprende a curtir e aproveitar os raios solares o máximo possível. Meus olhos demoraram um pouco para se acostumarem com a claridade, porém, assim que consegui deixá-los abertos, sorri de verdade pela primeira vez. Era a primeira vez que me sentia livre e sem problemas nenhum. Minha cabeça e seus nós foram embora com o vento. Minhas preocupações foram junto, assim como minhas dores.
Não fui muito longe. Fui avisada antes de sair que algumas áreas ainda estavam com alguns sinais de radiação e que eu saberia quais eram e não podia me aproximar. Achei um rio correndo entre as pedras e me sentei na beirada para ouvir a água batendo nas rochas, enquanto aproveitava ao máximo minha meia hora. Nem mesmo o barulho de um galho quebrando foi o suficiente para me assustar muito. Eu pensava mesmo que alguém estaria me seguindo. Só não esperava que fosse Peeta.
– Posso me sentar? – assenti com a cabeça e não olhei para ele. – Por que não está olhando para mim ou ficando no mesmo cômodo que eu nesses últimos dias?
– Para quê? Para, depois de todo o esforço que tivemos para conseguirmos algum avanço, eu enlouquecer e machucar você de novo? Eu não quero machucá-lo. Já fico mal o suficiente sabendo que parte de mim tem tanto medo de você que é capaz de matá-lo para se acalmar. Saber que realmente o machuquei é... – perdi a fala.
– Isso meio que regride as suas conquistas, não acha?
Ele tinha ignorado tudo que eu falei?
– Que parte você não entendeu?
– , eu entendi. É só que... Você que não entende. Você não está sozinha nessa. Mesmo que quebre o meu pescoço, arranque o braço da Johanna, corte o rosto de Finnick e morda Katniss, nós não vamos deixar de ajudar você. Mesmo que isso signifique morte – bufei. – O que fizeram com você, não lhe contar quais eram os planos para o dia do treinamento, foi errado. De repente, se tivessem dito o que aconteceria, você não ficaria tão assustada.
– Eu não fiquei assustada. Eu perdi o controle.
– Porque se assustou.
– Sou um caso perdido, Peeta! Não entende? – gritei. – Nunca vou voltar a ser a menina por quem você se apaixonou. Snow conseguiu isso! Estou fodida demais para isso. Seria mais fácil para você se desistisse de mim e seguisse em frente, tentasse ser feliz.
– Você ainda está aí, – falou firme, tão firme que me arrepiei. – Pode ter mudado um pouco, mas eu sei que a parte que passamos juntos é mais forte do que essa nova que tenta tomar o controle. E, queira ou não, eu só serei feliz com você. Mortos ou vivos. Então acho melhor esquecer essa ideia e finalmente aceitar que estamos tentando ajudar você.
– Obrigada, eu acho – falei depois de uma eternidade em silêncio, apenas digerindo o que ele falou. – Só que estamos em guerra, Peeta. Não sabemos se estaremos vivos ou mortos amanhã. Como podemos fazer planos sobre minha situação?
– Pense positivo. Você nunca foi de pensar positivo, mas eu lhe imploro dessa vez. Quando fui à arena pela primeira vez, você me fez prometer que iria voltar. E fui um idiota sobre isso, eu sei, mas não aja como eu: não desista. Você lutou por mim uma vez. É a minha hora de fazer o mesmo por você. Promete que não vai desistir?
Relutante, assenti. Meu coração batia a mil pelas coisas que acabara de ouvir e pela proximidade de Peeta. Logo, ele voltou a falar.
– Coin ficou maluca com a sua entrada lá – riu. – Mas ela, Plutarch e Haymitch concordaram que você deve vir aqui para cima todos os dias por meia hora pelo menos – sorri por isso. – As coisas estão ficando pesadas, ... Por isso estão nos treinando. E precisamos de todos que puderem ajudar. Você acha que pode?
– Você está tocando em armas de fogo?
– Não é o que queria, mas... Se for o necessário – tremeu. Peeta odiava violência.
– É necessário que eu faça parte? Não acho que consigo me controlar em um campo de batalha.
Mas eu sabia a resposta. Exalei todo meu ar, sabendo que não tinha escolhas ali.
Voltei ao subsolo do Treze na manhã seguinte, tremendo antes mesmo de começarmos algo ali. Os outros estavam treinando mira e, cada vez que ouvia o disparo de uma arma, eu pulava. Só que, daquela vez – não sei se por burrice ou coragem –, Peeta estava do meu lado, sem me tocar, mas ali dizendo a cada disparo que tudo estava sob controle.
As balas que disparávamos não eram de verdade. Eram de borracha, porém, mesmo assim, furavam o alvo há alguns metros de nós. Errei feio a cada tiro que dava, claro. Meu forte não era arma. Não era nada que exigisse mira. Esse era o trabalho de Katniss. Eu era da turma da sujeira que fazia as coisas com a mão ou com a cabeça.
Mesmo frustrada, não desisti. Não que podia desistir também. Era claro que precisavam de qualquer pessoa ali e, se fosse uma que tinha ao menos uma ideia de como Capitol trabalhava e lutava, melhor ainda.
Logo, as palavras de Peeta desapareceram da mesma forma que os sons ao meu redor. Já não me importava com tiros, bombas, explosões. Eu mirava em um alvo e nada mais importava a não ser acabar com ele. No fim do treino, quando os sons voltaram, todos olhavam para mim como se eu fosse enlouquecer. Até mesmo Peeta parecia preocupado. Quando olhei para frente, meu alvo já não era a forma de uma pessoa. Era um cartão com mais furos do que podia contar em todos os lados, deformando a figura a ponto de sair fumaça tanto da minha arma quanto do alvo. Agora eu entendia o porquê dos olhares e não significava coisa boa. Não tinha noção do que tinha feito. Tinha apagado mais uma vez, mas estava focada.
Dessa forma, corri para os meus trinta minutos lá fora e me senti melhor mais uma vez. Peeta não foi atrás de mim, pelo menos na primeira vez que fui. No fim do dia, fui tomar outro ar e ver o pôr do sol.
No outro dia, treinamos mano a mano e ninguém se voluntariou para ser meu parceiro de lutas. Bem, Peeta tinha, mas as chances daquilo acabar bem eram negativas. Fiz até piada de que Katniss tinha se voluntariado pela irmã, mas não queria se voluntariar para salvar a pátria? Ok, isso não era bem uma piada... Era meu lado do mal dizendo que era a chance perfeita de acabar com ela. Assim, Johanna se voluntariou depois de um longo silêncio e foi uma luta interessante, quase um alívio poder fazer aquilo sem me preocupar em matar alguém. Quando me sentia prestes a perder o controle da minha mente, ela dizia algo que me fazia manter a cabeça ali e não ter a chance de matá-la. No fim, tinha conseguido manter minha consciência intacta durante o treino inteiro, mas precisava urgentemente sair dali. Sentia minha mente se perder como se fosse um ataque de ansiedade e pânico se desenvolvendo, mas quase técnica nenhuma funcionava para parar.
Durante vários dias a rotina foi essa. Mal voltava à cozinha para minhas louças. Os treinos passaram a ser o dia inteiro, o que dificultava um pouco minha hora diária no mundo lá fora. Quando via, passava meu almoço do lado de fora conversando com Peeta sobre qualquer coisa que não fosse a guerra, nós ou eu e o começo da noite também, eu e as estrelas.
Meu caso entre meus colegas era estranho. Os supervisores diziam que eu era um ótimo soldado, que aprendia rápido e era morte certa para quem estivesse na minha frente, o que seria ótimo se essa pessoa fosse um Pacificador de Capitol. Mas, quando minha mente divagava, era preciso esforço para me trazerem de volta, o que podia comprometer um ataque. Dessa forma, era boa, contudo, ao mesmo tempo, uma bomba-relógio.
Tinha tempo que não tinha ataques, mas isso não significava que estava bem. Eu sabia e sentia isso.
Mais um dia ordinário. Estava indo para o centro de treinamento como sempre, quando Peeta correu até mim e disse que fomos requisitados em uma reunião com o resto.
Seguimos até a sala de reuniões principais e esperamos Coin começar.
– Depois de seguirmos o conselho de , conseguimos valiosas informações de Enobaria sobre o Dois e o Um. Já temos nossos melhores soldados lá, mas a situação está prestes a sair do controle e eles precisam de ajuda – ela olhou fundo para nós. – Gale, Katniss, Julius, Felix e Hugor, vocês partem no fim da noite. Assim que a situação estiver sob controle, mandaremos reforços e vocês serão enviados para a última parte... – mais uma vez, olhou-nos fundo. – Capitol.
Meu estômago gelou ao ouvir isso.
– Finalmente, um pouco de ação – Johanna falou.
– Você, Peeta, Finnick Griff e Alys vão assim que tivermos notícias do primeiro grupo.
– Espere aí – falei. – E eu?
– Você é instável demais para ficar em batalha – praticamente me ignorou.
– Então é melhor arranjar homens para me pararem porque, se eu ficar onde ele não está... – apontei para Peeta. – Sua revolução acaba bem de baixo do seu próprio distrito. Sou instável com ele. Você realmente não quer saber como sou sem – ameacei.
Presidente Coin não gostava de mim. Eu sabia disso mais do que bem e, conforme me atrevia mais e mais com ela, sabia que ela mesma podia me dar uns tapas. Não confiava nela mais do que confiava em mim e isso já era o suficiente para não gostar nem um pouco da mulher para tomar decisões por mim.
– , seja razoável... – Haymitch tentou argumentar.
– Não. Deixe-a ir – Coin falou mais alto. – Se ela morrer na primeira instância, não me fará a mínima diferença – então se virou para os outros, seus soldados que não eram meus amigos. – Mas, se ela perder a cabeça, não pensem duas vezes em tirá-la do mapa.
Então eu soube, naquele momento, que Panem inteira confiava em uma pessoa quase tão ruim quanto Snow como salvação.
Capítulo 19 em diante
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS AO SITE FANFIC OBSESSION.