Lembre-se de uma coisa: o pior pesadelo de uma criança entre os doze e dezoito anos é se tornar um tributo e literalmente lutar pela sobrevivência com mais vinte e três delas dentro de uma arena. Aquele quem você costumava chamar de "o amor da sua vida" é um dos escolhidos, mas, dentre vários problemas internos, a volta dele só os piora. Antes que perceba, você também é um tributo. Para quem já passou pela arena, o maior desejo é nunca mais voltar. O que acontece quando você, mais uma vez, é obrigada a voltar, só que agora com ele? Cabe a você tomar a decisão de seguir seu coração ou os instintos de uma sobrevivente.
– Você é maluca?! – Haymitch gritou comigo enquanto saíamos da sala de reuniões.
– Sou – não estava mentindo quando respondi normalmente.
– Não tem um pingo de juízo, não é? Pense um pouco em você mesma, !
– Eu estou, Haymitch! – gritei de volta. – Fiquei tempo demais longe de Peeta e olhe o que me aconteceu! Se alguma coisa acontecer com ele, como você acha que vou ficar? Se eu já sou uma bagunça com ele, imagine sem!
– , Haymitch tem razão... – Peeta falou.
– Não – respondi normalmente. – Ninguém vai mudar a minha cabeça. Podem tentar, mas não vai funcionar. E outra: antes morrer lá fazendo alguma coisa do que morrer aqui sem fazer nada. Vocês ouviram o que ela disse: eu praticamente não tenho uso nenhum. O que acha que vai acontecer comigo ficando aqui? Pelo menos lá terei a chance de fazer o que quero – dei de ombros. – Sinceramente, pessoal, é uma perda de tempo tentar me impedir. Eu agradeço a preocupação, mas tudo que quero é tentar ser normal uma vez e tomar as decisões por mim mesma. E, ficando aqui, isso não vai acontecer.
Dessa forma, deixei os dois parados, olhando para mim com cara de bobos desolados, conforme me afastava.
Fui até lá fora – não porque me sentia presa e prestes a ter um ataque, mas porque eu realmente precisava pensar. Acabei de assinar a minha própria morte. Era isso mesmo? Ou ela já estava assinada há meses, quem sabe anos? Bem, do que importa? A única certeza que temos durante nossa vida inteira é de que em algum momento nós iremos morrer. Só não sabemos de quando.
Ouvi passos atrás de mim e olhei para ver quem se aproximava, antes de rolar os olhos e voltar a olhar o barranco à minha frente.
– Não perca o seu tempo, Finnick. Você não vai conseguir mudar a minha cabeça.
– Sinceramente, , do jeito que você está, acho que nem você consegue mudar a sua cabeça.
Levando em consideração que o comentário poderia ser ofensivo, eu não sabia o que pensar. Mas, por vir de Finnick, só pude sorrir e considerar um elogio.
– Obrigada, eu acho. Veio fazer o que então?
– Acha que só você pode receber tratamento especial? Panem é um país livre.
Olhei para ele sem acreditar e caímos na risada. País livre...
– Não acha que lá dentro é quase igual ao resto de Panem? Não acha que mesmo que Snow caia... Que estamos trocando coelho por lebre?
– Está falando de Coin? Pensei nisso já, mas acha mesmo que ela pode ser pior que ele? Quer dizer, isso é possível? Gosto de pensar que é só a personalidade dela.
– Personalidade forte essa... Jogar uma sentença de morte tão fácil assim – dei de ombros.
Foi quando eu percebi que não estava incomodada com o fato de que podia morrer facilmente, mas sim porque uma pessoa não pensou duas vezes antes de sentenciar.
– Nós todos pensamos isso. Plutarch até riu depois que você saiu, mas a mulher deixou claro, parece – ficou em silêncio. – Ela é nossa única solução.
– É? Quer dizer, eu sei que ela pensa bem, tem bons raciocínios e manda bem, porém quem faz tudo somos nós. Nós que estamos lá, botando tudo em prática e arriscando nossas vidas, enquanto ela senta a bunda em uma cadeira e manda nos outros.
– Eu não sei o que responder quanto a isso, . Concordo com você, mas estou com as mãos atadas aqui.
– Eu sei. Também estou falando por falar, na verdade. Não é como se conseguíssemos mudar algo contra ela, não é? A mulher tem um exército atrás dela e eu sou uma ex-vitoriosa e nova maluca – ri, sacudindo a cabeça, antes de mudar de assunto. – Gosto dos nossos assuntos, Finnick.
– Também – ele sorriu e me derreti inteira. Que patética eu sou. – Você é quase uma irmã para mim. Tirando a parte de que me seca de cima a baixo, é quase uma irmã.
– Desculpe. Não é como se eu pudesse parar e você não ajuda... Dava para ser um pouquinho feio? Ou um filho da mãe, quem sabe? – ele negou. – Pois é – rimos. – E pensar que quase tivemos uma “trama” na arena.
– Parece que foi há anos.
– Parece que foi há duas horas – murmurei, sem concordar com ele. – Estou feliz que não fomos em frente com aquilo. Nunca me perdoaria.
– Não seria tão ruim, vai...
– Seria estranho. Que tipo de irmã pega o irmão? E nunca seria capaz de olhar para Peeta de novo. Nossas brigas, desde que ele voltou da arena na primeira vez, foram sobre isso. Tenho raiva de Katniss por isso até hoje, por mais que não goste de admitir. Seria completamente hipócrita. E nunca conseguiria olhar para Annie. Ela já sofreu muito.
– Se fosse a única solução, ela entenderia, .
– Ainda bem que não foi. Ela me ajudou tanto, Finnick... Tanto na arena quanto presa – mexi os ombros. – Ela é incrível. Espero um dia ser tão forte quanto ela.
Sabia que Finnick sorria, mesmo que não olhasse para ele.
– Então, sobre ela... Tenho uma coisa para lhe contar.
– Ah, é? O quê?
– Serei pai daqui uns meses.
Pareceu que a notícia viajou por minha cabeça por horas a fio até que eu finalmente mostrasse alguma reação sobre isso. Abri e fechei minha boca várias vezes, meus olhos se arregalaram, gesticulei minhas mãos em gestos que nem eu sabia o significado até ele começar a rir e eu também, até finalmente conseguir formular uma frase.
– Isso é incrível! Muito incrível! Cara, vai ser um bebê lindo – minha voz estava esganiçada. – Isso é demais, Finnick! Meus parabéns!
– Imaginei que ficaria feliz por mim. É errado eu estar feliz, mesmo sabendo que daqui uns dias sairei em guerra?
Era a coisa mais triste do mundo inteiro, mas não naquele momento.
– De maneira alguma. Um filho é... – meus olhos marejaram, pensando em mim mesma semanas atrás. – Incrível. Sério, parabéns. Estou muito feliz por você.
– Você e Peeta deviam tentar também, sabe?
– O quê?! Amigo, eu mal consigo abraçá-lo. Você acha que conseguiremos fazer amor? – gargalhei.
– Tenho certeza de que, se ele tocá-la nos lugares certos, não importa o que tem na sua cabeça. Você vai ficar prontinha para...
– Finnick! – quase gritei, morta de vergonha. O assunto variou demais. – Nunca, nunca mais falaremos de sexo. Ok? Irmãos raramente falam disso, então essa é nossa regra.
– Tudo bem – gargalhou. – Estava me divertindo muito aqui, mas acho que devíamos voltar.
– É, você provavelmente tem razão – dei de ombros e me levantei.
– ? – olhei. – Acho que está fazendo a coisa certa. Indo conosco, digo. E não é porque precisamos de você.
Uma comoção tomou o Distrito Treze apenas dois dias depois. Não sei como, mas Katniss conseguiu todos os distritos para o nosso lado, inclusive os mais poderosos e que não pareciam tão a favor assim.
O pessoal só estava faltando fazer uma festa, já que estavam contentes por já terem vencido a guerra. Eu, por outro lado, não achava que tínhamos ganhado. A parte mais difícil ainda estava por vir. Só porque tínhamos o apoio dos outros não significava que tínhamos força o suficiente, mas gostava e queria muito acreditar que sim.
Fiquei em alerta para todo tipo de movimento ali de dentro que demonstrasse a ida para Capitol, como planejado. Sabia que estava chegando e que as chances de ser “acidentalmente” largada para trás eram grandes, então não esperei ninguém me avisar quando era para embarcar. Fiquei de olhos e ouvidos abertos, fingindo que não estava interessada em nada ou simplesmente não naquele mundo, e peguei informações o suficiente para saber o exato momento em que sairíamos.
Peeta até mesmo apareceu no meu quarto algumas horas antes para conversar. Deixei-o entrar, apesar da minha vontade imensa de sair correndo. Se tinha que lutar contra Capitol, tinha que controlar minhas emoções ao máximo perto de Peeta. Não queria morrer sem lutar... Nas duas lutas: a do meu lar e da minha cabeça.
Ele tentou fazer o possível para mostrar que aquela conversa era normal como qualquer outra, mas disse que me amava mais de quatro vezes de uma forma meio desesperada e ainda, ao se despedir, disse que nos veríamos em breve, mas não parecia tão convicto quanto a isso.
Peeta é sempre Peeta. Eu mereço?
Então, assim que ele saiu, arrumei tudo que precisava e simplesmente disse que ia tomar um ar lá fora, quando corri para a sala de embarque. Todos já estavam quase prontos para decolar quando apareci.
– Desculpem a demora. Parece que se esqueceram de me avisar quando partiríamos – falei sem criar caso.
Haymitch olhou para mim com olhos de cachorro sem dono.
– ... Pelo seu bem, não vá...
– Não vou discutir isso de novo – mal o olhei. – Se você se importa comigo, vai me deixar fazer o que quero porque sabe que é o certo. Se eu não voltar, azar.
Ele bufou e saiu de perto, dando a deixa para Peeta, só que eu não o deixei falar.
– Acha mesmo que eu ia deixar nosso adeus ser daquele jeito patético mais cedo? Você nunca conseguiu esconder nada de mim por muito tempo, amor. Acho bom entender que não ficaremos separados pelo resto de nossas vidas, mesmo se ela acabar amanhã.
– Bem... Vamos esperar que isso dure mais de um dia. Pode ser? – deu a mão para mim e eu tremi de cima a baixo sem esperar aquele ato, mas respirei fundo e a peguei.
Senti-me muito bem ao tocá-lo depois de alguns dias, mesmo que fosse apenas a mão dele. Meu corpo gritava por mais: um abraço, sentir o cheiro dele, esconder meu rosto no seu pescoço, nossas pernas entrelaçadas... Mas minha cabeça gritava para ficar longe ou algo ruim ia acontecer.
O autocontrole que adquiri naquele momento durou até que entrasse no aerobarco que nos levaria até os arredores de Capitol – talvez mais para mostrar para os capangas de Coin que eu estava bem o suficiente para aquela missão suicida. Assim que a nave se fechou, soltei a mão dele e respirei aliviada, mal sabendo que segurava o meu ar até então. Agora que estava ali, esperava com todas as minhas forças que a missão acabasse me matando ao invés de eu acabar matando todo mundo.
Meu corpo tremia a cada prédio de Capitol que eu via se aproximando. Por que diabos me voluntariei para voltar ali mesmo? Era o pior lugar do mundo, o meu pior pesadelo, e ali estava eu, prestes a pousar no mesmo lugar que me destruiu.
Ao olhar os meus comparsas, percebi que não era a única. Todos os que foram um dia os bonecos de Capitol tremiam da cabeça aos pés, os olhares perdidos na visão extraordinariamente assustadora à nossa frente. Senti minha respiração ficar cada vez mais rápida e meu coração disparar, então parei de olhar antes que as memorias inundassem minha cabeça e me fizessem perder o bom senso.
– Você está bem? – Peeta sussurrou e eu apenas assenti sem olhar pra ele, mesmo que estivesse o mais longe de bem.
De repente, vir com eles tinha sido a pior ideia que tive na vida.
Fechei os olhos e me concentrei no motor no aerobarco até ouvir a voz de Johanna e o cutucão dela para avisar que tínhamos aterrissado.
Não estávamos na cidade. Estávamos relativamente longe dela, mas ainda conseguia ver os prédios facilmente.
– Estamos de volta... – ela falou assim que desci da nave. – De novo.
– Pela terceira vez.
– Sabe, você tinha a chance de ficar para trás e não quis. Eu já sabia que você é maluca e idiota, mas não a considerava uma burra nesse nível, .
– Você faria exatamente a mesma coisa.
– Sim – respondeu simplesmente e a olhei sem entender. – É por isso que a admiro, mas não conte para ninguém – ela se levantou, enquanto eu ainda digeria o elogio. – Tente não se matar e, melhor, nos matar também. Canalize a sua raiva, ok? Capitol é o culpado, Snow é. Não nós. Lembre-se disso.
Arregalei os olhos sem saber o que falar. Johanna era facilmente a mais esperta entre nós, por mais que não soubesse fazer uso das palavras às vezes. Ela sempre colocava senso e brigava pelas coisas. Isso ficou claro quando tirou a máscara de inocente em seu primeiro Hunger Games e massacrou todo mundo e depois quando xingou Capitol e os responsáveis pelos Jogos em rede nacional na entrevista para o Quarter Quell. Enquanto os outros se preocupavam em manter uma imagem boa para ganhar patrocinadores, ela era sincera e esperta desde o começo.
Gale contou como a missão nos Distritos Um e Dois foi para nós e algo em Katniss me dizia que ela não tinha gostado ou que não estava feliz com algo. Não que eu me importasse, mas queria ouvir o ponto de vista dela. Até agora só a vi como uma filha da mãe e o boneco da revolução, apesar de só saber mesmo como usar um arco e flechas. Sim, ela falava bem uma hora ou outra, mesmo que Peeta ganhe de todo mundo nesse quesito.
Decidi parar de ouvir e ficar sozinha. Não tínhamos nada para fazer por enquanto. Eles ainda precisavam estudar o terreno, os movimentos e as estratégias, então fui tomar um ar e tentar me acalmar. Agora que estava fora de um espaço subterrâneo, achava que ficaria melhor, mas o fato de estar ao lado de Capitol... As coisas pioraram 120%.
– É assustador, não é? – ouvi a penúltima pessoa que queria ouvir na vida bem atrás de mim.
– Nem comece – fui grossa.
– Eu só... – Katniss tentou de novo. – Eu quero ajudar.
– Então vá embora. Aproveite e morra. Vá com a culpa de que estou assim por sua causa.
– ... Você não é a única com problemas.
Ah, ela não disse isso.
– Ah, jura? Olhe, Mockingjay, vá dar discursos em outro lugar, porque eu simplesmente não estou no clima.
– Eu tenho pesadelos sempre que durmo. Sei que não é fácil, mas...
– Katniss, os seus pesadelos vêm quando você dorme. Os meus são reais. Não preciso fechar os meus olhos para que um aconteça – levantei-me e me aproximei dela, tão perigosamente perto e com olhos malucos de raiva. – Suma da minha frente.
Sem precisar de mais, ela saiu dali, deixando-me tremendo de raiva. Conseguia sentir o pouco da consciência que tinha se esvaindo a cada segundo que tentava me controlar em vão.
– , você está bem?
E Peeta tinha que aparecer para piorar tudo, claro.
– Não invente de dar mais um passo. Vá embora. Não chegue perto – gritei um pouco alto demais.
Peeta olhou ao redor, o seu olhar parando nos capangas de Coin – todos olhando para mim com um ar desconfiado, as armas bem próximas das mãos.
– Só... Respire fundo e...
– Cale a boca! Vá embora.
Assim que ele se virou, respirei fundo por vezes infinitas, tentando me acalmar ou pelo menos fingir bem o suficiente para que os caras do Treze parassem de me olhar. Pensei bem no que Johanna disse: canalize a sua raiva nos culpados. E, por horas, fiquei sentada, olhando para Capitol e imaginando aquela cidade pegando fogo, caindo aos pedaços.
Era o meu primeiro dia ali e as coisas já estavam daquele jeito.
– Um dia inteiro sem matar alguém? Sucesso! – Johanna brincou.
Mas eu jurava que podia sentir a verdade ali.
– Temos mais vários até que isso aconteça.
– Ah, seja mais positiva – Finnick sorriu, encorajando.
E, com aquele sorriso, eu assenti sem nem mesmo pensar.
Tínhamos passado a noite e grande parte do dia esperando algum tipo de ação até que o capitão da missão nos reuniu. Ele estava falando sobre como iríamos adentrar, onde podíamos começar e onde podíamos andar. Era hora de nos locomovermos e tentar algum avanço. Sentia que alguma coisa ali estava errada. Quer dizer, se conseguíssemos algo com isso, e aí? Não tínhamos nenhum reforço, tudo dependia de nós. Tanto que uma das mensagens fora “fiquem vivos”.
Sinceramente, quantas vezes escutei isso nos últimos anos?! Chega a cansar. E definitivamente é mais fácil falar do que fazer.
– Esperem aí – falei de longe e todos olharam para mim. – Vocês realmente acham que Snow vai deixar isso fácil para nós? – gargalhei. – Pessoal, sinto lhes dizer, mas bem-vindos ao próximo Hunger Games de vocês e primeiro para alguns. A arena é Capitol. Que a sorte esteja com vocês porque cada um de nós vai precisar. Todo cuidado não é nada, então, se fosse vocês, usaria todas as tecnologias que Beetee nos deu para que possamos sair vivos daqui. Ou que sejamos mortos de uma forma menos pesada.
– A biruta tem razão – Johanna concordou. – Teremos armadilhas por todos os cantos.
– Vamos usar um mapa que detecta todo tipo de armamento que não é nosso, então podemos ir tranquilos – Gale falou e eu olhei bem para ele antes de olhar para Johanna com a cara debochada.
– Ele precisa de uma dose com o Doutor Sádico para entender a definição de tranquilo – ri e saí da tenda em que estavam.
Fiquei indignada com o que ouvi de Gale. Ele não sabia de nada e agia como se fosse o maior pedaço de diamante da mina.
Enfim, durante as primeiras horas da manhã, adentramos Capitol depois que me contaram o plano “perfeito”, que estava estranhamente quieta. Pelos relatos de Effie, a cidade estava sempre movimentada, sempre com música e clima de festa. Aparentemente, a revolução tinha causado algumas mudanças e havia claros sinais de rebeldia em algumas áreas e armadilhas em mais lugares do que eu mesma esperava. Dava para ver pólvora e buracos de tiros nas paredes, vidros quebrados, casas abandonadas e casulos que guardavam as armadilhas aparecendo a cada metro quadrado da cidade. Gostaria de saber o que houve por aqui.
Andamos sorrateiramente por algumas boas horas, sempre mantendo o ouvido e os olhos atentos a qualquer coisa. Era como estar em um dos Jogos, só que com o ambiente de cidade. Conforme o sol nascia, percebemos que o movimento começava a ficar intenso, o que nos obrigou a nos esconder melhor e até parar por mais algumas horas. Finnick havia dito que provavelmente tinham criado um toque de recolher e todos concordamos. O que nos restava era esperar.
As vezes incontáveis em que divaguei para não me pegar pensando em coisas que não devia quase expuseram o time inteiro, o que deixou os homens de Coin possessos comigo e até mesmo Gale e Johanna. Por fim, decidimos parar em um prédio que parecia ter sido abandonado.
Eu estava maravilhada com aquilo. Parecia que estávamos na periferia de Capitol e ainda assim não era nada parecido com os outros distritos em que já passei. O espaço que tinham era incrível. Os móveis... Tinha até um pouco de comida na geladeira! Se essa revolução der certo, uma das coisas que quero para todos os cidadãos de Panem é um teto para viverem. E não uma caixa de papelão ou uma pequena laje, mas algo que realmente possa comportar uma família de modo confortável e sustentável.
Assim que acabei de explorar a casa em que estávamos, voltei para junto do grupo para saber quais seriam os planos, porém acabei ouvindo outra coisa.
– não deveria ter vindo. Só está atrapalhando nossas chances de fazer isso certo – ouvi Gale reclamar. – Uma guerra não é lugar pra pessoas como ela.
E foi isso. Não precisou de mais nada.
Em um segundo estava atrás da porta e, no outro, tinha minhas mãos ao redor do pescoço de Gale a ponto de levantá-lo do chão, surpresa com a minha força.
– Estou assim, seu prepotentezinho medíocre, por conta da guerra. Por culpa da sua namoradinha irritante e do meu marido idiota. E, se não fosse por mim, você ainda estaria coçando o saco embaixo do Distrito 13, possivelmente pensando no próximo passo sem ter certeza de nada. E...
– , solte-o – ouvi Peeta falar com calma, interrompendo-me – Você está indo tão bem... Gale não falou por mal. Solte-o.
Soltei-o porque minha raiva não era canalizada nele, apesar de ter sido desencadeada por Gale.
– Se fosse eu, faria a mesma coisa e não tente falar o contrário. Então cuidado com o que sai da sua boca daqui para frente, machão.
Corri da sala sem ouvir mais uma palavra, tentando ao máximo me concentrar em não correr atrás de Peeta ou Katniss. Consegui pegar umas palavras do time de Coin, como “o que a doida fez? Deu para ouvir lá de fora!”, mas ninguém disse que tinha algo de errado. Nem mesmo Gale.
Só que, apesar de saber que meu time estava do meu lado e apoiando minhas maluquices – ou as controlando. Vai saber –, ainda não me sentia bem. Respirava fundo e tremia como maluca, minha cabeça querendo se fechar em uma coisa apenas.
– , respire. Aguente firme. Pense em coisas boas – a voz de Peeta estava calma e eu sabia que ele estava tentando me ajudar, mas não estava cooperando. – Lembra-se do pão doce do meu pai que você adorava? Sempre dizia que ele a lembrava de coisas boas. Pense nele.
Aquela realidade parecia ter acontecido há milhares de anos, mas o sabor não estava perdido na minha cabeça. Ainda assim, aquilo não era o suficiente.
– Não consigo... Peeta, vá embora – funguei. – Não vou longe depois de hoje e você não precisa ficar aqui para ver o estrago.
– Pare com isso... Já lhe falei que não vai a lugar algum de agora em diante. Vou para onde você for, mesmo que isso signifique morte – riu fraco. – Parece meio trágico.
– Peeta, você não está ajudando – quase gritei, os olhos vermelhos de loucura. – Vá embora!
Já nem ouvia direito. Só escutava um zumbido que ficava cada vez mais forte e significava que o negócio estava prestes a ficar feio... E foi quando ele me beijou.
Colocou suas mãos na minha bochecha e colou nossos lábios por longos segundos. Arregalei os olhos, surpresa com a cena, e nem tive reação. Meu coração que batia absurdamente rápido foi abaixando a velocidade até que meus pensamentos se focaram em uma coisa só: Peeta. Mas não as coisas ruins que fui induzida a pensar, e sim as boas que vivenciei com ele. Quando parei para notar, estava retribuindo o beijo dele e sentindo uma felicidade que mal cabia dentro de mim. Era saudade, alegria e medo ao mesmo tempo.
Assim que nos separamos, olhamo-nos como bobos, sem saber direito o motivo – fosse de alívio por eu não ter trucidado a existência dele logo ali ou pelo o que acabou de acontecer sem nenhum empecilho.
– Nós... Eu... O quê...? – tentei formular uma frase, mas nada saía certo. Na verdade, nada do que eu queria falar faria sentido.
Tinha sido perigoso? Extremamente. Tanto que podia considerar aquilo como estupidez, porém funcionou e isso era o mais importante.
– Ei, pombinhos, assim que o sol se pôr, vamos seguir em frente. Sugiro que comam e durmam o máximo que conseguirem até lá, porque a caminhada será longa.
Finalmente consegui conversar com Peeta sobre o que tinha acontecido e passamos praticamente o tempo livre inteiro juntos. Conforme falava, sentia que ficava pior, mas Peeta estava lá com os seus lábios para me fazer melhor de novo.
Se soubéssemos que isso funcionava antes, teríamos feito progresso há semanas.
Claro, ainda tinha medo de que aquilo parasse de ser útil depois que meu cérebro se acostumasse com aquilo e simplesmente ignorasse que eu o amava. Só que não queria pensar naquilo agora. Considerando que não sei se estarei viva daqui algumas horas, aquilo estava de bom tamanho.
O sol se pôs e mal percebemos a hora de ir. Se não fosse Johanna aparecendo mais uma vez para nos avisar, ficaríamos para trás.
Mais uma vez as ruas estavam escuras, com a diferença de alguns postes iluminados que fazíamos questão de passar longe. Com a cabeça um pouco melhor, prestei mais atenção no que fazia, para onde andar e o que não fazer.
Avistamos algumas pessoas indo para casa parecendo que estavam com medo e isso me deixou pensando com uma intuição não muito legal. A ideia do toque de recolher se mostrou óbvia, mas por que isso, se não havia policiamento até agora? O que realmente tinha acontecido ali? Ou ainda pior... E se, de alguma forma, soubessem que estávamos ali?
Sei que Beetee garantiu que não havia modo de sermos vistos no ar, visto que Capitol já estava sem seus recursos que foram destruídos nos eventos rebeldes, mas até mesmo um gênio tem suas falhas. E nossa missão estava parecendo fácil demais, como se fôssemos peças para um jogo até determinado ponto.
De acordo com nosso mapa, havia muito chão para andar para sequer ficarmos perto do Edifício da Justiça de Capitol e, com patrulhas aparecendo pelas ruas, nosso tempo se reduzia cada vez mais.
– Pessoal – ouvimos Johanna na escuta. – Acho que estamos sendo seguidos.
– E cercados – Katniss completou.
– Entramos em alguma casa? – Peeta perguntou.
– Ficaremos mais cercados ainda – respondi.
– Então corremos – Gale respondeu.
– E nossas chances de viver se reduzem a menos de 50% – Johanna bufou. – Você na arena não duraria um dia.
– Esperem – ouvimos Finnick. – A alguns metros, tem uma entrada de esgoto. Se formos...
– Estão se aproximando – Katniss o interrompeu.
– Se formos mais rápidos, podemos entrar. Sei que há um sistema de esgoto tão grande quanto a cidade em si. Teremos mais chances de andar por ali sem sermos pegos e ainda pegarmos alguns atalhos.
Atalhos? Se ele não conhecer o sistema e acabar nos perdendo, pode significar morte para nós. E nem vou comentar como Finnick sabe disso.
– É o que está tendo – acabei respondendo.
– Acho que é bom corremos – Johanna falou e se abaixou a tempo de escapar de uma bala.
Começamos a correr por nossas vidas, mais uma vez. Tinha me esquecido do que era correr com Peeta e sua perna de metal, então, quando olhei para o lado e não o vi, parei na hora e olhei para trás, vendo-o a uns bons passos de todos nós.
– Se for para morrermos agora, que seja juntos – coloquei meu braço ao redor das costas dele e o ajudei a correr.
Balas iam para todos os lados e fiquei surpresa por ver que um dos homens de Coin ficou para trás para lutar contra os Pacificadores que se amontoavam em cima de nós em um cruzamento. Quando parei para olhar ao redor, surpreendi-me com a quantidade deles e com as armas que carregavam.
Mais a frente, o outro homem de Coin segurava a tampa do esgoto para nós, gritando para que andássemos logo. Foi questão de pular na água suja com Peeta e o homem pulou atrás de nós. Todos nós olhamos para ele como quem perguntava o que tinha acontecido com o colega dele.
– Perdemos um. Vamos adiante.
Nosso grupo de oito tinha se reduzido a sete em pouco menos de vinte e quatro horas que entramos na cidade.
Andávamos quase que a esmo pelo esgoto, tentando fazer o mínimo de barulho possível nas águas porque não queríamos chamar atenção de ninguém, nem mesmo embaixo da cidade.
– Como desaparecemos do nada, já devem ter imaginado que estamos no esgoto. Temos que andar rápido – o homem de Coin falou. – O mapa que tenho não funciona muito bem aqui embaixo, mas dá para pelo menos termos um senso de direção.
Apontando aonde deveríamos ir, continuamos o caminho.
O cheiro que aquela cidade produzia não era nada comparado com o lá de cima e com toda certeza qualquer cidadão teria nojo de passar por ali, mas nós estávamos acostumados com coisa pior.
Somente escutávamos nossos pés se arrastando pela água nojenta, cada um preso nos próprios pensamentos, e não sei se foi coisa da minha cabeça, mas ouvi um rosnado.
– Alguém ouviu isso?
– Mantenha suas maluquices para você, Bluebonnet – Johanna murmurou.
– É Mellark – eu e Peeta falamos ao mesmo tempo, mas só eu continuei. – Não delirei. Ouvi um rosnado – ouvi mais uma vez. – Viram? De novo.
– Eu também ouvi um rosnado dessa vez.
Por algum motivo extremamente idiota, todos nós paramos ao invés de continuarmos e olhamos para trás. De repente, do vazio surgiu um monstro muito estranho. Grande, deformado, de quatro patas, pelos, mas o rosto... O rosto parecia muito humano.
– Peeta... – Katniss começou.
– São os mesmos – ele tinha os olhos arregalados. – Corram. Corram e não parem por nada.
Fizemos exatamente o que ele disse e corremos por nossas vidas mais uma vez. Aquilo estava me parecendo meu terceiro Hunger Games e não estava nem um pouco contente por isso.
Ouvia tiros vindos de todos os lados, grunhidos, rosnados, choros, gritos, mas não ousei parar para ver por momento algum. Apenas me segurei em Peeta e corri com ele.
Com um grito descomunal, fui obrigada a olhar e me assustei com a cena grotesca: uma das aberrações havia pegado o outro homem de Coin pela cintura e logo outro apareceu e fez um grande estrago, mas ainda tínhamos cerca de sete ou mais monstros atrás de nós.
De sete, passamos para seis.
– Não vamos conseguir se ficarmos correndo apenas – gritei. – Eles vão nos alcançar! Temos que sair daqui!
– Virem aqui! Continuem correndo e procurem uma saída – Finnick gritou. – Gale, ajude-me a despistá-los. Katniss, atire!
Fizemos o que ele pediu, olhando para todos os lados em busca de uma escada que nos tiraria dali.
– Ei! – Johanna gritou a uns metros a mais que nós. – Encontrei. Venham!
Eu e Peeta fomos os primeiros a aparecer. Ajudamos a abrir a tampa do esgoto com um pouco de esforço em meio a gritos de pressa e vários tiros. Logo, estávamos nós três jogados em uma rua de Capitol ofegantes e tremendo, sem sabermos se era de frio ou medo.
Jogada no asfalto, tomei um tempo para que pudesse retomar o ar para finalmente olhar para cima e ver meu time ou o que restou dele. Vi Gale já fora e Katniss subir antes de fechar a tampa. Olhei ao redor e contei.
Gale, Peeta, Katniss, Johanna e eu.
– Onde está Finnick? – perguntei, já entrando em pânico e indo em direção a Katniss. – Onde está ele?
– Ele... Sacrificou-se por nós. Disse para seguirmos e não olharmos para trás – disse fraca, olhando para baixo.
– E VOCÊ FEZ ISSO?! – explodi. – VOCÊ ESCUTOU O QUE ELE DISSE E O DEIXOU PRA TRÁS?! PARA MORRER?!
– , acalme-se...
– CALEM A BOCA! – gritei alto, sem me importar em entregar a nossa posição. Então me virei para Katniss mais uma vez.
Abri minha boca uma vez, duas vezes, até três, mas nada saiu. Então pulei em cima dela e dei em torno de três socos bem dados. Minha vontade era de abrir a tampa do esgoto e jogá-la lá, porém algo dentro de mim sabia que isso era errado e que acabaria em merda.
Logo me tiraram de cima dela.
– Ele seria pai – falei já mais calma, mas com lágrimas transbordando dos meus olhos; – Ele seria papai... A única pessoa com escrúpulos aqui, a única que realmente merecia voltar para casa vivo... E você o deixou para trás.
Dei as costas para ela e para o grupo todo, indo para o canto mais escuro da rua e continuando com a missão. Eu faria aquilo pelo filho de Annie e Finnick. Era o mínimo que poderia fazer.
Andei mais atrás do que todos e em um silêncio mortal. Mortal... É até inapropriado falar isso.
Não parava de pensar em Finnick, nos momentos que passamos juntos e na grande ajuda que ele me deu. Nos conselhos, no sorriso e na nossa amizade. Definitivamente, se fosse eu no lugar de Katniss, não o deixaria tomar aquela decisão por nada e lutaria por ele como o próprio fez por nós. Amigos não abandonam amigos.
Johanna também não falava nada. Não era irônica e espumava raiva quando olhava Katniss. Ela, ainda mais do que eu, foi amiga de Finnick há mais tempo, então não posso nem imaginar o que ela deve estar sentindo. Peeta andava à minha frente e vez ou outra se virava para ver como estava. Até mesmo apertou minhas mãos e meus ombros como apoio, mas não respondi muita coisa além de um aceno de agradecimento.
Também via como Katniss se sentia culpada e, gostando ou não, ela passou grande tempo com ele no Treze, consequentemente fazendo uma amizade a mais com o rapaz. Só que não me importava se ela estava triste ou o diabo a quatro. A garota podia ter se esforçado um pouquinho.
Quantas bobagens uma pessoa consegue fazer em uma vida? Ela, com certeza, tinha ultrapassado a cota.
– Temos que ser cuidadosos agora – Gale começou. – Está amanhecendo mais uma vez e estamos chegando perto do centro da cidade. Não podemos ser vistos. Não parece que haja esconderijos e não podemos voltar aos esgotos...
– Deveríamos nos camuflar de algum jeito, ser iguais a eles – Peeta tentou ajudar.
– Não sem antes chamarmos muita atenção – Katniss falou. – Temos que ser sorrateiros. O nosso alvo é o Edifício da Justiça e a mansão de Snow, que é onde ele está, e isso é no centro da cidade.
Apenas suspirei fundo, sabendo que aquela seria a parte mais difícil da missão inteira.
Conforme o sol ia saindo, andávamos sempre separados entre as sombras e os becos das ruas e olhando para baixo. A situação ficou mais difícil ainda quando as pessoas começaram a sair nas ruas e tínhamos que ficar parados por longos minutos em um beco. Em qualquer outro distrito, isso seria uma atitude normal. Quer dizer, arruaceiros, foras da lei, dependentes... Mas em Capitol não havia tantos deles – claro. Eles viravam avoxes e os próximos empregados dos afortunados. Ou seja, mais atenção para nós.
De repente, escutamos uma sirene e arregalamos os olhos. Tínhamos sido descobertos? Eu praticamente gelei meu corpo no concreto e rezei para que não fosse isso. Podia saber meu fim se fosse pega e Doutor Sádico era a última coisa que eu queria.
Logo, muitas pessoas gritaram, mas não gritos desesperadores e, sim, de alegria. Foguetes estouraram no céu, bombinhas estouraram nas ruas e as pessoas pulavam felizes. De repente, carros alegóricos gigantes com balões e figuras que aparentemente eram lindas para a população maluca de Capitol apareceram.
Entreolhamo-nos quase que em choque e ultrajados. Uma guerra estava acontecendo lá fora e eles estavam festejando?! Quanto eles sabiam da revolução? Ou quanto se importavam?
Foi então que percebi que, quanto mais felicidade e normalidade houvesse na vida ali dentro, mais esperanças as pessoas teriam de que toda revolução fosse apenas um pesadelo que acabaria na próxima manhã. Mas, uma hora ou outra, as coisas sempre se mostrariam como realmente são.
– São muitas pessoas. Como vamos passar por elas? Ainda temos muito chão para andar.
– Temos que tentar. Vocês têm que olhar para baixo. Não mantenham olhar com ninguém. Eles sabem o rosto de vocês talvez melhor que vocês mesmos.
E essa era a parte mais assustadora.
Ouvi meu nome mais vezes do que queria, mas nenhuma era para me chamar. Falavam de mim como se fosse uma heroína e uma traidora, perguntavam sobre onde eu estaria, o que tinha acontecido comigo e coisas do tipo. Andar no meio delas era como se fosse o doce no formigueiro, principalmente com Pacificadores por todos os lados.
Sabia que Katniss se sentia da mesma forma, já que o nome dela era tão falado quanto o meu e, pelos mesmos motivos, talvez ainda piores. Depois que a farsa foi descoberta, ela se tornou repudiada pela cidade, diferentemente do resto de Panem. Apesar disso, muitas garotas usavam o cabelo como o dela, a tal trança de lado.
Seguíamos Gale que tinha o mapa no meio da multidão. Já estava quase acostumada, mas ainda em alerta a qualquer coisa.
Um dos carros até me deixou brava. Era um mockingjay pegando fogo, o símbolo da revolução se quebrando, e todos nós, os traidores fantasiados ali em cima, éramos condenados. As palmas que aquela cena levou foram absurdas e eu me assustei mais ainda. Nem precisaria ser pega pelos Pacificadores. Talvez a própria população fosse capaz de fazer algo.
– Algumas fantasias hoje estão bem convincentes. O que acha, querido? – ouvi uma mulher gorda com uma fantasia de um pássaro verde reluzente falar com o marido. – Aquela ali parece muito a Everdeen rebelde.
Olhei onde a mulher apontava e vi a própria Katniss na minha frente. Engoli em seco, torcendo para que eles acreditassem que realmente fosse uma fantasia.
– Engraçado. Achei ter visto uma garota vestida como a . Não apenas vestida, mas as feições eram iguais às dela também – ouvi o marido responder.
– Não acha que estamos sendo atacados, acha? – ouvi o medo em sua voz.
– Oh, não. Presidente Snow nunca permitiria algo assim.
Apertei o passo e saí daquelas pessoas o mais rápido possível. Só que, antes que pudesse alcançar Johanna ou Peeta, senti meu braço sendo puxado devagar.
Assustada, olhei para trás para ver quem era a pessoa e respirei mais uma vez ao ver que não era ninguém sério. Apenas uma garotinha. Ainda assim, era muito arriscado.
– Eu sabia que era você! Você me dá um autografo, ? Sempre torci por você nos Hunger Games. E totalmente torcia para que você ficasse com Peeta, mas não acho um nome bom para o ship de vocês... Só que Peeniss realmente não dá certo. Quer dizer, olhe esse nome...
Peeniss?! Sério mesmo, pessoal?
Olhei para ela atordoada. Não podia falar que era eu, mas como saía dali sem fazer uma cena? E duvido muito que, depois das coisas que ela disse, eu tenha conseguido esconder minha cara de horror ao ouvir esse nome.
– Er... Você está me confundindo, garota. Desculpe – saí sem olhar para trás e corri.
Conforme me aproximava de Peeta, notava uma comoção mais à frente.
– O que houve? – perguntamos ao mesmo tempo, mas sobre coisas diferentes.
– Uma garota me reconheceu. E disse que o nome do casal entre você e Katniss é Peeniss. Se sobrevivermos, vou rir eternamente sobre isso. E ali?
– Acho que há muitos Pacificadores. Johanna me mandou ficar aqui, enquanto dava a volta por outro lado e via se está melhor.
Mas, ao olhar ao redor, via Pacificadores se aproximando.
– Não podemos ficar aqui. – apontei discretamente e nós dois desatamos a andar mais rápido.
Andamos em ziguezague para tentar despistar, porém teríamos que nos separar eventualmente. Querendo ou não, duas pessoas apressadas em um desfile pacífico chama muita atenção.
– Ei, fique segura. Ok? – ele falou assim que disse que era melhor seguirmos separadamente. – Não se atreva a fazer nada idiota. Não... Não vou suportar ficar sem você de novo.
– Não se preocupe, Pee...
– Falo sério, – sussurrou meu nome. – Encontramo-nos no alvo. Esteja lá.
– Que o aviso seja o mesmo para você.
– E se controle... Por mim.
Por Peeta.
Assenti e engoli em seco, antes de dar pulinhos idiotas para andar mais rápido e me camuflar com os idiotas daquela cidade.
Mais à frente, notei que Katniss teve a mesma ideia que eu, visto que ela estava sem Gale, mas em problemas.
Ela definitivamente tinha sido vista e estava tentando sair de lá. Civis pegavam o braço dela e a puxavam, tentando tirá-la do meio do povo e chamar atenção dos Pacificadores. “A traidora está aqui!”, gritavam. “Katniss Everdeen está aqui!”. Só que, entre a força de uma pessoa que viveu duramente no Doze e uns molengas que ganhavam e perdiam massa através de cirurgias e pílulas estranhas, ela conseguiu se soltar e desatou a correr. Mas, com isso, outras pessoas ficaram atentas e tentavam alcançá-la.
Eu tinha mesmo que fazer isso que estava pensando?! Ia completamente contra os meus princípios e mais ainda contra os meus pensamentos induzidos. Por eles, ela que se dane. Por Panem, ela era necessária.
Corri mais rápido que eles e alcancei Katniss bem a tempo de um grupo de pessoas fantasiadas aparecerem. Empurrei-a no meio deles, misturando-nos, até que a tirei da atenção toda ao nos escondermos dentro de uma enorme lata de lixo.
Ela ia falar algo, mas tapei a boca dela ao escutar passos ao nosso redor. Quase podia sentir o cheiro de Pacificadores e o suor começou a escorrer ao pensar que seríamos pegas. Seria o prêmio do ano, nós duas juntas. Por sorte, as botas se afastaram e pudemos respirar aliviadas.
– Pode ser mais idiota que o normal? Achei que fosse mais esperta que isso! – gritei de forma baixa, se é que é possível. – Devia ter deixado que a pegassem!
Ela estava branca de susto, os olhos cheios de lágrimas olhando para mim assustada.
Rolei os olhos quase que sem paciência. Sim, o meu corpo e a minha cabeça esgoelavam para colocar minhas mãos em seu pescoço e quebrá-la com as próprias mãos, mas outra parte de mim dizia que, se fizesse aquilo, nunca mais ia poder conviver comigo mesma. E algo me dizia que essa parte estava certa.
Dei um tempo a ela sem falar nada até que a garota entendesse que não faria nenhum mal, talvez dando essa certeza até mesmo para mim.
– Eu quase fui pega. Vi Pacificadores vindo de todos os lados... Uns a viram também e de repente você desapareceu e... Não vi mais ninguém e... Aí você apareceu de novo e estávamos longe deles. Você... Ajudou-me.
– Também estou surpresa. E não estou feliz. Preferia estar em qualquer lugar menos aqui com você. Larguei Peeta mais uma vez por conta disso.
– Prometo que vou fazer com que vocês fiquem juntos mais uma vez... E obrigada.
– Vamos sair logo daqui.
Abrimos a tampa e fomos cuidadosas ao sair do lixo.
Fui andando direto ao movimento da rua e seria cuidadosa para não ser vista, esperando que Katniss fizesse o mesmo, porém fui puxada de volta à força antes que me misturasse às pessoas.
– Está maluca?! – ela quase gritou e a olhei de sobrancelhas erguidas pela pergunta irônica dela... Tanto que notou e rolou os olhos. – Não podemos sair por aí sem nos disfarçarmos antes. É muito arriscado... Por mais que tenhamos cuidado.
– Ok, e você sugere o quê? Que entramos em uma loja e peguemos o que tiver pela frente? Porque isso não vai chamar atenção nenhuma.
Fui sarcástica ao dar a ideia mais fácil que tinha passado pela minha cabeça. Até concordava com ela. Seria muito difícil andar em território inimigo, sendo que nós duas somos as duas mais procuradas de Panem, Katniss sendo mais do que eu. Se ela fosse pega, não me importaria, admito. Mas tinha que protegê-la pela nação e, se ela era necessária... Bem, o que eu posso fazer?
– E se pegarmos de alguém?
– Como faremos isso sem deixar que eles nos vejam? – a garota ficou em silêncio e pensamos mais um pouco. – Podemos atrair dois Pacificadores, bater neles e pegar as roupas.
– Não acho uma boa ideia nos vestirmos de Pacificadores quando estamos tão perto de uma invasão. As chances de sermos alvos de nossos próprios aliados são enormes.
Realmente, ela tinha um ponto.
Por fim, respirei fundo e me encostei à beirada do beco, observando as pessoas. Fantasias bizarras estavam por todos os lados, nenhuma tão fácil de ser roubada.
– Aquelas capas seriam boas – apontou para uma dupla que caminhava em direção à praça principal. Uma era azul e a outra, roxa. – Agora, como podemos pegá-las sem chamar atenção...?
– Acha que consegue atrasar a menina de roxo? Sei lá. Faça-a tropeçar e se perder no meio das pessoas.
– O que você vai fazer?
– O necessário – fui breve. – É pegar ou largar.
Katniss suspirou fundo e rapidamente se infiltrou no grupo com cuidado para não ser vista, mas o problema dela era que, no meio de pessoas, ela não sabia se infiltrar. Andava como se estivesse na selva, mas estava no meio de um circo. Não sabia se misturar.
Sabia que a garota tinha pouco tempo para que as pessoas não dessem conta de que ela estava ali mais uma vez e mordi os lábios ao observá-la. Ande logo, menina.
Antes tarde do que nunca, a menina da capa roxa caiu no chão sem que o parceiro percebesse e Katniss, ao tentar “ajudar”, acabou atrasando a menina e a levando pra longe. Era até engraçado.
No meio tempo, a pessoa de capa azul se aproximava cada vez mais e era a minha vez de agir. Bem escondida, contei os segundos exatos para que ela aparecesse bem ali perto a ponto de pegá-la.
Puxei a pessoa pelo pescoço de repente e a arrastei para o beco, tudo de uma forma rápida e eficiente. Pessoas nem mesmo notaram, principalmente porque tampei a boca dela. Acabei descobrindo que a pessoa era um homem e, apesar de um pouco mais alto que eu, já tinha matado maiores e mais fortes.
Com uma chave de braço, tampei a respiração do rapaz com calma, falando para ele que não ia matá-lo se ele não fizesse barulho e nenhum alarde. Com tempo, o menino foi parando de lutar e fui o deitando devagar. Katniss apareceu nesse momento.
– O que você pensa que está fazendo?! – aproximou-se de mim, pronta para tirar o rapaz de mim. – Não era para matar ninguém!
– Não vou matar ninguém, sua anta. Só quero que ele desmaie por um tempo – larguei-o no chão, inconsciente. – Viu? Pode checar os batimentos cardíacos. Ele está vivo.
Assim ela o fez, suspirou aliviada por ver que eu não mentia. Aquilo me deixou irritada, de certa forma. Sabia que a menina não confiava em mim, que eu podia matá-la facilmente, e concordava com ela. Mas matar um qualquer sem motivo nenhum? Sou, sim, capaz de matar a sangue frio, porém não uma pessoa que não fez mal algum a mim e que não representa nenhuma ameaça à minha vida.
Como eu previa, a menina voltou ao mesmo lugar de antes, procurando pelo amigo.
Vesti a capa rapidamente e me virei, ficando de costas para a rua. Ouvi a voz se aproximando cada vez mais, chamando o amigo até que encostou a mão ao meu ombro.
Na hora, virei-me e repeti o mesmo ato do colega. Katniss me olhava como se eu fosse uma espécie de monstro, não sei. Surpresa, principalmente por eu dizer que a mataria se gritasse. De certa forma, não estava mentindo. Se ela gritasse, pessoas nos olhariam, seriamos descobertas e as coisas não acabariam bem. Nesse caso, ela seria uma ameaça para a minha vida, mas sei o que o medo faz com as pessoas que não estão preparadas. Dificilmente, ela desobedeceria.
Apagada, coloquei a menina ao lado do amigo e tirei a capa dela, dando a minha para Katniss. Ela era maior, tamanho perfeito para ela, enquanto a roxa era mais o meu tamanho.
– Vamos?
Fora muito mais fácil andar com uma capa no meio da multidão, porém ainda assim mantínhamos a cabeça baixa. Passamos pela praça onde acontecia uma festa, ficando bem mais perto da casa de Snow do que estávamos esperando, mas algo não parecia certo. Parecia fácil demais, até mesmo com capa.
Havia uma fila de Pacificadores bloqueando a passagem para o Edifício da Justiça. Era até estranho demais, como se soubessem que algo ia acontecer.
E se alguém foi pego? Minha mente foi diretamente em Peeta e me arrependi amargamente de ter ido ajudar Katniss. Tudo que eu podia fazer agora era torcer para que ele estivesse bem. Essa agonia nunca ia acabar?
– – Katniss sussurrou. – Olhe à frente.
– Notei. O que faremos?
– Esperava que tivesse uma ideia.
– Não acho que vá gostar da minha.
– Envolve morte?
– Em massa – sorri. Não era exatamente mentira. Eu tinha imaginado atrair alguns Pacificadores, mas não a quantidade inteira que havia ali.
– Venha aqui.
Ela me puxou para um canto, dando a volta na praça. Imaginei que estivesse procurando um lugar para darmos a volta, mas, quando passamos por um canto mais calmo, quase sem pessoas, ela me empurrou para dentro de uma loja que parecia abandonada.
– Enlouqueceu?! – gritei com ela.
– O que aconteceu com você? – olhei-a sem entender. – Esse seu jeito maluco de pensar, colocando pessoas inocentes em risco... Tudo para você termina em morte?
Não acreditava no que estava ouvindo. Ela sabia exatamente o que acontecera comigo e agia como se não tivesse a mínima ideia? Porra, eu tentei matá-la!
– Isso! Isso aconteceu comigo – girei, mostrando ao redor. – Os Hunger Games aconteceram, um sequestro aconteceu, torturas aconteceram!
– Eu sei, mas... Você teve ajuda. Ainda tem. Não pode deixar com que seus pensamentos a devorem.
Gargalhei alto.
– Você só tem seus pesadelos para controlar. Sim, pode ter um país para acalmar e incentivar, mas não tem que travar uma batalha com seu próprio cérebro a cada minuto! – gritei alto, a ponto das veias de meu pescoço estufarem. – Sofri a porcaria de uma lavagem cerebral, fui programada para destruir, Katniss. Como uma máquina, fui retrabalhada para não pensar em mais nada além de morte e destruição, a sua morte e a sua destruição. E lhe garanto, garota, você não está se ajudando no momento.
Minha respiração se tornava mais rápida, assim como os meus batimentos cardíacos. Meus braços e pernas tremiam, mas não por pânico, não por raiva nem por mágoa. Eles tremiam porque queriam muito travar uma briga com Katniss, queriam apertar a cabeça dela a ponto de explodir o crânio entre os meus dedos.
E ela notou isso. Tanto que engoliu em seco e deu um passo para trás.
– Olhe, respire fundo. Limpe a sua mente de...
– Cale a boca. Só cale a boca. Se eu escutar sua voz mais uma vez, juro que vou matá-la sem nem pensar duas vezes.
Mais uma vez, ela engoliu e os olhos ficaram arregalados. Deu mais um passo para trás.
– Você não vai me machucar.
Ri.
– Você não sabe disso.
– Sei, sim. Você não quer.
– Ah, é o que mais quero no momento.
Podia até babar por isso.
– Mas sabe que não vai. Sabe que Peeta ficaria chateado.
– Ele não precisa saber.
– Você não conseguiria esconder esse segredo dele.
Katniss estava tentando entrar na minha cabeça. Eu só não sabia se era boa coisa ou não.
– Sempre há a primeira vez para tudo.
– Você não conseguiria esconder esse segredo de si mesma. Isso acabaria a matando. Você não quer me matar. Sua cabeça quer, mas o seu coração não.
– Katniss...
– Concentre-se, . Você foi muito forte todos esses dias. Não tenha essa recaída. Pense no que veio fazer aqui... O objetivo é Snow.
Snow.
– Snow – foi como se uma campainha tivesse tocado em minha cabeça.
– Isso, Snow. Canalize o seu ódio nele e teremos uma chance de nos sairmos bem.
Quando notei, estava tão próxima dela que, quando caí em mim, até assustei. Respirei fundo e me afastei, recompondo-me. Assim que estava bem, olhei para ela.
– Obrigada. E... Desculpe.
– Não devia ter falado nada para você. Eu... Entendo.
Assenti e arrumei minha capa.
De repente, nós duas fomos surpreendidas pela porta da loja sendo aberta e nosso coração saiu pela boca.
Um Pacificador estava ali, apontando a arma para nós.
– É proibida a entrada de pessoas nesse estabelecimento, garotas.
– Desculpe, senhor. Estávamos de saída – respondi sem olhar para ele, de forma quase que submissa, e ainda com voz diferente.
Com meus tempos de cárcere, era capaz que todos os Pacificadores conhecessem minha voz.
Comecei a andar até a porta com Katniss ao meu encalce, mas a arma me proibiu de passar.
– Er... Com licença, senhor?
– Nem tão rápido, suas tolas – ele fechou a porta. – Acha que sou burro o suficiente para cair nesse truque?
Ele tirou o capacete e vi Orin. Já não tinha mais porque me esconder nesse caso. Abaixei o capuz e sorri.
– Diria que é bom ver você de novo, Pacificador Orin, mas, nessas circunstâncias, sinto que não será.
– Presidente Snow ficará mais do que satisfeito quando entregar as cabeças das duas rebeldes de Panem – ele praticamente cuspiu.
– Acho que será mais o contrário. E ele ficaria satisfeito conosco, sabe... Você nunca fez um bom trabalho como Pacificador – vi-o morder os lábios com força. – Katniss, permita-me apresentá-lo para você: esse é Pacificador Orin. Foi para o Distrito 12 assim que você foi embora. Pacificador Orin, o Mockingjay, ou Katniss para os íntimos.
Ele fez cara de quem estava com raiva e se aproximou rapidamente, tentando me alcançar, visto que estava mais próxima dele, mas fui mais rápida. Afinal, estava mais rápida desde a última vez que nos encontramos.
Então ele sacou a arma e tentou atirar em nós, mas tanto eu quanto ela éramos mais rápidas. Ficamos na loja, desviando de tiros e tentando nos aproximar dele o quanto antes. Os tiros chamavam atenção e essa era a última coisa que precisávamos. Um Pacificador era o suficiente.
Então eu fiquei perto o suficiente para ser distração e dar tempo para Katniss atirar nele. Lutamos mano a mano por um tempo até que o peguei por trás e o prendi por um tempo. Podia sentir o medo nele, o coração batendo rápido e o suor frio escorrendo da testa do rapaz.
– Surpreso, Orin? Não sou mais aquela garotinha de antes... Eu sou maluca agora – sorri como uma, antes de ouvir o gatilho de Katniss e a vida dele se perder em meus braços. – Essa foi mais fácil do que eu imaginava. Precisamos sair daqui antes que mais apareçam.
Ela assentiu e corremos da loja o mais longe possível para podermos dar uma volta e pegarmos um perímetro seguro à casa de Snow, ao lado do Edifício da Justiça.
Finalmente quando paramos, completamente sem fôlego, ela começou a rir.
– Você realmente é maluca, mas foi legal lá trás.
– Tenho que conviver com isso, não é? – ri. – É bom que faça piada da situação uma vez ou outra.
Assim que estávamos recuperadas, continuamos em silêncio naquela parte de Capitol, ainda atentas a qualquer movimento. Ouvíamos pombos, alguns risos, passos. Nada nos passava despercebido.
Nem mesmo algumas patrulhas de Pacificadores a cada esquina. Tínhamos que ser como o pessoal daquela cidade, então andávamos como se não tivesse um perigo iminente embaixo de nosso nariz, em direção à festa. Assim, éramos quase despercebidas.
Alguns nos olhavam, mas logo tiravam a atenção da gente até paramos em outro ponto em que havia muitos deles. Era muito arriscado seguir em frente e não podíamos deixar de fazer aquela parte do plano.
– E então?
– Separamo-nos?
– Acho que não temos outra escolha.
– Vou pela frente e você, por trás. Você é reconhecida aqui mais facilmente do que eu.
– Pela população, sim. Pelos Pacificadores, parece que é o contrario – abriu um sorrisinho e eu não pude deixar de rir. – Ei. Cuidado, viu?
– É, tente não morrer sem mim, Garota em Chamas.
Soltamos um sorriso sem graça uma para outra – e eu juro que não entendia o que tinha acabado de acontecer ali – e cada uma seguiu seu próprio rumo.
Aquilo era mais difícil do que eu imaginava que seria. Aquela era uma missão de vida ou morte, porque ou eu morria nas mãos de Pacificadores, ou Snow me matava depois, visto que não havia motivo para continuar viva na altura do campeonato.
Por outro lado, se entrasse, acionaria os avisos de invasão e em torno de três segundos Capitol seria tomada facilmente.
O problema era entrar. Havia Pacificadores por todos os lados e nenhum deixava de dar uma boa olhada na população, procurando algum suspeito. Tanto que, para minha maior segurança, achei melhor roubar uma máscara para estudar melhor os meus caminhos.
Olhei para o céu para ver se havia algum sinal, qualquer coisa. Aquela segurança extrema não era normal assim. Eles deviam estar esperando algo.
– Eles não vão sair dali nunca? – juntei-me à festa com um pequeno grupo de jovens dançando em volta da fonte.
– Está maluca? E se algo acontecer conosco? – um deles respondeu.
– Você realmente acha que algo vai acontecer conosco? – perguntei debochada. – Todos gostam de nós. Estamos perfeitamente seguros.
– Acho que as coisas mudaram – uma garota respondeu. Ela parecia com medo e chateada.
Bem, quando se está em uma zona de guerra, esses sentimentos são normais, mas não é normal se sentir assim em uma festa. Principalmente fazer uma festa em zona de guerra. Não sem um cessar fogo.
– Acredito que estejamos seguros, mas eu a entendo. Não saí de casa direito nos últimos dias e obedeço ao toque de recolher também – respondi.
– É a primeira vez que saio de casa nos últimos três dias – um deles falou. – Desde que Bluebonnet desapareceu, as coisas não parecem certas.
– Acho que as coisas não parecem certas desde que Katniss apareceu. E morreu. E reviveu – ela parecia confusa ao falar.
– Nah, as coisas ainda estavam normais até a Bluebonnet aparecer. Será que é verdade que ela teve um caso com Peeta?
– Não sei, mas totalmente torcia por eles – vi-me respondendo. – Viram toda aquela tensão quando estavam os dois juntos na arena?
Eles olharam para mim com os olhos brilhando e não pude deixar de gargalhar. Sabia que estava perdendo tempo com aquilo, mas era interessante saber o que andava acontecendo por ali pelo ponto de vista nativo e mais sobre mim, por mais que fosse desnecessário.
Ouvi mais sobre o tempo que os Pacificadores passavam ali. A cada quatro horas, havia troca de soldados e, aparentemente, era uma hora tensa para a população. Coitados, eles realmente pensavam que eles estavam ali para protegê-los e não proteger Snow.
Eles também estavam ali nos últimos dois dias, mesmo que não houvesse nada acontecendo na cidade, e Snow nunca aparecia nas ruas ou mesmo em seu próprio quintal.
Mesmo com a troca de guardas, eu não imaginava como poderia me infiltrar ali, pelo menos não sozinha. Só tinha uma arma e munição para pouco mais de uma dezena de homens, se não houvesse desperdício ou se eu fosse atacada primeiro. Por fim, afastei-me do grupo pouco antes da comoção de soldados se mexer. Por que a minha capa não podia ser branca? Chamaria menos atenção.
Cerca de um terço dos homens se mexeram e foram para dentro do Edifício da Justiça, enquanto outro terço saía para tomarem os seus lugares.
Aquela era a minha hora.
Respirei fundo, fechei os olhos com força e contei até dez devagar para me preparar para correr. Com a arma na mão pronta para ser sacada, eu me preparei.
Assim que abri os olhos e me inclinei para frente, ouvi motores no ar. Aerobarcos, eu sabia, mas não pareciam qualquer um e, sim, de guerra. Eram mais rápidos, menores e mais assustadores. Ao olhar a sua lateral, notei o símbolo do Distrito 13, nem mesmo o símbolo da Revolução. Ouvi uma explosão vinda lá de trás junto com fumaças, calor e a cor vermelha do fogo. Em torno de milissegundos, ouvi gritos de pânico, de dor e medo. Logo, o caos se instalou na praça bem a tempo da outra bomba vir agora na minha direção.
Havia pessoas correndo para todos os lados, então não hesitei em correr na direção mais segura que conhecia até então: a casa de Snow.
Coin não seria estúpida de matar Snow assim, sem ver com seus olhos a vida se esvaindo dos olhos dele.
Nenhum Pacificador me impediu. Eles estavam ocupados demais tentando salvar a si mesmos ou atirar a esmo para o céu.
Pulei e praticamente voei com o impacto da explosão, mas acabei escondida atrás de um buraco no jardim de Snow, que eu rezava para não ser minha cova improvisada. Meu ouvido apitava e minha cabeça doía horrores, tanto que de certo acabei desmaiando, acordando quando havia apenas fumaça no ar. Os gritos continuavam, mas algo havia mudado. Estava mais calmo. Ouvia barulho de água e não ouvia um tiro sequer. Era seguro me levantar?
Se não fosse, descobriria.
Voltei à praça, visto que era idiotice ir atrás de Snow a esse ponto. Tinha tempo para ter fugido, para ter morrido e o diabo a quatro. E tinha coisas mais importantes para lidar agora.
– PEETA?! – gritava a todos meus pulmões.
Médicos estavam por todos os lados socorrendo vitimas, mas não via sinal algum de Peeta.
Ouvia de sussurros dos médicos de que tínhamos ganhado a Revolução, que não havia mais resistência, apenas feridos. Se Peeta morrera por conta do 13, vou pagar a vida dele com a de Coin. Esse ataque não fora previsto, nunca tinha sido.
– PEETA?! – gritei mais uma vez, sentindo meu coração sair do peito de tão forte que batia e as lágrimas tomarem o meu rosto. – PEETA?!
Gritei até ficar rouca e me jogar no chão chorando. Isso é, até ouvir o meu apelido.
– P-Peeta? – olhei para frente e o vi mancando, correndo até minha direção com um sorriso aliviado e lágrimas nos olhos, assim como eu.
Abri o maior sorriso do mundo e corri até ele, jogando-me em seus braços em um abraço apertado.
– Achei que você tinha morrido – falamos juntos e até rimos como bobos. – O que aconteceu?
– Depois explico – beijou-me com força, sendo igualmente correspondido. – Você nunca mais vai sair de perto de mim. Ouviu bem? Nunca mais.
Peeta me abraçou mais uma vez, os seus braços fortes me dando o típico calor gostoso, e a segurança que senti foi sem igual. O cheiro de suor dele era tão confortável, enquanto minha cabeça estava presa em seu pescoço, que só sabia de uma coisa: estava em casa.
Mal podia acreditar que tudo estava bem.
Toda vez que abria os olhos pela manhã, sentia-me muito estranha por não ter que viver com medo de uma bomba cair em minha cabeça ou de Capitol vencer. Tínhamos vencido.
Sem Hunger Games.
Sem torturas.
Sem tirania.
Sem fome.
Sem guerra.
Sem Snow.
Depois que me encontrei com Peeta, tive que me segurar para não ter um ataque. Claro, nem tudo era perfeito ainda e eu me esforçava para que ficasse tudo bem conosco. Peeta foi muito prestativo ao me ajudar e garantir que tudo que sentia era da minha cabeça e que podia melhorar. Ele estaria ao meu lado por todo o processo e faria qualquer coisa para ajudar.
Só que, antes das coisas realmente voltarem ao normal, tínhamos que decidir o futuro de Panem e, para isso, precisava saber como as coisas tinham acontecido daquela forma.
Conforme nos aventurávamos por Capitol, Coin e seus capangas tinham que segurar o ataque até que um de nós conseguisse chegar à casa de Snow, mas não foi bem assim que as coisas funcionaram. Eu tinha sido a primeira a chegar aos jardins da casa dele. Nem mesmo cheguei à varanda. Não ativei o sinal e nenhum dos outros também não. Afinal, Peeta estava ocupado tentando se esconder de Pacificadores no meio da festa, bem longe do alvo, Johanna tentava se aproximar também, mas Gale entrou em problemas e ela teve que ficar para trás para ajudar. Não que ela quisesse. Sei que a garota pensava bem como eu quando se tratava dele e de Katniss, porém sempre acabávamos fazendo a escolha mais humanitária. Portanto, sobrava Katniss para ter ativado o sinal, mas também não foi, pois entrou em problemas porque fora vista um pouco depois que nos separamos e teve que dar uma de maluca para sobreviver e fugir, acabando bem perto de mim na festa, apenas do outro lado da casa de Snow, quando a bomba explodiu por todos os lados.
Com a confusão e o caos, guerrilhas invadiram a cidade. Muitos morreram, mas muito sobreviveram e alcançaram presidente Snow. Ou melhor, ex-presidente Snow. No meio tempo, Coin apareceu, Haymitch e Plutarch apareceram e todo o resto da equipe Mockingjay junto com mais soldados do Treze. Outras bombas explodiram enquanto estava desmaiada e, quando o caos da cidade foi parado, assim como os Pacificadores – aqueles que não passaram para o nosso lado ou já estavam dele –, é que as coisas melhoraram. Ninguém de nós sabia desse ataque surpresa. Éramos vítimas assim como a população de Capitol, que não fez muita coisa além de gritar. Não conheciam guerra, não conheciam nada para lutar porque nunca tiveram algo tirado deles, então ou morreram com ataques, ou se entregavam sem luta.
Não posso deixar de admitir que estava completamente brava com Coin. Ela tinha controle de se estávamos ou não vivos, tínhamos uma procura conosco que se apagava se estávamos mortos, então ela sabia que estava nos colocando em risco com o ataque.
Mais uma vez, fiquei próxima de morrer, mas agora pelas mãos do que chamava de aliados. Era a primeira vez que Katniss não era responsável por isso e, devido à nossa aproximação forçada nos últimos eventos, não sentia raiva por ela. Pelo menos não tanto a ponto de não conseguir me controlar para matá-la.
No momento, estava até com dó dela. Não falava com ninguém, nem mesmo Gale. Estava de luto e queria ficar sozinha – coisa que entendia e que Coin, aparentemente, não.
Em uma das levas de soldados do Treze, Prim fazia parte – a irmã de Katniss. Pelo que me contaram, ela chegou a ver a irmã no meio do ataque ajudando alguns feridos entre uma bomba e outra, mas, na última, Katniss não a viu mais. Pelo menos não em pé ou sequer inteira.
Haymitch estava feliz porque eu estava viva, porém eu estava brava porque ele não parou o ataque sabendo que nós estávamos vivos ali. Estava mais magoada do que brava, mas tinha certeza de que passaria. Quer dizer, tinha que passar. Entendo as razões dele e sei que gritou até que não o escutassem mais.
Capitol foi tomada pelos outros distritos e agora havia pessoas do Dois, Sete, Quatro e Nove andando pelas ruas da cidade, morando nas casas que antes eram de alguém, enquanto nós ficávamos na absurdamente grande casa de Snow. Não gostava de ficar lá, mas, de acordo com Coin, era necessário que ficássemos ali porque tínhamos assuntos a decidir.
E, pelas coisas que andei ouvindo dela, não sei dizer se estou aliviada por Snow não ser mais o ditador de Panem.
A primeira reunião conosco desde que tomamos Capitol foi muito estranha. Katniss não estava presente, o ambiente era diferente e as pessoas estavam mais calmas. Então por que Coin continuava com a mesma expressão de morte e seriedade?
Além disso, não ter Finnick ali era... Nem sei explicar o que sentia. Um vazio? Calma? Ele tinha uma forma de me acalmar que nem Peeta conseguia. Não era porque era bonito, mas seu sorriso parecia querer deixar claro que tudo ficaria bem. Era por isso que me sentar com ele em uma sala de reuniões era mais fácil quando a palavra era dirigida a mim. Seu sorriso me acalmava, me garantia que não precisava ter medo. Agora ele estava morto e não havia nada que pudéssemos fazer. Não havia mais essa calma na sala.
Annie não tinha ido até lá, mas sabia que contaram a ela o que houve com o marido. Sei que sua reação não fora a melhor, porém não me deram detalhes. Não conseguia imaginar como ela se sentia. Se fosse o contrário, já falei antes e repito: eu me matava. Não existe um lugar para mim em que Peeta não existe. Só que ela tem um filho para cuidar agora e imagino que isso muda as coisas. Penso também que falhei com ela, mesmo que não fosse responsável pelo ocorrido com Finnick. Annie ficou do meu lado e ainda dividiu sua comida comigo, enquanto éramos reféns, e me salvou de morrer de fome. O mínimo que deveria ter feito era tentar salvar Finnick. Se ao menos soubesse que ele falou para ficar para trás...
– ? – ouvi Peeta me chamar baixinho, tirando minha atenção dos pensamentos. – Tudo bem?
– Sim. Só... Só estava pensando.
– Homens, mulheres, vencedores – Coin falou, abrindo nossa reunião. – Queria parabenizá-los pela vitória. Não poderíamos ter nos saído melhor. O ataque surpresa foi nossa arma principal...
– Espere aí – cortei-a e, se olhar matasse, estaria enterrada agora. – Você mesma disse... Ataque surpresa. Custava nos dizer, nos avisar de alguma forma o que pretendia fazer? Colocou nossas vidas em risco!
– Vocês já estavam em risco no momento em que voaram para cá – foi dura.
Sentia meu sangue ferver.
– Você sabia que estávamos vivos, sabia que estávamos todos no local que atacou.
– Toda guerra exige sacrifícios, . Mesmo que isso custe a vida de seus melhores soldados.
Cerrei meus olhos e virei meu pescoço para ela.
– Não era esse o combinado. Eu e Katniss estávamos na mira do seu querido ataque, sua arma principal...
– E esperava que fizéssemos o quê? Esperássemos vocês fracassarem? Você tem que aprender, querida , que na guerra não podemos tomar o luxo de esperar missões suicidas.
Abri a boca surpresa. Missão suicida? Ela nos mandou para morrer. Era isso mesmo?
De repente, eu a olhei no fundo dos olhos e encontrei a mesma frieza que via em Snow nos momentos de conversa quando estava presa.
– Claro. Qual o problema de perder as pessoas que lutaram por você, quem não se escondia num buraco no meio do nada e incentivava o resto do país a fazer alguma coisa? Se não é você no campo de batalha, para você pouco importa quem morre ou não.
Joguei minha cadeira para trás e saí da sala, batendo a porta com todas as forças que tinha.
Não havia mais festas em Capitol. De todos os dias que fiquei aqui, nunca a vi tão silenciosa. O toque de recolher de Snow fora mantido, mas pelo menos as luzes ficavam acesas durante a noite. A população nativa daqui tinha medo de sair de casa, de desobedecer a quaisquer ordens que tinham ouvido por aí, por mais que nada tivesse sido decidido. Não havia resistência e qualquer resquício que houvesse disso. Os vencedores faziam questão de acabar com tudo. A população em si não fazia nada e quem tinha o poder de fazer algo – nomes já previamente coletados antes mesmo de pensarem em invadir – já estava preso e com o destino feito.
Sinceramente, eu não me importava muito com as pessoas que acabariam mortas ali. Pode parecer ruim e pesado, mas essa parte não cabia a mim. E por razões óbvias. Eu provavelmente não deixaria uma pessoa morrer depois de ouvir seus motivos. Sei que muitas pessoas foram obrigadas a fazer qualquer coisa que fosse porque Snow as ameaçou. Por mais que isso ainda não fosse desculpa, ainda tinha um coração. Só que aquelas que realmente tinham culpa, teria o prazer de assistir a elas morrerem, se fosse o caso.
Da mesma forma que eles nos assistiram morrer por 76 anos.
Depois que saí da reunião, ela quase não aconteceu direito. As pessoas ficaram inquietas e ninguém conseguia se concentrar. Haymitch queria sair também, Peeta ficou só cinco minutos e saiu, indo atrás de mim em seguida, e não houve muita coisa para ser ouvida naquele dia.
Katniss já tinha voltado à vida, na medida do possível. Ela nunca fora de conversar antes e agora se fechou mais ainda. Nem mesmo Gale conseguia algo dela. Quem a ouviu – e bastante – foi Coin. A menina explodiu para a mulher e soltou algumas verdades relacionadas às minhas no nosso último encontro. Só que fora muito mais bonito e eu desejava muito estar presente para ouvir.
Foi nesse clima que nossa próxima reunião foi marcada.
Estava animada. Qual fosse o assunto, nossa tolerância com Coin estava difícil e o clima seria interessante lá dentro. E eu adorava uma briga.
Infelizmente, todos seguraram as línguas e escutaram a mulher falar o que tinha que ser dito, até que ela chegou a um objeto muito interessante para mim.
– Temos centenas de prisioneiros que não sei exatamente o que fazer com eles. Poderia executar todos na praça como exemplo para algumas possíveis ameaças à paz que estão à solta por essa cidade ou podemos fazer isso aqui dentro mesmo – deu de ombros. – E temos a opção de deixarmos alguns vivos.
– Quais os nomes?
Então começou com uma lista imensa. Não conhecia 70% dos nomes. A maioria era a aristocracia de Capitol e não dei minha opinião no destino deles. Aquela parte não cabia a mim. Mas, conforme fotos apareciam, ia conhecendo alguns por flashes. Pacificadores que levavam eu ou Johanna e o resto que ficou preso comigo, outros que chegaram a me bater. Dizia morte para cada um deles com gosto. Menos quando a foto do que me ajudou antes do último anúncio apareceu. Esse eu disse que merecia viver. Fiquei surpresa por ele ainda estar vivo. Jurava que, depois daquilo, seria facilmente pego.
Por último, veio quem eu mais esperava.
– Corionalus Snow.
Praticamente pulei da cadeira.
– Quero matá-lo eu mesma.
– Desculpe, , mas essa tarefa já pertence a Katniss – Coin falou, pela primeira vez me parecendo humana. – Foi o primeiro pedido dela para ser o Mockingjay da Revolução.
– O quê? – murmurei, virando-me pra Katniss. – Quer dizer, eu entendo o motivo pelo qual você queira matá-lo, mas... Ele não foi metade do que foi comigo com você.
– Todos nós temos nossas rixas...
Estava prestes a retrucar, mas Coin se apressou a nos cortar.
– Você pode ficar com o próximo da lista: Uther Valdis – e colocou a foto dele.
Doutor Sádico se projetou no holograma e meus olhos se arregalaram. Medo se apossou de mim e praticamente travei. Meus músculos não me respondiam, nem mesmo meu cérebro. Só a foto dele me causava arrepios e me lembrava do que ele fez comigo...
– Acho que não é uma boa ideia... – Peeta comentou depois de estudar meus movimentos. Ou a falta deles.
– Não – apressei-me. – Será um prazer.
E estava convicta disso. Doutor Sádico merecia morrer e não havia meio melhor do que pelas minhas mãos. Só de pensar nas coisas que poderia fazer... Uma morte lenta e bem dolorida para compensar tudo que ele fez comigo, por mais que ache que nada se compararia. Não sou tão sombria quanto ele.
– Alguma pergunta?
Levantei minhas mãos, tendo a melhor ideia de todas. Coin até rolou os olhos.
– Já que não terei o prazer de matar Snow, posso pelo menos dar uma surra no velhote? Sabe, por assuntos inacabados.
– Fique à vontade.
Acho que era a primeira vez que via um sorriso no rosto daquela mulher sombria e aquilo me assustava. Ela não fazia sorrisos de jeito nenhum.
Ao sair da reunião, ainda pensava na minha tarefa especial. Não acreditava que realmente ia fazer isso, vingar-me.
Peeta correu atrás de mim em seguida.
– , você tem certeza disso? Quer dizer... Eu entendo os seus motivos, mas...
– Peeta, por culpa dos dois que nós estamos aqui desse jeito. Eles tiraram nossa vida, tiraram nosso bebê, mexeram com minha cabeça e nos separaram. Eu preciso disso para viver em paz comigo mesma.
– Precisa? Vingar-se? Que bem isso traz? Você vai tirar mais vidas do que o necessário. Com toda certeza, alguém pode fazer isso por você.
– Não, Peeta. Preciso mostrar aos dois que estou viva e que não vão ser eles que me matarão. Sei que vingança não vai me trazer nenhuma paz, mas minha consciência vai ficar limpa e... Só preciso disso. Você não vai me entender.
– Não mesmo. A de antes nunca faria isso.
– Bem, a de antes passou por um bocado de porcaria, Peeta. E, se tivesse continuado da mesma maneira, pode apostar que estaria morta – ele parecia machucado. – Olhe, sei que não entende isso, mas eu prometo que vai ser a última matança e aí seguirei em frente. Farei o meu melhor para que a “ de antes” volte 100%... Se você ainda a quiser.
Peeta bufou e socou a parede atrás de mim. Assustei com o ato. Não estava esperando por aquilo e preciso dizer que ele ficava muito, muito atraente quando ficava bravo.
– Eu não gosto disso, . Não gosto nem um pouco, mas não sei viver sem você. E fico com você sendo sanguinária ou não, então não me venha com essa bobagem de “se ainda a quiser” – zombou com uma voz irritante. – Passei um tempo absurdamente grande me preocupando se estava viva ou não e sei que está diferente agora que está aqui. Tudo que eu quero é abraçá-la para sempre e finalmente fazer meu trabalho de mantê-la a salvo... Já que ultimamente é o contrário que anda acontecendo.
Sorri com a última parte. Importava-me com Peeta com toda minha vida. Obviamente o protegeria pelo resto dela.
– Hey... – toquei seu braço. – Você sempre me protegeu. Teve um meio muito estranho de mostrar isso no começo, mas eu entendo. Eu sei. E vou mudar, Peeta. Tenho você do meu lado. Sei que vou ficar menos... Sanguinária.
– Não é isso, – suspirou fundo. – Pelo menos não tudo. Sou eu quem, deveria matá-lo. Ele a fez sofrer, quase a matou. Só por ter mexido com você... Não quero ser um covarde.
– Não, Peeta. Você nunca fez isso... E isso mexe com você. Olhe para mim, olhe para Katniss... Porra, olhe para todos ao seu redor. Você ainda tem isso – coloquei a mão em seu coração. – Sua inocência está aqui e ela que o faz tão especial, tão Peeta. Você não é um covarde e essa rixa não é sua.
Ele sorriu.
– Eu amo você, .
– Eu também, Peeta.
Ele colou nossas testas, enquanto me abraçava, e sorriu terno para mim. Meu coração batia muito rápido. Vai saber se era pela proximidade amorosa ou pelo medo? Preferia pensar que era pela primeira opção e, quando ele me beijou, senti borboletas no estômago. Beijei-o de volta, levando a um amasso no meio de um dos corredores da mansão de Snow.
– Você fica muito gostoso quando está bravo – sussurrei ao pé do ouvido dele antes de morder o lóbulo da sua orelha.
De repente, todas as informações que a antiga guardava sobre ele me apossaram e eu sabia como deixá-lo comendo na palma da minha mão. Eu o queria por inteiro, mas parte da nova eu tinha medo do que isso significasse tão cedo depois de tudo que passei.
– Faz muito tempo que não ficamos assim, – ele sussurrou de volta e meu corpo inteiro vibrou. – E não acho que é a hora certa para continuarmos.
Acariciou minhas bochechas e sorriu, olhando no fundo dos meus olhos antes de dar um selinho em mim. Assenti e sorri agradecida. Peeta podia ser muitas coisas, mas ele era um amor e me conhecia melhor do que eu mesma.
Mal podia acreditar no que ouvia. Conforme Coin falava seus planos para o resto de Panem como futura presidente, não conseguia notar muitas diferenças entre ela e Snow. No começo tinha sido ótimo. Ela falava coisas que realmente fariam diferenças, como reconstrução dos Distritos, repartição de bens, ida e vinda livre entre a população, divisão de poderes... Mas tudo momentâneo.
Poucas pessoas notaram. Ela falava bem, convencia bem e muitas pessoas tinham medo de enfrentá-la caso tivessem notado também. Eu mesma não falei nada. Não era hora de criar outra guerra quando uma mal havia acabado. Muitos ainda tinham muitos problemas para cuidar. Eu inclusive. Mas não significa que abandonei o caso.
Nas entrelinhas, notei que ela era uma vilã quase tão maníaca quando Snow. Ela só queria o poder. Nada além disso. E usaria tudo e todos para alcançá-lo como fez quando permitiu e comandou o ataque surpresa em Capitol no dia D.
Os distritos seriam reconstruídos, mas, assim que tudo voltasse aos eixos, o sistema Snow voltaria. As pessoas não poderiam mais circular entre um distrito e outro, os impostos seriam os mesmos, Capitol continuaria sendo o centro de tudo e não tinha dito nada sobre acabar ou não com os Jogos.
Olhava para cada um na mesa, conforme ouvia barbaridades de uma moça de cabelos grisalhos e louca por poder, e nenhum parecia atormentado. Claro, ela colocava tudo isso de uma forma que era aberta a interpretações e, como acabamos de sair de uma guerra, seria normal que todos pensassem na melhor possibilidade. Mas, pelo mesmo fato, seria interessante que as proposições não fossem abertas a interpretações e, sim, diretas. Além do mais, se era sobre o futuro de Panem e dos outros distritos, onde estavam os representantes de cada um deles? Como ela pode fazer uma decisão sobre milhões de pessoas que não estão ali para demonstrar seus interesses?
Olhei para Peeta que parecia inquieto. Ele não sorria, não estava sério, mas tinha uma expressão preocupada. O rapaz certamente notou e, ao cruzar o olhar com o meu, mordeu os lábios, e eu percebi que não era a única preocupada ali. Olhei Gale, que parecia mais do que satisfeito, e alguns outros da mesma maneira. Haymicht a olhava quase que incrédulo. Ele também havia notado. E, por fim, meu olhar se cruzou com o de Katniss. Ela olhava para mim quase que em choque. Neguei minha cabeça levemente e ela assentiu, como se concordasse. Tínhamos que fazer algo a respeito mais tarde. Coin não poderia ser presidente da mesma forma que Snow também, não, mas então quem seria?
Saímos todos da reunião com aquela dúvida em nossas cabeças.
De repente, saímos de uma guerra para entrarmos em outra.
Estava relaxando – coisa que não fazia há bons meses. Ninguém precisava de mim. Os meus amigos estavam ocupados ou fazendo a mesma coisa que eu, então decidi tirar um tempo para mim. Sempre tinha gostado de rosas brancas, mas, depois que Snow apareceu na minha vida, elas passaram a me assustar. E o jardim dele foi uma das primeiras coisas que eu fiz questão de apoiar para que fossem cortadas. Agora é um espaço verde, sem nada branco.
Sentindo o sol no rosto, lembrei-me dos bons momentos em que eu sorria sem preocupações além das usuais. O que teria de janta? Meus pais conseguiram vender remédios suficientes para que tivéssemos dinheiro para comida? Peeta ainda me amava? Tinha me saído bem na prova de História? Essas memórias representavam uma parte da minha vida que parecia tão longe de mim que até sorri. Era absurdamente feliz e não tinha tanta ideia assim.
– , está na hora – ouvi um dos homens de Coin atrás de mim.
Sabia que esse momento chegaria e não imaginava que estaria tão calma para isso.
Levantei-me e o segui até o Edifício da Justiça – melhor dizendo, até o subterrâneo de lá. E, durante o caminho, Peeta me encontrou e me seguiu até lá, por mais que eu tivesse dito que não era para fazer aquilo. Ele não ia me fazer mudar de ideia nem pegar meu lugar naquilo. Aquela era uma tarefa minha e de mais ninguém.
O caminho passou a ficar muito comum para mim, então notei que era ali que ficava presa.
Ele ia morrer onde eu fui torturada! Não sabia se me sentia mais animada com a ideia ou se isso me causava arrepios.
O soldado parou diante de uma porta e se virou para mim.
– Ele está lá dentro, amarrado. É todo seu. Estarei aqui fora, se precisar.
Assenti e respirei fundo, olhando bem para a porta. Mal acreditava que realmente o momento chegara. Peeta nem mesmo tentou me impedir. Simplesmente seguiu o soldado, enquanto me dava espaço e tempo para fazer o que era preciso.
Abri a porta e encontrei tudo apagado, então acendi a luz. Doutor Sádico estava amarrado, completamente sem poder algum. Um pouco machucado, com alguns cortes e roxos no rosto que se encontrava amarelo por provável falta de comida, água e luz por alguns dias. Provavelmente umas trezentas vezes melhor do que eu estava quando a situação era o contrário.
Ele sorriu para mim assim que me viu, mas não olhei para ele. A sala era típica das de tortura, mas não me lembro de ter passado por ali e fiquei feliz por isso. Acho que meu trabalho seria menos aproveitado se tivesse sofrido pelas mãos daquele homem ali. Equipamentos de todos os tipos se encontravam ali, desde facas a venenos. Eu teria diversão ali.
Finalmente olhei para ele.
– Se não é minha paciente favorita – ele falou com um sorriso sem pudor no rosto.
– Diria mais que sou sua ex-paciente – peguei uma cadeira e me sentei na frente dele, exatamente da mesma forma que ele fazia. – Os papeis se inverteram, não é?
– Pode ser. Mas eu me diverti com você, meu trabalho máster. E então? Como vai? Sua cabeça ainda não matou ninguém? Ou você mesma?
Mordi meus lábios. Não podia deixar que ele entrasse na minha cabeça. Eu estava no controle ali.
– Foi um bom trabalho. Katniss e Peeta sofreram um pouquinho, eu sofri um pouquinho também, mas estamos todos bem agora. Somos até amigas, Katniss e eu! Coisa que não éramos antes disso tudo acontecer. E eu e Peeta voltamos a ser um casal como éramos antes de toda essa baboseira acontecer. Então imagino que seu trabalho máster não foi tão máster assim, não é?
Vez dele de morder os lábios e me olhar como se quisesse me matar.
– Se não fosse por Snow, você ainda estaria aqui. Não teria a matado sem antes experimentar tudo que era possível. Faria você uma abominação... Faria a mesma coisa que fizeram com Annie do Quatro. Capitol inteira a estupraria até não ter mais buracos, garota...
Não deixaria Peeta escutar tudo aquilo, então dei um soco bem dado no rosto dele, calando a boca do homem enquanto sangue escorria da boca dele.
– Pois é, mas não o fez – dei de ombros. – E nem vai fazer comigo e mais ninguém. Sabe, enquanto estive no Treze, ouvi muita coisa de você. Tem uma ficha e tanto, rapaz. Não é à toa que Snow o manteve perto.
– Querida , pare o papo e vá direto ao assunto. Veio aqui para me matar. Para que adiar? Acredito que tenha coisas mais importantes para fazer.
– Ah, mas não era você que adorava um papo antes de ir direto ao ponto? Iludir sua vitima, tentar estudá-la, ler seus movimentos e reações... Você disse que queria me ouvir gritar e implorar para morrer...
– E você o fez.
– Sim, eu o fiz. Realmente queria morrer naquele momento. Você é doente, sente prazer na dor dos outros e gosta de se sentir no poder. Então como se sente agora? Tendo que implorar para eu matá-lo? Isso é bom demais – ri, gostando de me sentir tão poderosa naquele momento. Não obtive resposta, então peguei uma faca e continuei. – Por dias pensei em como poderia matá-lo. Uma morte lenta, venenosa e sangrenta? Talvez da mesma forma que você tentou me matar? Mas aí me toquei... Se você gosta tanto de ver os outros sofrer, qual a possibilidade de gostar de sofrer também? Muitos sádicos são também masoquistas.
Então sem avisar, fiz meu teste. Afundei a faca bem no meio da mão dele e estremeci. Não tinha que salvar minha vida ao matá-lo. Aquilo era diferente.
Ele gritou, claro, mas a cara que fazia ao sentir a dor não era... De dor e, sim, algo próximo a prazer. Então eu soube.
Ele ainda respirava fundo e tentava se controlar. Peguei outra faca, um pouco maior dessa vez, e dei a volta por trás dele.
– Imagino que, se eu o matar de forma lenta, você vai adorar cada segundo. Então não vou perder meu tempo precioso com você.
– Para quê? Para fugir de quem você é? Admita que está adorando isso, .
– É bom saber que posso matá-lo, mas não gosto de ver os outros sofrerem, não gosto de fazer dor para os outros, não sou como você. Definitivamente, não sou assim e imagino que tenha percebido isso quando era eu no seu lugar. Só que, ainda assim, não acho que você é bom para ter uma segunda chance na vida, mesmo sem estar em posição de julgar. E outra: não me chame de .
Então, para não dar chance a ele de falar, joguei a faca no chão, longe de nós. Não faria aquilo com nenhum tipo de arma. Seria com minhas próprias mãos. Peguei a cabeça dele e a girei rapidamente, ouvindo o barulho nojento, acabando com o trabalho. Ao soltá-la, a cabeça pendia pelo pescoço, sem vida.
Respirei fundo e tremi antes de sair de lá. Peeta já me esperava do lado de fora com um abraço apertado. Chorei nos ombros dele por alguns longos minutos, de repente, pela descarga de sentimentos dos últimos momentos. Quando me recuperei, voltei-me ao soldado que esperava pacientemente atrás de nós e falei para queimar o corpo dele. Vai saber se aquela máquina assassina estava fingindo?
Para a volta, pedi ao soldado se podia ficar ali por mais um tempo e Peeta ficou comigo, claro. Precisava deixar alguns demônios que me perseguiam ali, ao invés de carregá-los comigo, e sentia que isso só aconteceria se ficasse ali por mais um tempo.
Agora que estava sã, livre e sem uma venda nos olhos, via exatamente como eram as salas em que fui torturada e mantida como refém. Mostrei a Peeta onde Enobaria ficava, onde eu ficava, logo ao lado dela, Johanna do lado e Annie do outro. O pequeno buraco de luz que entrava de alguma forma – nossa única forma de sabermos se era dia ou noite, quantos dias haviam se passado. Mostrei outras salas: a em que me afogaram, a mesa em que minhas pernas foram cortadas, as correntes que prenderam minhas mãos e a maca em que fui colocada nos últimos dias – o mesmo lugar que me resgataram. Peeta ficava vermelho de raiva e os olhos se encheram de lágrimas conforme eu falava. Achava aquilo injusto com ele, mas sentia que precisava soltar aquilo antes que todos meus sentimentos me engolissem e me enlouquecessem.
Quando voltamos para cima mais uma vez, senti o ar tocar meu rosto e o vento levar grande parte do meu peso embora.
Pedi desculpas a Peeta por tê-lo feito passar aquilo e ele me garantiu que não tinha problema. Estava ali para ajudar e, se passar por aquilo era necessário, faria milhões de vezes. Ainda disse que tinha sido incrível com Doutor Sádico.
Sentindo-me um pouco mais liberta de mim mesma, sorri verdadeiramente depois de bons meses desde que toda essa maluquice começou. Finalmente me sentia pronta para viver de novo, mesmo que não fosse fácil.
Depois da execução de Uther, fiquei ocupada para me manter livre de pensamentos ruins. Fosse namorar Peeta, escrever, conversar barbaridades com Johanna e – pasmem – conversar com Katniss... Qualquer coisa que me mantivesse longe daquele sádico servia.
Até comentei com Katniss que ela mesma deveria matar Snow, já que estava pensando em deixar essa tarefa comigo se eu a quisesse tanto assim. Sinto que, se fizesse isso, a de antes estaria perdida para sempre e não queria isso. Mas que ele ainda ia apanhar de mim, ah, ele ia.
Fiquei surpresa quando um soldado apareceu e disse que eu tinha um encontro com Snow, novamente me pegando de surpresa. Dessa vez, Peeta não me acompanhou porque tinha certeza de que não o mataria, mas disse que estaria lá quando eu acabasse. Sabia que precisaria dele depois.
Ele era mantido como refém em sua própria casa e algo naquilo me fez rir ao mesmo tempo em que fiquei brava. Que tipo de maltrato você recebe dentro do próprio conforto de sua casa? E ainda sob o mesmo teto que nós! Por mais que a escolha não tenha sido nossa.
Só que, ao entrar nos aposentos dele, notei que aquilo era quase tão ruim quanto ficar em uma espelunca igual à minha. Ali estava fedendo. Ele estava debilitado e machucado, não comia nem bebia por escolha própria, mas acabavam enfiando algum meio de mantê-lo vivo para morrer na hora certa.
– Imaginei quando seria a sua vez – ele falou calmamente quando eu atravessei sua porta.
– Antes tarde do que nunca, não é? – fiz a mesma coisa que fiz com Uther: peguei uma cadeira e me sentei na frente dele. – Bela casa você tem. Confortável.
– Ande logo com isso, Mellark.
– Ah, eu não vim aqui para matar você – abanei com a mão. – Essa tarefa não é minha. Vim conversar mesmo. E será do meu jeito. Dependendo da sua resposta, eu o bato. Como era antes, sabe? Só que eu faço o trabalho sujo.
– Pois então fale.
Mas não falei. Dei um soco em sua cabeça que o deixou tonto, dei outro que o fez cair no chão e comecei a chutá-lo em todos os cantos sem dó nenhuma. Gritava e o xingava de tudo quanto é nome até todo o ódio sair de mim ou pelo menos parte dele. Sabia que, se continuasse, ele poderia morrer, então parei e o endireitei. A aparência dele ficou horrível. Sangue escorria por todos os lados. Tinha feito um belo de um estrago com Snow. E estava satisfeita.
– Não tenho nada para conversar. Só queria bater em você mesmo – sorri, limpando minhas mãos. Estava coberta de sangue de Snow.
Estava prestes a sair de lá quando ele falou comigo.
– O que acha que vai mudar com minha morte, doce ? Que as coisas serão como você e sua laia querem? Acha que Coin vai realmente dar algo a vocês?
– Quem é você para falar dela?
– Um amigo. Talvez não mais, mas éramos antes. Sabe, , eu e ela temos muito em comum. Eu só fui mais esperto na hora – cerrei os olhos para ele, tentando entender o que o homem queria.
– Por que está me contando isso?
– Sei que tenho meus dias contados e sei que não ganho nada contando a verdade, mas eu tenho um lema: se eu não ganho, ninguém mais ganha – falou sombrio.
– E por que acha que eu acreditaria em você?
– Porque não é burra. Diferentemente dos outros idiotas que ganham meu Hunger Games, você teria uso para meu grupo, mas tem coração demais para uma pessoa só – rolou os olhos, entediado. – Agora, sente-se, querida. Tenho uma história pra lhe contar.
Procurei Katniss por todos os lados nos últimos dois dias. A execução de Snow estava marcada para dali três dias e eu precisava conversar com ela antes. Não impediria a morte dele, mas a menina precisava saber de algumas coisas antes de seguir em frente.
Corri até o quarto dela e não a achei. Perguntei para qualquer pessoa que passava na minha frente e apenas alguns responderam que a viram indo ver Coin, então corri mais ainda. Tinha poucas chances de fazer a coisa certa.
Pelo menos eu espero que seja a coisa certa.
Vi-a virando o corredor.
– KATNISS! – gritei e a garota se assustou, parando de andar até eu chegar a ela sem fôlego. – Preciso conversar com você.
– Correu tudo isso para só dizer que precisa conversar? – ela riu. – Preciso falar com Coin antes...
– Não, você não está entendendo. Precisamos conversar agora. É questão de vida ou morte.
– Mas Coin...
– Coin que se dane. Você é o Mockingjay e faz o que bem entender.
Puxei-a pela mão de volta até o meu quarto e o de Peeta, encontrando-o vazio para minha felicidade. Precisávamos de privacidade e nenhuma outra pessoa.
– O que foi?
– Há dois dias, disseram-me que minha hora de bater em Snow chegara – ela assentiu. – E, no meio da surra, ele começou a falar algumas coisas...
– , você sabe que não pode acreditar no que ele diz.
– Não. É sobre Coin. E dessa vez duvido que esteja tentando nos manipular. Sabe que perdeu. E você também notou que tem algo estranho com Coin, algo que não bate bem, e a história dele... Faz todo sentido.
– Ainda não sei se é prudente escutá-lo, ...
– Só escute a história. Pode ser? Depois faça sua decisão. Ainda temos que lidar com Coin de um jeito ou de outro, acreditando ou não.
– Pois bem, diga o que ele falou.
Respirei fundo e comecei a falar como se tivesse ouvido tudo aquilo uma hora atrás. – Em torno de oitenta anos atrás, Panem estava em outra guerra. Não vou entrar em detalhes sobre do que ela se tratava, mas eu e Alma Coin estávamos lutando lado a lado. Tínhamos um objetivo em comum: a mesma sede por poder e faríamos o melhor de nós para conseguirmos o que queríamos. Mas você sabe que eu não trabalho em grupo. Gosto de mandar os outros fazerem meu trabalho sujo e não dividir tarefas. Então , caso ganhássemos o que queríamos, não desejava dividir meu poder com ninguém.
– Essa guerra e esse poder seriam a liderança de Panem? – perguntei.
– Obviamente. Coin tinha ótimas ideias, sempre fora uma boa estrategista e tão fria quanto o gelo. Nada passava por cima dela. Confiando nela, as chances de ganharmos eram grandes. Essas bombas que ela jogou em cima da própria equipe de campeões não foram um golpe de sorte ou o necessário. Matando seus campeões, nada estaria no caminho dela.
– E por que tem tanta certeza disso?
– Porque eu faria a mesma coisa. – fiquei quieta. Estava chocada com a confissão tão pesada. Coin queria nos tirar do caminho. – E ela aprendeu comigo anos atrás.
– O que você fez, exatamente?
– Traí. Eu a fiz confiar em mim, entrei na cabeça dela, roubei todas suas ideias e as coloquei em prática até que tudo isso me deixou onde estou agora. Bem, onde estava algumas semanas atrás. Você pode imaginar como eu fico quando sou traído?
Não queria nem falar. “Morto” era a resposta mais óbvia que vinha à minha cabeça. Se eu, que não o traí em momento algum, simplesmente joguei conforme as regras para sobreviver, sofri horrores, não queria nem imaginar como seria com alguém que o traiu.
– Provavelmente como Alma ficou.
– Exatamente. Ela perdeu tudo: a credibilidade, os aliados poderosos, armas, parceiros, soldados, poderes e foi obrigada a voltar para casa com um plano nas mangas. Ela, praticamente sozinha, conseguiu o apoio da esmagadora maioria dos outros distritos e trabalhou em sua revolta que resultou em outra guerra.
– A que resultou nos...
– Hunger Games, sim. Ela perdeu feio. Eu a massacrei duas vezes e tinha achado que havia sido pela última. Não me surpreendo que tenha demorado cerca de setenta anos para se recuperar e voltar com tudo.
Não sabia o que responder. Não sabia nem mesmo se podia acreditar no que ouvia, mas o que ele tinha a perder? Ia morrer de qualquer jeito! E tenho que admitir: Coin não parece o tipo de líder que escuta os outros, coisa que não muda de Snow.
– Agora que Alma Coin governará Panem, o que acha que vai mudar de mim, querida? – perguntou diretamente a mim, como se realmente esperasse uma resposta. – Ela é minha aprendiz, senão melhor. Seria interessante vê-la colocar Panem no chão – riu. – Vocês colocaram meu governo no chão, mas subiram uma pessoa igual ou pior. Então que a sorte esteja ao seu favor, agora mais do que nunca.
Katniss me olhava chocada – o mesmo olhar que dei a Snow quando ele acabou de falar e de me deixar completamente desconcertada, saindo da sala dele sem mais uma palavra. E depois fiquei pensando, pensando e pensando. As chances de ele ter dito uma mentira são grandes, assim como de ser verdade. E, por mais que não seja, Coin é estranha e eu não confio nela. E saber que ela nos queria mortos era mais chocante ainda.
– Eu... Eu não sei o que dizer depois disso – Katniss falou. – Não sei em quem acreditar mais, .
E eu entendia. Nem em mim ela poderia acreditar, visto que há apenas alguns dias eu tinha tentado matá-la.
– Independente do que escutou hoje, sei que você também entendeu que Coin não é a pessoa certa para governar Panem. Ouviu as barbaridades que ela falou naquela sala. Eu, Peeta, Haymitch e você ouviram e notamos que havia algo errado.
– Sim, mas faremos o quê? Snow é culpado de tantas mortes injustas nos últimos setenta anos e não pode viver. Como falamos para alguém que é como ele que não pode governar Panem?
– Isso seria assinar a própria morte. Mais uma vez.
– Não teremos paz nunca? – a voz dela falhou e perdeu o contato comigo.
Não tinha o que fazer. Não tinha intimidade com ela, não a abraçaria para dar conforto, tanto que eu também não tinha nenhum conforto nem solução para dar a ela.
– Não sei. Mas algo me diz que não estaremos aqui para descobrir se sim ou não. Se Snow estiver certo... Seremos as primeiras pessoas a desaparecer assim que ela puser as mãos no poder.
Katniss olhou para mim como se tivesse morrido. E eu entendia. Agora o peso estava mais uma vez em cima dela e a menina tinha acabado de perder a irmã.
Quanto mais achávamos que estávamos bem, mais enganados ficávamos.
Deixei Katniss pensando e eu fiz a mesma coisa pelo dia seguinte até Coin nos convocar para outra reunião em cima da hora.
Só que, dessa vez, notamos ao entrarmos na sala que havia apenas vencedores dos Jogos. Eu, Katniss, Peeta, Haymitch, Enobaria, Johanna e mais alguns. Até Gale estava lá.
– Chamei vocês aqui hoje porque recebi uma ideia interessante de Gale – Alma começou. – É a respeito dos Hunger Games.
Nós nos entreolhamos, mas não falamos nada.
– Pensamos que não seria nada mais justo do que fazer um último, ou talvez um primeiro, com as crianças de doze a dezoito anos de Capitol. Isto é, se a maioria concordar.
Eu estava mesmo ouvindo aquilo? Prendi a respiração e me controlei. A primeira pessoa a falar foi Katniss.
– Não seria nada mais justo? Enviar crianças inocentes à morte?
– Como fizeram com vocês? – ela retrucou. – E ainda fizeram pior. Mataram suas famílias, executaram quem vocês amavam, acabaram com suas vidas. Tudo por uma diversão mórbida.
Que ela parecia gostar muito.
– Isso não é certo – Peeta negou com a cabeça.
– Isso é o certo. Temos que ensiná-los que o que fizeram é errado – Gale falou.
– Jogando-os no mesmo lugar que nós? Que tipo de ensinamento é esse? – Peeta parecia bravo. – E o que você tem a ver com isso? Nunca nem mesmo participou de um.
– Suei para impedir as pessoas que eu amo de irem, aumentando minhas chances, e...
– E ainda assim não foi o escolhido! – gritou de volta. – E do que importa tudo isso? Katniss fez o mesmo que você e isso não impediu a irmã dela de ser escolhida. Não me impediu de ser escolhido, tendo meu nome lá apenas uma vez!
Logo a sala ficou cheia de gritaria e discussões sobre o que era errado e o certo, cada um gritando seu ponto de vista, até que Coin gritou.
– Calem a boca! Isso aqui não é para discutirmos o que é certo e o que é errado. É uma votação e só quero o sim ou o não de vocês – as veias do pescoço dela incharam e eu a achei assustadora. – Vamos começar de novo. Enobaria, sim ou não?
– Sim.
– Johanna?
– Não.
Fiquei surpresa, mas acabei sorrindo para ela.
– Haymitch?
– Sim.
Minha boca caiu de surpresa e eu o olhei chocada. Nunca imaginei que Haymitch era tão sedento por vingança. Não sabia exatamente o que sentir sobre isso e nem mesmo qual era a minha opinião. Se seria interessante lhes mostrar como nós sofremos enquanto eles se divertiam com mortes de verdade? Sim, claro. Mas até onde isso iria nos levar?
– Katniss?
– Sim.
Peeta a olhou incrédulo e parte de mim ficou feliz por ele ver como ela era. Só que aí eu não sabia se isso seria bom para mim, visto que não sabia no que votaria.
Quando voltei a atenção à votação, havia um voto de sim a mais do que os de não e era a vez de Peeta.
– De jeito nenhum – ele respondeu, ainda bravo.
Então todo mundo se virou para mim. Estava empatado e meu voto seria o final, o que decidiria tudo. A pressão que sentia por isso era incrível e ainda não sabia o que responder, mas sabia que não tinha tempo e ninguém me daria a proeza de me deixar pensar.
– , pense bem. Pense em tudo que você passou nas mãos de Snow e seus Jogos – Gale falou, tentando me convencer a votar no sim. – Todas aquelas torturas...
– Agora pense naquelas crianças inocentes que nem sequer sabem como bater um no outro – Peeta quase implorou. – Pense nas coisas que isso ensinaria, que somente guerra e morte é a solução para tudo...
– Parem, vocês dois. – pedi quando vi que Gale ia retrucar. – Ninguém pode influenciar meu voto. Eu quero votar sim, quero que eles sofram da mesma forma que todos nós e aqueles antes de nós sofremos com os Jogos, mas e aí? Implantaremos o mesmo ódio que temos por Capitol nas pessoas daqui e a situação vai se inverter. E aí quem será o bonzinho da história? Faremos mal a eles da mesma forma que nos fizeram. E criaremos novas Enobarias, novas Johannas, novos Catos, novas Rues e novas s. E eu lhes pergunto: onde isso vai parar? Se queremos mostrar que os últimos setenta e seis anos foram errados, não é lhes impondo a mesma coisa que vai surtir o efeito certo – olhei para todos os que votaram no sim e parei em Gale. – Sim, eu sofri nas mãos do Hunger Games mais de uma vez, e por isso mesmo não desejo isso para mais ninguém, não importa quem for, nunca. Meu voto é não.
A sala ficou em silêncio depois do que eu disse por um bom tempo. Poucas pessoas olhavam para mi. Algumas com certa admiração, outras com repúdio e outras sem expressão. Peeta me olhava como se eu fosse uma rainha ou algo perto do tipo e era só disso que eu precisava para me sentir bem depois de me expressar daquela forma.
– Pois bem... Foi decidido – Coin quebrou o silêncio com uma voz quase que desapontada. – Não haverá nenhum Hunger Games.
– Pelo resto da vida – falei de novo.
– Vamos ver – ela me olhou nos olhos, aqueles olhos frios e horríveis que davam impressão de morte.
Foi então que eu entendi. Sem Hunger Games pelo resto da vida, mas que vida? A minha?
No final da reunião, fui uma das primeiras a sair da sala. Estava processando a informação que tinha acabado de escutar, assim como a decisão que foi tomada ali. Era uma das primeiras vezes que fazia uma decisão sem me basear em morte e naquilo que me transformaram – uma espécie de máquina mortal. Esse tipo de decisão fora algo da de antes e isso me deixou feliz por ter resquícios de que nem tudo estava perdido.
Peeta me abraçou por trás e me arrepiei, primeiro por medo e depois por amor. As coisas entre nós melhoravam gradativamente e dormir no mesmo quarto, ao mesmo tempo em que ajuda, também atrapalha. Já acordei gritando várias vezes porque o via do meu lado tão perto. Com isso, alguns médicos disseram que fariam o possível para me ajudar assim que tudo ficasse bem e a poeira do recém-ataque abaixasse. Eles estavam ocupados demais cuidando dos feridos das bombas.
– Acho que nunca fiquei tão orgulhoso por ser seu marido antes. Quer dizer, eu sempre fui orgulhoso disso. Afinal, minha esposa, além de linda, é totalmente fodona. Só que, depois de hoje, , você está em um nível maior que rainha.
– E que nível é isso?
– Uma espécie de deusa. Só pode.
Ri como uma idiota, corando por todos os lados do meu corpo. Decidi não falar minhas preocupações com ele porque já carregava preocupações demais para uma pessoa só. Peeta era o que mais sofria com minhas diferenças de personalidade.
As pessoas saíam e percebi que Katniss ficou para trás. Gale passou por nós com um bico enorme de criança emburrada e quis bater no rapaz até que aprendesse a ter modos, como uma mãe.
Só que fui tirada desses pensamentos quando ouvi a voz de Katniss ficando cada vez mais alta conforme falava.
– ...E os outros distritos? E quanto a eles? As pessoas que morreram? O que perderam? – Coin provavelmente respondeu algo mais baixo do que ela. – E depois? Eu não arrisquei tudo para que as coisas não mudassem!
– O que você sabe de política, sua garotinha petulante? – Alma Coin respondeu a altura, quase estremecendo as paredes da mansão. – O que sabe sobre governar?
– Um lado que você e Snow não souberam administrar: escutar os outros.
– Você não sabe do que está falando...
Peeta queria entrar lá para colocar sua opinião, mas, visto que eu já estava manchada, não seria legal ele ser também, então o impedi.
– Sei que suas decisões são estranhas. Só espero que faça um trabalho diferente e melhor do que Snow fez.
Dependendo do ponto de vista, fazer um trabalho diferente e melhor do que Snow fez pode ser muito, muito perigoso.
– Você não pode chegar aqui e falar como devo ou não fazer meu trabalho, se eu não palpito do seu. Espero que faça a sua parte amanhã, Everdeen.
Katniss ficou quieta e saiu batendo os pés, encontrando-nos na porta com olhares cúmplices e preocupados.
Saímos de lá com passos largos, seguindo Katniss que bufava de raiva.
– Ela não pode governar – praticamente latiu. – Não sei como pará-la, mas sei que não pode governar.
Parou em seu próprio quarto e bateu a porta, impedindo-nos de entrar.
Eu e Peeta nos entreolhamos preocupados e ele disse que ficaria ali, tentando fazê-la falar, e para eu voltar ao quarto e descansar.
Não gostava daquilo, daquela aproximação dos dois, sendo que um dia eles nutriram sentimentos um pelo outro e o fato de que passaram o tempo em que estive presa em Capitol um ao lado do outro não ajudava nem um pouco. Não duvidava dos sentimentos de Peeta por mim, mas também não podia duvidar daqueles que tiveram durante o 74º Hunger Games. Mas tinha mais coisas para me preocupar no momento.
Passei a noite praticamente em claro. Mesmo com Peeta ao meu lado no começo, não conseguia relaxar sabendo que em torno de alguns dias iríamos para casa e Coin seria a presidente. Snow morreria amanhã na frente de Capitol, ou melhor, Panem inteira e, em torno de dois dias, Coin seria proclamada Presidente Alma Coin de Panem. Como eu conseguiria dormir bem pelo resto da minha vida sabendo de uma coisa dessas era mais um problema para a minha lista.
Parecia que, ao sair do 76º Hunger Games, minha vida inteira se tornou uma versão macabra dos Jogos que não havia vencedores no final. Apenas morte.
No meio da noite, o fato de que Peeta estava ao meu lado não ajudou nada. O braço dele em volta de minha cintura me deixava sufocada. E se ele me prendesse ali e, não sei, me asfixiasse com o travesseiro? Ou me enforcasse? Ou coisa pior?
Então saí do abraço dele devagar para não acordá-lo e me direcionei para o sofá. Meu coração se partia por ter que fazer isso depois de tantos dias bons com ele ao meu lado, mas coisas piores poderiam sobrar para o rapaz, caso eu ficasse ali por mais tempo. Sabia que acordar e não me ver ali o deixaria triste. Teria que me desculpar por isso de alguma forma...
Mais um problema para a lista.
Além disso, ele tinha pesadelos durante as noites, praticamente todas elas. Sabia disso desde que ele voltou dos Jogos com Katniss. Os dois tinham pesadelos e a forma que ajudaram a melhorar era se abraçando para se sentirem seguros e isso funcionava até hoje. Nos últimos dias, ele não teve um sequer, visto que eu estava ali, abraçada a ele. Se não conseguisse me recuperar, como o ajudaria?
E mais um problema para a lista.
Infelizmente, quando caí no sono no sofá, acordei com os gritos de Peeta. Os gritos dele me deixaram assustada e impossibilitada de ir até ele para ajudá-lo. Então, de longe, fiz o meu melhor. Peeta parecia de coração partido ao entender tudo quando acordou de vez. Eu no sofá, os pesadelos, meu medo. E ainda assim não foi nada mais do que perfeito em relação a isso, mas não voltou a dormir.
Nós ficamos em silêncio, assistindo ao sol nascer no meio das luzes de Capitol, cavando algumas memórias boas do nosso passado – até mesmo quando passamos a última noite juntos de verdade em Capitol. A noite fora apenas alguns meses atrás, mas parecia uma eternidade.
Contei minhas preocupações, no fim das contas. Fiquei debatendo se era melhor escondê-las ou compartilhá-las e acabei por fazer isso porque, se eu quisesse ajuda, teria que conversar. Além do mais, Peeta era meu marido e estávamos juntos no amor e na dor.
Não importava o que ele dissesse. Nada podia melhorar os meus anseios sobre o futuro. Eu já não era uma pessoa positiva antes e, depois de tudo que me aconteceu, não me via sendo nada além de negativa.
Finalmente a manhã chegou e a primeira coisa que escutamos que fora diferente de todas as manhãs passadas foram os sinos da cidade. Eles só tocavam quando alguma coisa importante estava para acontecer, como os Hunger Games, chegada de um Vitorioso... Nesse caso, sabíamos que era a execução de Snow.
Hoje deveria ser um dia feliz, um dia em que o responsável por tanta morte e dor finalmente receberia seu trato, mas não conseguia sequer sorrir. Por mais mórbido que soe, se tudo estivesse bem, com toda certeza estaria feliz em um dia como hoje.
Trocamo-nos e seguimos com nossas vidas até o horário programado para a execução, que aconteceria na grande sacada da mansão, em frente ao parque que há dias sediou a festa de Capitol. A cidade inteira era obrigada a ir. Telões estariam por todas as partes, câmeras mostrariam para todas as televisões e tudo iria para toda Panem. Agora que Beetee tinha acesso a toda tecnologia do País, estava mais do que certo que nada ocorreria de errado.
Todos os campeões estavam ali quando Snow foi trazido. Enobaria até mesmo rosnou para o homem e muitos dos vencedores tinham algo para falar a ele, que ignorou. Peeta e eu ficamos quietos. Eu tinha um olhar morto para ele e infelizmente isso deve ter mostrado que ainda não tínhamos uma solução sobre Coin porque ele sorriu de lado, vitorioso.
Até na morte o cara sai ganhando.
Por fim, Coin apareceu com Katniss atrás, toda vestida com seu uniforme de Mockingjay e uma expressão bem parecida com a minha. Ela ficou de frente a Coin enquanto a futura presidente ficava ao lado de Snow.
Dava para ver o sorriso dela, dava até para sentir a satisfação por aquele momento, e eu queria sair dali e vomitar. Ou vomitar e sair dali, sem uma ordem específica.
– Hoje trago a vocês o veneno de Panem. Capturado e julgado por nós, chegamos à conclusão de que o lugar certo para Coriolanus Snow é longe de qualquer local perto da paz de Panem, a paz que teremos daqui em diante. Hoje é o dia em que ele começará a pagar por seus pecados com sua morte. Hoje é o dia em que lhes trago liberdade.
Enquanto Coin fazia seu discurso, observava as pessoas na praça. Alguns rostos assustados, outros céticos e alguns até bravos.
– ...Se você, cidadão, o defende, é considerado um traidor para nossa nova Panem. E os castigos para qualquer conspiração é morte.
Olhei Peeta preocupada e depois troquei o olhar com Katniss. Ela parecia mais branca e mais morta. Jurava que ela poderia desmaiar a qualquer momento.
– E, sem mais delongas, nosso símbolo e inspiração para essa Revolução, Katniss Everdeen, nos fará as honras de nos livrar da praga de Panem.
Dando um passo para o lado, Coin deu um último sorriso para Snow. Um sorriso extremamente vitorioso, como quem diz “quem ri por último ri melhor”.
Agora todos os olhos estavam em Katniss e ela pareceu cair na real, como se estivesse pensando. Sacudiu a cabeça devagar, armou seu famoso arco e flecha e mirou em Snow.
Em momento algum ele fechou os olhos, em momento algum deixou de dar o típico sorriso sacana que sempre zombava de todos nós. Nem mesmo quando Katniss soltou a flecha.
Tudo que ouvi foi o famoso zumbido da flecha cortando o ar, o barulho dela encontrando o alvo e um murmúrio de morte.
Mas Snow continuava vivo.
Quando me toquei, havia uma comoção no local. Haymitch havia tirado Katniss de lá, que parecia ainda da mesma forma que antes. Snow gargalhava de uma forma assustadora que me dava muito medo até que, mesmo amarrado, conseguiu se jogar de cabeça da sacada. Lá de cima, consegui escutar o barulho de osso quebrando.
Gritos cobriam o lugar de todos os lados.
No chão, bem perto de nós, o corpo de Alma Coin jazia com uma flecha atravessada em sua testa.
Disseram que designar a tarefa de matar Snow a Katniss tinha sido um erro quando ela havia acabado de perder a irmã. Obviamente tinha algo relacionado à menina estar com alguns problemas pessoais e delirando – por isso a morte de Coin. Ou mesmo mira errada, mas é de Katniss que estamos falando.
Snow mesmo morreu nas mãos de ninguém mais além dele mesmo e, apesar de me sentir um pouco desconfortável com a ideia, imagino que, de qualquer maneira, ele estando morto já está de bom tamanho.
A mansão ficou em caos sem um líder. Todo mundo queria culpar alguém e a maioria culpava Katniss e falava dela pelos cantos. Tanto que vi que era hora de parar com isso e defendê-la em público pela primeira vez. Disse que ela fez o certo e que somente pessoas que ficaram cara a cara com Snow sabem dizer a diferença entre os dois. Aparentemente, isso serviu para manter algumas pessoas caladas, já que nunca pensaram que eu a defenderia.
Apesar do rolo que tínhamos agora para achar alguém bom e adequado para o governo de Panem, os problemas diminuíram absurdamente. Pelo menos tínhamos a certeza de que alguém tão sanguinária e maluca por poder como Snow não iria ser.
E logo estávamos reunidos mais uma vez na sala de reuniões discutindo esse mesmo tópico: nosso futuro presidente. Nomes eram apontados, mas não sabíamos nada sobre eles e não podíamos confiar completamente. De repente, nossos próprios nomes foram colocados em jogo.
Quando disseram que eu deveria ser presidente de Panem, não conseguia parar de gargalhar com tamanha piada.
– Não consigo governar minha própria cabeça e vocês querem que eu governe treze distritos?!
E isso foi o suficiente para tirarem meu nome da jogada.
Estava com tanta dor de cabeça por causa de tanta discórdia que acabei chamando a atenção de todo mundo.
– Uma coisa que eu e Katniss questionamos sobre a conduta de Coin era que ela pretendia fazer milhões de mudanças sem mesmo ouvir a opinião de todos os distritos, sendo que a mudança afetará mais eles do que aqui. Vocês bem sabem disso. Não é à toa que essa guerra começou – expus minha opinião. – Então acho que deveríamos chamar os representantes de cada um dos treze e ouvi-los. Votaremos com o que tivermos.
Acabaram por me escutar milagrosamente. Podia estar ruim da cabeça, mas não estava tão ruim assim, aparentemente.
Em torno de dois dias, todos os representantes de cada Distrito se encontravam em Capitol. A maioria estava maravilhada com o local ao mesmo tempo em que tentava não ficar. Um lugar tão belo, palco de tanta destruição. Sim, eu sabia exatamente como as pessoas se sentiam quando vinham aqui pela primeira vez. Ou pelas próximas vezes. Nunca era igual à nossa casa.
A discussão durou quase uma semana. Ouvimos todos, descartamos alguns porque os interesses não batiam com o da maioria, até que chegamos a um pequeno grupo de três possíveis escolhas e, entre elas, a minha favorita: Comandante Paylor. Fiquei sabendo de seus feitios no Distrito Oito, no hospital. Vi as imagens de Katniss quando se encontraram no que parecia anos atrás e, principalmente, a ouvi. Tudo que ela falava soava como ordem. Tinha um ar autoritário que quase ninguém tinha a audácia de retrucar, mas não de forma fria como Coin. As pessoas não tinham medo de Paylor. Simplesmente a respeitavam.
O dia que eu tivesse metade do respeito que ela tinha, poderia me considerar uma mulher de verdade, um ser humano.
Não fiquei surpresa quando foi escolhida para liderar Panem e não vou perder meu tempo dizendo qual a forma de governo dela. Contanto que dê certo, que seja honesto e que ela cumpra com o que prega, estamos entendidas. Juntamente com Plutarch, os dois poderiam dar um jeito nas coisas e melhorá-las finalmente.
Ele tinha sido nomeado antes mesmo de chamarmos os distritos para cá, mas recusaria se tivesse que fazer tudo sozinho. Como ele mesmo disse, nenhuma pessoa poderia ter tanto poder assim sem dividi-lo. Era a forma mais justa de governar algum lugar: com divisão honesta.
Ficou decidido que o Distrito Doze seria reconstruído, assim como os outros, e seu representante era uma família que estava sempre ajudando os outros por lá, mesmo que eles mesmos tivessem pouco para dar. Todos gostavam deles e eram dignos de representar o Distrito. Eu achava que Haymitch se sairia muito bem com a tarefa, mas, assim como eu recusei o título, ele também o fez, alegando que já havia muito tempo desde que não bebia uma gota de álcool e que, assim que pudesse voltar para casa, beberia até o fim dos dias.
Com tudo decidido, as coisas finalmente voltariam ao normal e tudo mudaria dali em diante. As pessoas voltaram aos seus Distritos com uma nova notícia (boas notícias) e uma boa perspectiva para o futuro.
Logo, seria nossa vez de ir embora, mas, como não precisavam mais de mim, era minha vez de ser cuidada e tratada da melhor forma que podia. Comandante Paylor fez questão de separar os melhores médicos de Panem e Capitol para fazerem o melhor para me curar e eu não poderia estar mais grata. Sabia que os resultados seriam incertos, se é que havia uma cura para o que eu sofria, mas não custava tentar.
Demorou, doeu, muitas pessoas morreram, muitas injustiças aconteceram, mas finalmente é bom poder dizer que, de agora em diante, a paz reinava.
O sol estava se pondo. Lindas cores tomando o céu enquanto eu assistia a ele descer e descer. Aquelas cores eram as favoritas de Peeta. Pelo menos o laranja era. Não o tipo brilhante de laranja, mas aquele tipo suave e fresco de fim de dia. Ele diz que essa é sua cor predileta porque fora a primeira vez que me viu. O sol estava se pondo e uma garotinha andava para casa com sua família. De acordo com o rapaz, naquele momento, ele já sabia com quem queria passar o resto da vida.
Já eu, sinceramente não me lembro de qual fora a primeira vez que vi Peeta. Acho que foi na escola, quando estávamos trabalhando juntos em alguma atividade. Mas me lembro de que ele estava envergonhado e mal conseguia falar uma frase sem gaguejar. Achei aquilo adorável e me senti lisonjeada por ter alguém tão fofo quanto Peeta com uma queda por mim.
Mas me lembro de várias últimas vezes que o vi e acho que nunca vou me esquecer delas. Quando fora para a arena pela primeira vez, quando fora pela segunda, quando o pegaram na arena depois da explosão, quando nos separamos em Capitol e quando ele voltou para o Distrito 12 e eu fiquei em Capitol. De todas essas vezes, as que mais me doeram foram a primeira vez que Peeta foi para a arena e quando ele voltou para o Doze. O medo de que eu não voltasse mais estava estampado nos olhos dele – aquele medo que sentia todas as vezes que o via partir.
Algumas dessas lembranças nunca iriam embora, assim como aquelas pelas quais eu passei durante a rebelião. Nós, vitoriosos, sofremos com essa doença: a lembrança. E, por mais que tentássemos, nunca seríamos os mesmos de antes. Pelo menos eu sei que nunca serei a mesma de antes.
Mas não vou deixar mais que isso atrapalhe minha felicidade de agora em diante. Capitol nos fez sofrer demais por muito tempo e agora esse tempo acabou.
Depois que Peeta foi embora para casa, fiquei em torno de um mês em Capitol. Vi com meus próprios olhos as mudanças ocorrerem no lugar e, devagar, nos outros distritos.
Era estranho dizer que estava de férias, como os médicos diziam. Eu chamava aquilo de reabilitação. Minhas consultas, exames, remédios... Todas para curar meu problema foram um sucesso e correram da melhor forma possível. Mas não significava que estava curada. Ainda tinha pesadelos, ainda pensava no horror que passei, ainda sofria com ataques de pânico e ainda perdia o controle de mim mesma. Minhas urgências de matar alguém acabaram, pelo menos, mas sabia que, se não me mantivesse positiva sobre isso, poderia voltar. Doenças cerebrais do meu tipo são incuráveis. O tratamento é mais dependente de mim do que dos médicos.
Conversas com um médico todos os dias eram o que mais me ajudava e notava que fazia algum efeito.
E, depois de um tempo, os médicos disseram que tinha a perfeita capacidade de viver minha vida novamente e que tinham feito o possível para me melhorar.
E era a primeira vez que eu acreditava que as coisas iam ficar boas.
O dia estava acabando quando cheguei à Vila dos Vitoriosos no Distrito 12. A casa de Haymitch estava acesa na sala e cogitei entrar ali primeiro, mas havia uma pessoa que tinha que ver primeiro. A casa de Katniss estava apagada e, no banco da pracinha da vila, duas pessoas se encontravam. A trança típica não me enganou nem os cabelos loiros ao lado. Não senti ciúmes. Nem mesmo raiva ou medo. Minhas conversas com o médico em Capitol rodavam muito nesse tópico e chegamos à conclusão de que não havia motivos para tanto ódio e que deveria deixar o passado onde ele estava: lá atrás.
Vi-a sorrindo fraco e se mexer uma vez e, nisso, olhou para trás e acabou me vendo. Com isso, tocou o braço de Peeta e apontou na minha direção.
E a parte boa de não me esquecer das coisas facilmente é: nunca vou me esquecer do sorriso que ele deu quando me viu de novo.
Seis anos depois
Não havia nada melhor do que a sensação de paz. Era até engraçado porque nunca nos sentimos assim. Nunca realmente dormíamos, nunca abaixamos a guarda. Estávamos sempre de olhos abertos.
E o que mais me provava que Panem estava em paz era a visão de uma criança dormindo. Rodrik respirava calmamente, soltando pequenos sons vez ou outra, aconchegado em sua cama. Eu não deixava de sorrir com a visão porque sabia que tudo estava bem.
Na cama do lado, Mira fazia o mesmo. Toda desengonçada, o lençol enrolado em suas pernas e os cabelos por todos os lados. Dormia em paz, sem preocupações. Era assim que uma criança devia viver: sem medo de ser escolhida na colheita, a única preocupação sendo o que teria para brincar quando acordasse.
O sol começava a nascer e eu estava no batente da porta deles há cerca de meia hora, apenas observando a cena mais preciosa de minha vida.
Ouvi um rangido da madeira da casa e me virei para olhar, encontrando Peeta vindo em direção a mim usando apenas suas calças como pijamas e a cara amassada pelo sono.
– Senti sua falta na cama – sussurrou para mim. – Imaginei que estaria aqui.
– Pesadelos? – nem foi preciso responder. O rosto dele entregava. – Desculpe. Eu... Precisava checar.
– Eles estão bem, .
– Eu sei... É só que... – suspirei fundo. – Só queria ter certeza. Mira está começando a perguntar... Haymitch diz para contarmos tudo, mas não sei se é o melhor ou se quero que eles saibam...
– , vamos voltar para a cama – abraçou-me e beijou meus cabelos, levando-me de volta para a cama. – Podemos pensar nisso mais tarde juntos. Não se estresse por isso. Ok? Não vale a pena. Eles serão os mesmos sabendo ou não.
– Acha que eles não vão mudar? – perguntei, de volta à cama com ele. Estávamos abraçados um no outro, enquanto Peeta fazia carinho na minha cabeça. – Digo, se contarmos?
– Eles não passaram por tudo aquilo, . Não sabem como foi. Podem ficar curiosos, chocados, talvez até abalados, mas vai passar rápido. Além do mais, eles precisam saber por nós do que por outras pessoas. Nossos nomes e rostos estão estampados em livros de história, pessoas ainda nos param na rua para agradecer... Eles merecem saber o porquê.
Suspirei fundo. Sabia que ele estava certo, mas ainda estava insegura. Não poderia protegê-los para sempre, apesar de ser a minha vontade.
Acabei concordando e deixando o assunto morrer, na esperança de que a sensação ruim passasse.
Contar não tinha sido fácil. Crianças são curiosas e fazem o maior número possível de perguntas e, mesmo que fossem novos para entender direito o que estávamos falando, era necessário falar agora para evitar problemas mais tarde. Contamos também por que não tinham avós, por que o Distrito ainda tinha pedaços quebrados e destruídos e por que viam fotos nossas por aí e pessoas nos paravam para agradecer pelo esforço, o papel do tio Haymitch e da tia Katniss também. No fim, tudo valeu a pena, pois os dois se levantaram e abraçaram nossas pernas com todas as forças e eu quase morri de chorar. Entendendo ou não o que tínhamos acabado de falar, aquele gesto valia mais do que qualquer outra coisa.
Por mais que seis anos tenham se passado, Peeta tem sido muito compreensível comigo. Da mesma forma que eu tenho sido com ele, de acordo com o rapaz. Diz que é o amor que sentimos um pelo outro que nos deixa fortes assim e não duvido em momento algum.
Foi esse amor que gerou dois filhos. Depois da perda do nosso primeiro que nunca fora esquecido, achava que nunca mais seria capaz de gerar um filho e não digo isso pelo trauma que sofri por Capitol, mas pelas torturas que sofri, que meu corpo sofreu e pelas mudanças ocorridas. Os médicos disseram que era possível que não fosse capaz de ser mãe. Seria sorte se isso acontecesse, mesmo que a possibilidade nunca tivesse sido nula. Então, quando eu e Peeta nos reestabelecemos no Doze como um casal novamente e ele deu a ideia de apenas tentarmos sem termos esperança, fiquei com o pé atrás. Bom, obviamente a lábia de Peeta funciona, como Panem inteira já sabe. Eu... Então deve funcionar melhor ainda comigo.
Agora tínhamos dois lindos filhos e eu tinha uma preocupação imensa em protegê-los a qualquer custo. Não quero que eles passem pelo mesmo que nós e, se puder, que nem escutem que uma guerra aconteceu, se possível.
Haymitch era o caso perdido de sempre, mas eu o amava. Talvez ainda mais. Quando nos vimos assim que voltei ao Doze, abraçamo-nos por horas. Era a última família que me restou e estava feliz por tê-lo comigo ali.
Com o fim da guerra, toda repressão, ele não tinha muito que fazer, então voltou a beber, claro. Mas não o fazia tanto assim quando estava perto das crianças ou hoje em dia.
Já faz três anos que recebemos a visita de Effie e ela nunca mais voltou a Capitol. Se eu soubesse que ela seria a salvação da bebedeira de Haymitch, traria a mulher mais cedo. Os dois brigam muito, as discussões são hilárias, mas é quase palpável a adoração que têm um pelo outro. Além do mais, ver o sorriso no rosto dele como eu nunca tinha visto antes era... Reconfortante, para não dizer mais.
Morando juntos, tinham uma criação de gansos – uma ideia minha que hoje me arrependo amargamente. Juro que ainda vou assar aquelas criaturas uma por uma antes que biquem meus dedos todos.
Já Katniss... Ela continua no Doze, mas sozinha. Bem, conosco. Acredite se quiser, nossa relação melhorou muito. Conversávamos quase todos os dias, andávamos pelo Distrito e discutíamos como podíamos melhorar as coisas por ali. Por sermos veteranos de guerra, éramos os responsáveis pela reconstrução do distrito Doze. Vez ou outra, meu cérebro sacudia para atacá-la, mas fazia coisa melhor. Desafiava a mim mesma e destruía essa parte mortal. Pelo menos uma fração dela.
A mãe dela decidiu ficar no distrito Treze depois da morte de Prim e Gale... Gale foi para o Dois. Estou aliviada com essa notícia, porque, de acordo com as histórias de Katniss, ele havia mudado muito, muito mesmo. Não era mais uma pessoa sensata. A guerra é capaz de mudar muitas pessoas de diversas formas e, infelizmente, ele fora uma vítima como todos nós. O que sabíamos era que pela nossa nova presidente havia pessoas de olho nele, apesar de garantir que ele estava mantendo a ordem no distrito mais rebelde à Nova Panem.
Dessa forma, Katniss tinha apenas nós como amigos mais próximos. Devagar, os distritos recebiam seus moradores novamente, assim como novos e inclusive o Doze. Nisso, novas pessoas apareceram e novos ciclos de amizade cresceram para ela, mesmo fechada como era. De repente, pode encontrar alguém se quiser.
Tínhamos liberdade de ir e vir para qualquer lugar de Panem, sem restrição de gênero ou socioeconômica, ou qualquer fosse a lei que Snow tinha postulado. Até pensamos em fazer nossa vida em outro lugar, visto que tínhamos muitas memórias não tão boas do Doze, mas, ao mesmo tempo, tínhamos muito boas e com certeza poderíamos trabalhar para que as boas fossem maiores e melhores que as ruins. E, juntos, sabíamos que conseguiríamos.
Com o tempo, fui aprendendo que, mesmo em paz, existem pessoas de mau caráter que estão sempre nos vigiando, esperando o momento certo para nos derrubar. Em um momento, podíamos ser crianças inocentes e, de repente, situações nos forçam a crescer e perder toda inocência. Bons são aqueles que ainda as têm.
O tempo em que tínhamos que estar sempre preparados para correr, acordar de repente, treinar o coração para parar de bater tão rápido nas horas certas, controlar emoções, podia ter acabado, mas não significava que tínhamos que descansar completamente. Agora qualquer coisa podia acontecer, e com uma família, a vontade de manter todos que eu podia a salvo cresceu. E faria isso até meu último suspiro, como sempre fora.
Nunca pensei que chegaria tão longe como estou agora. Desisti várias vezes, deixei que minha própria cabeça me enganasse e o ódio me dominasse, e ainda estava aqui. O caminho fora longo, mas sobrevivi. Espero que algum dia isso sirva de lição para alguém, seja para meus filhos ou um completo estranho. Desistir nunca é o caminho mais fácil e nada tem graça sem um desafio, uma luta. As coisas mudam. Nunca sabemos o que acontecerá amanhã. Se consegui passar isso com minha história, estou mais do que satisfeita. O meu objetivo foi atingido.
Fim
Nota da autora: Eu nem sei por onde começar isso aqui. Há tanto tempo comecei essa história e o fim chegou! Fico feliz e triste ao mesmo tempo. Feliz por finalizar algo que eu planejei com tanto carinho e dedicação e triste pelo mesmo motivo, para ser sincera. A aventura que participei com essa história é indescritível e cada leitor que me incentivou fez parte disso.
Na verdade, dedico essa história a vocês, leitores. Sem vocês, escreveria isso para mim e para meu computador e, por mais que me sinta quase completa por isso, ainda não é a mesma coisa que compartilhar com vocês e lhes mostrar o meu fim e versão de Hunger Games. Sério, eu não tenho como agradecer a sensação que me deram toda vez que via um comentário novo por aqui. Passei por muitos maus bocados esses últimos meses e uma das coisas que me animaram foi ver o quanto TSIGD foi bem recebida e o quanto vocês gostaram da minha escrita e da minha personagem. Muito, muito, muito obrigada mesmo por isso, de coração.
Ana, minha beta querida e favorita (e única, hahaha), sem você nada disso seria possível. Aturar meus erros de português, de script (porque eu não sei naaaaaada e você ficava com a parte mais pesada) e do que fosse mais! Se eu pudesse, lhe dava um beijo para agradecer. Se eu não te encher o saco com fic daqui para frente, vamos nos falando. Ok? Depois de tanto tempo juntas, não quero perder contato!
Por último, eu odiei o epílogo. Admito que não me lembro o fim da Esperança, mas quando eu vi (SPOILER DO FILME) esse fim no filme, minha amiga virou pra mim e falou que me plagiaram hahahaha. Até então, achava que estava arrasando com o fim, mas eu não gostei muito do fim do filme... Mas até então não consegui pensar em um melhor pra minha história, então vão ter que me perdoar. Acho que é muito raro encontrar alguém que goste do próprio fim da história – pelo menos pra mim é. Mas sinceramente, espero de coração que não tenha decepcionado (muita) gente.
E agora fico por aqui. Que, dessa vez, a sorte esteja com vocês para todo o sempre :)
Lala Arantes.