I'm look at you throught the glass
escrita por Ana Ferreira
Minha respiração embaçava aquele vidro e o desespero tomava conta de mim. Afastei meu rosto e limpei com a manga gasta da camisa branca, lá estava ela de novo, podia enxergá-la perfeitamente novamente.
Com o alivio, suspirei pela boca, sentindo meu coração se apertar mais ainda em meu peito. Como conseguia? Como ainda sobrevivia a isso daquele modo? Sentia-me como um animal, uma aberração, algo completamente ruim para a humanidade. Trancado como um animal, sendo tratado de modo especial. O que eu fiz?
Não sabia que dia era, que ano e que horas eram. Não tinha um relógio comigo, nem um calendário e muito menos alguém para conversar. Não via nada, além daquele cubículo sujo, sujo por minha causa, a cama bagunçada, com os lençóis brancos jogados ao chão. Porque dormir? Não conseguia, não tinha motivos. Restos de comida jaziam no chão, porque comer? Não tinha mais fome e do que me adianta me alimentar? Apenas contribuía para a minha prisão, ou seja lá o que isso for.
Uma vez, enquanto traziam comida para mim, pude escutar que aquilo era um tipo de experimento. Experimento para que? Não sou um mutante muito menos um serial killer, sou um homem comum, com um trabalho, quero dizer, quando eu tinha um, e uma vida normal. Pagava todos meus impostos, pagava minhas contas, tinha uma vida tranqüila, não possuía uma namorada ou até mesmo muitos amigos, mas nunca reclamei de nada.
Senti novamente meus joelhos fraquejarem e escorreguei até o chão, sentando no mesmo e apoiando minhas mãos naquele vidro quente, já não tinha a temperatura fria à um tempo, pois eu permanecia colado a ele o tempo inteiro, apenas observando-a.
E lá estava ela, deitada no canto do seu cubículo, onde ela havia feito um pequeno amontoado com as colchas e lençóis e estava deitada sobre o mesmo, encolhida, tentando dormir. Mas ela não obtinha sucesso, assim como eu.
Queria poder saber seu nome, sua idade, poder ouvir o timbre de sua voz e sentir seu cheiro. Eu apenas fantasiava com aquilo, fantasiava em sentir a textura de sua pele clara, Deus, ela era estonteante, era simples, comum para muitos homens, mas eu a adorava, eu achava-a perfeita, apesar de sua magreza e suas enormes olheiras abaixo dos olhos castanhos cansados, assim como meus próprios estavam.
Quando eu havia sido levado para lá, sem nem ao menos saber como cheguei, ela estava do outro lado, dormindo como uma pedra na cama, tão tranqüila e tão calma que eu pensei que era um anjo, um anjo que veio para me ajudar a passar por aquilo, que eu não sabia o que era.
Dia após dia, fomos nos acostumando um com o outro, dividindo intimidades mudas, já que não tem como nós nos comunicarmos. Acabei, eventualmente, perdendo a vergonha diante dela, afinal, tudo ali era explicito. Havia uma privada e um chuveiro no cubículo, sem proteção alguma em volta. Ela levou dias para tomar um banho, envergonhada por eu poder vê-la nua, mas eu, como um bom cavalheiro, nunca espionei e fazia questão de ficar do lado oposto do quarto, de costas para ela, encarando firmemente a parede.
Eu não tinha vergonha de ficar nu na frente dela, apesar de achar que ela iria rir do meu corpo, eventualmente. Mas ela nunca fez isso, apesar de que nas primeiras vezes ela tampava o rosto, demonstrando respeito por mim, mas eu não me incomodei. Quando ela me viu finalmente nu, e eu já não possuía mais vergonha, ela não fez expressão alguma, analisou-me de cima a baixo, parecendo que contemplava meu corpo magro, de ombros largos e sem muitos grandes músculos, eu não ligava para aquilo.
Eu adoro o jeito que ela me olha, tão encantada e as vezes acanhada, sempre a pego me observando, principalmente no banho. Ela me analisa como se eu fosse uma obra de arte a ser estudada perfeitamente, sem nenhuma parte deixada de fora, e aquilo me enche, me enche de uma falsa esperança, de um falso conforto.
Estávamos ficando tão íntimos, de uma maneira bizarra, que, uma vez quando foi a vez dela tomar banho, ela disse – por meio de gestos – para que eu olhasse. Foi a primeira vez que sorri verdadeiramente em dias, eu havia ganhado a confiança dela, e isso me encheu de alegria.
Como todo homem, não posso negar que meus hormônios não me afetaram naquele momento. Senti meu corpo inteiro formigar e a minha mente fértil voar longe, mas logo me concentrei, e passei a admirá-la, com respeito e carinho, do modo que toda mulher deveria ser admirada por qualquer homem, mas não temos a capacidade suficiente para admitir isso. Somos uns canalhas, e sabemos disso.
Lembro-me perfeitamente da cena, sua roupa branca, como a minha, indo em direção ao chão, assim como seu conjunto intimo. Ela era mais bela do que eu imaginava, do que eu sonhava. Seu corpo era magro, esbelto. Os seios pequenos e empinados, as coxas finas e canelas mais finas ainda. Tudo era proporcional em seu corpo, desde seus ombros ossudos, as mãos delicadas com dedos longos ao vértice da feminilidade coberto por pelos escuros, assim como seus cabelos.
Acho que nunca me encantei tanto por uma mulher quanto me encantei por ela, a minha companheira muda, a melhor companheira que jamais pude ter.
Era loucura isso, beirava a insanidade, mas era a única coisa a qual eu me agarrava. Era uma benção e uma maldição ao mesmo tempo, aquilo impedia que eu enlouquecesse por completo, mas também me matava por dentro por vê-la naquela mesma situação sub-humana, eu queria tirá-la dali, queria que ela vivesse feliz, no lugar aonde pertencia, o lado de fora daquela armadilha.
Uma ira crescia em meu peito, tanto que, após alguns dias – ou talvez meses – eu não agüentava mais, nem ela. Queríamos um ao outro, e ainda queremos. É algo desesperado, tão desesperador que cheguei a retirar minha cama do chão e jogá-la, com pouco de força, contra o vidro. Não consegui causar nem ao menos um risco naquele maldito. Era impossível e o pior de tudo não foi o fato de não ter conseguido nada, foi ver o olhar de decepção no rosto dela, as lágrimas singelas começando a acumularem nas orbitas brilhantes. Aquilo partiu meu coração, quebrou minha alma, perdi até a sensibilidade nas pernas e fui de joelhos ao chão, cobrindo meu rosto derrotado, aonde lágrimas teimosas escorriam de meus olhos, lágrimas de tristeza, raiva e frustração. Porque eu não conseguia prestar para nada?
Foi ai que eu ouvi um pequeno batuque surdo no vidro, lembro que levantei o rosto e lá estava ela, ajoelhada na minha frente, as mãos espalmadas no vidro e um sorriso meigo nos lábios, apesar de estar com os olhos inchados, estava mais bela do que jamais havia visto.
A vi aproximar a boca do vidro, baforando no mesmo e escreveu uma mensagem ali, ao contrário para que eu pudesse ler.
“A culpa não é sua”
É claro que a culpa era minha, mas eu amoleci após ler aquilo e ver o pequeno coração que ela fez no vidro. Estávamos começando a ficar completamente apaixonados um pelo outro, de um certo modo. Minha vida virou a dela, tudo o que eu penso é nela, tudo o que vejo, realmente, é ela.
Passei a não me importar mais comigo, eu a tinha de certo modo, apenas não conseguia encostá-la, não conseguia senti-la, mas sentia seu amor sendo irradiado de todas as maneiras possíveis, sendo por um simples gesto ou pelo sorriso do qual ela me dava toda vez que acordava de suas cochiladas.
E cá estou eu novamente, observando-a como faço dia após dia. A única coisa que mudava nela, era seu corpo, que emagrecia e enfraquecia cada vez mais, e eu odiava aquilo, ela estava morrendo de dentro para fora e, de certo modo, aquilo me matava também.
Encostei minha testa no vidro, suspirando novamente, fechando os olhos brevemente. Minhas pálpebras gritavam por um descanso, assim como minha mente.
Logo meus pensamentos perderam os sentidos e adormeci.
Meus olhos arderam de raiva e meus pulsos latejavam pelo constante atrito com o vidro. Não, aquilo não poderia estar acontecendo.
Ela se debatia, lutava contra, mas era impossível, ela estava fraca e eram mais fortes que ela. Agarravam-na com força, sem dó nem pena, e eu podia ver claramente sua expressão de dor e grito. Aquilo me matava.
Eu gritava plenos pulmões e tentava quebrar o vidro com as mãos, tinha que salvá-la, mas, antes que pudesse fazer algo – ou tentar – a porta do quarto dela se abriu e a levaram dali. NÃO! NÃO! Para onde estão levando o meu amor? PARA ONDE?
A porta fechou com um banque surdo e as luzes se pagaram no local, me deixando na completa miséria, entre lágrimas e desespero.
Abri meus olhos rapidamente, sentindo que meu coração poderia saltar por minha boca a qualquer instante. Descolei minha testa do vidro e olhei para ela, que continuava dormindo.
Fora apenas um pesadelo causado pelo enorme cansaço de meu corpo e mente, apenas um pesadelo, mas um pesadelo tão doloroso que eu tremia só de pensar que ele poderia se tornar realidade.
Mas aquilo poderia acontecer eventualmente, uma hora ou outra iria sair dali, não nos deixariam morrer ali. E se planejassem levá-la? Assim como no sonho?
Levantei-me em um salto, começando a andar pelo quarto, puxando meus cabelos para trás. Meu coração estava disparado e minha mente fervia em idéias. Meus músculos estavam retraídos devido ao medo, ao enorme medo de perda. O que eu poderia fazer? Aquele vidro não cairia em nenhum momento, e eu não possuía nenhuma saída.
Mesmo se eu fugisse pela única porta que existia ali, como iria achar a dela? Como iria entrar? Não fazia idéia como era o exterior daquele local, havia acordado dentro do mesmo, sem respostas e muito menos explicações.
Tremia da cabeça aos pés, bolava planos em minha mente, todos falhos, todos com poucas chances de serem executados. Merda, o que eu faria? Deixaria que levassem o meu amor assim? Não poderia, não deixaria, não queria.
Chutei tudo o que estava em meu caminho, me sentia um completo inútil naquele momento. Não havia nada que eu pudesse fazer e minha raiva começava a crescer, espalhando por todos os membros do meu corpo, fazendo com que eu perdesse o controle.
Quebrei tudo o que podia, joguei minha cama para um lado, chutei tudo em meu caminho e bati fortemente no vidro, descontando minha ira no mesmo, quem sabe não conseguia rachá-lo?
Foi ai que a vi, em pé, me encarando preocupada, com as mãos apertando uma na outra, demonstrando nervosismo. Não consegui encará-la, continuava a bater no vidro como um descontrolado, eu estava descontrolado. Lágrimas começaram e encher meus olhos e escorriam pelos mesmos. Eu sentia meus pulsos latejarem, os nós dos meus dedos doíam fortemente, mas eu não parava, eu não conseguia parar.
Entre minhas batidas, eu ouvia batidas abafadas. Pensei que era as minhas, mas eram dela. Tomei coragem e a olhei, vendo que a mesma estava com o rosto contorcido em desespero, chorava descontroladamente, batendo no vidro, tentando chamar minha atenção.
Quando ela percebeu que eu a encarava de volta, parou, assim como eu, e me olhou, aproximando a boca do vidro e baforando ali, ela queria me dizer algo.
Senti meus joelhos fraquejarem, meu corpo todo amolecer e meu coração disparar feito um louco. Um sorriso enorme estava em meus lábios ao ler o singelo “Amo-te” no vidro.
Foi a minha vez de baforar no mesmo e escrever algo para ela.
“Eu também”
Ela sorriu, mas logo eu repeti o gesto, aquilo não era nada perto do que eu queria dizer para ela.
“Para sempre”
Não importava mais quantos dias nós ficaríamos presos ali, não importava mais que não conseguíamos nos tocar, nos amávamos, e isso era tudo que nós precisávamos para sobrevivermos aquele pequeno inferno.
Nota da autora: Segunda parte de Through the Glass já no ar. Espero que gostem! E obrigada por todos os comentários aqui, fiquei realmente contente com isso.