Minha visão foi ficando embaçada e eu senti as lágrimas molhando meu rosto. E dessa vez eu nem tentei segurá-las. Eu sentia meu coração acelerado espancar minhas costelas. Olhei para os seus olhos apreensivos esperando pela minha reação e me dei conta de que eu estivera preparada para aquilo. Eu sabia que aconteceria. Minha mente sabia, meu coração sabia, cada pedacinho resignado de mim absorvia aquela informação, porque eu sabia que era verdade. Ao mesmo tempo que cada célula do meu corpo gritava que era mentira e tentava negar, a parte racional de mim sabia que não havia o que negar.
Capítulo I - I remember what you wore on the first day
Flashback
Em Southsea nunca havia muita coisa nova. Southsea é um bairro de Portsmouth, Hampshire. É um bairro, mas somos quase como uma pequena cidade separada. Aqueles lugares onde a vida é tranquila, quase monótona.
Eu estava sentada no cais, descalça e com a barra da calça dobrada, apesar de meus pés não alcançarem a água.
O South Parade Pier era sem dúvidas meu lugar preferido no mundo. Eu costumava sentar por ali e desenhar. Eu desenhava o que me interessava, o que eu via de bonito, ou qualquer coisa na qual eu estivesse pensando. Na maioria das vezes eu acabava desenhando o mar, que era sempre a visão que eu tinha dali. Então eu tinha uma coleção generosa de desenhos do mar. As únicas diferenças entre eles é que alguns tinham uns barcos a mais ou a menos, mais ou menos sol, dependendo do dia. E depois de muitos anos de prática, é claro que alguns eram melhores que outros.
Naquele dia meu desenho estava ficando particularmente bonito. O sol estava se pondo de um dia ensolarado enquanto nuvens pretas carregadas vinham de Eastney. O céu estava em uma interessante mistura de amarelo rosado com cinza, meio a meio, o momento exato da transição. Formava uma imagem exótica.
Profundamente concentrada no meu desenho, demorei a perceber e, por fim, relutei em aceitar que eu tinha de ir embora. As nuvens chuvosas vindas do leste já tinham alcançado Portsmouth e trovejavam perigosamente sobre a minha cabeça. Coloquei os pés para cima, recolhi minha sandália, apertei meu caderno de desenhos cuidadosamente fechado contra o peito e corri.
Eu sabia que ia me molhar. Não fazia sentido correr, na verdade, eu chegaria encharcada de todo jeito, mas sabia que quanto mais rápido chegasse, menos meu pai se preocuparia. Por sorte, eu morava logo atrás do píer. O fundo da minha casa dava de frente para o mar.
Senti as grossas gotas de chuva me molharem enquanto eu atravessava a praia correndo, a areia molhada grudando nos meus pés e meu caderno protegido dentro da minha blusa. Eu respirava ofegante, afastando o cabelo molhado do rosto.
Cheguei aos fundos da minha casa, mas estava trancado. Corri para dar a volta no quarteirão e chegar pela frente. Passei pela casa de e reparei que a casa ao lado já tinha sido vendida. O cansaço quase me fez parar na casa dele, mas continuei correndo em direção à minha. Minha garganta estava seca quando parei no portão da casa. Eu me curvei, apoiando-me sobre os meus joelhos, respirando fundo. Irritante como é sempre assim com as longas distâncias. Quanto menos falta, mais difícil é. Respirei fundo e obriguei minhas pernas a continuarem até eu chegar à porta e abrí-la aliviada. Joguei-me para dentro e pisei no tapete, limpando os pés.
- ! – ouvi Phyllis exclamar, como esperado. – Meu Deus, olha o seu estado! Vem cá...
Eu ri da reação dela e murmurei "eu tô bem". Phyllis apareceu correndo com uma toalha seca, estendendo-a para mim. Ela tamborilou o tapete com o pé, indicando que eu limpasse meus pés antes de entrar e espalhar areia por tudo.
- Se seca e vai tomar um banho quente, tirar essa roupa molhada! – ralhou quase carinhosamente antes de voltar para a cozinha. Ela era minha segunda mãe.
Enrolei-me na toalha e só então reparei que tínhamos visitas. Meu pai estava sentado no sofá com mais três pessoas que olhavam para mim. Um homem de feições rígidas e cabelos pretos meio ralos, sentado com uma xícara em uma mão e a outra em volta da mulher ao seu lado. Ele vestia um terno bem arrumado e ela, um vestido elegante sem exageros. A mulher era magra, tinha cabelos louros acastanhados presos em um coque, seu rosto era delicado e ela sorria para mim. Deviam ter uns 40 e poucos anos. No sofá de costas para mim havia um garoto aparentemente da minha idade. Ele tinha cabelos e olhos , que chamaram minha atenção. Ele parecia bem cansado e entediado. O garoto vestia uma calça jeans e uma camiseta vermelha, e eu achei que ele ficava bem de vermelho.
- Esta é a . – meu pai se levantou e estendeu o braço para mim.
Eu fui até lá cumprimentá-los. Eles foram apresentados como Sean, Brianna e .
- Prazer em conhecê-los. – eu disse sorrindo e depois de apertar a mão de cada um deles. Eles me responderam educadamente e eu pedi licença. Subi as escadas correndo, tentando evitar molhar tudo. Entrei no meu quarto, tranquei a porta e deixei meu caderno em cima da cama. Sua capa dura havia protegido com eficiência meus desenhos. Corri para o banheiro.
Eu estava horrorosa. Molhada, descabelada e suja de areia. Não é a melhor maneira de ser apresentada para três pessoas perfeitamente impecáveis sentadas na sua sala de visitas. Fui tirando com dificuldade as roupas molhadas que grudavam no meu corpo, ansiosa pelo alívio da água quente. Eu estava com frio quando as gotas caíram sobre mim, aquecendo-me confortavelmente. Fiquei relaxando soba água quente até ouvir Phyllis anunciar que o jantar estava pronto. Só então me dei conta de que já estava lá há um bom tempo. Desliguei a água, apesar de não sentir muita vontade de sair de lá, e me enrolei na toalha, saindo da minha redoma de vapor quente do banheiro para o frio do meu quarto, onde as janelas ainda estavam abertas.
Corri para fechá-las. Por sorte estava chovendo na outra direção, então minha cama estava seca. Vesti uma roupa confortável, penteei meu cabelo e desci.
As visitas já tinham ido embora e meu pai estava sentado à mesa me esperando para jantar. Gostávamos de comer juntos nos finais de semana, quando ele não tinha que trabalhar.
- Você tem que prestar mais atenção à hora de voltar pra casa, . – Phyllis me reprovou enquanto colocava a comida na mesa. – Você sabe que as chances de você pegar um resfriado são enormes!
- Sei, Phyllis. Eu me distraí.
Eu já tava acostumada. Minha mãe era extremamente preocupada comigo, e, para falar a verdade, meio hipocondríaca. Meu pai era médico, então ela conhecia todas as doenças possíveis e achava que tudo podia levar a uma delas. E Phyllis tinha assumido o lugar da minha mãe em alguns pontos, então ela era meio super-protetora comigo.
Meu pai era oncologista, um dos médicos mais prestigiados de Hampshire. Ele já havia recebido propostas de trabalho longe dali, mas Portsmouth era sua cidade natal, e ele não gostava muito da vida agitada das cidades grandes, então preferia morar em um lugar menor. Ele acabava viajando bastante a trabalho para alguma pesquisa ou algum caso que a cidade não tinha estrutura para resolver, mas, no geral, ele preferia Southsea, onde tinha sua casa, seu consultório e atendia sempre aos mesmo clientes conhecidos.
- Quem eram os três que tavam aqui mais cedo? – perguntei enquanto nos servíamos.
- Sean é um antigo amigo meu, ele se mudou pra cá há pouco tempo. tem sua idade, vai estudar na sua escola.
- Legal. – sorri para não parecer indiferente ao que meu pai falava. – Estranho eles se mudarem agora... Depois do trimestre ter começado. Quero dizer, e mudar de escola agora, no último ano. – afinal, já tínhamos tido quase um mês de aula.
Meu pai deu de ombros.
- Sean teve seus motivos. Sobre , talvez você devesse ajudá-lo. Apresentá-lo aos seus amigos, coisas do tipo... Você sabe como é, cidade nova, não conhece ninguém...
- Claro, pai. – sorri de novo. – Sem problemas.
Eu tinha uma forte relação com meu pai. Ele era aquele tipo de pessoa de quem todo mundo - sem exceção - gosta, e é quase impossível não sentir vontae de tratá-lo bem. E ultimamente ele estava precisando muito de mim.
- Eles se mudaram pra a casa ao lado dos s. – meu pai comentou.
Sorri e assenti com a cabeça, enquanto tomava um gole do meu suco.
- Ele provavelmente vai ser dar bem com o .
Mudamos de assunto e continuamos o jantar. Eu gostava da companhia do meu pai, e gostava de tê-lo por perto quando não estava trabalhando.
Terminei de comer e fui para o meu quarto. Deitei-me na minha cama e peguei meu caderno. Abri o desenho que eu tinha feito mais cedo e, modéstia à parte, ele estava bom. Desenhar era provavelmente o que eu mais gostava de fazer. Cogitava investir e fazer isso da vida, mas não tinha certeza. Sempre fui muito indecisa. Eu tinha sorte de meus pais nunca terem sido aquele tipo de pais que querem que o filho faça direito ou medicina para ter um futuro garantido e ponto final. Eles me apoiavam desde que eu quisesse levar aquilo a sério. Estudar pintura em Paris era meu sonho, mas eu não sabia dizer se era um sonho que eu tentaria realizar ou se só era um daqueles que é legal de ter, de imaginar. Meus sonhos mudavam constantemente.
Acordei na manhã seguinte e me levantei da cama com muito esforço. Eu não costumava ter problemas para acordar, mas em dias frios era uma tortura.
O céu estava cinza, as nuvens chuvosas continuavam ameaçando e tudo lá fora ainda estava molhado pela chuva do dia anterior. Desci as escadas e tomei café com meu pai. Eu geralmente ia a pé para a escola. Até gostava de andar, o vento frio no rosto me acordava melhor que qualquer coisa, mas eu conhecia o clima instável e sabia que podia chover a qualquer momento, então aceitei a carona que meu pai me ofereceu.
O trajeto até a escola era curto, ainda mais de carro. Quando paramos em frente à Mayville High School, saí do carro e fui até o portão quase vazio. Normalmente as pessoas esperavam o sinal bater no portão, mas o clima chuvoso provavelmente tinha afugentado a maioria dos alunos. Entrei e atravessei o pátio em direção à minha sala. Abri a porta e entrei, sentindo o contraste forte entre o frio cortante lá fora e o calor da sala aquecida. Tirei meu cachecol, dirigindo-me ao fundo da sala, onde costumávamos nos sentar.
Charlie e estavam sentados conversando com um garoto virado de costas para mim. Charlie levantou a mão e acenou assim que me viu, e quando me aproximei ela disse:
- , esse é o . , essa é a .
- Eu sei. – sorri, reconhecendo-o quando ele se virou para mim.
- Vocês se conhecem? – ela perguntou, levemente surpresa. – Ele é amigo do .
- Nossos pais são amigos. – respondeu por mim.
- É o novo vizinho do , certo?
assentiu com a cabeça:
– Nossos pais também, nos conhecemos desde pequenos.
- Sério? – estranhei.
- É, ele até já veio me visitar antes... - comentou, como se fosse óbvio.
- Então a gente já se conhecia? – perguntei, um pouco sem graça por não me lembrar dele.
- Na verdade, não. Acho que ele veio naqueles dois verões que você passou na França. - Charlie ponderou.
- Ah! É o ? – perguntei, lembrando-me daquele verão. Os meninos tinham falado muito sobre um amigo do que ensaiara com eles.
- É! – me respondeu entusiasmado.
, e tocavam juntos, mas sempre faltava um e eles estavam à procura de um há anos e nunca encontravam ninguém bom. Lembro que quando voltei de Paris eles falaram sobre esse ótimo amigo do , mas ele não morava em Portsmouth. Eles tocaram juntos algumas vezes mais, e os meninos chegaram a visitá-lo uma vez, mas o fato do garoto morar em Winchester complicava as coisas. Eu só não sabia que era esse garoto. Então agora a banda podia finalmente dar certo.
Nessa hora, e chegaram correndo e jogaram as mochilas em cima das carteiras, tirando-me dos meus pensamentos. deu um beijo na minha bochecha, outro na de Charlie e murmurou ofegante:
- O professor tá entrando.
Eles sempre chegavam atrasados. E sempre dormiam durante a maior parte das aulas. Já eu podia dizer que era uma aluna relativamente boa. Assistia a todas as aulas, a maioria dos professores sabiam meu nome e eu só me rendia às vezes, durante uma aula chata de química ou física, para os desenhos nas últimas páginas do meu caderno.
Charlie, e moravam em uma direção, e eu, , e agora , na outra. Então no fim da aula nos despedimos dos três primeiros e seguimos, os três, conversando em direção à Clarence Road.
Capítulo II – "Hey, you know, this could be something"
passava todas as manhãs conosco, e apesar de ter começado meio tímido, ele foi se soltando e se sentindo mais à vontade perto de nós com o tempo. Principalmente perto de mim. Nós nos dávamos muito bem. Há muito tempo eu não me sentia assim. E não era nenhum segredo. Apesar de não ter acontecido nada entre nós, no fundo eu sabia que era diferente. Tentava ignorar, às vezes, mas sabia. Eu preferia não pensar sobre isso, porque não sentia necessidade de definir o que estava acontecendo. O fato é que eu me sentia bem com e estávamos ficando cada vez mais próximos, aos poucos.
Estávamos voltando da escola sozinhos um dia, tinha faltado à aula. Minha casa ficava antes da dele, mas ainda não tínhamos chegado. Conversávamos entretidos, como sempre, e teve de me parar quando chegamos à minha casa, porque eu ia passar direto.
- Chegamos, . – ele estendeu a mão sobre meu braço para me parar.
- Huh? – perguntei distraída.
- Sua casa. – ele apontou com a cabeça, tossiu e deu um sorrisinho divertido.
- Ah tá. – rolei os olhos pela minha desatenção e sorri. – Obrigada. Até amanhã, .
Corri pelo pequeno caminho que levava até a porta e subi os três degraus de uma vez. Foi aí que eu reparei que não tinha levado as minhas chaves. Olhei em todos os bolsos, apesar de saber que se eu não tinha guardado no da frente, não tinha guardado em lugar nenhum. Toquei a campainha automaticamente e me lembrei que não tinha ninguém em casa. Meu pai estava no consultório e ele tinha dado folga para Phyllis visitar uma sobrinha.
Pensei por um instante sobre o que fazer, então joguei a mochila nas costas de novo, pronta para correr atrás de .
- Ei, ! – chamei, virando-me.
Mas ele ainda não tinha ido embora. estava parado em frente ao portão e quando me viu voltando pareceu ficar meio sem saber o que fazer. Ele ficou sem graça, desajeitadamente se virou de costas e deu um passo rápido, como se quisesse fazer parecer que já estava andando. No entanto, um segundo depois, provavelmente percebendo que já era tarde demais, ele riu e se virou de novo para olhar para mim.
- Oi? – respondeu desconcentrado e eu sorri, porque ele parecia adorável quando estava envergonhado.
- Esqueci minha chave. – sorri e balancei a cabeça, como se pedisse desculpas pela minha memória ruim. – Tem como eu... – hesitei. – Sei lá, ir com você?
coçou a nuca.
- Não quero atrapalhar. - apressei-me em dizer.
- Tudo bem, é que eu não tô indo pra casa, na verdade... – ele pigarreou.
- Aonde você tá indo? – perguntei sem pensar, mas logo em seguida me dei conta do quanto tinha soado intrometida, e acrescentei logo: – Quer dizer, desculpa. Não precisa dizer.
- Tudo bem, eu tô indo pro centro.
- Ah! Eu posso ir com você?
- Claro.
- Tem certeza? – confirmei, sem saber se ele tinha aceitado por educacão.
- Claro. – repetiu sorrindo.
- Aí eu passo no consultório do meu pai e busco a chave. – não respondeu nada e quando eu voltei para o portão ele soltou um sorriso discreto.
A caminhada era meio longa, mas como nenhum de nós fazia o tipo atleta, fomos num ritmo tranquilo, rindo e conversando no caminho, e parou para comprar uma água.
- "Abbey Road" é ótimo, claro, não é isso que eu tô falando. - argumentei. – Mas eu admito que ouço muito mais "Please Please Me"... ? – parei de falar quando reparei que ele não estava ao meu lado.
Olhei por cima do ombro e vi que ele tinha parado um pouco atrás de mim e parecia distraído.
- ?
- Hm?
- Vamos entrar aqui? – fui até ele e reconheci o lugar. Vi a grande placa, que eu já conhecia, escrito "Kingston Cemetery".
- Pra que isso, ? Vamos embora... – puxei a mão dele para frente, sentindo-me desconfortável.
- Ah, , qual é. Vem! – ele me puxou de volta. – Acho que eu nunca entrei num cemitério.
- Bom, pode ficar tranquilo, não tá perdendo nada de interessante... – murmurei mais para mim mesma.
- , rapidinho? – ele insistiu, sorrindo.
Suspirei pesadamente e me deixei levar enquanto ele me puxava. Passamos pelas pilastras de pedra clara e fomos adentrando o cemitério. me puxava enquanto eu, ainda relutante, evitava olhar para todos os lados, arrependendo-me de tê-lo deixado me convencer. Quando finalmente respirei fundo e desviei os olhos do chão, ele sorriu para mim, divertido, o que me passou uma certa segurança. Mal sabia ele o quanto eu precisava daquela segurança.
E então virou onde eu estivera esperando intimamente que ele não virasse. Ele virou à direita logo depois de uma roseira e me puxou junto, e eu sabia exatamente aonde iríamos chegar. Parei de pensar por um segundo e, quando dei por mim, já era tarde. Mesmo assim, por instinto, enrijeci meus pés, fixando-os no chão e freando . Meu coracão pulsava forte. Até eu me espantei ao ver que as lágrimas já escorriam pelo meu rosto.
- Que foi... – ele se virou para mim e arregalou os olhos assim que me viu. – ? , o que foi? – perguntou meio desesperado.
Eu me sentia desamparada. pareceu desnorteado por alguns segundos torturantes, prolongando minha sensação de desproteção, e então, para meu alívio, ele me puxou para perto de si e me envolveu em seus braços. Eu sentia meu coracão apertado e chorava abertamente agora, enquanto ele apertava cada vez mais seus braços em volta de mim. E era exatamente daquilo que eu precisava. Quanto mais alto eu soluçava, com mais firmeza ele me segurava em seus braços, e quanto mais forte ele me abraçava mais eu queria chorar, o que parecia, pouco a pouco, amenizar a dor. fez menção de se afastar de mim, mas minhas mãos automaticamente seguraram sua camisa, mantendo-o perto.
- ? – ele murmurou docemente, afastando minimamente seu rosto para olhar para o meu. – O que aconteceu? - sua voz não passava de um sussuro e eu senti o sopro do seu hálito no meu rosto.
Aos poucos, fui afrouxando meus braços em volta de , permitindo que ele olhasse direito para mim. Ele puxou meu rosto um pouco para cima, de modo que meus olhos encontrassem os dele, e me encarou.
Abri a boca para responder e tive medo de que minha voz não saísse.
- Minha mãe morreu há três meses. – esclareci. Por mais que doesse, eu nunca fui uma pessoa de muita cerimônia para falar de coisas difíceis. Mas minha garganta queimou dizendo aquilo.
ainda estava parado olhando para mim, perplexo. Sequei meus olhos passando as mãos com força pelo meu rosto e apontei em direção ao túmulo. Ele olhou de relance para a direção que eu estava indicando. E então me abraçou de novo.
- Eu não fazia idéia, . – ele me apertou, soando extremamente culpado.
- Tudo bem... – murmurei.
- Não, não tá tudo bem. – insistiu, parecendo desconfortável. – Eu nunca teria te trazido aqui se eu soubesse, eu juro!
- Eu sei. – assenti com a cabeça. Não queria fazê-lo se sentir culpado, porque obviamente não era culpa dele. Eu ainda estava tentando normalizar o ritmo da minha respiração.
- Me desculpa, linda. – ele deu um beijo na minha testa e segurou firmemente minhas mãos, que tremiam.
Por maior que fosse o vazio que a morte da minha mãe tinha deixado em mim, eu tinha me acostumado a não falar sobre isso. Eu não falava, não chorava, não pensava nisso, eu simplesmente ignorava.
Meu pai sempre tinha sido uma figura tão forte na minha vida, tão admirado. Quando a minha mãe morreu, ele se perdeu completamente. Ele sofreu numa intensidade evidente, como eu nunca havia visto e nunca pensei que fosse vê-lo sofrer. E eu, na minha tentativa desesperada, ingênua, de cessar a dor dele, sufoquei a minha. Uma semana depois do acidente que matou minha mãe, eu reparei que se eu não fizesse alguma coisa logo, iria perder meu pai também. Então comecei a cuidar dele. Eu o fazia levantar todos os dias, ir trabalhar, seguir a vida. Quando vinham as lembranças, eu o distraía das deles e me prendia às minhas. Quando vinha o choro, eu consolava o dele e segurava o meu. E as coisas ficaram assim. Não que eu não tivesse com quem conversar. Charlie teria me escutado, me apoiado. teria me consolado. Até ou teriam me distraído, me ajudado de alguma forma, mas era mais fácil assim. Era difícil me abrir com meus amigos e chegar em casa e agir como se estivesse bem. Eu não me sentia capaz de fazer os dois papéis ao mesmo tempo, então optei pela primeira opção. Era mais fácil fingir o tempo inteiro. Então eu respirava fundo todas as manhãs antes de sair do meu quarto, punha um sorriso no rosto fingia que estava bem.
A verdade é que eu tive mais facilidade em aceitar do que as pessoas costumam ter. Surpreendendo até a mim mesma, eu fui madura, fui forte, e soube lidar com o que tinha acontecido. Acho que poucas pessoas sabem lidar com a morte. Poucas pessoas sabem lidar com a perda, em geral, porque é uma sensação devoradora de vazio somada a um sentimento insuportável de impotência. Mas eu soube desde o começo que não havia nada que eu pudesse fazer. Eu sentia falta da minha mãe, é claro, sempre sentiria e pensava nela constantemente. Mas sabia que devia aceitar, não podia me desgastar negando. Aquilo estava fora do meu alcance.
Nunca entendi de onde veio aquela resignação toda, mas eu era grata por isso e acho que nunca saberei descrever o quanto. Se eu não tivesse demonstrado essa maturidade toda, talvez não tivesse conseguido cuidar do meu pai.
Eu não tinha visitado o túmulo da minha mãe desde o enterro. Quando o vi, tudo que tinha estado guardado durante aquele tempo todo saiu. Mas foi bom. Saiu levando para fora tudo aquilo, tirando de mim o que não me fazia bem. Aqueles minutos nos braços de , de alguma forma, me compensaram pelo sofrimento comprimido e me limparam por dentro. Talvez fosse porque estivesse lá, talvez fosse só porque eu simplesmente precisava tirar aquilo de mim. Mas o fato é que melhorou. Como um machucado. Dói menos quando tem alguém para segurar a sua mão enquanto você passa o remédio, mesmo que você saiba que vai deixar cicatriz.
Quando dei por mim já estávamos quase no portão. pôs a mão na minha cintura e me empurrou, guiando-me para fora. Fui andando inconscientemente, totalmente perdida nos meus pensamentos. Eu estava melhor, e não sei se sabia disso. Acho que não, porque ele passou o resto do caminho em completo silêncio com os olhos fixos no chão. Às vezes ele olhava para mim relance, visivelmente sem graça. Estava com peso na consciência por ter me levado lá. Eu não queria que ele pensasse que eu estava brava ou qualquer coisa assim, então estendi minha mão timidamente e peguei a dele. Ele olhou cautelosamente para mim, então eu sorri. E sorriu de volta para mim, aliviado. Não conversamos mais, mas não foi ruim.
Fui fazendo o caminho do consultório do meu pai e ele me acompanhou. Quando passamos pelo portão e eu cheguei à conhecida porta branca que dizia "Dr. Oliver ", falei alguma coisa pela primeira vez em um tempo.
- Obrigada pela companhia, . Eu fico aqui. – abri a porta. – A não ser que você queira, hum, entrar? – ofereci em dúvida. Eu sabia que ele tinha planos, mas não queria perguntar de novo e parecer inconveniente.
- Na verdade... – ele coçou a nuca. – Eu também fico aqui.
Olhei para ele surpresa.
- No consultório? – franzi a testa. – Do meu pai?
- Uhum. – ele sorriu de lado, passou pela porta que eu mantinha aberta e a segurou para que eu passasse também.
- Oi, Tisha. – eu cumprimentei a secretária simpática do meu pai. – O que você tem? – indaguei, virando-me para ele de novo.
- Bronquite. – ele entortou a boca numa careta, e nessa hora meu pai abriu a porta da sua sala.
- ? – chamou, olhando para a prancheta em suas mãos. Ele levantou os olhos do papel e nos viu.
- ? - chamou surpreso. - O que você tá fazendo aqui? – ele foi até nós, apertou a mão de e me deu um beijo na testa.
- Eu esqueci a chave. – sorri. – Então eu vim com o pegar a sua.
Meu pai foi até o cabideiro e enfiou a mão no bolso do seu casaco. Ele voltou com as chaves e algumas notas.
- Pegue um táxi.
- Obrigada, pai. – dei um beijo no rosto dele. – Tchau, Tisha. Tchau, , melhoras com a bronquite. – sorri para ele e fui embora.
Peguei um táxi de volta como meu pai havia mandado e cheguei em casa em dez minutos. Abri a porta aliviada e fui arranjar alguma coisa para comer. As coisas ficavam bagunçadas quando Phyllis não estava lá. Éramos vergonhosamente dependentes dela.
Anoiteceu e eu fui dormir cedo, sentindo-me estranhamente cansada apesar de não ter feito muita coisa o dia todo. Chorar cansa. Meus olhos ardiam um pouco e minhas pálpebras, que tanto trabalharam por causa das lágrimas, pediam para se fechar. E eu permiti, enquanto me deitava, ainda pensando em . Pensando em seu sorriso, em seus braços à minha volta, em sua voz chamando meu nome, preocupado. Pensando em como sua chegada havia sido inesperada, mas como sua companhia fazia eu me sentir bem. Em algumas semanas ele tinha deixado de ser só o "amigo de um amigo" e passado a ocupar um espaço surpreendentemente grande na minha mente. E a rapidez com que aquilo tinha acontecido me assustva um pouco. Por mais ridículo que pareça – e não pense que eu não me senti patética - eu percebi que já me sentia ansiosa para ver novamente na manhã seguinte.
Capítulo III – You know that it all takes my breath away
Eu estava sentada no cais desenhando uma foto da minha mãe. Tinha uma cópia dela num porta-retrato no meu quarto, então eu tinha a imagem bem clara na minha mente: ela estava sentada na grama, os cabelos loiros compridos despenteados, rindo para a câmera, enquanto eu tentava ficar em pé nas mãos, no meu aniversário de cinco anos.
Eu gostava dos meus desenhos. Eram sempre em preto e branco, o que dava um efeito bonito, e por ser extremamente perfeccionista, eu geralmente gastava horas, às vezes dias, em cada desenho, realmente me dedicava ao máximo. Mas quando eu desenhava minha mãe era diferente. Eu sempre tinha a impressão de ter feito o nariz torto, os cabelos com menos vida ou os olhos com menos brilho do que eles tinham na verdade. Um fio de cabelo torto nela me frustrava enormemente. Sempre fui meticulosa com meus desenhos, mas nos dela eu era dez vezes mais exigente.
Arranquei a folha do caderno e amassei minha terceira tentativa. O nariz dela não era tão fino. Era perfeito. Peguei mais uma folha e comecei a desenhar de novo. Como já era a quarta vez, minhas mãos correram ágeis pelo papel enquanto eu refazia seus traços delicados, até que eu cheguei ao nariz de novo. Troquei as pernas de lado, arrumei a postura e me concentrei em traçar um nariz bonito dessa vez. Eu estava tão mergulhada no desenho que só reparei nele lá quando ele falou, agachado atrás de mim:
- É ela? – eu me assustei levemente. – Sua mãe? - perguntou, analisando o desenho por cima do meu ombro.
- Uhum. – respondi sem tirar os olhos do caderno. Eu não precisava olhar para saber quem era.
- Ela era bonita. – olhei para ele agora, e ele abriu um sorriso discreto. – E você desenha bem.
Ele se sentou ao meu lado e eu preferi continuar olhando para o desenho, mas pude ver que ele estava olhando para mim. Por alguns segundos, fui capaz de simplesmente ignorar sua presença por completo e agir como se estivesse sozinha. Nós dois mantínhamos completo silêncio, e eu estava com medo dele entrar naquele assunto. Por mais que me sentisse segura e à vontade perto de , eu não queria falar sobre a minha mãe de novo, principalmente depois do episódio do cemitério.
Tentei continuar concentrada no desenho, como se ele não estivesse lá e como se a presença dele não chamasse minha atenção, mas não havia porque me enganar: ele estava lá e a presença dele chamava excessivamente minha atenção, eu não podia ignorar isso. Soltei o caderno ao meu lado, coloquei as mãos para trás no chão e joguei meu peso sobre elas, mas não me voltei para . Continuei virada para a frente, encarando o mar. Para falar a verdade, eu ainda receava que ele mencionasse aquilo e eu desabasse novamente. Não sabia se conseguiria falar sobre minha mãe de novo depois de tão pouco tempo. Por algum motivo, ele parecia estar tão apreensivo quanto eu. Ouvi-o respirar fundo e então senti sua mão sobre a minha. Era de se esperar que meu coracão acelerasse, eu até pensei que fosse. Mas não. Porque não foi dessa forma. acariciou minha mão com seu polegar e eu não sei explicar, mas foi... amigável. Claramente amigável.
- Você tá melhor? – perguntou cautelosamente, com a voz suave.
Respirei fundo, agora sentindo meu coração golpear meu peito, e me preparei para encarar a dor que eu sabia que viria. Fechei os olhos, pronta para a onda de choro que estava por vir.
Mas ela não veio. A dor veio sozinha. E ela não me surpreendeu. Eu sabia que a dor viria, ela sempre vinha. Mas a ausência do choro me espantou. Parei por um segundo para apreciar a falta das lágrimas. Aquilo era inédito. Respirei fundo, sentindo – e quase apreciando – nada mais que a minha dor solitária. Ela não me incomodava. Pelo menos não mais que o normal, porque ela não era nenhum susto para mim. Falar sobre isso foi surpreendentemente mais fácil do que eu estivera esperando.
Exatamente como eu tinha imaginado na noite anterior, vê-lo foi bom. Olhei direito para pela primeira vez, quase sorrindo.
- Estou... – afirmei com a voz rouca. Pigarreei. – Estou. – repeti com mais firmeza.
Ele sorriu, parecendo aliviado, e só então eu reparei o quão perto de mim ele estava. Encarei seus olhos tão próximos dos meus. Meu coração voltou a martelar compulsivamente e eu literalmente perdi o fôlego, como se tivesse me esquecido de respirar. Minha visão ficou um pouco nublada e tudo à minha frente ficou meio ofuscado. Estreitei os olhos e pisquei, tentando enxergar direito de novo. A imagem do rosto dele a menos de um palmo do meu foi entrando em foco novamente e eu inalei com esforço. Surpreendi-me ao ver que ele claramente não estava tão nervoso quanto eu. Ele não parecia nem um pouco nervoso, para falar a verdade. Mil pensamentos passaram pela minha mente. Por que ele não parecia afetado como eu? Será que não estávamos tão próximos quanto eu pensava? Mas estávamos sim. E então virou levemente o rosto para um lado, como que para encaixá-lo melhor ao meu. Ele abriu discretamente a boca e a posicionou lentamente na altura da minha. Era como se ele fosse me beijar... E como eu queria que beijasse!
Mas ele não fez isso. Ao invés de me beijar, disse de repente:
- Eu tenho que ir. – e então se afastou por completo. – Minha mãe tá me esperando há um tempo.
Ele falava naturalmente, como se há um instante ele não estivesse estado prestes a encostar os lábios nos meus. Pisquei, confusa, e por um instante eu me perguntei, de novo, se não era eu que estava deixando minha imaginação tomar conta e vendo até demais. Mas não era, eu tinha certeza que não era. Então por que ele parecia nem ter reparado?!
- Hm... Você vai ficar aí? – perguntou já de pé, depois de ver que eu não ia responder. Virei o rosto para cima para olhar para ele e assenti com a cabeça.
- Vou. – respondi logo, torcendo para que ele não reparasse o efeito daquilo em mim. – Eu quero... terminar esse desenho. – indiquei o caderno com a cabeça.
- Tudo bem. – ele se abaixou e me deu um beijo rápido no rosto. – Até amanhã, então.
Sorri e assenti com a cabeça, mas ele provavelmente não viu. Quando me virei para trás, já estava de costas, andando a alguns metros de mim. Bufei, frustrada.
Perguntei-me se eu tinha algum efeito, por menor que fosse, naquele garoto. E me perguntei se ele sabia o efeito tremendo que tinha, claramente, em mim.
Capítulo IV – Everything you do and words you say
- Bom dia! – exclamou depois de dar um beijo estalado na minha bochecha. Eu as senti corarem levemente. Meu coração saiu desconfortavelmente do ritmo ao vê-lo. Sua pele estava fria e a ponta do seu nariz estava vermelha. Ele sorriu adoravelmente enquanto balançava os cabelos levemente molhados pela chuva fraca. O tempo ainda estava frio e chuvoso. Eu gostava assim. Nunca gostei muito de sol e calor.
Eu estava sentada em cima da mesa conversando com Charlie, éramos sempre as primeiras a chegar. também estava lá por algum motivo que nós não entendemos, porque ele estava com sono demais para se explicar direito.
Era uma aula extremamente chata de física e o Prof. Hutmann, um cara alto, magro, com cabelo ralo e óculos de armação azul berrante, parecia não ter a mínima idéia de que ninguém estava prestando atenção. Quanto mais ele tagarelava sobre novas e supernovas, mais absorta nos meus rabiscos eu me encontrava. Minha folha estava repleta de estrelinhas tortas, ""s e joguinhos da velha. Minha visão estava meio embaçada enquanto eu encarava o nada distraidamente. Quando comecei a escrever "" de novo – dessa vez com uma caligrafia diferente - eu ouvi "" ao fundo. Por um instante, achei que aquele som combinava tanto com o que eu estava escrevendo que nem passou pela minha cabeça que alguém estivesse realmente me chamando. Quem sabe se eu escrevesse "", ouviria o nome dele também...? Eu estava meio grogue. Um segundo depois, no entanto, uma bolinha de papel me atingiu no rosto e eu reparei que sim, tinha alguém me chamando, então me virei para trás.
, , e olhavam divertidos.
- A aula tá boa, ? – perguntou rindo. Depois continuou: – É o seguinte... Hoje a gente vai ensaiar lá em casa. Quer ir assistir?
Pisquei com força, afastando o sono. Consertei a postura, ajeitando-me na cadeira e pensei por um instante. Eu tinha planejado ir à praia. Então olhei para . Ele sorriu para mim, acabando imediatamente com minha dúvida.
- Claro, que horas?
- Às quatro.
- Ok. – sorri e olhei para de novo. Dessa vez ele não estava olhando e eu me senti patética. Desviei o olhar antes que alguém percebesse e me virei para a frente.
- Uau. – disse Charlie sorrindo para mim enquanto fechava o portão da sua casa. Admito que tinha passado algum tempo me arrumando, eu sempre pensava demais sobre que roupa usar, mas as reações de Charlie sempre eram exageradas.
Os meninos tinham ido direto para a casa do , então eu não teria a companhia de ou . E já que a casa de Charlie era no caminho, passei lá para irmos juntas. Eu estava ansiosa. Já tinha ouvido os meninos tocarem algumas vezes, mas nunca com , e eu queria muito vê-lo tocar. E eu sabia o quanto eles queriam que essa banda desse certo.
- , tá acontecendo alguma coisa entre você e o ? – Charlie me perguntou de repente, sorrindo sapeca. Eu ri.
- Não.
- Mas você gostaria que tivesse? – perguntou, ainda sorrindo. Eu abaixei a cabeça e ri sem graça.
- Não teria nada contra. – respondi prontamente e ela gargalhou. Senti minhas bochechas corarem. Mas era a Charlie, não tinha por que esconder nada dela.
Depois de uns cinco minutos, chegamos à casa do . Tocamos a campainha e esperamos um pouco até que , completamente eufórico, abriu a porta de madeira branca da casa que já conhecíamos bem. Ele sorria de orelha a orelha e jogou a chave pela grade.
- Entra aí. – gritou. – A gente já tá tocando há um tempão. Modéstia à parte, tá foda! – ele comentou convencido, parecendo animado.
desceu correndo as escadas que levavam ao porão e nós descemos atrás dele. A porta estava aberta e de longe dava para ouvir a gargalhada do .
se jogou para dentro e nós o seguimos em tempo de vê-lo correr para se posicionar apressadamente, e em um segundo eles começaram a tocar.
Começaram tocando The Used. Eles não tinham muitas músicas próprias, e as que tinham insistiam em manter em segredo, por mais que pedíssemos.
Foi legal ver tocando. Eu o via olhar longamente para mim em cada pausa entre as músicas e sorrir, mas fora isso ele estava completamente empenhado. Ele ficava com uma expressão fofa de concentração durante as músicas mais difíceis e durante as mais agitadas ele mexia a cabeça e pulava. Eu gostava mais quando ele estava concentrado. Estava completamente encantada. Não podia deixar de reparar como ele era lindo... E talentoso. Todos eles eram talentosos. Eu não sou exatamente expert em música, mas eles eram realmente bons, e não era difícil notar.
Ficaram tocando por muito tempo enquanto eu e Charlie apreciávamos, esparramadas nos puffes. Não sei no que ela estava prestando atenção, mas eu mal tirava os olhos de . E a cada momento ele prendia mais minha atenção. Eu me perguntei mais uma vez se ele tinha idéia do quanto suas palavras, seus gestos, sua presença e tudo que ele fazia me cativavam. Odiava reparar o quanto ele me afetava, odiava pensar no quão rápido ele tinha me conquistado. E odiava mais ainda ter de admitir que eu, infelizmente, não tinha feito o mesmo com ele.
Capítulo V – Maybe it's true
O primeiro horário tinha terminado e não tinha chegado ainda. Quando o professor do segundo horário entrou em sala e ele não apareceu, eu me convenci de que ele tinha faltado mesmo. Fiquei subitamente decepcionada. Suspirei, sentindo-me quase triste... Quase. Então parei por um momento, e a decepção foi repentinamente substituída por irritação. Sim, eu estava brava comigo. Estava irritada por ter ficado decepcionada para começo de história. Afinal, o que era aquilo?! Que motivo eu tinha para ficar triste porque ele faltou à aula? Não é como se eu dependesse dele. Vivi perfeitamente bem sem ele em sala durante anos, por que isso agora? Não entendi meus próprios sentimentos. Aquilo era inaceitável.
Ou não... Parei de pensar por um segundo e respirei fundo. Eu ainda não tinha certeza se a irritação tinha ido embora. Encarei a Prof. Windsore tagarelando sobre alguma besteira gramatical até mantermos contato visual, para não parecer perdida demais e ela acabar me fazendo alguma pergunta que eu com certeza não saberia responder. Mas meus pensamentos foram lentamente me puxando de volta... Eu não tinha porque mentir para mim mesma. tinha me conquistado como ninguém nunca havia feito. E qual era o problema nisso? Eu estava apaixonada por ele? E quem podia me culpar? Surpreendia-me até que Charlie e todas as outras garotas da sala não estivessem me acompanhando. Parei de pensar de novo por um segundo e dessa vez uma espécie de medo me atingiu. Eu estava apaixonada por ele?! Eu precisava da resposta, mas não sabia dá-la. Respirei fundo de novo, concentrando-me em ouvir a resposta que eu esperava que algum canto do meu subconsciente estivesse murmurando para mim. Mas ele não estava. Ele fazia o maior silêncio. Ou então ele estava, mas meus pensamentos eram altos demais para que eu pudesse ouvi-lo. Pensei rápido, antes que a irritação me alcançasse de novo. Quem me conhecia bem o bastante para saber?
Charlie estava sentada ao meu lado. Sussurrei o nome dela na mesma hora e ela se virou para mim.
- Quê? – ela cochichou, olhando para a frente também.
- Como você sabe quando você tá apaixonada? – perguntei baixinho, sem tirar os olhos do quadro. Ela virou a cabeça para mim imediatamente e me encarou por um momento, sem falar nada.
- , você tá apaixonada pelo ?! – ela sussurrou energicamente. Pensei que eu não fosse saber responder, já que eu já tinha me perguntado aquilo inúmeras vezes e a resposta não veio. Mas ouvindo a pergunta da boca dela foi diferente. E imediatamente eu soube, sem precisar pensar duas vezes, que a resposta era sim. Merda, eu estava apaixonada por ele.
Capítulo VI – And I am left with nothing
Acordei na manhã seguinte e alguma coisa parecia errada. Levantei a cabeça e olhei em volta, sonolenta. A cortina estava fechada, então eu não conseguia ver praticamente nada. Joguei minha mão para fora da coberta e tateei cegamente pelo criado-mudo até encontrar meu celular. Eram 09:37. Levantei num pulo e corri até a porta. Por que meu pai não tinha me acordado?! Desci correndo as escadas, tropeçando nos meus próprios pés a cada dois degraus. A luz do sol brilhava forte e entrava pelas janelas. Levei a mão ao rosto para cobri-lo, não gostava de acordar e me deparar com tanta luz. Virei à esquerda, entrei na cozinha e vi Phyllis em frente à cafeteira. Só então o cheiro forte do café invadiu minhas narinas. Meus sentidos ainda estavam lentos. Cambaleei até a bancada, tropeçando numa cadeira no caminho, chamando a atenção de Phyllis. Ela se virou para trás e me encarou surpresa.
- Cadê meu pai? – perguntei, correndo para a geladeira.
- Tá no consultório, mas...
- Porra! – eu a interrompi. – Desculpa. – acrescentei ao ver o olhar repreensivo que ela me lançou. – Como ele saiu e me deixou aqui?! – corri de volta até a sala, eu estava atrasadíssima.
- Mas, meu amor, por que você tá de pé? – Phyllis correu atrás de mim. – Hoje é sábado!
Parei, já no meio da escada, e olhei para ela por um segundo, sentindo a raiva crescer.
- Ah tá... Obrigada. – terminei de subir as escadas e fui para o meu quarto. Joguei-me na cama apesar de saber que não conseguiria dormir de novo. Nunca consigo voltar a dormir depois que eu acordo. Peguei meu celular de novo. 09:41. Fui até a janela, abri as cortinas e me joguei na cama novamente. Eu não estava com sono, mas estava com preguiça. Fiquei pensando sobre o que eu poderia inventar para fazer durante o resto do dia. Nenhum programa me ocorreu, e eu me conformei com o fato de que não teria nada para fazer. Folheei um pouco o livro que estava na minha mesa de cabeceira, depois peguei meu celular e fiquei jogando aquele joguinho estressante de encaixar as pedrinhas por muito tempo. Não sabia que tinha sido tanto tempo assim até Phyllis bater na porta e dizer que o almoço estava na mesa. Levantei-me da cama e desci. No caminho, meu celular vibrou, recebendo uma mensagem de . "Filme aqui em casa hoje, anima? xx". Então eu teria o que fazer, no fim das contas.
era quase meu vizinho. Visitar a casa dele era rotina. Ele era e sempre tinha sido, de todos, meu melhor amigo. Tranquei a porta da minha casa, joguei as chaves no bolso e subi a rua correndo, com medo de que chovesse. O céu estava meio nublado e chuvoso havia dias. Cheguei à casa de antes da chuva, para minha felicidade. Ele abriu a porta segundos depois que eu toquei a campainha e me deu espaço para entrar. Entrei, dei-lhe um beijo no rosto e joguei minhas chaves na cômoda ao lado da porta.
- O e o já tão lá em cima no meu quarto, pode ir subindo que eu vou fazer pipoca. – ele disse, voltando para a cozinha, e eu obedeci. Subi as escadas e segui o corredor até o quarto de . No caminho, eu pude distinguir a voz dos outros dois vindo do quarto. A princípio, nada chamou minha atenção, mas assim que ouvi meu nome parei de andar subitamente.
- E tá na cara que a também tá a fim dele. – ouvi comentar e parei, indignada, ao lado da porta para ouvir. Como assim, "na cara"?!
- Muito... – concordou . - se deu bem. – brincou.
- Verdade. - riu. – Se não fosse minha amiga eu pegava. – comentou, fazendo o outro gargalhar.
- Falou, fodão! - exclamou e eu decidi que estava na hora de entrar. Dei um passo para dentro do quarto e o vi atirando uma almofada em . Os dois pararam por um instante e se entreolharam, provavelmente se perguntando se eu tinha escutado. Quis deixar claro que não.
- Só vocês dois aqui? – perguntei, dirigindo-me até a cama onde estava deitado e me deitei ao seu lado. – E aí, do que vocês tão falando?
- Filmes. Qual será que a Charlie vai trazer? – respondeu tão pronta e convincentemente que se eu não estivesse estado ouvindo do lado de fora teria acreditado na hora.
- SAI DE CIMA! – urrou para .
- Sai você, porra! – respondeu indignado. - Cheguei aqui primeiro.
, , eu e divídiamos um sofá, enquanto Charlie estava esparramada em um e em outro. Eu ria da discussão deles quando vi Charlie e se entreolharem maliciosamente.
- Ei, . - chamou. – Vem pra cá, aí tá meio apertado, né...
- Não, obrigado. – respondeu ele meio emburrado, já se ajeitando ao lado de .
- ! – ralhou Charlie, rindo com . - Vem deitar comigo, então. Mas sai daí. – ela enfatizou as últimas duas palavras, lançando um olhar sugestivo para ele.
- Ah, agora sim! - riu, levantou-se e se jogou no sofá de Charlie. Até aí, todos já tínhamos entendido as intenções pouco discretas dos meus amigos. riu junto com todos, rolou os olhos, como quem diz que aquilo tudo é uma besteira, e abriu seu sorriso inacreditavelmente branco e charmoso. Ele não parecia tão pouco à vontade como eu. Ele estava encarando tudo bem, rindo da situação, como quem diz que era bobagem e que as brincadeiras deles não tinham fundamento. Mas... Era bobabem? Ou as brincadeiras deles tinham, de fato, fundamento?
Ele se ajeitou ao meu lado, mais confortável agora, apoiando levemente a cabeça sobre o meu ombro.
O filme era alguma história sem noção – e, segundo a capa, verdadeira - sobre uma casa que abrigava espíritos por antes haver sido uma funerária. Alguma coisa do tipo. Assisti apenas superficialmente. Um filme de terror tinha de ser realmente bom para prender minha atenção ou me assustar. No fim do filme, já estava sentado com as costas apoiadas no braço do sofá e eu estava entre as pernas dele, com a cabeça apoiada no seu peito. Ele bocejava preguiçosamente, e provavelmente não estava pensando nem um pouco na nova posição que ocupávamos. Mas eu estava. Tinha acompanhado cada movimento seu que me levava a me ajeitar melhor em cima dele. Eu mesma não fiz nada.
se levantou e acendeu a luz. Pisquei incomodada, meus olhos completamente acostumados ao escuro. Charlie estava encolhida no colo de , parecendo completamente aterrorizada, e cochilava no outro sofá. Ele não pareceu se incomodar com a luz até que Charlie, parecendo mais confortada pela claridade, levantou-se e jogou uma almofada na cara dele.
- Acorda, ! – ela exclamou, balançando seu ombro. – Talvez nós devêssemos, er... Ajudar o na cozinha! – ela apontou com a cabeça para o sofá em que eu e nos encontrávamos. A discrição em pessoa! se levantou imediatamente.
- É claro! – ele ficou de pé, e, quando fiz menção de imitá-los, Charlie se apressou em me interromper:
- Não! – ela me deu um empurrãozinho para que eu voltasse à minha posição. - Não precisa de tanta gente assim. Só quatro tá bom. – ela pegou os dois meninos pelas mãos e os guiou até a cozinha. riu encantadoramente de novo e continuou mascando seu chiclete perto do meu rosto. Eu estava irritada. Não era para ser assim. Eu me perugntei se ele ia tentar fazer alguma coisa. É claro que eu queria que ele tentasse, mas aquela situação planejada, quase mecânica, já me incomodava. Não era para ser assim, era para ser natural, era para ser porque ele queria.
Eu sentia seu hálito de chiclete de menta batendo no meu pescoço. Sentindo-me em uma situação desconfortavelmente forçada, eu me desvencilhei das pernas dele e me sentei, apoiando as costas no sofá. Ele me imitou.
- Hm, ... Por que você faltou ontem? – perguntei, desesperada para acabar com aquele silêncio.
- Febre. – ele respondeu indiferente. – Mas foi rápido, já passou.
- Ah tá. – respondi sem graça, arrependida por ter feito uma pergunta tão banal. O silêncio permaneceu por mais alguns segundos.
- Filme fraquinho. – ele comentou casualmente, ignorando a situação retardada em que nossos amigos retardados nos haviam colocado.
- Verdade...
- Gosta de terror? – ele se inclinou sobre a mesinha de centro e puxou o controle.
- Quando inteligente e bem feito, sim. – respondi e ele sorriu. Apesar de geralmente conseguirmos conversar sobre qualquer assunto, aquela conversa estava me irritando. - Mas esse aqui... Foi uma bela forma de desperdiçar uma tarde de sábado perfeitamente agradável. - disse, rindo.
- Verdade. Mas pelo menos a principal é gata. – ele brincou, tirando o filme do DVD. Eu abri a boca indignada e ele olhou para mim. – Que foi?
- Gata? Ela é super sem sal. – exclamei, quase ofendida, e ele gargalhou. – Seu gosto é esquisito...
- Talvez. – ele respondeu ainda sorrindo. Seu ombro estava encostado no meu e seu rosto virado para o meu a quase um palmo de distância. – Mas você não conhece o meu gosto direito.
- Verdade. – respondi, sem graça, sendo lentamente hipnotizada pelos seus olhos . Meu coração descompassou subitamente e eu senti minhas mãos começarem a suar. Não sei se foi ele ou eu, meu cérebro estava funcionando devagar, mas um segundo depois a distância entre nós parecia ter diminuído. Ele estava tão próximo de mim que eu podia observar sua íris e distinguir os tracinhos que formavam seus olhos tão . Eu poderia ter visto as imperfeições do rosto dele, se ele tivesse alguma. Mas ele não tinha. Ele era... perfeito? O ar saía com força da minha boca entreaberta, e, enquanto eu me concentrava em controlá-la, torci para que ela não estivesse chegando nele com a mesma força. Eu não tinha certeza se queria que ele soubesse o quanto mexia comigo.
sorriu para mim, num misto esquisito de alguma coisa como tristeza e ironia, ou qualquer outra coisa que eu não pude identificar. Mas eu não entendi. Ele abaixou a cabeça lentamente, pigarreou e tossiu. Então se levantou, desligou a televisão e, mais uma vez, como se absolutamente nada tivesse acontecido, comentou:
- Talvez nós devêssemos ajudar. – e apontou com a cabeça para a cozinha. Pisquei atordoada. Não entendi direito o que tinha acabado de acontecer, mas, de novo, eu não queria que ele soubesse. Então eu me levantei e sorri, fingindo que nada tinha acontecido, exatamente como ele fazia. Ou tentei, pelo menos.
Caminhei até a cozinha e ele veio atrás de mim. Não sei o quão boa atriz eu era. Boa, eu espero. Porque atrás da camada de indiferença que eu tentava demonstrar, eu estava completamente confusa. Percorrer os poucos metros até a cozinha levou uma eternidade. E durante aquela eternidade infernal eu me senti totalmente vazia. Uma vontade patética de chorar me arrebatou violentamente e eu me obriguei, com a mesma violência, a ignorá-la. Tentei me convencer de que não tinha por que chorar, então eu não iria chorar.
Capítulo VII – I'm banging on the door of an angel
Acho que não sou tão boa atriz quanto eu esperava. Não faço idéia de como estava meu aspecto facial quando eu entrei, mas tinha, claramente, alguma coisa errada. Porque assim que entramos na cozinha, os quatro se viraram para nós com caras esperançosas e sorrisinhos cheios de maldade. Para o meu desespero, no segundo em que todos os olhos pousaram em mim, as expressões mudaram. O sorriso malicioso de cada um deles murchou e um silêncio desagradável caiu sobre o cômodo. Meus dedos estavam dormentes e eu me sentia levemente tonta. Eu não sabia para onde olhar, o que falar ou o que fazer. Torci com todas as minhas forças para que nenhum deles falasse alguma coisa que pudesse me deixar ainda mais desconfortável. Por sorte – ou porque talvez minha expressão estivesse realmente horrível – meus amigos optaram pela rara discrição. Todos voltaram a olhar para a pia e mexer em alguma coisa aleatoriamente, e, apesar de nenhum deles ter sido muito bem sucedido em disfarçar, mentalmente eu agradeci pela tentativa.
- Finalmente! – Charlie quebrou o silêncio. – Vem, tá cheio de coisa pra fazer! – ela exclamou, disfarçando melhor que todos. Na verdade não tinha praticamente nada para fazer. Ela até inventou algumas coisas a mais, mas realmente não havia muita coisa. Enquanto ela ia repassando copos e dando ordens e instruções, a sensação de que estava tudo bem foi fluindo pelo meu corpo. Aos poucos, o clima tenso foi sumindo, e os meninos começaram a rir e brincar de novo. Apesar de tentar rir e reagir normalmente, eu me mantive em silêncio. Respondia quando falavam diretamente a mim, senão, eu me limitava a mexer a cabeça e rir quando via que todo mundo estava rindo.
Estávamos no quarto do . Eu, Charlie e dividíamos a cama, estava jogado em um pufe, , sentado no chão e , no computador. Eu não aguentava mais. Sentia-me extremamente incomodada e tudo que eu queria era ir para casa. Comecei a me levantar, mas no segundo em que eu abri a boca para anunciar que ia embora, se levantou e disse:
- Gente, é melhor eu ir. Meus pais vão sair daqui a pouco e eu tô sem chave.
Fechei a boca e voltei discretamente para minha posição anterior. Não queria correr o risco de ter de ir embora com ele. se despediu de todo mundo e agindo, como sempre, como se nada tivesse acontecido, ele deu um beijo demorado no meu rosto, causando em mim um efeito que eu não esperava. Eu fiquei com... raiva. Quase repulsa. Meu sangue borbulhou de indignação. Por que ele fazia aquilo?!
Esperei alguns minutos depois que ele foi embora porque não queria que parecesse que eu estava indo só porque tinha ido. Passou pela minha cabeça que talvez eu me preocupasse demais com o que parecia ou deixava de parecer. se ofereceu para me levar e eu aceitei, a companhia dele não tinha como não me alegrar.
Logo descobri que estava errada. A companhia de não me alegrou. Mas pelo menos não fez mal. Ele me levou até a porta da minha casa, deu um beijo no meu rosto e saiu correndo, já ameaçava chover. Suspirei e me arrastei pelos três degraus que levavam à porta. Procurei a chave em meu bolso, abri a porta e me joguei no sofá ao meu lado, batendo-a atrás de mim. Tentei relaxar, sem muito sucesso. Fiquei deitada por um tempo, até que eu me sentei e puxei a cortina. Eu podia ver a pontinha da casa de depois do fim da rua. Soltei a cortina e me concentrei em expulsá-lo dos meus pensamentos, deitando-me de novo. Respirei fundo, tentando esvaziar minha mente. E eu fui conseguindo, aos poucos, enquanto me concentrava em ouvir os rugidos ameaçadores dos trovões. Mas foi por pouco tempo: logo, ele invadiu minha mente, e a dúvida, a indignação e a raiva voltaram com tudo. Não aguentava mais não saber o que estava acontecendo.
Tomada por um impulso súbito, eu me levantei, abri a porta de novo e me joguei para fora. Desci as escadas pulando os degraus e passei pelo portão correndo, sem me dar ao trabalho de fechá-lo. Continuei correndo rua acima, sentindo as gotas da chuva engrossarem sobre mim. O céu escurecia rapidamente devido às enormes nuvens pretas que pairavam sobre a minha cabeça. A chuva caía cada vez mais intensa e em pouco tempo eu já estava ofegante e com frio. Juntei forças e continuei correndo, puxando o ar com força de volta para os meus pulmões. Só não parei e voltei por orgulho. Estava quase lá. Meu cabelo estava grudado no meu rosto e minha respiração estava curta e rápida. Cheguei em frente à casa dele e finalmente me permiti desacelerar. Comecei a engolir freneticamente, na tentativa de aliviar minha garganta completamente seca. Fui andando, cansada, até a porta e toquei a campainha com força desnecessária.
E então o bom senso me atingiu em cheio. O impulso que tinha me incentivado me abandonou em um piscar de olhos e eu já não sabia mais o que eu estava fazendo lá. Pensei em ir embora, mas não dava mais tempo: logo alguém viria abrir a porta. Olhei em volta para ver se tinha alguma árvore ou arbusto no jardim que fosse grande o bastante para me esconder. Mas desisti desse pensamento patético imediatamente. Rezei com todas as forças para que se alguém atendesse que fosse ele. Ou melhor ainda: para que ninguém atendesse!
Minhas preces foram ouvidas – infelizmente não a segunda parte delas. Logo em seguida, abriu a porta. Ele usava uma calça de moletom cinza, estava sem camisa e olhou para mim surpreso. Obriguei meus olhos a pousarem nos dele e nos músculos levemente demarcados da sua barriga, e, quando eu consegui, nós nos encaramos por um segundo no qual eu debati internamente se deveria falar alguma coisa ou não. Se eu realmente falasse tudo que estava pensando, ele pensaria que eu era louca. Mas imaginei que já estava correndo aquele risco de qualquer forma, e se eu não falasse seria ainda mais ridículo. Então a indignação ainda circulando pelas minhas veias decidiu por mim e eu respirei fundo.
- Olha aqui. - disse, e minha voz acabou saindo mais alta do que eu mesma esperava. - Eu não sei qual é o seu problema, - fui elevando a voz, tentando competir com a chuva que caía cada vez mais forte - mas eu quero que você o resolva logo. – falei como uma criança mimada e me encarou como se não estivesse entendendo. - Tudo bem se você não me quiser, tá? Sério. Um cara não vai gostar de mim só porque eu gosto dele, eu tenho plena consciência disso. Mas então eu espero que ele tenha pelo menos a decência de falar isso na minha cara ao invés de ficar nessa PALHAÇADA – além de gritar, agora eu falava extremamente rápido, meio em dúvida até se ele estava me entendendo – que você tá criando entre a gente. Então me faz um favor: pára de me fazer de retardada e deixa de ser ridíc...
Não cheguei a terminar a palavra.
Eu não esperava por aquilo. colocou uma mão de cada lado do meu rosto e me puxou para perto dele em um segundo. Imediatamente, o cheiro de seu perfume invadiu minhas narinas e se apossou dos meus pulmões, deixando-me momentaneamente tonta. Ele encostou a boca na minha e eu a abri prontamente. passou sua língua quente pela minha e segurou meu rosto frio mais firmemente com suas mãos cálidas, causando-me arrepios pela diferença térmica. Eu ainda estava atônita, minhas mãos ainda pendiam ao lado do meu corpo, e foi só quando ele emoldurou minha mandíbula com mais firmeza que eu acordei para o que estava acontecendo. Fechei meus olhos, atordoada, e levei minhas mãos à sua nuca, enquanto ele abaixou uma para a minha cintura, puxando-me para dentro e fechando a porta atrás de nós. me prensou contra a madeira, abaixou as duas mãos para o meu quadril e o apertou, fazendo-me suspirar e soltar o ar pesadamente. Segurei seus cabelos s macios e os puxei levemente, na tentativa de evitar que minhas mãos molhadas tremessem. Elas ainda formigavam. Elas e praticamente todo o resto do meu corpo. Eu sentia pequenas explosões por onde suas mãos passavam, enquanto ele mexia sua língua agilmente e eu, ainda zonza pelo seu cheiro entorpecente e suas mãos passeando pelas minhas cintura e costas, tentava acompanhá-lo.
continuou me apertando contra a porta e eu podia sentir claramente o contraste do seu corpo quente e seu abdômen descoberto apertados em mim e nas minhas roupas molhadas. O calor que emanava do seu corpo começava a me afetar, e, apesar do frio lascante que eu sentia há apenas alguns segundos, agora eu me sentia quente e abafada, quase sem fôlego. mordeu meu lábio inferior, fazendo-me soltar o ar com força, e voltou a me beijar. Ele começou a tirar as mãos da minha cintura e descê-las cada vez mais, até pousá-las na minha bunda.
Ele não sabia o quanto eu quis aquilo... Mas nem por isso precisava ser tão rápido.
Quando suas mãos começaram a abaixar e apertar minhas coxas com mais intenção, eu o parei. Desci uma das mãos até a dele e a puxei para cima de novo, e ele imediatamente me imitou e subiu com a outra também. Deixei que ele me beijasse por mais alguns segundos e então juntei toda a consciência que ainda havia em mim, coloquei a mão no seu peito e o empurrei levemente para trás.
parou no mesmo instante, encostou a testa na minha e pousou os olhos em mim. Respirei, tentando me recompor, e então eu prestei atenção nele.
me encarava apreensivo, como se esperasse pela minha reação. E ele ainda precisava de uma reação depois daquilo?! Sorri na hora e ele sorriu de volta para mim, seus dentes perfeitamente brancos e retos me hipnotizando, até que sua boca sumiu do meu campo de visão quando ele afundou o rosto no meu pescoço.
- Você entendeu tudo errado... – ele riu, rolou os olhos e me deu um selinho rápido. Semicerrei os olhos e balancei a cabeça. Eu não entendi exatamente como era que eu que tinha entendido errado e não ele que tinha se expressado errado. Mas parei de me preocupar em entender quando pegou minha mão e foi me guiando até a sala. Sim, ele segurou minha mão, e, pela primeira vez em algum tempo, meu coração palpitou quente e confortavelmente, bombeando uma estranha sensação de alívio para todos os membros do meu corpo. Eu não me sentia mais vazia.
Capítulo VIII – When I close my eyes and drift away
Domingo passou sem que eu falasse com ou ele comigo. Sábado à noite nós passamos horas juntos no sofá da casa dele, assistindo a programas bobos, falando besteiras, rindo um do outro. Foi bom. Bom como não era há muito tempo. A presença dele me dava uma paz que eu tinha esquecido como era. Quando já estava começando a ficar tarde demais, ele me acompanhou até minha casa. Primeiro ofereceu que eu dormisse lá, com a cara mais fofa do mundo, mas eu recusei. Então ele desceu comigo até a porta da minha casa e me beijou, olhando cautelosamente - de um jeito adorável - para a casa para conferir se meu pai não estava na janela. Ele esperou que eu entrasse e acenasse da janela para ir embora.
Não foi exatamente falta de coragem - nem excesso dela - mas no dia seguinte eu não quis procurá-lo. Até porque eu não saberia o que falar ou o que propor. A verdade é que eu não fazia idéia de como ele tinha encarado aquilo e de como seria no dia seguinte. Como ele me cumprimentaria e como ele me trataria na frente dos outros. E aquela dúvida me comprimia por dentro. Fiquei num dilema enorme: tomar coragem e falar com , correndo o risco de ele não ter intenção nenhuma de dar continuidade àquilo; ou ir pelo caminho mais seguro e ficar na minha esperando que ele desse o primeiro passo. Não que seja certo escolher o caminho mais fácil, sei que na maioria das vezes não é, mas é que ele sempre parece tão mais... fácil. Optei por esperar.
À tarde fui até o píer desenhar. Caminhei até a ponta do cais, descalcei minhas sandálias e coloquei os pés para baixo. A maré estava alta, então meus pés tocavam a água. Soltei o caderno ao meu lado, fechei os olhos por um segundo e respirei fundo. Eu me sentia levemente incomodada. Para falar a verdade, sempre fui assim. Meio ansiosa, meio afobada. Odiava não saber o que aconteceria a seguir, não suportava não entender precisamente o que estava acontecendo. Eu sentia a necessidade de saber exatamente o que eu deveria fazer em seguida. Gostava de ser prevenida, de estar sempre preparada. E a forma como agia me deixava constantemente desorientada, o que me fazia sentir frustrada e impaciente. Eu não sabia o que pensar sobre o que tinha acontecido. Mas o fato é que, independente de como pretendesse encarar aquilo, tinha acontecido. Aquilo que eu desejara por tanto tempo tinha acontecido.
Abri os olhos e peguei meu caderno com a intenção de espantar dos meus pensamentos. Pensei por um segundo em desenhá-lo, mas ignorei imediatamente a ideia, fingindo para mim mesma que aquilo não tinha nem passado pela minha cabeça. Encarei o mar, analisando-o, e, de repente, o mar não me parecia mais tão bonito. Não o bastante. Ri internamente, sentindo-me cada vez mais patética. Que bobeira era aquela agora?! O mar não era bonito o bastante? O mar tinha de ser bonito o bastante. Abri o caderno com violência, quase como se quisesse obrigar a mim mesma a achar o mar bonito. Passei o lápis com força pelo papel, começando os rabiscos brutamente. Depois de alguns minutos, parei e olhei para o desenho. Reparei no quanto ele estava feio e grosseiro, então arranquei a folha. Fechei os olhos e respirei fundo mais uma vez, na intenção de me recompor. Porém, imediatamente meus pensamentos se voltaram para . Soltei o caderno novamente e joguei meu corpo para trás, deitando-me sobre as tábuas de madeira do chão. Meus olhos se encheram de lágrimas de raiva. Era ridículo que eu o deixasse me afetar daquela maneira. Abri os olhos e não permiti que as lágrimas caíssem. Concentrei-me no azul do céu à minha frente para mantê-las no lugar. Mais uma vez, peguei o caderno e me sentei. Recomecei o desenho com toda a calma que havia em mim. Mas não houve uma vez naquele dia em que eu fechei os olhos ou me distraí por um segundo e ele não ocupou minha mente.
Capítulo IX – The way you roll your eyes, the way you taste
- ...e minha mãe não quer que a gente vá pra Califórnia! – exclamou Charlie exaltada e eu sorri. Drama Queen... – Desde quando a gente passa o Natal em Verwood? Eu quero ir pra Califórnia! Eu preciso de, oi, . – ela cumprimentou quando ele deu um beijo no rosto dela. – Eu preciso de sol! – continuou como se não tivesse havido interrupção.
Nessa hora eu parei de escutar o que Charlie estava tagarelando. Eu o tinha visto entrar na sala e, prendendo a respiração, discretamente o observei caminhar até nós. Não desviei os olhos de Charlie para não arriscar cruzar com o olhar dele. Minhas mãos formigaram e eu me senti desconfortavelmente ansiosa. Ele tinha passado pelos meninos e cumprimentado cada um deles. Então ele se aproximou, deu um beijo em Charlie, murmurou "oi" em resposta e se virou para mim. Olhei para ele e fiquei imóvel, esperando que fizesse o primeiro movimento. Quando ele começou a se aproximar de mim, eu sorri, com medo de parecer fria demais. Mas também tentei não sorrir muito grande, para que não parecesse que eu estava exageradamente feliz por vê-lo. Tão patética...
O rosto dele estava cada vez mais perto do meu, e eu não me atrevi a tentar adivinhar onde ele me beijaria – continuei imóvel. E então seus lábios gelados tocaram os meus. Todos os meus músculos relaxaram instantaneamente e quando meu cérebro absorveu a informação e me mandou retribuir, ele já tinha afastado sua boca. Charlie parou de falar abruptamente e olhou para nós, admirada.
- Vocês... Isso foi um selinho? – ela perguntou com os olhos quase brilhando, antes de gargalhar escandalosamente.
Sorri sem graça e revirei os olhos, enquanto passou o braço pela minha cintura e depositou um beijo no meu obro, fazendo meu corpo inteiro se sentir quente e confortável.
- ! HEY, , vem cá! Vocês dois também! – Charlie gritou, virando-se para os meninos, e os três olharam imediatamente. – VEM CÁ! – ela fez gestos exagerados com as mãos para que eles viessem. – VEM! – repetiu afobada. Eles vieram até nós se desviando das carteiras.
- Quê? – perguntou indiferente.
- TCHARAN! – Charlie, tonta, gritou teatralmente, apontando para nós dois.
- Que é que você... – a expressão confusa de se transformou instantaneamente em um sorriso enorme.
- Vocês dois? Sério? – sorriu.
- Finalmente... – riu e deu um soco fraco no braço de .
Os garotos pareciam encantados e olhavam para nós como se fôssemos ouro. nos olhava meio sério, como se nos analisasse. Sustentei seu olhar, esperando pelo "veredicto". Então ele sorriu para mim e balançou a cabeça, como se aprovasse. Rimos juntos enquanto os outros falavam sobre coisas aleatórias. Achei bonitinho. sempre foi assim, meio protetor, meio "pai".
Ficamos conversando por mais alguns minutos até que o professor entrou na sala e cada um se dirigiu ao seu lugar. se sentava mais à frente, de modo que eu podia olhar para ele a aula inteira se quisesse. E eu queria.
Por mais que eu quisesse não pensar nele e não criar expectativas, não pude evitar imaginar o que ele estava pensando toda vez que seu olhar cruzava com o meu ou que ele sorria, exibindo seus dentes perfeitos. Observei cada um de seus movimentos. Como seus olhos se apertavam quando sorria, como se aprumava na cadeira quando um professor falava alguma coisa que ele considerava interessante, como ele jogava a cabeça para trás quando não queria prestar atenção.
Lembrei-me da sensação da sua boca contra a minha, da sua voz no meu ouvido. Não pude deixar de tentar entendê-lo, entender o que ele queria, o que ele sentia, apesar das minhas tentativas de não fazê-lo. E, por mais que eu tentasse, nada do que ele fazia parecia se encaixar. Como peças soltas de diferentes quebra-cabeças, e por mais que eu tentasse, não conseguia encaixá-los numa imagem só.
Depois de alguns horários completamente focados em , eu cheguei a uma conclusão. De duas, uma: ou estava completamente indiferente quanto a mim; ou ele gostava de mim, mas não funcionava como as pessoas normais. Simples assim. E eu torcia fervorosamente para que fosse a segunda opção.
Capítulo X – You came into my life
A semana passou num piscar de olhos. Quando dei por mim já era quinta-feira à noite e eu estava me deitando. Sexta-feira, diferente do resto da semana, passou numa lentidão inacreditável. Talvez pelo fato de ter faltado à aula. Passei o dia torcendo e esperando que ele desse notícias, mas ele não deu. Por volta das sete da noite eu me rendi, subi correndo até meu quarto e peguei meu celular. "Faltou por quê? xx"
Esperei por um segundo naquela ansiedade patética de meninas apaixonadas. Não demorou muito e eu ouvi meu celular vibrar em cima da mesa. "Febre. Quero te ver. Quer fazer alguma coisa?"
E me peguei sorrindo abobada. "Quero. Que horas?" Sentei-me na cama, esperando pela resposta dele, já mais animada. "Passo aí em 15 minutos, pode ser?"
Levantei-me sorrindo e tirei meu moletom. Fui até meu armário, peguei uma calça jeans e troquei as calças do meu pijama por ela. Terminei de me arrumar e desci, encontrando meu pai na sala.
- Aonde você vai? – perguntou quando me viu pegando as chaves na tigela ao lado da porta.
- Dar uma volta.
- Com quem? – ele perguntou me olhando por cima do jornal.
- Com o .
Ele fez silêncio por um instante.
- Você tem saído muito com o . – não foi exatamente uma pergunta, mas eu respondi:
- Tenho.
- Vocês estão namorando?
Parei por um instante, virei-me de costas para ele e segurei o riso.
- Não. – estava prestes a abrir a porta, quando perguntei sem me virar para ele: – Você gosta dele, certo?
- Gosto. – ele murmurou sem muito entusiasmo. Franzi o cenho, confusa, e preferi ignorar. Ciúmes...
Saí e tranquei a porta.
já estava esperando por mim no portão. Ele estava de costas e se virou assim que fechei a porta atrás de mim. Abriu um sorriso enorme, lindo, e eu o acompanhei. Pulei os degraus, fui até ele e o abracei, afundando o rosto em seu pescoço. Seu cheiro era maravilhoso. Ele afastou o rosto e me deu um selinho. Eu ainda não tinha conseguido parar de sorrir.
- ? – perguntei depois de um tempo em silêncio.
- Hm?
- Por que... – eu contive o riso. – Por que nós estamos aqui?
parou e olhou em volta, distraído. Por um segundo pareceu não saber bem onde estava. Estávamos andando abraçados, ele tinha o braço em volta dos meus ombros. Era um parquinho escuro, completamente deserto àquela hora. A maioria das luzes das casas em volta estavam apagadas, e a maior iluminação que recebíamos era da lua. Um escorregador torto, uma gangorra de metal com a tinta descascada e um balanço estavam espalhados em volta de um pequeno jardim. O balanço rangia de modo fúnebre e fora isso tudo estava no mais completo silêncio. Então começou a rir e eu ri junto.
- Não sei. Eu não tinha nenhuma ideia do que a gente pudesse fazer, então fui andando sem ter muito pra onde ir. - ele fez uma pausa. – Desculpa não ter te levado a um lugar mais interessante. – finalizou dando de ombros, sorrindo.
- Sem problemas. – sorri de volta e me sentei no balanço, impedindo-o de continuar aquele rangido que me lembrava filmes de terror.
se sentou no chão à minha frente e levantou o rosto para mim. Ele ficou me encarando, e depois de alguns segundos eu senti minha pele corar. Ele riu e fitou minha boca, aproximando-se lentamente de mim. passou a mão pelos meus cabelos e puxou meu rosto para baixo. Abaixei a cabeça e me inclinei um pouco, até que ele me alcançasse. Ele me beijou, e, como se fosse a primeira vez, eu senti meu estômago dar voltas quando sua língua entrou em contato com a minha.
- Você está melhor? – estávamos deitados na areia no centro do parquinho, ele tinha um braço em volta da minha cintura por baixo do meu corpo e eu estava com a cabeça deitada em seu peito.
- Hum? – ele perguntou.
- Você tá melhor? – eu repeti rindo. – Você tá distraído hoje...
- Melhor do quê? – ele abaixou o rosto para mim, confuso.
- Da febre, . Você não tava com febre? – eu me apoiei nos cotovelos para poder olhá-lo melhor.
- Ah tá... – ele finalmente pareceu entender. – Tô, não era nada. Minha mãe que insistiu pra eu faltar, realmente não precisava... Frescura de mãe, você sabe como... – ele parou subitamente e se sentou. – Desculpa.
- Tudo bem.
- Desculpa, eu não devia ter feito esse comentário, eu sou um idiota.
- Não, não é. - eu disse firme. – , tudo bem. Você pode falar da sua mãe na minha frente, também não é assim. - sorri, a fim de fazer desaparecer a tensão visível na expressão dele.
- Eu não sei muito bem como agir em relação a isso. – admitiu, olhou para mim e depois abaixou o rosto, parecendo completamente desorientado.
Eu também não sabia o que falar. Ficamos alguns segundos em completo silêncio, eu só ouvia o som da minha própria respiração. Ele ainda me encarava com um olhar confuso, um misto de dúvida e culpa. E eu, pateticamente, ao vê-lo olhar daquele jeito para mim, quis consolá-lo, apesar de saber que ele estava falando aquilo exatamente porque queria me consolar e, na verdade, quem deveria precisar de consolo ali era mesmo eu.
- Eu também não... Mas, sabe, não precisa se preocupar. Eu descobri que... – pigarreei. – Eu descobri que eu cheguei num ponto em que falar disso não dói como antes. Eu ainda sinto falta dela, claro, sempre vou sentir. Mas falar da minha mãe agora não é como já foi, eu não tenho vontade de chorar. Eu tenho vontade de sorrir. Tudo que eu sinto é orgulho, saudade. Lembrar dela é pensar em uma coisa boa. É a melhor lembrança que eu tenho. – sorri e olhei para baixo, torcendo para que ele falasse de outra coisa, eu não queria deixá-lo desconfortável com aquele assunto. Mas ele não parecia tão desconfortável mais. colocou a mão no meu queixo e o puxou, levando meus olhos de encontro aos dele.
- Fico feliz por isso. – sorriu, a sinceridade transparecendo em seus olhos . – De verdade. – ele aproximou o rosto do meu de novo e depositou um selinho demorado na minha boca. E eu não pude deixar de sorrir contra seus lábios.
Capítulo XI – Can he tell that I can’t breathe?
Um pouco mais de um mês havia se passado desde o dia em que nós fomos ao parque. Eu estava deitada por cima de com o rosto apoiado no seu peito, no sofá da casa dele. Os pais de saíam quase todos os sábados à noite, frequentemente tinham algum jantar na casa de amigos ou festas da empresa. O fato é que quase sempre tínhamos a casa para nós e passávamos boa parte do tempo lá.
Ele alisava meus cabelos com uma mão, a outra apoiada na minha cintura. Eu passava distraidamente os canais da TV.
- ? – chamou.
- Hm?
- A gente tá namorando? – ele se apoiou nos cotovelos, suspendendo o tronco, olhando para mim com o cenho franzido. A pergunta me pegou desprevenida.
- Não sei. Isso é um pedido? – sorri divertida e ele gargalhou.
- Agora é. Você quer ser minha namorada? Oficialmente? – ele perguntou com aquela cara de criança que fez arte.
- Quero! – exclamei, rindo, e juntei nossos lábios.
Espalmei minhas mãos dos lados do corpo dele, no sofá, segurando-me sobre ele. Permaneci com a boca encostada na de até que parássemos de rir, mantendo meus lábios fechados sobre os dele. Ele virou levemente o rosto para o lado e passou a ponta do nariz pela minha bochecha delicadamente. Suspirei e olhei para ele. mantinha os olhos fechados com uma expressão esquisita.
- Você tá bem? – perguntei. Ele me olhava, mantendo o semblante que eu não sabia decifrar. – Você parece... perturbado. – completei na falta de uma palavra melhor.
A preocupação pareceu evaporar do seu rosto. Ele juntou as sobrancelhas e me encarou com a testa enrugada, como se dissesse que eu era louca, e negou com a cabeça.
- Perturbado... – sussurrou no meu ouvido enquanto me virava, ficando agora por cima de mim. – ... É a última coisa... – e mordeu o lóbulo da minha orelha. - ... Que eu estou... – foi descendo a boca, distribuindo beijos calmos e macios pela linha da minha mandíbula. - ... No momento. – sua boca alcançou meus lábios, finalmente, e eu senti sua língua em contato com a minha, como eu tanto queria. Seus lábios, antes delicados, agora me beijavam com firmeza, desejo.
Soltei o ar com força e inspirei novamente, precisando me esforçar para não me esquecer de respirar. Afastei minhas pernas um pouco, aproximando mais seu corpo do meu. abaixou as mãos da minha cintura para os meus quadris e os apertou fortemente. Entrelacei minha perna em volta dele e puxei seu cabelo com mais força.
El desceu as mãos, alisando meu corpo, e parou na minha coxa descoberta, acariciando-a. Senti todo o meu corpo estremecer. Ele foi, lenta e carinhosamente, subindo seus dedos pela minha coxa para dentro dos shorts.
Embora cada mínima parte do meu corpo protestasse, afastei minha boca da dele. Ficamos parados por um segundo, tentando normalizar nossas respirações. Então , persistindo, levou a boca ao meu pescoço, voltando a me beijar ali, o que dificultava imensamente meu raciocínio. Ele continuou a carícia na minha perna e os beijos lânguidos no meu colo, e eu tive de respirar fundo umas três vezes antes de ter a força necessária para resistir e empurrar seus ombros levemente para cima, num sinal para que parasse.
- Sossega, ... – sussurrei, rindo baixinho.
Ele relaxou o corpo, sem soltar completamente seu peso sobre mim, e afundou o rosto nos meus cabelos. Eu podia sentir seu peito subir e descer rapidamente contra o meu. Eu não estava diferente. Ele levantou o rosto, deitando o queixo sobre meu peito para me olhar melhor.
- Desculpa. – ele sussurrou. – Eu me... empolguei. – ele riu e eu o acompanhei.
- Sem problemas. – respondi. Sorri e afastei seu cabelo dos olhos. Ele voltou o rosto para a curva do meu pescoço. – Talvez eu devesse ir embora...
- ! – gemeu. – Você vai embora por causa disso? – levantou o rosto parecendo decepcionado. – Eu vou me comportar. – ele apertou os braços em volta de mim quando eu fiz menção de me levantar. – Juro. – acrescentou obedientemente.
- Claro que não! – ri do drama dele. – Não é isso. Já tá tarde. Você conhece meu pai, ele deve tá me esperando acordado, surtando. São quase três horas da manhã e eu não avisei se voltava ou quando voltava.
Consegui me levantar com um pouco de esforço e comecei a calçar meu tênis. Quando terminei, olhei para . Ele continuava largado no sofá, de barriga para baixo, sem desgrudar os olhos de mim.
- Me acompanha até a porta? – perguntei, estendendo a mão para ele.
- ... Fica. – ele pediu manhoso. Por pouco eu não corri até o sofá e me joguei em cima dele de novo. Suspirei e sorri.
- Amanhã eu volto, juro.
Ele se levantou se arrastando, enfiou o tênis desajeitadamente nos pés, pegou minha mão e foi me puxando. abriu a porta, segurou-a para mim e a fechou atrás de nós. Estava frio, e passou seus braços em volta de mim, abraçando-me de lado. Andamos em silêncio pela rua escura e vazia.
Quando chegamos ao portão, ele parou, virou-me de frente para si e me beijou suavemente. Seus lábios estavam gelados. Eu me separei lentamente dele e olhei para o seu rosto. Ele sorriu para mim e eu sorri de volta. Não precisávamos falar nada. Uma sensação agradável se espalhou por todo o meu corpo em uma fração de segundo, e meu coração transbordou felicidade. Aquilo me trouxe uma alegria enorme: pela primeira vez, a reação dele foi precisamente a mesma que a minha. Naquele momento, eu não era a menina insegura, encantada e nervosa perto do garoto bonito, confiante, que sabe o que faz. Naquele momento eu era só eu, e ele era só ele. Pude ver que se sentia exatamente como eu: indescritivelmente feliz.
Capítulo XII – I'm finally now believing
É engraçada a forma como o tempo passa quando estamos felizes. Cheguei a essa conclusão naquele dia. Para meu prestígio pessoal e mimo para meu ego, eu já podia chamar de "namorado" há duas semanas. As horas perto dele passavam em um piscar de olhos, e os minutos longe dele se arrastavam, mas, de alguma forma estranha, parecia que estávamos juntos há uma eternidade. Clichê. E meloso, eu sei, eu sei. Mas é verdade.
Eu tinha passado a manhã inteira deitada, fazendo absolutamente nada. Era de se esperar que fosse entediante, mas foi mais ainda do que eu imaginara. Era domingo e eu estava sozinha em casa com Phyllis, que vinha me mimar às vezes trazendo alguma coisa para comer ou perguntando se eu queria alguma coisa com todo o carinho. Cheguei à conclusão de que eu devia parecer realmente solitária.
tinha ido com seus pais no sábado a uma festa de família em Crawley, a mais ou menos uma hora de Southsea. Ele até tentou ficar, mas os pais fizeram questão de que ele fosse. O que significava que meu fim de semana seria monótono e inútil. Ele tinha dito que voltaria mais ou menos à hora do almoço, e tínhamos planos de ir à casa de depois que ele chegasse.
Meu pai estava em Londres, acompanhando algum cliente. Ele tinha me ligado avisando que chegaria às 11 horas. Eu ainda não tinha contado para ele sobre estar "namorando". Não que o termo em si fizesse tanta diferença assim, mas apesar do meu pai saber perfeitamente o que estava acontecendo, eu não tinha realmente contado para ele. Eu e meu pai sempre tivemos uma relação aberta e não tinha muito por que eu não contar, era só preguiça de entrar nesse assunto com ele, então pretendia fazê-lo quando ele chegasse. Não seria exatamente uma surpresa, ele sabia que estávamos juntos. E meu pai podia até ter um pouco de ciúmes de mim, às vezes, mas não era do tipo de pai que implicava demais com isso. Imaginei que ele fosse ficar satisfeito, afinal, ele conhecia e era amigo de seus pais.
Assim que meu pai chegou, fui falar com ele. Ouvi as chaves girarem na porta e o barulho dela se abrindo e se fechando em seguida. Desci as escadas correndo até a sala, sentindo um friozinho bobo na barriga. Senti meu celular vibrar no meu bolso quando cheguei ao último degrau. Era .
- Alô?
- Tá pronta? – ele perguntou.
- Tô. E você?
- Já cheguei. – ele respondeu.
- Você vem agora, então?
- Tô indo, linda.
- Ok. – respondi, derretida.
Fui até o hall e pude ver meu pai soltando a mala ao lado do sofá.
- Oi, pai!
Fui até ele o abracei, beijando sua bochecha.
- Oi, . – ele disse docemente, tirando o casaco em seguida.
- Como foi?
- Tudo bem. E por aqui?
- Tudo bem. - ele foi entrando e eu o segui.
- Ei, pai? – chamei, ainda atrás dele.
- Hm.
- Eu vou sair daqui a pouco. Casa do . Tudo bem? – ele fez que sim com a cabeça. Respirei fundo. – Ei, pai. – repeti.
- Sim?
- Eu preciso te contar uma coisa. – ele parou e olhou para mim enquanto pendurava seu casaco no cabideiro.
- O quê?
- Eu tô namorando. – ele ficou em silêncio por um segundo e eu hesitei. Meu pai esfregou o rosto com força, como se estivesse com sono, e respirou fundo. Ele parecia cansado.
- ? – ele finalmente me olhou. Assenti com a cabeça, esperando pela reação dele. Voltei a encará-lo e ele abriu um sorriso pequeno que eu não soube decifrar. Parecia um pouco um sorriso por educação. – Imaginei.
- Ele acabou de voltar e vai passar aqui, nós vamos passar a tarde na casa do . – informei só por não saber mais o que falar.
- Voltar de onde? – meu pai perguntou bocejando, enquanto pegava uma xícara de café. A essa hora já tínhamos alcançado a cozinha.
- Crawley, uma festa de família, ou coisa assim.
- Hum. – ele comentou, indiferente. – Tudo bem. Se é isso que você quer... Obrigado por me contar. – disse sério e então sorriu, em seguida, para aliviar o clima, eu acho.
"Se é isso que você quer"? Fiquei em silêncio por uns segundos, encarando meu pai, tentando entender o que ele quis dizer com aquilo. Ele não sabia muito bem o que dizer. Nem eu.
- Ok. – nessa hora eu senti meu bolso vibrar, e soube que estava na porta. – Eu já vou indo, então. - dei mais um beijo no meu pai e corri para fora, onde meu namorado me esperava.
- Vamos? – ele perguntou depois de me dar um selinho e um abraço apertado. – já ligou enchendo o saco pra gente ir logo.
- Cara, que demora! – exclamou assim que abriu a porta para nós.
- Cara, que desespero! – respondeu numa ótima imitação da voz do amigo. Este deu espaço para que passássemos e nos dirigimos imediatamente para a sala, onde todos já estavam esparramados no sofá.
- Agora que a margarida resolveu aparecer... – olhou feio para . – Eu vou falar logo. Então... – ele pigarreou e olhou em volta para ver nossa reação. não resistia a um suspense. – Eu consegui um show pra gente. – ele sorriu. – Sexta-feira.
- Wow, , que máximo! – fui a primeira a responder, realmente feliz por eles. E depois desse comentário eu não pude ouvir mais nenhum, porque todos começaram a falar juntos. A voz estridente de Charlie era a que mais chamava atenção, tagarelando sem parar enquanto ela distribuía beijos pelo rosto de .
- Hey, amor, ouviu? – eu sussurrei para , que ainda não tinha dito nada, apertando seu braço de leve. Ele estava contemplando a frente com um olhar perdido, mas pareceu acordar do transe e olhou para mim, sorrindo.
- Ouvi. – ele respondeu baixinho e depositou um beijo de leve no meu nariz. Eu sorri.
- Tá tudo bem? – perguntei insegura. Ele parecia preocupado.
- Tudo ótimo. – ele respondeu com a voz animada. Levei a mão até seu rosto e passei o dedo pela sua testa, tentando tirar a ruga de preocupação que estava ali. Ele riu e relaxou o rosto. Agora sim, parecia certo, e seu sorriso parecia sincero. Eu, sorrindo, selei nossos lábios e o beijei com vontade. Pateticamente apaixonada, admito.
Capítulo XIII - I can’t live without you
Talvez às vezes eu conte um pouco menos do que deveria, então parece que tudo acontece muito rápido e minha narração deixa a desejar. Mas a verdade é se eu fosse contar cada uma das vezes que os olhares de me fizeram derreter, sua voz me fez sorrir, suas mãos fizeram minha pele queimar ou seus beijos fizeram meu coração falhar, essa história seria um romance chato e meloso completamente baseado em uma garota inacreditavelmente apaixonada, se é que não o é ainda. E não é essa minha intenção.
Os meninos ensaiaram compulsivamente durante todos os dias da semana, e sexta-feira chegou num piscar de olhos. Todos os dias eles estavam visivelmente cansados, mas nada que a empolgação estampada em seus rostos não disfarçasse depois de alguns segundos.
Eles foram fazer a passagem de som à tarde, e nós não fomos assistir porque não era permitido, mas os acompanhamos até lá. Era uma casa de festas onde sempre tocava aquele tipo de banda boa, mas que ninguém conhece. Charlie, provavelmentente a mais empolgada de nós, deu um beijo carinhoso e um abraço apertado em cada um antes de nos despedirmos deles, como se enviássemos nossos garotos para a guerra. Desejando sorte com sorrisos de orelha a orelha, voltamos para a minha casa, onde nos arrumamos para voltar algumas horas depois. Meu pai, sempre prestativo, aproveitou que estava de folga e nos levou de carro.
Entramos no lugar e um frio na barriga me atingiu, como se fosse eu própria a ter de me apresentar na frente de todas aquelas pessoas. O lugar não estava mais cheio do que de costume, mas também não estava vazio. Ainda eram dez horas e a apresentação estava prevista para por volta das onze. Charlie, como a boa amiga afobada que é, queria muito ver os meninos antes que eles entrassem no palco. Não que eu não quisesse, mas ela estava mais eufórica. Então mandei uma mensagem para avisando que tínhamos chegado, mas ele não respondeu. Imaginei que a gente não tivesse permissão para entrar no camarim, ou coisa do tipo. Eu e Charlie então nos dirigimos ao segundo andar e nos sentamos em uma mesa de onde tínhamos uma boa visão do palco. Quando faltavam poucos minutos para as onze, me mandou uma mensagem. "Vira a direita depois do bar do primeiro andar e entra na porta sem placa.".
Chamei Charlie e fomos até lá. Não foi difícil achar. Tinha um cara grande, de preto, parado à porta, mas ele nos observou passar tranquilamente, sem nem perguntar nada. Não era um lugar grande e famoso, então imagino que o serviço de segurança também não era lá o mais rigoroso. Seguimos por um corredor longo e estreito que tinha duas portas, uma aberta e outra fechada. Depois de alguns passos eu já podia ouvir a voz de vindo da porta aberta.
- O que você quer que eu faça?! – ele cochichava exasperado.
- Nada. – ouvi a voz de e depois de uns segundos em silêncio, ele bufou. – Foi mal, cara. Tô com medo pra caralho.
Andei a passos largos até a porta e coloquei a cabeça para dentro, encarando-os, e reparei que não estava lá. Charlie já foi entrando.
- Medo de quê? – ela perguntou séria. Os meninos se entreolharam e demoraram um pouco para responder.
- Do não apresentar. – soltou e olhou feio para ele.
- Quê?! – perguntei com a voz estridente. – Por que ele faria isso?!
- Ele tá passando mal. – explicou, a voz carregada de tensão. – Muito mal. – completou.
- Onde ele tá? – perguntei.
- Na sala ao lado. Mas talvez você não devesse ir, . – acrescentou, soando preocupado quando fiz menção de me virar.
- Talvez ele não devesse estar sozinho, . – respondi, tentando não ser grossa. Estava, em parte, irritada com os meninos, por não fazerem companhia a ele.
- Não, , é sério. Ele passou muito mal e pediu pra ficar sozinho.
- Fora que o humor dele também não tá dos melhores. – comentou baixo. Olhei para os meus amigos e todos eles me encaravam. Eu simplesmente dei a volta e saí da sala.
Por pior que estivesse, companhia não mata ninguém, e não era possível que me ver fosse irritá-lo tanto. Ainda assim, abri a porta cautelosamente e olhei para dentro. A luz estava apagada e a única claridade vinha de um abajur em um canto do cômodo. estava estirado num sofá do lado oposto, com o braço tampando os olhos.
- ? – chamei apreensiva. – Posso entrar?
Não ouvi nada além de um murmúrio vindo dele, então entrei, torcendo para que o murmúrio tivesse sido um sim. Caminhei até o sofá e me sentei ao lado dele. Ele levantou sua mão, dando espaço para mim, e a depositou sobre o meu colo.
- ? – repeti com a voz macia e ele finalmente tirou o braço do rosto e olhou para mim. me encarou com olhos duros e cansados. – Tá tudo bem? O que você tem?
Ele fechou os olhos e abriu a boca numa tentativa de me responder, mas sua voz falhou. Ele pigarreou e tentou de novo:
- Tô bem. – disse com a voz surpreendentemente rouca. Ele pigarreou mais uma vez e tossiu energicamente.
- Tem certeza? Você parece... Meio... Mal. – disse pausadamente, escolhendo as palavras com cuidado. Sabia que ele não gostaria de ser tratado como vítima, como quem precisa de cuidados. Mas, ainda assim, a parte protetora de mim implorava para consolá-lo, perguntar se ele estava bem e se tinha certeza de que conseguiria fazer o show.
- Já disse que tô bem. – e como se lesse meus pensamentos, acrescentou: - Eu vou fazer o show. Eu consigo. E eu não faria isso com eles. – ele foi desnecessariamente áspero. Sua voz estava muito rouca, era quase um sussurro e eu tinha de me esforçar para entender. Respirei fundo, tentando não me ofender nem ofendê-lo.
- Eu sei disso. – respondi indiferente. Não queria que ele pensasse ser capaz de me interpretar tão bem assim. Apesar de ele ser. – Só vim te desejar boa sorte. – menti.
fez silêncio, provavelmente sabendo que ele tinha razão e que tinha acertado qual havia sido minha intenção inicial. Mas, ao invés de dar razão a ele, eu me curvei, depositei um beijo delicado na sua testa e me levantei, caminhando em direção à porta. Abri-a e parei, com o corpo já quase todo fora da sala. Eu tinha tentado resistir, mas tive um momento de fraqueza e não me segurei. Respirei fundo e disse carinhosamente:
- Você sabe que se não quiser, não precisa, não sabe? – fiz silêncio, torcendo por um sorriso, mas já esperando uma grosseria. Não recebi nenhum dos dois, e depois de alguns segundos tive de aceitar que não ele não me responderia.
Saí do quarto e voltei para a sala ao lado, onde Charlie me esperava porque já estava na hora de voltarmos.
Fizemos o caminho de volta em silêncio. A gente voltou para o segundo andar, onde a mesma mesa, por sorte, ainda estava vazia. Charlie devia ter sentido a minha tensão e se encarregou de pedir bebidas para nós enquanto eu voltava ao meu lugar, ainda em silêncio.
E sentada ali, ao lado de Charlie, encarando o palco vazio que esperava pelos meus amigos, eu tive medo de que não aparecesse. Não só pelos meninos, que estavam tão empolgados, não pela plateia, que estava ali esperando, mas por ele. Porque eu sabia como queria aquilo tanto quanto os outros e como ele se sentiria culpado se não fosse. Mas por outro lado, eu sabia que o que quer que ele estivesse sentindo, não era frescura. Porque era orgulhoso. Forte e orgulhoso, e ele não se permitiria assumir uma imagem tão fraca a não ser que fosse sério. Se estava mal a ponto de deixar transparecer, ele estava realmente mal.
Esperamos ansiosamente pelo início do show e os minutos se arrastavam. É assim quando estamos nervosos, eu sei.
Finalmente as luzes se apagaram e o foco se voltou para o palco. Com o coração quase pulando pela boca, observei atentamente os meninos entrarem no palco. Um a um. veio primeiro, e então . Soltei o ar com força.
Então apareceu, andando bem devagar e vacilante, seguido bem de perto por , que o acompanhava protetoramente. parecia pronto para segurá-lo se fosse preciso. Ainda assim, fazia-o com discrição. Tanta discrição que se eu também não estivesse com medo de que caísse, provavelmente não perceberia.
O show começou e tudo parecia correr normalmente, com a exceção de que não pulava com a energia e ânimo de sempre e não estava cantando, deixando os outros dois sozinhos nessa parte. Fatos que, de novo, uma pessoa que não os conhecesse em seu estado normal não perceberia.
- Pedimos desculpas pelo nosso , que não tá se sentindo muito bem. – anunciou depois de algumas músicas. levantou a mão e abaixou a cabeça sorrindo - extremamente charmoso, ainda que sem querer - como se pedisse desculpas discretamente. Ouvi algumas meninas gritando para ele um pouco atrás de nós.
- Bando de vadias com fogo no rabo. – resmunguei.
- É, , talvez a gente tenha que se acostumar a ter amigos famosos. – Charlie gargalhou. – Namorado famoso, no seu caso. – ela corrigiu.
- Isso se o não me largar até lá... – eu ri junto e Charlie disse, irônica:
- Ah, claro. E por que ele faria isso? – ela revirou os olhos para mim.
- Talvez porque ele é lindo, gente boa, inteligente, talentoso? Quando for famoso, então! – eu ri, mas parei ao ver a cara séria de Charlie para mim. – Que foi?
- Você tá brincando, né? – ela perguntou, ríspida. Eu quis dizer que sim só para ela parar de me olhar daquele jeito, mas fui sincera.
- Não.
- Ah, , pára! – ela me deu um tapa no braço. – Você sabe que o é louco por você. Não termina com você nem por decreto. – ela levou o canudinho à boca e voltou a olhar para o palco.
Sorri. Não tinha feito nenhum daqueles comentários de charminho, com a intenção estúpida de ouvir um consolo. Eu tinha dito aquilo porque era como eu me sentia. Mas as palavras de Charlie me aliviaram imensamente. E a maravilha da realidade que eu estava vivendo me atingiu - com certo atraso, devo dizer. Acho que pela primeira vez caiu a ficha de que , aquele cara incrível, aquele garoto que me deixou encantada desde a primeira vez que falou comigo, aquele que me teve completamente ao primeiro toque, era meu namorado. Meu namorado, repeti mentalmente. E sem que eu pudesse controlar, um sorriso da mais pura felicidade tomou conta do meu rosto.
Capítulo XIV – I don’t wanna leave you, but, baby, I need to
Liguei para sábado. Diversas vezes. Perdi a conta de quantas. Passei o dia inteiro tentando falar com ele pelo celular. Eu me sentia uma namorada patética e desesperada. À noite, ignorando qualquer resquício de orgulho que ainda houvesse em mim, liguei para sua casa. Sua mãe atendeu, e, incrivelmente envergonhada e torcendo para que ela não tivesse visto nenhuma das cinquenta ligações no celular do filho, eu perguntei por ele. A Sra. me disse que ele passara a tarde inteira dormindo. Fez sentido para mim e, mesmo que não tivesse feito, eu não me atreveria a fazer mais nada. Agradeci educadamente e, antes que eu desligasse, ela me disse que ele com certeza retornaria minhas incontáveis ligações quando acordasse e checasse o celular. Mais sem graça ainda e completamente sem saber o que dizer, agradeci novamente e desliguei. Desisti, indo para a cama, adormecendo lado a lado com meu desespero.
Acordei na manhã seguinte com o som distante do meu celular. Eu devia estar dormindo pesado, pois ouvia a música como se estivesse a quilômetros de distância. Hesitei por um tempo naquele intervalo entre o sono e a consciência. Quando me dei conta de que alguém estava me ligando, rolei até a outra ponta da cama e puxei o celular. O visor me informava que era . Respirei fundo antes de atender, e depois de desligar, agradeci mentalmente por tê-lo feito. Eu não tinha idéia de quanta energia aquela conversa me custaria.
- Oi. – murmurei.
- Ah, oi. – ele respondeu rápido. Sua voz ainda estava rouca, mas bem pouco em comparação ao dia do show. – Não pensei que você fosse atender. – ele continuou, com um tom que eu não soube interpretar. Beirava decepção. A única coisa que passou pela minha cabeça foi "então por que ligou?", mas continuei em silêncio. Ele me imitou, e por alguns segundos continuei ouvindo nada além de sua respiração pesada do outro lado da linha.
- Você tá melhor? – perguntei enfim.
- Tô. Acordei melhor. Dormi ontem o dia inteiro.
- Eu tentei te ligar. – comentei, mais por não saber o que dizer do que qualquer outra coisa.
- É, eu vi... – ele riu fraco. suspirou. – Quer vir aqui?
Fiz silêncio de novo. Qualquer outro dia eu teria aceitado sem pestanejar. Mas eu fiz silêncio. Aquela conversa superficial, informal, parecia completamente inadequada a nós dois. Ele não estava bem comigo, eu sabia. Não gostava de admitir, mas sabia.
- Tem certeza? – perguntei insegura. Eu tinha a forte impressão de que ele não queria que eu aceitasse.
- Claro, . – ele soou confuso. E, subitamente, sua voz amoleceu: - Por que não? – disse a última frase de forma tão doce que eu quase pude vê-lo sorrindo.
- Ok. – eu me dei por vencida. – De tarde eu passo aí.
- Ok. – ele repetiu, e, pela terceira vez em alguns minutos, o silêncio se instalou de novo. Não tínhamos mais o que falar. Eu não sabia se ele estava esperando que eu dissesse alguma coisa carinhosa, porque eu, no fundo, esperava que ele dissesse.
- Então tá, beijo. – eu me cansei de esperar e tomei a iniciativa, queria desligar logo.
- Beijo. – ele respondeu e eu desliguei imediatamente sem esperar para ouvir se ele diria mais alguma coisa.
Sentei-me na cama e esfreguei o rosto. Respirei fundo, sentindo-me nervosa. Olhei o celular. 12:17 - 18/11/2010. Dezoito de novembro. Não que eu tivesse esquecido, de forma alguma. Meu cérebro, como que por vontade própria, estivera contando os dias, ainda que eu tivesse tentado ignorar toda vez que meus pensamentos seguiam naquela direção. Seis meses da morte da minha mãe.
Pensei em ligar para e dizer que eu não ia; não queria lidar com mais drama naquele dia. Mas também não queria lidar com mais uma conversa fria e desconfortável. E, por outro lado, naquele momento, um abraço de me parecia o paraíso.
Seis meses parece bastante tempo. E é, dependendo do seu contexto. Mas, naquele momento, a morte da minha mãe me pareceu mais recente que muita coisa à minha volta. Apesar de a aceitação ter chegado mais cedo a mim do que costuma chegar à maioria das pessoas que perdem alguém – e eu era infinitamente grata por isso, não me entenda mal – esse é o tipo de dor que não te deixa nunca. Ela se ameniza com tempo, e começa a se transformar em orgulho e lembranças boas. Mas ela não vai embora.
Joguei os pés para fora da cama, saí do quarto e desci. Encontrei Phyllis terminando de arrumar a mesa, como eu esperava. Entrei na cozinha e fui andando atrás dela, tentando espiar dentro do forno.
- Yorkshire pudding. – ela respondeu minha pergunta silenciosa. – Sei que vocês dois gostam. E eu fiz sobremesa. – sorriu animada. Ela estava tentando nos mimar, e eu apreciei a intenção.
- Parece ótimo. – fui até Phyllis sorrindo e lhe dei um beijo na bochecha. – Vou chamar meu pai.
Meu pai não costumava almoçar muito em casa, mesmo nos fins de semana ele passava muito tempo no consultório. Não naquele dia. De novo, não que algum de nós tivesse mencionado, mas todos sabíamos o motivo de ele estar em casa àquela hora, naquele dia. Almoçamos sem conversar muito, mas eu estava feliz por ele estar lá, gostava de sua companhia. Até porque, independente da data nostálgica, eu não estava em clima de conversa. Não conseguia parar de pensar em e me sentir ansiosa. Eu não queria ir até lá. Torci para que os minutos passassem mais lentamente, mas eles não fizeram nada por mim. Meu pai perguntou o motivo do meu silêncio e eu não soube responder. Quando anunciei que iria à casa de depois do almoço, ele simplesmente limpou a boca no guardanapo, pediu licença e se levantou da mesa, voltando ao escritório. Doeu. Eu não precisava de mais frieza naquele momento.
Subi, escovei meus dentes, arrumei minha cama, troquei de roupa e fiz outras diversas coisas aleatórias esperando o tempo passar. Quando desci para ir à casa de já eram quase três horas da tarde.
Subi a rua a passos lentos, incapaz de prestar atenção a qualquer detalhe à minha volta. Toquei a campainha e esperei, sentindo-me estranhamente aérea a tudo. Então a porta se abriu e me encarou. Não deve ter passado de alguns segundos, mas para mim foi uma pausa longa e desagradável. Até que abriu os braços para mim. Assim que vi o gesto, eu me projetei para frente e bati contra o corpo dele, talvez com força demais. Abracei-o forte, afundando meu rosto em seu pescoço. E, contrariando meu medo, ele me abraçou de volta com igual força e sinceridade, e durante aquele tempo – não faço ideia de quanto tempo foi – tudo pareceu ficar certo de novo. beijou o topo da minha cabeça carinhosamente e me puxou para dentro, fechando a porta atrás de nós.
- Tem alguém aqui? – perguntei e ele apenas fez que não com a cabeça, ainda me encarando em silêncio. Eu não sabia definir o que tinha no olhar dele. – Que foi?
- Nada. – ele murmurou e sorriu discretamente de lado, tirando meu fôlego por um segundo.
- Como você tá se sentindo? Precisa que...
- Shh... – ele me interrompeu suavemente, levando o dedo indicador à boca em sinal de silêncio.
Então ele me beijou. Sentir seus lábios contra os meus foi quase como uma anestesia para o meu coração apertado. foi me empurrando até o sofá, onde ele se sentou e me colocou gentilmente sobre seu colo, só então partindo o beijo. Encaramo-nos por um segundo e sorrimos. Ele esticou o pescoço tentando alcançar minha boca, e eu abaixei o rosto até o dele, beijando-o novamente. mexia a língua calmamente, e, que eu me lembre, foi uma das primeiras vezes que meu coração acelerado não me tirou atenção demais a ponto de eu não saber o que fazer. Eu não me senti perdida, era como se eu soubesse exatamente o que ele ia fazer. Senti como se nos encaixássemos, ou qualquer outra bobagem dessa, o tipo no qual eu não costumo acreditar.
começou a tirar a blusa de frio que eu vestia, empurrando-a pelos meus braços até que caísse no chão. E enquanto ela deslizava pelos meus braços, levava aquela angústia junto, despindo-me daquela sensação horrorosa que estivera me acompanhando. O que importava agora era ali comigo. Ele acariciava meus quadris de forma carinhosa, porém firme. Meus braços estavam fechados ao redor de seu pescoço, eu sentia o sangue pulsar e cada membro do meu corpo formigar. Ele colocou as mãos dentro da minha blusa, acariciando minha barriga gentilmente, fazendo-me ofegar.
Meu corpo agia como se não precisasse das minhas ordens. fazia menção de puxar minha blusa para cima, mas não puxou. Eu não sabia se ele estava em dúvida ou se estava me provocando. No entanto, no momento em que eu normalmente o teria parado – mas não o fiz – parou sozinho.
Encarei-o, mas depois de um segundo ele abaixou o olhar. Eu sentia sua respiração bater suavemente no meu ombro e ainda estava no colo dele, uma perna de cada lado do seu corpo. Acariciei seu cabelo, mas ele mexeu um pouco a cabeça para o lado, dando a entender que não queria, então parei. suspirou e levou as mãos aos meus quadris, levantando-me gentilmente, ajudando-me para que eu passasse para o sofá ao seu lado.
Esperei, pacientemente, o que viria a seguir. O clima tinha mudado instantaneamente e aquela tensão desagradável se instalara de novo. Senti tudo dentro de mim pesar, como se meus órgãos tivessem sido subitamente mergulhados num balde e agora pingassem, como um pano encharcado. Todo o alívio e segurança que há pouco haviam me sustentado, agora me haviam abandonado.
- Estava torcendo pra você não me atender hoje. – disse encarando as mãos sobre o colo.
- Você... não queria me ver? – perguntei apreensiva. Que coisa horrível de se dizer.
- Não é bem isso. – meu estômago embrulhou. "Não é bem isso"? Eu estivera esperando um "claro que queria!" dito com mais segurança. – Eu estive tentando adiar. Não queria te ver pra não precisar fazer isso.
- Fazer o quê, ? – questionei lentamente, sentindo minha respiração falhar minimamente. Minhas mãos deram indícios de que iam tremer, então as fechei em punhos com força.
Esperei a resposta por alguns segundos enquanto encarava o chão. Eu quis repetir a pergunta, mas me faltava coragem. E eu sabia que, no fundo, eu não queria saber a resposta. Mas aqueles segundos estavam passando tão lentamente que eu não pude esperar, então me pronunciei de novo.
- Fazer o quê, ? – minha voz estava trêmula apesar do meu esforço para soar forte.
- Eu acho que a gente devia terminar. – ele disse rápido e soltou o ar com força, como se fosse um alívio soltar logo aquelas palavras.
Eu tinha ouvido perfeitamente, mas minha mente demorou a absorver o sentido da frase. Fiquei imóvel, tentando raciocinar por um segundo. Parei de fazer força e senti minhas mãos tremerem. Senti algo dentro de mim afundar. Eu não entendia a reação do meu corpo. Antes que eu pudesse perceber, meus olhos já estavam completamente cheios de lágrimas e me exigiu cada restinho de força que ainda havia em mim para segurá-las. Por quê?! Era o que passava pela minha cabeça. Eu queria saber por quê, estava esperando que ele explicasse, mas não o fez. Não queria parecer a garota obcecada que fica implorando por um motivo, mas eu precisava de um. Eu merecia um. Meu coração partido falou mais alto:
- Por quê? – perguntei, olhando para , esperando que ele me correspondesse ao menos o olhar.
- Porque... – hesitou, ainda encarando o chão. Meu sangue ferveu.
- Olha na minha cara. – pedi. Até eu me assustei com a firmeza da minha voz. obedeceu imediatamente, e por um segundo eu desejei que não tivesse obedecido. Busquei a resposta em seus olhos, procurei por qualquer pista ou característica que eu reconhecesse neles, mas eles estavam vazios.
- Eu não sei. – ele admitiu. – Desculpa, . – meus ouvidos queimaram. "Desculpa"? Aquilo era humilhante. – Eu não sei te falar o porquê, só sei que não é mais a mesma coisa.
- O que não é?
- As coisas mudaram, ...
- Que coisas? O que mudou, ? – perguntei incrédula.
- O que eu sinto. – dessa vez ele respondeu prontamente, e, mais uma vez, eu desejei que não tivesse. Se suas palavras anteriores me machucaram, essas me derrubaram completamente. De novo, precisei trabalhar duro para que meu cérebro aceitasse o que eu ouvira. O que ele sente mudou, eu disse para mim mesma. E para isso eu não tinha resposta. Não tinha pergunta, não tinha reação.
Levantei-me lentamente, apesar de minhas pernas parecerem não querer obedecer. Respirei fundo, embora meus pulmões parecessem ter pedido uma pausa. Com esforço, dobrei os joelhos e me abaixei, pegando minha blusa do chão. Meus músculos pareciam ter virado concreto. Tudo que eu queria era ir embora. Não queria vê-lo ou ter de sentir seus olhos sobre mim. Queria conseguir aceitar o que acabara de acontecer, porque independente de como você se sente, a realidade é a realidade e ponto. Eu queria dormir, apagar aquela realidade. Implorei ao meu corpo que continuasse caminhando firme, pedi que minhas forças não me abandonassem. Não ali.
Dei alguns passos em direção à porta, tentando me manter focada e, por um segundo, acreditando que eu conseguiria simplesmente sair dali sem precisar sentir meu coração esmagado mais uma vez. Doce ilusão. me interrompeu:
- Quer que eu te acompanhe? – ele perguntou sem jeito, quando eu abri a porta. Eu parei, incrédula, e olhei para ele.
- Você pretende mudar de ideia no caminho? – ri com sarcasmo, voltando-me para a porta de novo. Ele abaixou os olhos e permaneceu em silêncio. – É, imaginei.
Fechei a porta atrás de mim com força. O estrondo dela foi como um baque de realidade, me atingindo em cheio e sem dó.
Capítulo XV – Silence is a scary sound
Eu não fazia idéia de que horas eram, mas já estava escuro. Estava deitada na minha cama desde que chegara em casa. Eu estava afundada em completo silêncio a não ser pelo som dos ponteiros do relógio. Sem nenhuma distração, nenhum incômodo. Nem mesmo meus pensamentos eu ouvia mais. Eles estavam vazios. Porque eu não sabia o que pensar, não sabia o que sentir, não sabia o que fazer. Eu estava vazia.
A porta se abriu e um feixe de luz entrou, iluminando minimamente o quarto – o bastante para me fazer levar as mãos aos olhos. Pude ver a figura do meu pai meio na sombra, meio na luz. Eu só via parte de seu rosto.
- Tá tudo bem? – ele perguntou. Pude ver sua expressão naquele momento em que a pessoa se pergunta se deve se preocupar ou não.
Permaneci em silêncio. Não, não estava tudo bem. No entanto, essa resposta soaria melodramática demais. Fora que eu não estava muito em clima de conversa.
- O que aconteceu? – ele mudou a pergunta.
Pigarreei antes de responder, minha garganta estava travada.
- O terminou comigo.
Por uma fração de segundo o escuro me pregou uma peça, fazendo parecer que meu pai ia sorrir, mas quando eu me esforcei para ver de novo, ele parecia sério. Ele ficou quieto por alguns segundos.
- Você quer... conversar sobre isso?
- Não.
- O jantar tá na mesa.
- Não tô com fome.
Meu pai suspirou, provavelmente em dúvida se deveria me mandar descer para comer ou me deixar em paz. Acho que ele não sabia muito bem o que fazer, então por fim decidiu me deixar, decisão pela qual eu fiquei extremamente grata, tudo que eu precisava naquele momento era ficar sozinha.
O que eu precisava, na verdade, era ficar com . Mas isso não era uma opção.
Fechei meus olhos, torcendo para que eu adormecesse logo. Eu só queria dormir, esquecer aquela noite, dar fim àquela sensação horrível.
E eu consegui. Dormir, quero dizer, não esquecer aquela noite, e muito menos dar fim àquela sensação horrível. Mas eu adormeci, dando descanso ao meu corpo. Descanso físico, pelo menos, porque por dentro eu estava um lixo, e isso noite de sono nenhuma, por melhor que fosse, poderia sarar.
Na manhã seguinte foi como se eu estivesse no piloto automático. Acordei, levantei e me vesti sem ao menos pensar no que estava fazendo. Andei sem prestar atenção em nada à minha volta, e quando dei por mim já estava chegando ao colégio. Reparei que estava com frio. Virei minha atenção, pela primeira vez no dia, para alguma coisa além dos meus próprios pensamentos. Estava frio, nublado e escuro. O tempo parecia estar no mesmo humor que eu.
Andei pelos corredores desejando que eu não tivesse de estar ali. Ou desejando, melhor ainda, que fugir fosse adiantar alguma coisa. Porque eu sabia que não ia. E era só por isso que eu estava ali. Entrei na minha sala e direcionei o olhar imediatamente para o fundo para ver se ele estava lá. Só vi Charlie e sentados em cima de uma mesa e encostado a ela, então continuei me arrastando até lá. Aproximei-me sem falar nada e joguei a mochila na cadeira.
- Porra, o que aconteceu com você? – perguntou rindo assim que me viu.
- ! – Charlie reclamou. – O mínimo de delicadeza! O que você tem? – perguntou, virando-se para mim e, quando eu demorei a responder, ela acrescentou: - , você andou chorando?
Respirei fundo antes de levantar os olhos para encará-los e responder.
- O terminou comigo.
Pude ver a expressão no rosto dos três mudar instantaneamente. , que estava mais perto, imediatamente passou o braço pela minha cintura e me apertou contra seu peito. fez sua típica cara de confuso e murmurou alguma coisa, abobado. Charlie levou as mãos à boca, parecendo genuinamente surpresa e pulou da cadeira para me abraçar pelo outro lado.
- Por quê? O que aconteceu? – ela levou as mãos ao meu rosto, fazendo-me olhar para ela.
Soltei-me dos braços de , que continuou com uma mão nas minhas costas. veio por trás de mim e levou as mãos aos meus ombros, massageando-os levemente. Não pude deixar de sorrir ao ver os três em pé ao meu redor me mimando, me confortando.
- Eu não sei. – admiti. – Ele não... Ele só não quer mais.
- Como não quer? Claro que quer! – exclamou , parecendo quase ofendido. Sorri pela reação dele.
- Pelo visto, não.
- Mas não aconteceu nada? Vocês brigaram? – insistiu Charlie.
- Não. Não aconteceu nada. Depois do show eu tentei falar com ele e não consegui. Domingo ele me ligou e pediu pra eu ir pra casa dele. Aí ele começou a falar que as coisas mudaram, que ele não sente mais o mesmo.
- Oh, amor! – ela murmurou docemente antes de me abraçar bem forte.
Aquele abraço era tudo de que eu precisava, e eu senti um aperto - aquela vontade reprimida de chorar - subir pelo meu corpo instantaneamente, atravessando minha garganta mesmo sem permissão, e eu tentei segurá-lo. Não queria chorar ali. Fechei os olhos com força e senti as lágrimas transbordando pelos cantos. Levei as mãos ao rosto e me apressei em secar aquelas lágrimas teimosas antes que elas tivessem tempo de descer. Empurrei Charlie com delicadeza, dando a entender que eu não queria ser abraçada. O que não era bem assim, é claro, mas torci para que ela entendesse. E ela entendeu. A Charlie sempre entende.
- Minha casa depois da aula. – ela murmurou antes de se sentar em sua cadeira quando o professor entrou. – Você precisa colocar isso pra fora. E de um abraço de verdade. – ela se virou para frente, depois olhou para mim e acrescentou: - E de chocolate.
Sentei-me também e abaixei a cabeça. Nunca na vida eu prestei tão pouca atenção a uma aula. Não saberia dizer nem ao menos o assunto. Só levantei a cabeça de novo quando ouvi o sinal tocar e a porta da sala se abriu.
Os alunos que perderam o primeiro horário entraram seguidos pelo próximo professor. veio entre eles, caminhou até sua carteira, soltou a mochila em cima da mesa e se virou para mim com uma expressão séria.
Ele se apoiou contra a mesa e ficamos nos encarando. Ele já sabia. ficou parado um tempo, e eu pude ver pela expressão dele que ele estava tentando decifrar a minha.
- Fica tranquila, ele não vem hoje. – ele respondeu a pergunta que eu não tinha tido coragem de fazer. Assenti com a cabeça.
O professor pediu que todos se sentassem, mas o ignorou.
- Por quê?
- Porque ele é um folgado mimado e a mãe dele deixa ele faltar sempre que quer. – ele riu. – Como você tá?
Senti vontade de chorar de novo, mas dei de ombros, sem levantar o olhar, e continuei encarando o nada. O professor pediu atenção de novo, e dessa vez olhou para ele antes de dar alguns passos até a minha carteira e depositar um beijo na minha testa.
- Ninguém vale essa lágrima sua. Você é bem mais linda sorrindo que chorando. – ele sorriu grande, tentando me confortar, alisou meu cabelo e caminhou de volta à sua carteira.
Deitei a cabeça na carteira de novo, voltando à posição na qual pretendia ficar pelo resto da manhã. Sorri de novo, pensando nos meus amigos. Se tinha uma coisa na minha vida da qual eu não podia reclamar, essa coisa era os meus amigos.
Capítulo XVI – I wish I could touch you again
Já fazia mais de uma semana que tinha terminado comigo. Depois daquela segunda-feira ele não faltou mais, o que quer dizer que eu precisei vê-lo todos os dias. E toda vez que eu o via a única coisa que eu sentia vontade de fazer era correr até ele e abraçá-lo. Eu pensava nele o tempo todo, sonhava com a hora em que ele se arrependia, dizia que estivera errado e me pedia para voltar. Mas ele não fez nada disso.
Eu não sabia mais como agir quando estava perto dele, e não podia deixar de desviar rapidamente o olhar, envergonhada, todas as vezes que me pegou olhando para ele durante a aula.
Charlie, , e também não sabiam como agir, mas fizeram um ótimo trabalhando nunca nos deixando sozinhos e evitando sempre tocar em qualquer assunto que pudesse deixar o clima pior do que já estava. Não que o grupo estivesse completamente separado, mas é claro que não ficávamos mais tanto todos juntos como antes. Eu sabia o quanto a posição deles era ruim, então eu era extremamente grata aos meus amigos por aquilo. E eu não queria ser responsável por "estragar" nossa amizade ou algo do tipo, então eu respirava fundo, enfiava um sorriso no rosto e não reclamava das poucas horas que passávamos todos juntos em que eu tinha que ficar perto de . Na maioria das vezes, Charlie andava mais comigo e os meninos se revezavam entre nós.
O inverno agora tinha chegado com força, e estava tudo coberto de neve. Novembro e janeiro são os piores meses. Tem uma parte do inverno que é uma delícia, e essa parte é o mês de dezembro. Porque tem muita neve e frio, mas tem também aquele clima de Natal que combina perfeitamente com o frio. O problema é que eu não estava nem um pouco nesse clima.
Outra coisa que eu odiava no inverno é que ele me impedia de desenhar no píer e de ir à praia em geral, então eu tinha de me contentar com desenhos da vista da minha casa, o que não era de todo ruim, mas também não era exatamente a mesma coisa. Era começo de dezembro, então todas as lojas e a maioria das casas já estavam enfeitadas para o Natal. A cidade ficava bonita quando escurecia, com todos os enfeites, luzes de Natal acesas e a neve caindo.
Eu estava andando pelo centro procurando um presente para Charlie. A gente tinha essa tradição de Natal em que todo ano a gente tinha que dar 3 presentes uma para a outra: uma coisa de comer, uma coisa material, e uma coisa sentimental. Eu já tinha cuidado da maior parte dos presentes: conhecendo bem minha melhor amiga, tinha encomendado em uma loja alemã uma caixa de bombons de marzipan. Tinha feito também uma colagem com fotos da nossa última viagem para a casa de verão dos pais dela em Wisley. Faltava agora o presente material, que era a parte mais difícil porque, bem, não era fácil achar algo que a Charlie já não tivesse.
A neve caía em flocos sem parar, engrossando ainda mais a camada generosa que já cobria tudo à minha volta. Eu caminhava com as mãos enfiadas nos bolsos do casaco, porque só as luvas não eram suficientes. Eu queria entrar logo em alguma loja para não precisar ficar lá fora no frio, mas eu não sabia exatamente o que estava procurando, então a única opção era continuar olhando as vitrines.
Ainda com frio e irritada com a neve, comecei a pensar em desistir de achar alguma coisa hoje e voltar outro dia, e foi quando uma coisa do outro lado da rua chamou minha atenção. Uma lojinha pequena e antiga, espremida entre as outras, me fez parar assim que a vi. Atravessei a rua em direção a ela e parei em frente à vitrine.
Era o presente perfeito. Mas não tinha importância, porque não era para Charlie. Era o presente perfeito para . E eu não tinha mais que pensar em um presente para , fiz questão de lembrar a mim mesma.
Mas ele ia ficar tão feliz... Pensei em entrar, mas uma parte de mim me proibia de fazê-lo. Devo ter ficado pelo menos dois minutos parada em frente à loja naquele dilema. Por fim, como eu sou patética, entrei e usei como desculpa para mim mesma que era mais por frio do que por interesse no presente. O que - acho que eu não precisava falar – não era verdade.
Respirei aliviada quando senti o calor me envolver assim que atravessei a porta. Eu descreveria aquela loja como uma loja de antiguidades musicais. Pôsteres, discos de vinil, instrumentos e outras coisas que pareciam raras estavam espalhadas por todo o pequeno cômodo. Tudo estava empoeirado e não havia muito espaço para andar entre os produtos, era quase como se a loja não tivesse sido feito para ser frequentada. Esgueirei-me com cuidado até a vitrine e parei em frente ao produto em que eu estava interessada. Era uma coletânea de letras e partituras dos Beatles de 1972. A capa era um desenho dos quatro com a clássica fonte do nome da banda. O livro era grosso, pesado e tinha cara de relíquia. Tirei-o da estante e o folheei.
Agora sim eu estava em dúvida. Se eu conhecia bem – e eu conhecia – aquele livro seria um presente ideal. Mas comprar um presente de Natal para ele não faria nada além de reforçar a minha imagem de ex-namorada inconformada. Eu sabia que ele ficaria feliz pelo presente, já conseguia até imaginar o sorriso dele... Mas ele tinha terminado comigo. Ele não queria mais. Ele era o culpado pela constante sensação de vazio e tristeza que eu estava sentindo, e era isso que eu tinha de manter em mente.
Senti-me naquela típica situação em que um anjinho e um diabinho discutem sobre a sua cabeça. Com a diferença que no meu caso era um anjinho bobo e apaixonado me convencendo a comprar e um diabinho vingativo e realista me aconselhando a não perder meu tempo com presentes para aquele porco insensível.
Mas eu acabei comprando o presente. No segundo em que saí da loja, comecei a me sentir imensuravelmente burra. Primeiro porque eu nem sabia se tinha alguma chance de voltar com ; segundo porque eu sabia que não teria coragem de entregar caso a gente não voltasse; e terceiro porque eu tinha certeza de que ele não preocuparia nem um pouco com um presente para mim, então por que eu deveria?
Caminhei de volta para casa tentando pensar no quanto ele ia gostar do livro – se ele chegasse a recebê-lo – para diminuir a culpa por tê-lo comprado. Culpa que, infelizmente, não diminuiu, independente dos argumentos que usei para convencer a mim mesma.
Cheguei em casa e vi o casaco do meu pai pendurado no cabideiro. Logo ele apareceu na sala, com uma xícara de café na mão, como sempre.
- Oi, . – ele disse carinhosamente.
- Oi, pai! – fui até ele e dei um beijo em seu rosto.
- Onde você estava?
- Fui no centro achar um presente pra Charlie.
- E o que você achou? – ele perguntou apontando com a cabeça para a minha sacola, caminhando de volta para a cozinha.
Antes que eu tivesse chance de pensar, as palavras saíram da minha boca.
- Uma blusa. – me senti pior ainda por mentir para o meu pai, ainda que fosse uma mentira tão pequena. Mas eu estava com vergonha de falar que tinha acabado comprando um presente para .
Eu tinha acabado de pisar no primeiro degrau quando ouvi a voz do meu pai e me virei novamente. Ele estava parado na porta da cozinha.
- ?
- Hm?
- Eu não sei bem como falar disso... – ele parecia sem graça. – E não sei como você tem se sentido, mas eu só queria que você soubesse que tudo acontece por um motivo, e às vezes é para melhor, a gente só não enxerga.
Eu sorri. Tão clichê...
- Ok. Obrigada, pai. – eu sabia que ele queria me consolar, mas não sabia muito bem como fazê-lo. Ainda assim, achei a tentativa bonitinha.
- Tudo tem um lado positivo. – ele acrescentou, antes de sorrir para mim e sumir pela porta da cozinha.
Comecei a pensar no que o meu pai tinha falado. A verdade é que eu não sabia lidar com o fato de eu gostar tanto de que chegava a doer e ele não gostar o mesmo tanto de mim. Na verdade não era nem isso, porque eu sempre desconfiei que eu era bem mais apaixonada e dependente dele do que o contrário; mas eu não sabia lidar com o fato de que ele não me queria mais e ponto. E eu odiava não poder fazer nada para reparar a situação. Porque quem tinha terminado era ele, então de que adiantaria eu procurá-lo se era ele quem tinha que mudar de idéia? Por outro lado, do que adiantaria sentar e esperar que ele me procurasse? Eu sabia que tinha duas opções: engolir meu orgulho, ir falar com ele e arriscar levar uma patada e ser ainda mais humilhada; ou esperar ele tomar uma atitude, arriscando ficar sem até que ele sentisse saudades de mim - sentimento que, infelizmente, parecia chegar sempre antes em mim do que nele.
Capítulo XVII – Maybe two is better than one
Estranhamente, acordei naquela terça-feira de inexplicável bom humor. O céu parecia menos cinzento do que de costume, a temperatura tinha subido alguns graus – saí de casa sem casaco em pleno mês de dezembro – e as tulipas no jardim dos vizinhos tinham crescido. Peguei uma a caminho da escola.
A caminhada para o colégio nunca foi tão rápida – era como se eu estivesse flutuando. A tulipa vermelha na minha mão espalhava um cheiro delicioso de verão – apesar de ele estar longe. Abri a porta da minha sala e saltitei até o fundo, onde encontrei Charlie, , e vestidos em seus uniformes do exército.
- Bom dia! – exclamei e sorri, depois de dar um beijo em cada um. Eu não conseguia parar de sorrir o tempo inteiro, era como se eu nunca tivesse me sentido tão feliz!
- Bom dia, linda. – respondeu Charlie. Ela estava usando uma coroa de rosas no cabelo. A coroa ficava bem nela.
- Cadê o ? – perguntei. Todos eles abaixaram a cabeça imediatamente.
- O não está mais aqui. – respondeu Charlie com a voz macia.
- Como não? – perguntei surpresa. – Onde ele tá?
- Ele foi embora. – respondeu com naturalidade.
Engasguei e comecei a tossir. Ele foi embora? Como ele pôde fazer isso comigo?! Senti-me estranhamente sem chão, até que... Olhei para baixo. O chão estava sumindo. As tábuas de madeira clara desapareciam uma por uma. Ao fundo, comecei a ouvir os primeiros acordes de "Hey There Delilah".
Estendi minha mão até a mesa de cabeceira e peguei meu celular atordoada.
- Alô?
- Eu te acordei? – ouvi a voz do outro lado. Olhei para o relógio em cima da mesa. 18:45. Eu tinha adormecido. Concentrei-me em lembrar que dia era, tentando me situar. Quinta feira, dia 16...
- Não. – pigarreei, tentando fazer minha voz soar menos sonolenta. Ainda me sentia um pouco assustada.
- Tá tudo bem? Sua voz tá estranha. – ele falou apreensivo.
- Tá. – me apressei em responder. – Eu só... tive um sonho estranho.
Pela primeira vez prestei atenção em quem era. Eu tinha me acalmado depois do susto de acordar, mas assim que meu cérebro processou a informação de que tinha me ligado, fiquei inquieta de novo. Fiquei em silêncio, esperando para ouvir o que ele ia falar.
- Er... – falou vagamente depois de alguns segundos, como se finalmente lembrasse que era ele quem tinha ligado. – Eu queria falar com você. Se não tiver problema.
- Hum. – legal, . A única coisa que eu consegui responder foi um resmungo. – Tudo bem. Pode falar. - acrescentei.
- Mas eu preferia que não fosse por telefone. Eu tô aqui fora. – ele gaguejou um pouco.
- Aqui fora... da minha casa? – perguntei perplexa, pulando para fora da cama e correndo até a janela.
- É. – ouvi responder enquanto levantava a cabeça para a minha janela. Tentei impedir, mas um sorriso enorme tomou conta do meu rosto ao vê-lo em pé na neve esperando por mim.
- Já tô indo. – respondi e desliguei o celular.
Corri até o banheiro, coloquei pasta de dente na minha escova e a enfiei na boca. Corri de volta para o quarto procurando pelas minhas meias. Puxei meu moletom gigantesco por cima da cabeça enquanto tentava colocar as meias com uma mão só. O moletom prendeu na minha escova, tampando minha visão e bagunçado meus cabelos enquanto eu tropeçava nas meias, e eu caí no chão. Levantei-me de novo e fui até o banheiro enxaguar a boca. Não pude deixar de rir. Sou o tipo de garota que tropeça, cai e esbarra em tudo só por pensar nele.
Quando finalmente consegui colocar o tênis, desci as escadas sem saber se eu deveria ir devagar para deixá-lo esperando um pouco ou se deveria correr para garantir que ele não se cansasse e fosse embora. Humilhante. Eu estava completamente perdida de tão nervosa. Respirei fundo antes de abrir a porta e saí.
Não tinha nevado nas duas noites anteriores, então eu decidi sair sem casaco, mas me arrependi assim que saí – continuava frio. Só tinha uma camada fina de neve quase derretida no chão, e estava parado do lado de fora, seus pés brincando com os restos de neve. Ele estava de costas, mas se virou e levantou o olhar quando eu fechei a porta atrás de mim.
- Oi. – ele disse com a voz doce e sorriu, fazendo meu coração acelerar.
- Oi. – sorri de volta, ansiosa para ouvir o que ele tinha para dizer.
Coloquei as mãos para dentro das mangas da minha blusa e as fechei em punho porque elas tremiam de leve – e não era só frio. caminhou lentamente até onde eu estava e parou mais perto de mim. Ele pigarreou.
- Eu vim porque... Eu só queria falar que... – ele pausou. – Queria perguntar... – murmurava gaguejando. – Eu só queria perguntar se você ficou com aquele relatório que a gente tem que preencher pro trabalho de química. – falou rápido. Eu murchei.
- Quê? – escapou da minha boca em uma voz esganiçada. Quis perguntar se aquilo era uma piada.
- O relatório de química. – ele repetiu. – Queria saber se você...
- Eu ouvi. – interrompi seca. – Não fiquei.
- Ah. Ok. – ele respondeu, parecendo não saber o que falar.
- Era isso? – perguntei com a voz carregada de decepção, já caminhando lentamente para trás, em direção à porta.
Ele não respondeu, e eu continuei andando devagar, ainda sem acreditar que era aquilo que ele tinha para falar. Quando eu estava prestes a alcançar a porta, suspirou pesadamente.
- Claro que não era isso, . – ele respondeu, parecendo vencido, e andou a passos largos até mim, alcançando-me em um segundo. pousou as mãos na minha cintura. – Eu só queria te ver.
Sua voz agora estava fraca. Ele parecia tão triste que eu quis abraçá-lo forte. Pela primeira vez, reparei que ele parecia mais magro e pálido. olhou nos meus olhos e eu vi a sinceridade neles.
- Eu sinto tanto a sua falta... – murmurei, tentando segurar o choro que chegou com força assim que ouvi as palavras dele.
Afundei o rosto em seu pescoço e me encolhi contra seu peito. massageou meus quadris com os polegares e depositou um beijo na minha testa. Ele foi descendo a boca pela minha orelha, minha bochecha, meu maxilar, até chegar ao meu pescoço, ainda distribuindo beijos quentes e macios.
Minha boca estava completamente seca e minhas mãos ainda estavam trêmulas. Eu ofeguei. Levantei o rosto, minha boca procurando faminta pela dele. Alcancei-a, finalmente, e suspirei quando senti a língua quente de em contato com a minha. Senti meu corpo inteiro formigar da forma que só ele sabia causar, como há muito tempo eu não havia sentido. Senti uma rajada de alívio percorrer todo o meu corpo, como se meus órgãos estivessem estado sufocando todo aquele tempo e agora finalmente estivessem tendo a chance de respirar. Senti-me mais leve, me senti feliz. Apesar da sua pele fria em contato com a minha, um calor que eu há muito não sentia agora ocupava o lugar da dor que só ele sabia fazer passar.
mexia a língua com destreza, como sempre. Ele segurava meu corpo ainda colado ao dele com o braço direito, enquanto sua mão esquerda segurava minha nuca, guiando nossos movimentos sincronizados. Mordi seu lábio inferior de leve e senti soltar o ar com força. Sorri contra seus lábios. Para minha alegria, era tudo exatamente como eu me lembrava – se não melhor. Ele ainda era o mesmo, ainda tinha o mesmo cheiro, o mesmo gosto.
separou nossas bocas, ainda sem desgrudar o corpo do meu.
- Eu também sinto a sua falta. – ele murmurou, e eu pensei que fosse explodir de felicidade.
- Você é um idiota. – suspirei.
- Eu sei. Me desculpa? – ele sorriu e eu subi na ponta dos pés para dar um selinho nele. – Isso foi um sim?
Assenti com a cabeça, ainda sorrindo, os braços ainda em volta do pescoço dele. Eu ainda olhava para ele, maravilhada, sem acreditar que aquilo estava acontecendo.
– Quer dar uma volta? - ele propôs depois de uma pausa.
- Espera só eu buscar um casaco.
Soltei-me do abraço de e corri de volta para dentro. Subi as escadas correndo até o meu quarto e peguei o primeiro casaco que encontrei. Eu só queria voltar logo para perto dele. Passei pelo escritório do meu pai no caminho de volta e o vi sentado lendo alguns papéis.
- Ei, pai, eu tô saindo, tá? – coloquei a cabeça para dentro do escritório e ele levantou o olhar para mim.
- Com quem?
- Com o . – sorri um pouco envergonhada. Vi a pergunta na expressão dele. – A gente voltou... Eu acho. – acrescentei sem ter muita certeza. Meu pai não respondeu e voltou a encarar seus documentos. – Então... Eu tô indo, ok?
- Tem certeza? – ele perguntou, sem levantar os olhos da mesa.
- Tenho. – respondi confusa, franzindo o cenho. – Ele já tá me esperando lá for...
- Não, . – ele me interrompeu. - Você tem certeza? - ele repetiu a pergunta, agora olhando nos meus olhos, sério, e eu entendi que ele não estava falando sobre sair. Ele estava falando sobre .
Respirei fundo. Eu até entendia meu pai. Ele era muito protetor, e depois de ver me machucar uma vez, não queria correr o risco de novo. Mas eu não ia deixá-lo estragar aquele momento para mim. Eu não ia deixá-lo colocar dúvidas quanto a na minha cabeça, não agora que a gente tinha se acertado.
- Tenho. – respondi com firmeza, sustentando seu olhar.
Ele assentiu devagar com a cabeça e eu virei as costas e fui embora, porque não queria ouvir se ele tinha mais alguma coisa para dizer.
Capítulo XVIII – You make it hard for breathing
Apesar de não estar nevando, estava frio o bastante para a gente desistir do passeio. Acabamos deitados na varanda de , enrolados em um edredom, olhando para o céu e conversando sobre coisas aleatórias. estava encostado à parede e eu estava deitada entre as pernas dele, encostada em seu peito. Seus braços envolviam meu corpo, mantendo-me colada ao dele. Eu sentia seu peito subir e descer no ritmo de sua respiração.
- Faz um tempo que vocês não ensaiam.
A frequência dos ensaios dos meninos tinha diminuído muito, mas agora fazia cerca de três semanas desde o último.
- Verdade. Tá ficando difícil achar um dia e horário que dê pra todo mundo.
- Tomara que vocês acertem isso.
- É, acho que vamos marcar pra semana que vem.
- ?
- Hum?
Respirei fundo e perguntei.
- O que aconteceu? Quero dizer... Por que a gente terminou?
Visivelmente surpreso com a mudança de assunto e desconfortável com o a pergunta, suspirou, e meu corpo acompanhou o movimento dele.
- Eu não sei, . Sério. Eu sou um idiota. Eu nunca me senti assim e, sei lá... Eu não sabia o que fazer. – ele deu de ombros. - Eu não sei te explicar. – acrescentou, depois de uma pausa. – Desculpa. – murmurou.
Fechei os olhos. Pronto. Agora eu já podia tirar aquilo de mim, disse para mim mesma. Aquela dúvida tinha me perturbado por muito tempo, mas agora eu tinha feito o que estava ao meu alcance. O que eu precisava para seguir em frente era de um motivo. Mas se nem sabia explicar, o que mais eu podia fazer? Eu podia finalmente esquecer aquilo, para que parasse de doer em mim. "Deixa pra lá. Esquece." eu disse para mim mesma.
Caímos naquele silêncio relaxante de novo. Por muito tempo, a única coisa que eu ouvia era o som discreto das nossas respirações. A única coisa que eu sentia era a presença de . Eu me sentia em casa.
- Tá vendo aquelas três? – perguntou, apontando para o céu depois de um tempo em silêncio. – As três alinhadas. - Fiz que sim com a cabeça. – Chamam "Cinturão de Órion". A primeira chama Alnitak, a segunda chama Alnilam e a terceira, Mintaka.
Eu ri.
- Que clichê. – gargalhei. – A gente deitado na varanda olhando pro céu e você começa a explicar estrelas. – olhei-o e ele riu também. - Como você sabe essas coisas?
sempre sabia um monte sobre todos os assuntos.
- Meu pai é fascinado por astronomia. Passávamos horas com aquilo quando eu era pequeno. – ele apontou com a cabeça para o telescópio no canto da varanda. – Eu era meio nerd quando era criança. – admitiu e deu de ombros, sorrindo.
- Que mais?
Foi a vez dele de rir.
- Tava torcendo pra você não perguntar. Na verdade, a constelação de Órion é a única coisa que eu lembro.
Sorri também.
- Tava só tentando me conquistar com conhecimentos que você não tem...
- Infelizmente. Parei de usar o telescópio pra ver estrelas quando descobri que ele também podia ficar apontado pra janela da vizinha. – ele contou, displicentemente.
O que aconteceu depois disso foi tão rápido que eu não entendi no começo. Senti respirar fundo contra as minhas costas, e um segundo depois, ele tinha se jogado para o lado, tossindo tanto que não conseguia falar. Meu coração parecia ter parado; eu não conseguiria explicar o susto que levei. Virei-me para ele e encarei-o, completamente sem saber o que fazer.
- ! O que você tá sentindo? – perguntei, desesperada, mas ele não respondeu.
agora não tossia mais, mas massageava a garganta com força, os olhos arregalados. Observei seu tórax e vi que ele não se mexia. tinha se sentado novamente encostado à parede.
- ? – chamei, ficando cada vez mais nervosa. Sacudi seus ombros, começando a me levantar. – Você tá sem ar? !
Finalmente, ele reagiu. ofegou, visivelmente lutando por ar, e seu peito começou a subir e descer com uma velocidade incrível. Continuei parada, olhando para ele, ainda totalmente paralisada de susto, minhas mãos ainda apertando seus ombros com força, as unhas cravadas em sua pele. Meus olhos estavam cheios de lágrimas, trazidas pelo medo repentino. Ficamos um tempo em silêncio, apenas interrompido pela sua respiração ruidosa.
- ...? – perguntei, cautelosamente, depois que sua respiração tinha se normalizado.
- Desculpa, . – ele disse, com a voz rouca.
- O que foi isso?
- Não foi nada, amor. – me tranquilizou. Ele me segurou pelos ombros e me fez sentar de novo.
- Claro que foi, ! O que aconteceu? – perguntei com firmeza. – Você tem noção do quanto eu fiquei com medo?! – eu estava quase gritando, agora. – Que porra aconteceu?
- , calma! – ele riu. – Minha bronquite fica pior no frio, só isso.
- Só isso? Você não tava respirando! – retorqui, num grito estridente.
- Relaxa, amor! – ele continuou sorrindo. – Desculpe se eu te assustei. Sério, eu tô bem.
Olhei desconfiada para ele e fiquei em silêncio, ainda sem acreditar. Como eu continuei em silêncio, considerando, ele acrescentou:
- Sério. – e sorriu.
- Tem certeza? – perguntei, ainda séria.
- Absoluta. – respondeu , sorrindo. Passou o braço pela minha cintura, puxando-me para mais perto.
- Promete?
- Prometo, . – ele disse pacientemente. – Eu tô bem.
- Talvez você devesse fazer alguma coisa sobre isso. Sei lá... Quer que eu fale com meu pai?
- Não precisa.
- Tem certeza? Eu posso falar com ele.
- Shh... – murmurou, sorrindo, e depositou um beijo no meu maxilar.
- Quando foi a última vez que você foi ao médico por causa disso? – persisti.
- , tá tudo sobre controle. – ele sussurrou, numa voz macia, antes de depositar um beijo no meu queixo, depois um na minha boca.
- Mas...
- ! – ele me interrompeu, manhoso, e mordeu meu lábio inferior.
- Que golpe baixo... – comentei, rindo, antes de me render. Deixei que ele puxasse meu rosto para perto dele e encostasse meus lábios nos seus.
foi se deitando lentamente, fazendo com que eu me deitasse por cima dele. O beijo começou calmo, mas se mostrou cheio de segundas intenções. Ele deslizou uma das mãos da minha cintura para a minha coxa, enquanto a outra ia se esgueirando para baixo da minha blusa. Ele começou a puxá-la para cima, percorrendo toda a extensão das minhas costas com a ponta dos dedos, fazendo minha pele parecer que queimava a cada toque dele.
Então virou seu corpo, deitando-se por cima de mim e prensando-me contra o chão gelado. Apesar do frio que fazia, eu só sentia calor. Levei as mãos até a barra da sua camisa e se ergueu um pouco para que eu pudesse puxá-la para cima. Senti toda minha pele se arrepiar ao entrar em contato com o corpo dele.
Ele pressionou seu quadril contra o meu e eu suspirei. interrompeu o beijo e olhou nos meus olhos, e nós sorrimos. Ele passou o nariz carinhosamente pela minha bochecha antes de me beijar novamente. Ele era o meu encaixe perfeito. A única coisa que passava pela minha cabeça era o quanto eu o queria. Nunca tinha tido mais certeza do quanto estava apaixonada por e de que ele era perfeito para mim.
Uma hora, ainda deitados juntos no edredom, e eu concordamos que o calor tinha passado, e percebemos que ficar deitados lá fora cobertos por nada além de um edredom em pleno inverno talvez não fosse lá uma ideia tão brilhante. Vestimo-nos e entramos, e eu achei melhor ir logo para casa antes que meu pai começasse a se preocupar à toa como ele sempre fazia.
me acompanhou até em casa, como costumava fazer. Ele parou em frente à porta e me beijou, fazendo meu coração acelerar, como ele também costumava fazer.
Subi as escadas sem me preocupar em não fazer barulho. Eu sabia que meu pai não ia dormir enquanto eu não estivesse em casa. Chegando ao fim das escadas, ouvi a voz dele vinda do escritório e imaginei que ele estivesse no telefone.
Não dei atenção a princípio, e já tinha até passado da porta do escritório quando algo chamou minha atenção: seu tom de voz. Ele parecia bravo. Voltei alguns passos – dessa vez na ponta dos pés – e parei ao lado da porta. Espiei discretamente e vi que eu tinha razão, meu pai estava no telefone. Prestei atenção no que ele estava falando, mas só peguei o final da conversa.
- É claro que não! – ele soou ofendido e irritado. – Eu sou profissional. – foi a última coisa que ele disse antes de desligar.
Bati de leve na porta após alguns segundos.
- Pai? – chamei, cautelosa, e ele levantou a cabeça. – Tudo bem?
- Tudo. – ele respondeu, ríspido.
- Tem certeza? Você precisa de alguma coisa?
Meu pai respirou fundo.
- Preciso.
- De quê? – respondi prontamente.
- Preciso que você tome juízo. - ele se levantou, pegou o casaco e saiu, passando por mim sem me olhar. – Boa noite.
Fiquei parada, perplexa, no mesmo lugar.
Peguei meu celular do bolso e olhei as horas. Tudo bem que já passavam das onze e meia e era dia de semana, e eu até entendia que isso não o deixasse especialmente feliz. Mas, ainda assim, não era nenhuma catástrofe. Até porque era o penúltimo dia antes das férias de Natal.
Não gostei de ouvir que eu precisava "tomar juízo" daquela forma, porque se tem uma coisa que eu sempre tive é juízo, e nunca dei trabalho para os meus pais.
Bufei, irritada pelo meu pai ter conseguido estragar – mesmo que só um pouquinho – a minha noite. Odiava quando ele se estressava por problemas no trabalho e descontava em mim.
Capítulo XIX – If you love me, won’t you let me know?
- Tava pensando se você tá a fim de fazer alguma coisa hoje. – propus. – Ir ao cinema? Sei lá, qualquer coisa.
Estava deitada na cama de enquanto ele afinava o violão, sentado à frente do computador.
- Não dá. – ele respondeu rápido, ainda concentrado no violão. Quando olhou para mim e viu que eu esperava pelo resto da frase, explicou: - Vou viajar hoje à noite.
- Hoje? Pra onde? – estranhei. Ele não tinha comentado nada.
- Visitar minha família. Eu te contei. – respondeu em poucas palavras, ainda focado no que estava fazendo.
- Não contou, não. – eu disse convicta.
- Hm, devo ter esquecido. – comentou, finalmente colocando o violão de lado. – Posso te compensar amanhã? A gente não deve voltar tarde.
Sorri maliciosa. Estava prestes a responder, mas fui interrompida pela voz da mãe de vinda do andar de baixo.
- ?
- Fala. – ele rolou os olhos.
- Você tomou seu remédio? – a voz dela foi se aproximando.
- Não.
- Você precisa, , são mais de 130 km.
- Tá. – ele interrompeu seco.
- Não esquece que tem que ser... – a Sra colocou a cabeça para dentro do quarto e parou de falar ao me ver. – Ah, oi, . – ela sorriu. – Não sabia que você tava aqui.
- Oi, Brianna. – cumprimentei sorrindo também.
Ela saiu do quarto de novo e fechou a porta atrás de si.
- Que remédio? – perguntei curiosa. Nunca tinha visto precisar tomar nada por causa da bronquite.
- Pra não passar mal na estrada. – ele respondeu indiferente. agora tinha pegado o violão de novo. Franzi o cenho, estranhando.
- Mas Crawley fica a menos de 90 km daqui. Não é muito mais que uma hora.
- Não é em Crawley.
Eu estava começando a ficar irritada com a falta de atenção dele à conversa.
- Onde é? – insisti, cem por cento ciente do quanto eu estava sendo irritante.
- Ao norte. – ele respondeu parecendo meio impaciente.
Respirei fundo. Não queria me irritar com coisas pequenas e causar uma briga agora. Tentei pensar em qualquer assunto.
- Faz um tempo que vocês não ensaiam, né? – perguntei, referindo-me à banda.
, agora com a palheta na boca, apenas assentiu lentamente com a cabeça.
Mais uma vez, desesperada por alguma coisa para falar, comentei:
- Meu pai agora tá todo preocupado comigo. Todo ciumento.
- Por quê?
- Acho que depois que você terminou comigo ele tem medo de você fazer isso de novo. – eu sorri. – Acho que ele tem medo de você partir meu coração mais uma vez. – falei dramaticamente e ri.
- Talvez seu pai tenha razão.
- Quê? – foi a primeira coisa que escapou da minha boca antes que eu pudesse pensar sobre o que ele tinha falado.
- Talvez seu pai tenha razão. – ele repetiu lentamente, como se eu fosse retardada, levantando os olhos para mim pela primeira vez. Ele voltou a olhar para o violão e eu só continuei o encarando, completamente perplexa, sem saber o que responder àquilo. Eu não entendia sua mudança repentina.
- Ah, ... – gemi baixinho, sem que pudesse conter. Ele levantou os olhos para mim. - Você tá agindo como você agia antes. – falei com a voz fraca, sentindo tudo dentro de mim arder de decepção. Ele me olhou confuso. – Antes de a gente ficar junto. – acrescentei. fez uma pausa, colocou o violão no chão e, quando falou, sua voz estava fraca.
- Como assim?
- Do mesmo jeito. Você agia daquele jeito e eu não entendia, eu realmente não te entendia. E você agia como se fosse normal, como se tivesse tudo bem. E eu não entendia o que eu tava fazendo de errado, onde eu tava me iludindo, mas não era eu, . Você é que não fazia sentido mesmo. E agora você tá fazendo isso de novo.
Ele sorriu fraco, triste, com cara de culpa.
- É só o meu jeito, . Acho que eu sou assim.
- Ninguém é assim, . – revirei os olhos, impaciente, e balancei a cabeça. – Você só age assim quando tem alguma coisa errada.
- Não tem nada errado. – ele respondeu impaciente.
- É claro que tem, ! Que merda, você realmente acha que eu sou tão idiota? Que eu não percebo quando você age assim? Quando você começa a me tratar diferente? Porque eu percebo! – aumentei o tom de voz. "Só sou idiota e te amo o suficiente pra preferir ignorar", pensei. – Eu sei que tem alguma coisa errada, pára de negar.
- Se eu disse que não tem é porque não tem, porra! – ele igualou o tom ao meu.
- Qual é o problema? Você não quer mais? É isso? Você se arrependeu de ter voltado? – continuei, exaltada. – Porque se for, é só falar, . É assim que a gente resolve os problemas depois que passa dos 4 anos: FALANDO. – disse irônica.
suspirou e balançou a cabeça lentamente para os lados, como quem diz que não vai se dar ao trabalho de responder. Depois de alguns segundos em silêncio, respirei fundo, sentindo minha voz começar a tremer por causa da vontade de chorar.
- Por que você é tão difícil de entender? – murmurei, olhando para baixo.
- Só porque eu me importo com você. – respondeu baixo também, e dessa vez eu senti seu olhar sobre mim. As pontas dos meus dedos formigavam e meu cérebro trabalhava a mil.
- Então por que você não me explica? – perguntei esperançosa, olhando para ele.
Encarei seus olhos , procurando por qualquer explicação, qualquer coisa que eu pudesse interpretar. Mas não havia mais nada neles que eu reconhecesse.
- Eu tô te protegendo. - murmurou.
Balancei a cabeça negativamente, perplexa demais para responder.
- Tá... – concordei sarcástica.
- Eu te amo. – ele me interrompeu.
Olhei para e nós nos encaramos direito pela primeira vez desde que começamos a discutir. E, ao contrário do esperado, aquela frase não fez o efeito esperado em mim. Qualquer gesto desse tipo de geralmente me fazia derreter. Mas eu estava instigada demais para isso. Foi como se eu nem tivesse ouvido suas palavras, como se elas não tivessem significado algum.
- Então por que você não me conta? – pedi mansamente.
- Porque a verdade dói. – ele respondeu com um riso sarcástico.
- A verdade dói. – concordei baixo. Bufei e me levantei para ir embora. – Mas quer saber, ? – suspirei. - Uma mentira dói ainda mais.
Eu me dirigi até a porta, o coração na mão, as lágrimas implorando para descer. Dessa vez não só de tristeza, mas de raiva. Desci as escadas pisando forte, com pressapara ir embora logo. Fechei a porta atrás de mim com o pensamento de que nunca mais queria pisar ali e nunca mais queria ver a cara dele.
Desci a rua ainda pisando com força, como uma criança emburrada. Eu me permiti chorar agora, e as lágrimas desceram livremente, mas não aliviaram minha explosão de sentimentos. Raiva, tristeza, dúvida, orgulho ferido... Continuei andando quando passei pela minha casa. Não queria entrar. Não queria ver meu pai porque eu não queria que ele soubesse que tinha razão. Não queria entrar no meu quarto porque tudo nele me lembraria . E não havia nada que eu quisesse mais naquele momento do que esquecer o que acabara de acontecer.
Continuei andando, torcendo para que uma caminhada fosse me ajudar a desanuviar meus pensamentos, eu precisava espairecer. Não sei por quanto tempo andei, mas, para minha decepção, não ajudou. E à medida que eu fui percebendo que não estava passando, fui ficando mais desesperada. E quanto mais desesperada ficava, com mais angústia eu chorava. Eu não sabia o que fazer para aliviar o que estava sentindo, não sabia fazer parar. Foi como se meu corpo agisse sozinho: comecei a correr.
Eu soluçava alto agora, correndo pelas ruas, sem muito pensar em onde estava indo. Por sorte, eu conhecia Southsea como a palma da minha mão, e era bem improvável que me perdesse. Parei depois de um tempo, ainda sem noção nenhuma de quanto tempo havia se passado. Sentei-me na ponta da calçada, sentindo-me exausta. Tirei meu celular do bolso. Um pouco mais de meia hora havia se passado desde a hora que eu saíra da casa de .
Ainda sentindo a raiva borbulhando por todo o meu corpo, decidi-me sem pensar. Não queria perder tempo. Levantei-me de novo e virei à direita, seguindo por uma rua que me levaria de volta. Andei decidida, certa do que falaria para ele. Quem ele achava que era? Ele achava o quê, que tinha o direito de me fazer de idiota? Ah, mas ele tinha tanta coisa para ouvir...
O caminho de volta se passou com igual rapidez, e eu voltei a correr quando avistei a casa de ao longe.
Toquei a campainha várias vezes seguidas impacientemente. Depois de alguns segundos, comecei a bater na porta com força enquanto já ia tirando o celular do bolso de novo. Disquei o número do celular de e liguei, ainda tocando a campainha.
- Atende, porra... – murmurei olhando para o celular.
- Oi? Oi, menina? – ouvi alguém chamar.
Virei-me procurando a voz, e vi a vizinha da casa à minha direita olhando para mim. Quis mandá-la calar a boca. Ela era gordinha, estava vestida num avental de jardinagem alguns números menores do que deveria e tinha o cabelo pintado de um tom de vermelho fogo bem chamativo. Perguntei-me se ninguém tinha se dado ao trabalho de contar para a mulher que aquele tom não era mais apropriado para a idade dela. Não perguntei para ela, é claro, apesar do veneno na ponta da língua. Meu corpo inteiro ainda ardia de raiva de . Ela me olhava meio cautelosa – perfeitamente compreensível, devo admitir.
- Eles viajaram. – a pobre mulher que eu estivera insultando mentalmente havia pouco sorriu simpática para mim. Senti-me mal por ter tido o impulso de descontar nela a raiva que eu sentia de . – Saíram agora há pouco, os três, com malas.
- Não, mas... – eu a contrariei, confusa. Ele tinha dito que só viajaria à noite. Ainda não eram nem quatro horas da tarde, em que conceito estúpido 16 horas era considerado noite?! Olhei para a mulher e vi que ela ainda olhava para mim.
– Ok. – pigarreei. – Ok, obrigada. – agradeci, desejando que ela voltasse a cuidar de suas plantas e parasse de me encarar.
Suspirei, tendo de admitir que não havia mais nada que eu pudesse fazer. Comecei a descer a rua de novo, dessa vez em direção à minha casa.
Entrei e me arrastei até a escada, sentindo-me incrivelmente cansada. Quando cheguei à metade dela, Phyllis surgiu pela porta da cozinha.
- ?
Soltei o ar com força, impaciente. Eu não queria falar com ninguém agora. Lembrando-me da vizinha simpática, esforcei-me para não ser grossa. Não queria descontar em mais ninguém os sentimentos pelos quais era inteiramente culpado.
- Quê?
- Liga pro seu pai, por favor, e descobre se ele vai vir jantar.
- Tá. – murmurei e corri para o meu quarto. Fiquei irritada por ter de lidar com um assunto tão banal, tão pequeno e insignificante no mar de problemas em que eu me sentia mergulhada.
Disquei o número do consultório depois de me jogar na cama. Depois de alguns toques, Trisha atendeu.
- Ei, Trisha, sou eu. Tudo bem? Posso falar com meu pai? – perguntei logo, sem esperar a resposta dela.
- Ele não tá aqui.
- Ele já veio pra casa?
- Na verdade, não. Ele precisou ir para Londres meio de última hora.
- Ah. Ok, obrigada. – respondi, quase desligando. E então algo me ocorreu. – HEY, Trisha! – chamei rápido, com medo de que ela tivesse desligado. Meu coração começou a bater forte com o pensamento que passou pela minha cabeça.
- Fala.
- Londres fica a quantos quilômetros daqui?
Ela riu.
- Sei lá... Uns... 130? Por aí. Por quê?
Senti um frio desagradável percorrer meu corpo inteiro, apesar de não estar nem um pouco frio dentro do meu quarto.
- Por nada. – murmurei antes de desligar. 130. Um milhão de pensamentos indesejados passaram pela minha mente numa velocidade perturbante. Eu ouvia dentro da minha cabeça o som dos batimentos acelerados do meu coração. Minha respiração estava ruidosa – ou talvez eu que estivesse ouvindo demais. Todos os meus sentidos estavam aguçados devido à adrenalina. Aquele pensamento ainda martelava em minha cabeça. Não podia ser.
Levantei-me de novo e me joguei escada abaixo, correndo em direção à porta. Saí de casa de novo, atrás de quem eu sabia ser minha última esperança.
Cheguei à casa de e parei em frente à porta. Minhas mãos tremiam. Eu precisava saber se estava ficando louca, eu precisava saber o que estava acontecendo, mas tinha medo da resposta. Não sabia se queria ouvi-la. Apressei-me em tocar a campainha mesmo assim, antes que eu desistisse.
Em poucos segundos, ouvi a voz de do outro lado.
- Tô indo, mãe... Ah, oi, . – ele sorriu. – O que foi? A gente tá de saída. Tô meio com pressa, minha mãe tá estressada pra caralho... – comentou mais baixo, olhando furtivamente para dentro para conferir se ela estava ouvindo.
- . – eu o interrompi e ele olhou para mim de novo. Eu mesma consegui ouvir na minha voz que tinha alguma coisa muito errada, então com certeza também conseguiu, ele me conhecia.
- , - ele me olhou preocupado, analisando-me – tá tudo bem?
- Não sei. Me diz você.
Ele apertou os olhos, sem entender.
- O que tá acontecendo? Me fala logo, eu realmente preciso ir porque a minha mãe...
- Não, . – eu o interrompi. - Me diz você. – repeti. – O que tá acontecendo? O que tá acontecendo com o ?
Sua expressão mudou. Pude ver seu rosto se contrair. O carro dos pais dele começou a sair da garagem à minha esquerda. Ambos olhamos.
- ! - a voz de sua mãe veio do carro.
- Eu preciso ir.
- ! – chamei desesperada. – Não faz isso. – implorei. – Fala comigo, o que tá acontecendo?
- Não é comigo que você precisa falar sobre isso. – contorceu o rosto numa careta de culpa, saindo e fechando a porta atrás de si. A buzina tocou, e ele começou a andar em direção ao carro.
- Não, , não... – choraminguei, segurando o braço dele, sentindo as lágrimas voltarem.
- Desculpa.
- Fala comigo! – pedi de novo.
- Eu não posso fazer isso, , desculpa. – e pegou na minha mão, fazendo-me soltá-lo. Ele ainda tinha aquela expressão de quem está sendo obrigado a fazer uma coisa que odeia.
- Você também, não, ...
- Desculpa, , desculpa! – ele pediu de novo, realmente parecendo angustiado também. Eu vi a culpa nos olhos de quando ele me deu as costas e correu até o carro, entrando com pressa.
O que me pareceu um segundo depois, o carro sumiu pelo fim da rua. Eu estava sem opções. Não havia nada que eu pudesse fazer, senão me perder nas minhas próprias teorias e dúvidas. Desabei. Sentei-me nos degraus em frente à porta da casa de . Meu coração ainda batia tão forte que por um segundo eu me perguntei se era possível vê-lo através da roupa. Não era mais só tristeza, não era mais só raiva. Era medo. O medo é o pior dos sentimentos, ele te deixa perdida. E isso era tudo que eu podia dizer naquele momento: eu me sentia perdida.
Capítulo XXI – Are you sitting down? I need to tell you something
Não tenho lembrança nenhuma de como voltei para casa. A próxima coisa de que me lembro é de acordar no dia seguinte, um pouco depois do meio dia. Não levantei antes das duas horas, quando finalmente desci e tomei uma xícara de café bem forte. Encontrei um bilhete do meu pai ao lado da cafeteira. "Você ainda estava dormindo quando eu cheguei. Fui para o consultório de novo, mas volto antes das 19. Jantar juntos?
xx"
Sentei-me na bancada e fiquei olhando para fora da janela, com o olhar perdido, enquanto tomava meu café. Eu não queria adiar aquilo mais. Sabia que estava na hora de procurar . E se minhas suspeitas estavam certas – e eu queria mais que tudo que não estivessem – eu sabia que ele já tinha voltado de viagem. A verdade é que eu estava cansada demais – física, mental e emocionalmente – para ir atrás dele de novo. Eu não sabia o que era maior: a minha necessidade de saber e entender o que estava acontecendo ou o meu cansaço. Mas eu não queria entrar em mais um dilema, não tinha cabeça para lidar com mais dúvidas naquele momento. Como que para me dar a chance de adiar um pouco a decisão, o telefone tocou, salvando-me por um segundo da dúvida.
- Alô?
- ? – aquela voz me acordou com mil vezes mais eficiência que o café. Eu realmente não estivera esperando uma atitude da parte dele.
- Oi?
- Eu liguei pro seu celular, mas você não atendeu.
- Não. – respondi vagamente, ainda surpresa.
- Acho que a gente precisa conversar. – confessou logo. Fiquei feliz por ele ir direto ao assunto.
- É. – continuei monossilábica.
- me disse que você o procurou. – ficamos um pouco em silêncio, e, ao ver que eu não ia responder, acrescentou: - Você pode vir aqui?
- Posso. – respondi, sentindo a sensação desagradável no meu estômago piorar. Aceitei porque me sentia obrigada, não exatamente porque eu estava com vontade. – Daqui a meia hora eu vou.
- Ok.
- Ok.
Desliguei o telefone antes que o clima piorasse.
Subi e fui tomar um banho. Eu precisava lavar aquele cansaço e aquela energia horrível se eu fosse ter de aguentar mais. Evitei o tempo inteiro pensar sobre a conversa que aconteceria em pouco tempo porque eu não sabia o que pensar sobre isso. Ou sabia, só não queria acreditar nos meus pensamentos, que, teimosos, voltavam a me perturbar por mais que eu os expulsasse da mente. E nada disso melhorou quando eu toquei a campainha da casa dele.
- Oi. – sorriu educadamente e me deu espaço. – Entra.
Entrei cautelosamente. Sentia-me completamente desconfortável.
- Tem alguém aqui?
- Não.
- Ok.
Ficamos por alguns segundos naquele silêncio desagradável que começara a se instalar com frequência entre nós. Eu detestava aquele silêncio.
- A gente precisava conversar. – ele começou.
- É. – respondi, esperando pelo resto. Parecia que pela primeira vez realmente queria tomar uma atitude e resolver as coisas, mas não sabia como. E eu ainda estava insegura perto dele, ainda estava esperando que ele começasse a agir estranho de novo ou a gritar bruscamente comigo. Já tinha aprendido que era imprevisível.
- Você quer sentar? – ele apontou com a cabeça para o sofá. Eu hesitei.
- Hm... Pra falar a verdade, não, obrigada. – eu não queria adiar a conversa, queria acabar com aquilo logo. Queria estar pronta para sair correndo dali se fosse preciso. Além do mais, eu não me sentia mais à vontade na casa dele como antes. Era como se eu estivesse em um ambiente completamente desconhecido, acompanhada de um estranho.
- Acho melhor você sentar. – ele murmurou, torcendo a boca numa careta discreta. pigarreou e eu me dei por vencida, sentando-me silenciosamente no canto do sofá.
- O que tá acontecendo? – fui direta.
se sentou à minha frente e suspirou, levando as mãos ao rosto e apoiando os cotovelos na mesa.
- Eu não sei muito bem como falar isso.
- Ah, , eu odeio essas frescuras. O que quer que seja, fala logo, não fica enrolando, que é pior. Só fala, eu aguento. – desabafei, já me sentindo cansada.
- É que eu não gosto de falar sobre isso. – ele admitiu num sussurro, e sua voz pareceu tremer. Eu não sabia se era insegurança, tristeza ou qualquer outra coisa. Mas eu conhecia , e sabia que se ele estava falando desse jeito, é porque era sério.
- Pode falar, . – incentivei com a voz mansa, pegando na mão dele e apertando-a de leve. – Sou eu. – sorri.
- Eu não sei como você vai reagir.
Sorri de novo.
- Então fala, e a gente vai descobrir.
soltou o ar devagar pela boca, parecendo tentar se acalmar. Suas mãos tremiam de leve, e, apesar de toda a repulsa que eu sentira por ele nas últimas horas, me doía vê-lo assim.
- , o motivo pelo qual eu tenho agido assim... Quero dizer, o porquê de eu ter sumido ontem, de eu ter terminado com você, de eu faltar e viajar tanto, de eu ser um escroto com vocês às vezes, de a minha bronquite estar piorando... – ele soltou o ar pela boca. hesitou, segurando a tensão. - É que eu tenho câncer.
Pronto. Simples assim. As palavras saíram da boca dele. Afinal, palavras são só palavras...
Houve uma pausa tão horrível que eu não saberia descrever. Foi como se as palavras saíssem da boca dele e entrassem nos meus ouvidos, mas a mensagem não chegasse realmente ao meu cérebro. Foi como se eu assistisse à cena de longe, como se não fosse realmente eu ali, sentada em frente a , ouvindo aquelas palavras. Meu cérebro finalmente processou a informação que meu corpo tentava enviar, e eu desejei mais que tudo que aquilo não estivesse acontecendo, que fosse só um sonho ruim, um pesadelo, e que eu na realidade ainda estivesse na minha cama, chorando por ontem. Que o motivo de agir assim fosse que ele era um idiota e pronto. Seria tão mais fácil se ele simplesmente fosse um idiota...
Eu não sabia o que responder. Eu não queria responder, não queria reagir. Mas eu precisava. Abri a boca para falar, mas as palavras demoraram a sair.
- De pulmão? – perguntei finalmente, para ter certeza. assentiu com a cabeça. Senti minha respiração se acelerando e a vontade de chorar em protesto chegar. – Mas... Como? É de família? Porque você não fuma, você não pode... – murmurei pateticamente. Eu queria contrariá-lo, gritar que não era verdade e que ele estava enganado.
deu de ombros e sorriu triste.
- O tumor pode surgir por diversos fatores... Causas genéticas, uma doença pulmonar crônica, como enfisema ou bronquite, e histórico familiar. Às vezes ele se desenvolve em pessoas que nunca fumaram, não tem histórico, e a causa é simplesmente desconhecida. Como no meu caso. – ele explicou pacientemente.
- Quê?! Claro que não, qual é a probabilidade?! – protestei incrédula.
Nada do que ele estava falando era novidade para mim, mas, ainda assim, eu ouvia atentamente. Em grande parte por causa do meu pai, eu sempre senti que sabia muito sobre o assunto, mas agora, de repente, eu me sentia tão pequena diante dele, tão cheia de dúvidas...
- É baixa, mas não é impossível.
- Você... – murmurei. – Isso quer dizer que você vai morrer? – foi o desespero quem perguntou, e, naquele momento, ele era muito maior do que a discrição, ou qualquer preocupação com a escolha das palavras certas.
- Todo mundo vai morrer, . – ele sorriu parecendo uma criança que burlou as regras.
- Me leva a sério, ! – ralhei. Ele suspirou.
- Eu vou morrer, . – ele disse a contragosto. – Era isso que você queria ouvir?
Abri a boca em indignação. Odiei a maneira dele de levar essa conversa, mas, para falar a verdade, nenhum de nós sabia como fazer aquilo. não sabia como contar, e eu não sabia como reagir.
- É claro que não era isso que eu queria ouvir, ! Você tá ouvindo o que você tá falando?! – aumentei o tom de voz, ofendida.
Suspirei, frustrada, e passei as mãos pelo rosto com força.
- Há quanto tempo?
- Bastante. – ele admitiu. Depois acrescentou a resposta que eu realmente estava procurando: - Eu já sabia quando te conheci.
Foi como se tudo desabasse mais um degrau, se é que era possível. Não segurei as lágrimas que encheram meus olhos em um segundo e começaram a descer pelo meu rosto. Eu não sentia mais só medo e tristeza, agora era também indignação, quase raiva.
- Por que você não me contou?! – quase gritei e me levantei. – Como você pôde fazer isso?!
- Porque não era nem pra gente tá junto em primeiro lugar, ! Por isso eu hesitei tanto em ficar com você: porque eu sabia que eu não podia! Mas eu te queria tanto... Tanto! Eu sabia que não podia te envolver nisso, mas... Eu não fui forte o suficiente.
- ! – voltei a aumentar o tom e ele se levantou também. – Eu não tô reclamando da gente estar junto! Eu tô reclamando de você não ter me contado, você realmente não enxerga o problema nisso?!
- CLARO QUE ENXERGO, PORRA. – devolveu no mesmo tom. – Não era pra você ter aparecido na minha vida! A gente mudou pra cá pra eu ficar mais perto do seu pai. – meu sangue ferveu mais ainda quando ele me lembrou dessa parte. – Não era pra ninguém saber. Só o sabe.
As lágrimas ainda desciam livremente pelo meu rosto. Eu me sentia traída. Não queria acreditar que nenhuma das pessoas que eu mais amava e confiava no mundo foi capaz de me contar qual era o problema. Problema que passou a ser meu também a partir do momento em que eu e começamos a namorar. Meu pai, meu melhor amigo e meu namorado, e nenhum deles se importava o bastante comigo para achar que eu merecia a verdade.
Eu não queria acreditar. Não queria acreditar que aquilo estivesse acontecendo, não queria lidar com aquilo, não queria me sentir daquela forma. Nem eu mesma entendia a forma como eu estava agindo, mas, mais uma vez, olhei em volta e desejei que eu não estivesse ali. Eu precisava ir embora.
- Você não tinha o direito de esconder isso de mim, . – murmurei com a voz aguda de choro. Olhei nos olhos dele e vi todo o desespero e a tristeza que eu sentia refletidos neles também. Lágrimas também molhavam todo o rosto de , e aquilo, em qualquer outro momento, teria me feito parar tudo e ir consolá-lo. Mas não naquela hora. Porque eu não estava diferente dele. Eu precisava cuidar de mim mesma antes de conseguir pensar em qualquer outra pessoa.
abaixou a cabeça e não protestou quando me dirigi até a porta e saí. Eu estava tonta. Com as lágrimas ainda rolando, caminhei devagar, porque estava com medo de cair. Eu me sentia fraca, fisicamente fraca. Ofeguei com uma desagradável sensação de que o mundo estava girando rápido demais e eu não conseguia acompanhar. Meu corpo não queria me obedecer direito. Andar o pequeno caminho até a minha casa foi uma tortura. Eu mantinha as mãos esticadas ao lado do corpo, preparada para o momento em que meus joelhos cederiam e eu cairia no chão.
Subi as escadas apoiando quase todo o meu peso no corrimão. Minhas pernas tremiam. Entrei no meu quarto e afundei na minha cama, mas não senti a sensação de alívio que eu estivera esperando. Eu precisava aliviar aquele sentimento, precisava de uma pausa. Eu sentia que não ia aguentar mais nem um minuto daquela sensação horrível.
E acho que pela primeira vez na vida eu realmente entendi o que querem dizer quando dizem que "o amor é cego". Entendi mesmo. Eu sentia na pele. Nunca antes eu tinha me sentido tão estúpida, tão cega. Como pude não reparar? Como consegui deixá-lo esconder isso de mim? Todas as vezes que faltou à aula, teve febre, que ele passou mal do nada. Como ele tinha emagrecido, como ele estava sempre tossindo e aquela maldita bronquite continuava voltando. Como ele curiosamente sempre tinha alguma festa de família em Crawley nos mesmos fins de semana em que meu pai tinha pacientes em Londres? Meu pai!
Como parecia cansado e doente da primeira vez que eu o vi na minha casa, com Sean e Brianna, visitando meu pai... Visitando seu médico. E era por isso que eles tinham mudado apenas um ano antes de se formar. Lembrei-me das palavras do meu pai: "Sean teve seus motivos". E o motivo seria morar mais perto do meu pai, seu velho amigo oncologista.
Respirei fundo uma, duas, três vezes, tentando esvaziar a mente. Doeu, porque eu ainda sentia o perfume de ao meu redor. Eu precisava me acalmar. Todas as coisas dentro do meu quarto pareciam lembrar . Então fechei os olhos e os apertei com força, porque não queria vê-las. Mas a sua presença ainda estava ali. Sua presença estava sempre ali.
Eu me sentia dopada, fraca, completamente impotente, de mãos atadas. Não havia absolutamente nada que eu pudesse fazer. Eu me sentia atacada e incapaz de me defender. Tudo que sabia fazer em resposta era chorar.
Mantive meus olhos fechados, tentando me focar no escuro das minhas pálpebras. Minha cabeça doía. Qualquer mínimo barulho fazia doer mais. Minha própria respiração, meu choro e meus soluços desesperados soavam altos demais e faziam minha cabeça vibrar, doendo ainda mais. Eu tentava não pensar em nada, mas não conseguia. O que só me fazia sentir mais impotente.
Eu chorava cada vez mais alto. Meus soluços ficaram mais violentos e irregulares. Comecei a sentir frio. Eu sentia os efeitos físicos da minha fraqueza emocional. Meu corpo sentia a dificuldade da minha mente. Meu corpo sentia a ausência da minha respiração ritmada. Precisei me sentar porque sentia que estava sufocando nos meus soluços.
Deitei-me de novo depois de alguns segundos, porque me faltava força para sustentar meu corpo sentado. Encolhi-me na cama, desejando que eu adormecesse logo. Meus olhos estavam cansados de chorar, estava ficando difícil mantê-los abertos. Eu sentia o sono me envolvendo e o desespero me abraçando. E eu adormeci. De roupa, sapato, rímel escorrendo pelo rosto e nos pensamentos.
Capítulo XXII – I’m so hollow, baby
Frio. Minha pele está arrepiada. Sinto algo me cobrir. Imediatamente me encolho embaixo da coberta que acabo de receber. Mãos quentes esfregam firme e carinhosamente meus braços e pernas, ajudando-me a afastar o frio. Dedos gentis e suaves afastam o cabelo do meu rosto e fazem carinho em mim. Uma mão quente procura pela minha, fria, e a aperta, passando-me conforto e segurança.
Fiquei por um tempo naquele ponto entre o sono e a consciência, mas fui abruptamente arrancada dele. Acordei assustada e me sentei num pulo, ofegando alto. Olhei em volta pelo quarto escuro.
- Shh, calma... Sou eu, calma. - se apressou a murmurar. – Respira. – ele falou com a voz mansa e eu obedeci. – Tá tudo bem.
Inalei lentamente. estava sentado ao meu lado, na beirada da minha cama. Ele ainda esfregava meus braços de leve. Eu me ajoelhei e me sentei em cima das minhas pernas, de frente para ele.
Nossos olhos se encontraram, e, imediatamente, como se eu não já tivesse chorado o suficiente, as lágrimas começaram a descer pelo meu rosto de novo e eu deixei meu corpo cair sobre o colo de . Ele passou os braços ao meu redor e apoiou o queixo no meu ombro.
Nenhum de nós disse nada. Permanecemos assim por muito, muito tempo. Naquela hora, eu nem me lembrava da raiva e da traição que eu tinha sentido antes. Eu só precisava do meu amigo e ele estava ali, como sempre.
Meu corpo inteiro pulava com os soluços, e permaneceu quieto, com os braços sempre firmes ao meu redor. E quando a indignação, raiva e a negação voltaram e eu comecei a me debater nos braços dele, nada mais fez além de continuar me segurando até que eu me acalmasse de novo. Eu precisava me concentrar em inalar e exalar normalmente, porque era como se meu corpo não o fizesse sozinho: eu sentia que não tinha controle sobre ele. Continuei chorando por mais tempo do que pensei que conseguisse. Desejei que além de lavar a alma, as lágrimas também resolvessem os problemas.
E por fim eu me acalmei. Minha respiração se normalizou, os soluços pararam e os caminhos das lágrimas no meu rosto secaram. Continuei encolhida nos braços de , sentindo-me pequena e fraca, mas não sozinha. Ele beijou minha testa e afastou do meu rosto meus cabelos molhados pelas lágrimas.
- Não sei o que é pior: ter que mentir pra você ou te ver assim agora que você já sabe. – ele disse, ainda com a voz mansa.
- Por que você não me contou? – perguntei logo. Minha voz estava rouca.
- Não cabia a mim, . Eu não tinha esse direito.
- Mas tinha o direito de me machucar? – rebati.
- . – sorriu triste. – Quem te machucou não fui eu. E não foi o . – ele se apressou a defender o amigo antes que eu pudesse falar qualquer coisa. – Isso é a vida. – ele riu fraco. – E você sabe que eu pararia o mundo pra te proteger, mas eu não posso te proteger da vida.
As palavras de fizeram impacto. Olhei para ele e me perguntei como é que o meu amigo foi ficar tão maduro e inteligente. Assenti com a cabeça, olhando para baixo. Ele tinha razão.
- Eu preciso saber de tudo.
- Com certeza. – concordou como se estivesse falando com uma criança pequena. – Mas eu não sou a pessoa certa pra isso.
- ! – choraminguei e ele riu.
- Não é porque eu não quero, é porque eu não sei. Eu realmente não sei muita coisa sobre isso, não sei o bastante pra poder te explicar nada. Não é pra mim que você tem que perguntar.
Bufei e assenti de novo, reconhecendo novamente que ele tinha razão. se levantou e me deu um beijo na testa, alisando meu cabelo em seguida.
- Que horas são? – indaguei. Já estava escuro lá fora, e eu não tinha idéia de quanto tempo tinha dormido.
- Quase nove. Seu pai já tá em casa.
- ? – chamei quando ele abriu a porta, fazendo a luz forte do corredor entrar pelo quarto. Levei a mão aos olhos. Ele parou e olhou para mim. – Obrigada.
Ele sorriu e assentiu levemente com a cabeça antes de fechar a porta atrás de si, fazendo o quarto mergulhar no escuro de novo.
Levantei-me e respirei fundo, decidida. Prendi meu cabelo em um coque frouxo, coloquei um moletom e saí do meu quarto. Desci as escadas certa do que ia fazer. Entrei na cozinha e vi meu pai tirando uma travessa do forno. Ele me ouviu chegando e olhou de relance para trás.
- Oi, filha! Eu fiz o jantar.
Ele colocou a travessa em cima da pia e se virou. Quando me viu parada à porta, meu pai olhou nos meus olhos e entendeu. Seu sorriso murchou. Ele suspirou, limpou as mãos no avental, puxou uma cadeira e se sentou.
Ele ficou em silêncio e apontou uma cadeira com a cabeça. Não precisei falar nada e ele já tinha entendido. Imediatamente, a vontade de chorar voltou.
- Como você pôde fazer isso comigo? – e antes que eu me desse conta, lágrimas silenciosas já desciam pelo meu rosto.
O rosto do meu pai assumiu uma expressão desconsolada assim que fiz a pergunta.
- Eu não podia. – respondeu com a voz embargada, como se doesse falar aquilo. – Eu não podia te contar, . E eu não sabia o que fazer! Não podia apoiar vocês juntos, também não podia proibi-los.
A voz do meu pai foi se perdendo.
Respirei fundo, reunindo todas as minhas forças para desistir daquela pergunta, daquela dúvida que continuava a me indignar. O porquê era o de menos agora. O importante era o que aconteceria dali para frente. Se eu fosse lidar com aquilo agora eu tinha de ser forte, sabia disso. E eu não sabia o bastante sobre o assunto para isso, mas estava disposta a aprender.
- Eu quero saber tudo. – disse simplesmente. Meu pai assentiu com a cabeça.
- Tudo bem. Pode perguntar.
- O que exatamente ele tem? – perguntei. Pensei que ele fosse hesitar, explicar sem detalhes ou tentar adiar. Mas meu pai respondeu prontamente.
- Existem dois tipos de câncer de pulmão: de pequenas células e de não-pequenas células. Só 20% dos casos é de pequenas células, e o do não é um deles, o que é bom, porque o de pequenas células tem um nível baixíssimo de cura. No entanto, o dele é do estágio II, que é a apresentação menos comum do câncer de pulmão de não-pequenas células.
Eu sabia que se parasse para pensar sobre o que ele estava falando, iria desabar. Então continuei perguntando, apenas absorvendo as informações, sem pensar demais sobre elas.
- Qual é o tratamento?
- No caso do , optamos pela quimioterapia, mas paramos logo no início porque ele não teve uma resposta muito boa ao tratamento, então iniciamos a radioterapia pré-operatória.
- Ele foi operado? – perguntei perplexa.
- Foi, mas achamos que o tumor não foi completamente removido, tá bem espalhado. – ele fez uma pausa. - E foi antes de ele se mudar pra cá. – meu pai acrescentou.
- E terapia fotodinâmica?
- Não é indicada nesse caso.
- Por que não? – perguntei, sedenta por todos os mínimos detalhes.
- Entre outros motivos, porque ela só funciona no tratamento de tumores bem pequenos.
Engoli em seco. Mais uma vez me surpreendi com a rapidez do meu pai em responder.
- Ele vai ser operado de novo?
- Uma hora, sim, provavelmente.
- Quando ele foi diagnosticado?
- Em abril.
Finalmente, saiu da minha boca a pergunta que mais me agoniava. Falei logo sem pensar, antes que eu perdesse a coragem:
- Qual é a chance de cura?
- Cerca de 30%.
Trinta por cento. Repeti o número na minha mente. Meu raciocínio estava difícil. Hesitei.
- No caso dos outros 70%...
- Quase 20% dos casos chegam a 5 anos de sobrevida.
- E os outros 80%? – perguntei apreensiva.
- Têm uma sobrevida mediana de 6 a 12 meses a partir do diagnóstico.
"Seis a doze meses". Os números ecoavam na minha cabeça. Meu cérebro começou a trabalhar rápido. Ele tinha sido diagnosticado em abril... Há oito meses. Oito. Ou seja, se tivéssemos azar, podia acontecer alguma coisa a qualquer momento dos próximos quatro meses.
- Tem como aumentar esse tempo?
- A ressecção cirúrgica costuma melhorar a qualidade de vida do paciente, mas não prolonga o tempo de sobrevida.
Com a mesma rapidez que a determinação tinha chegado, ela foi embora de novo. Aquela conversa tinha esgotado minhas forças novamente. Não voltei a chorar, porque acho que me era fisicamente impossível, mas a vontade veio.
Afundei o rosto nas mãos, desesperada por ainda não ter conseguido um alívio daquela sensação insuportável que me consumia.
- O que eu vou fazer? – perguntei baixinho, seguido por um soluço.
Meu pai se levantou, foi até mim e me abraçou. Fiquei com o rosto apoiado contra seu peito enquanto ele acariciava meu cabelo.
- Queria poder te dizer. – ele depositou um beijo no topo da minha cabeça, e, pelo tom de sua voz, eu me perguntei se ele estava chorando também. – O que for melhor pra você.
Refleti sobre o meu pai tinha dito. O que fosse melhor para mim... E só me vinha uma coisa à cabeça: o que era melhor para mim do que ?
Toquei a campainha com os dedos trêmulos, como da primeira vez que havia estado lá. Esperei. Aquela casa estava começando a me dar sensações controversas. Recordei-me de todas as vezes em que me sentira em casa ali, junto a . Lembrei então que já havia perdido as contas de quantas vezes saí de lá chorando, desejando nunca mais voltar. No entanto, lá estava eu. Confusa, machucada, buscando por apoio. E a porta se abriu.
A Sra. olhou para mim, e por um tempo nenhuma de nós proferiu uma palavra sequer, até que ela lentamente se afastou para o lado, dando espaço para que eu entrasse. Entrei com os pés vacilantes, e ela fechou a porta atrás de nós. Tirei o casaco timidamente e o pendurei atrás da porta. Eu não sabia o que fazer, mas, antes que eu precisasse fazer qualquer coisa, a Sra. esboçou um sorriso suave. Um sorriso que me dizia "que bom que você veio". E, pela primeira vez desde que a conhecera, Brianna fez algo que eu não esperava: ela levantou os braços finos e me envolveu neles. Perplexa, devolvi o abraço. Aquele abraço de mãe. De início, envergonhei-me por ela ter de consolar a mim. Porém, parada ali, abraçada à mãe de , reparei que era um gesto mútuo. Ela não estava me consolando. Nós estávamos nos consolando, confortando uma à outra.
Soltamo-nos lentamente, e eu finalmente pude retribuir seu sorriso, e esperei que, assim como eu lera o dela, ela fosse capaz de ler que o meu dizia "é claro que eu vim".
- Ele tá no quarto. – ela murmurou, apontando com a cabeça para as escadas.
Subi silenciosamente, caminhando até a porta do quarto dele, que estava fechada. Bati à porta. Não recebi resposta, então tentei novamente.
- Não, mãe. – ouvi a voz abafada de dizer, quase como uma súplica.
Sorri e bati mais uma vez. E mais uma.
- Entra. – ele respondeu, vencido.
Girei a maçaneta lentamente e abri a porta por completo, sem saber o que esperar.
estava deitado na cama de barriga para cima, encarando o teto. Pisei para dentro do quarto e ele ainda não tinha virado os olhos para mim, só o fez quando ouviu o clique baixo da porta se fechando. Ele se sentou imediatamente e ficou a me encarar em silêncio, sem esboçar reação nenhuma, sentimento nenhum. Então ele se levantou devagar. Vi engolir com força, esperando que eu fizesse o primeiro movimento. Então eu fiz.
Caminhei a passos largos até ele e o beijei. Envolvi os braços em seu pescoço e juntei nossas bocas com urgência. Senti arrepios pelo contato da minha língua com a sua. Meu corpo apreciou o calor da sua pele em contato com a minha. Eu o beijei com tudo que havia em mim. Coloquei toda minha dor, tristeza e amor naquele beijo. E me correspondeu com a mesma dor, tristeza e amor, selando os braços ao redor do meu corpo.
Separei nossas bocas, permanecendo abraçada a ele. Meu corpo inteiro estava mais leve, como se me dissesse que meu lugar era ali, o que diabos eu estivera fazendo longe de ?
Passei o nariz carinhosamente por sua bochecha.
- Desculpa. – ele murmurou. Apertei os olhos e balancei a cabeça negativamente.
- Shh...
Desencostei nossos narizes e encarei seus olhos . Por um lado, eu não queria pedir desculpas, porque sentia por um lado que era meu direito reagir como eu reagi, afinal, não foi exatamente uma notícia fácil de receber. Mas eu me coloquei no lugar de . Se eu estava com tanto medo, imagine ele? Pensei no meu namorado, que - como se a posição dele fosse fácil – ainda teve de lidar com a minha reação, com as minhas palavras, com o pensamento de que eu estava indo embora e o deixando sozinho naquele momento. Não quis pensar nos sentimentos que eu havia causado nele.
- Deixa eu primeiro? – perguntei, e assentiu com a cabeça. Afastei o corpo um pouco do dele, para que pudéssemos nos encarar direito. – Desculpa por ter reagido daquele jeito. Eu sei que foi infantil, mas eu precisava daquilo. Eu não tinha condições de lidar com isso de qualquer outra forma. Espero que você saiba que eu nunca desistiria de você agora, , porque, bem... – balancei a cabeça lentamente para os lados. – Porque eu nunca desistiria de você.
- Eu teria feito a mesma coisa. – ele devolveu no mesmo tom brando, assentindo com a cabeça. – Minha vez agora. – e sorriu fraco. - Desculpa por ter escondido isso de você, desculpa por ter câncer, desculpa por ter te envolvido nisso pra começar... – as palavras jorraram da boca dele, rápidas e inseguras, numa voz trêmula, arrependida, culpada.
- ! – eu o interrompi, horrorizada. Como ele podia se sentir culpado? Segurei seu rosto entre as minhas mãos, olhando nos olhos dele. – Não é pra você se arrepender ou se sentir culpado, entendeu? – perguntei firme. – Você é a melhor coisa que me aconteceu.
Ele respirou fundo e olhou para baixo por um segundo.
- Então desculpa por não ter te contado.
Assenti com a cabeça. Quis responder que eu também teria feito a mesma coisa no lugar dele, mas não seria verdade. Eu não teria aguentado estar no lugar dele.
- Você é tão forte. – sussurrei, passando os braços em volta de seu tronco e encostando o rosto em seu peito.
passou os braços pelos meus ombros e permanecemos assim. E eu tive certeza de que havia feito exatamente o que meu pai havia aconselhado que eu fizesse: o que era melhor para mim.
Capítulo XXIII – I get by with a little help from my friends
- Tudo bem? – perguntei, sem saber o quanto aquilo estava exigindo dele.
assentiu com a cabeça, confiante, antes de tocar a campainha.
- A pior parte já passou: contar pra você.
Apertei sua mão mais forte, torcendo para que fosse verdade, e não só mais uma forma orgulhosa dele de mostrar que era forte.
abriu a porta e nos cumprimentou com naturalidade, seguindo para a sala à nossa frente.
- Agora que os dois chegaram, a gente pode saber o que é que vocês tinham de tão importante pra falar? – perguntou curioso.
- Vocês vão casar? – chutou rindo, sentado no sofá ao lado de Charlie com os pés apoiados na mesa de centro.
- Mongol. – Charlie revirou os olhos.
- Não exatamente. – respondeu num tom divertido, lançando-me um olhar que não tinha um pingo de diversão. Mais uma vez, apertei seus dedos entre os meus com mais força.
Sentamo-nos todos, e olhou para mim de novo antes de começar a falar. Sorri, na intenção de lhe passar confiança.
- Imagino que vocês já tenham reparado que eu às vezes... Ah, eu "sumo". Falto de aula, passo mal, não vou aos ensaios... – começou com a voz tranquila. – Bem, se não repararam, fico ofendido. – brincou, esboçando um sorriso. Meu coração apertou. Não sei se estava claro para os outros, mas, para mim, era evidente que ele tentava de qualquer forma fazer aquilo ficar mais fácil, descontrair.
Agora eu via muito mais o ponto de vista dele. É claro, eu não estava vivendo na pele, eu sei. Mas sentada ao lado dele vendo seu esforço, pude ver como era a sensação dar aquela notícia, ao invés de recebê-la. Observei seu perfil enquanto olhava para a frente com uma postura firme. Mais uma vez, pensei em como ele era forte.
- Acho que chegou a hora de vocês saberem a razão. – suspirou.
Pairava agora um silêncio pesado sobre nós. Todos sentiam a tensão no ar, e os três que não sabiam – Charlie, e – já tinham captado a seriedade do assunto.
- O real motivo para... isso... É que eu tô doente. – pausa intensa. – Eu tenho câncer.
As palavras saíram da boca dele e eu prendi a respiração, temendo que fosse como ouvi-las pela primeira vez de novo. Soltei o ar lentamente pela boca. precisava que eu fosse forte, disse a mim mesma. precisava. Inclinei-me para o lado e depositei um beijo suave em sua bochecha.
olhou de relance para os outros, medindo suas reações, conferindo se estavam tão perplexos como ele. Conferindo se seria uma brincadeira, talvez? mantinha o rosto virado para baixo.
- Eu sei que ninguém sabe o que responder pra uma informação dessas. – disse apreensivo. – Mas é agora a hora em que vocês são muito bem vindos pra falar alguma coisa. – e acrescentou baixinho: - Qualquer coisa.
- Como assim? – indagou . – Quero dizer... De quê? É grave?
"É grave". Aquele jeito disfarçado – mas nem tão disfarçado assim – de perguntar: "você vai morrer?"
passou a mão pelos cabelos, bagunçando-os, parecendo escolher as palavras.
- De pulmão. É difícil responder "se é grave"... Se "grave" quer dizer que não tem mais solução, então não, não é grave. Mas se "grave" quer dizer que tem uma boa chance de eu morrer disso, bem... Então sim, é grave.
Levantei os olhos, surpresa pela resignação, pela naturalidade com que ele disse aquilo. Aquele tom fez meu coração apertar um pouquinho mais.
- Uau. – murmurou Charlie, de olhos fixos nele. Em seguida ela balançou a cabeça, como se afastasse alguma coisa de sua mente. – Desculpa. Eu sei que você disse "qualquer coisa", mas "uau" foi provavelmente a coisa mais idiota que eu poderia ter dito. – sua voz tremeu. – Eu não sei o que dizer, . Eu sinto muito, muito.
Minha amiga balançou a cabeça devagar, incrédula. Ela se levantou e andou a passos largos até nós, sentando-se no braço do sofá e envolvendo em seus braços finos. Pude vê-lo sorrir por entre as mechas do cabelo castanho claro dela que lhe caíam sobre o rosto.
e ainda estavam sentados no sofá com cara de espanto. Aquela visível expressão de dúvida estampada no rosto de ambos, misturada com a falta de coragem de falar qualquer coisa. Depois de alguns segundos, quando se desvencilhou do abraço de Charlie, eles se levantaram e foram até nós também. se levantou e foi abraçado com força pelos dois de uma vez só. Meu olhar então encontrou o de Charlie, que imediatamente entrelaçou os braços à minha volta. Com exceção de , que ainda estava sentado, estávamos todos abraçados. Imagino que a cena poderia ter parecido cômica em um contexto diferente.
Charlie, afrouxando os braços à minha volta e percebendo o mesmo, sorriu entre as lágrimas:
- Alguém mais concorda que esse momento permite um abraço grupal?
Suas palavras foram seguidas por risadas fragilizadas de todos. então se levantou, esfregou os olhos vermelhos com muita força e se juntou a nós. Rindo, olhamos uns para os outros e nos juntamos em um abraço desajeitado. Meu coração não sabia pelo que se devia deixar levar: pelo alívio e alegria imensa de lembrar que tenho os melhores amigos do mundo ou pelo aperto que senti ao perceber o peito do meu melhor amigo tremer devido aos soluços.
Fechei a porta do carro e andei a passos largos até a cerca geralmente vermelha agora coberta pela neve branca. Abri o portão e subi os degraus até a porta. Toquei a campainha e fui logo atendida por uma Charlie vestida com um gorrinho de Natal na cabeça.
- Pensei que você não fosse chegar nunca! – minha amiga sorriu e me puxou para dentro pelo casaco.
- Qual é a graça de chegar na hora? – brinquei, tirando o casaco e as luvas.
- Espero que você não siga a mesma linha de pensamento quando estiver se preparando para passar o Natal na casa da sua sogra.
Sorri com o pensamento.
- Meu pai não deixaria.
Charlie correu até o sofá e se sentou com os pés para cima. Na mesinha de centro havia várias tigelinhas com diferentes biscoitos e docinhos natalinos.
- Fiz guloseimas. – ela apontou teatralmente para a mesa. Arqueei a sobrancelha e ri.
- Quem "fiz"? – perguntei e ela bufou em resposta.
- Foi a minha avó. – admitiu. – Mas eu que escolhi!
Assenti com a cabeça.
- Então, o que você tem para mim? – Charlie perguntou exatamente como uma criança, ansiosa pelos presentes.
- Eu começo de novo? – ri. – Tá bom. Qual você quer primeiro?
- O de comer. – respondeu prontamente.
Tirei da bolsa o primeiro embrulho e o estendi para ela. Era retangular e dourado. Charlie abriu o embrulho cuidadosamente e eu vi seu sorriso crescer quando tirou de lá a caixa de bombons de marzipan.
- Ah, ! Marzipan! – ela exclamou alegre. E parou, então, em tom de reprovação: - Você tem o dom de atrapalhar as minhas dietas.
- Ano que vem eu vou te dar uma alface. – repliquei. – E o que você tem pra mim?
Charlie sorriu e me entregou um pacote. Abri-o e minha boca se encheu de água pelas trufas de menta importadas.
- Por que será que a gente sempre dá e ganha chocolate? – sorri. – Obrigada, Charlie.
Coloquei a caixa ao meu lado e enfiei a mão na bolsa.
- Qual você quer agora?
- Hmm... – ela murmurou, pensativa. – O material.
- Muito bem... Essa parte é sempre a mais difícil! Então espero que você goste do que escolhi. – tirei a maior caixa de dentro da minha bolsa.
Charlie pegou o presente que e o abriu. Era um par de sandálias vermelhas de salto, da nova coleção da Harlot.
- ! – exclamou num gritinho. – Meu Deus, você fez soar como se fosse me dar um livro, ou coisa do tipo... – Charlie fez uma careta e riu.
- Mas é que você já tem tantos... – justifiquei, apontando para as sandálias.
- Sapatos nunca são demais. – ela repreendeu. E, me passando mais um embrulho: - Toma. Pra você não é tão difícil assim.
Tirei o papel colorido e descobri um conjunto novo de lápis pastel seco. A maioria dos meus já tinha acabado. Sorri e agradeci, guardando-os cuidadosamente na bolsa. Por um instante, pensei em como estava com saudades de desenhar.
Entreguei-lhe então o último presente: a colagem de fotos e a carta. Charlie deu um sorriso enorme e colocou as fotos com cuidado em cima da mesa.
- Você é linda! – riu e me envolveu em um abraço carinhoso.
Depois de alguns segundos, o sorriso de Charlie murchou.
- Qual o problema? – perguntei surpresa, e ela suspirou.
- Seu último presente. É o que eu tava mais ansiosa pra te entregar. – explicou cautelosa, tirando um embrulho de trás de uma almofada e passando-o para mim com movimentos rápidos.
Peguei o presente e sorri, franzindo o cenho confusa, sem entender a ansiedade dela. Era um álbum. E Charlie desatou a falar numa velocidade desnecessária:
- É um álbum de recordações. Não me leva a mal, só me escuta, tá? Eu não quero te lembrar de coisas ruins, te passar pessimismo, ou qualquer coisa do tipo. Longe de mim! Mas eu sei que você agora tá passando e vai passar por momentos que vão te dar muitas memórias importantes que você com certeza vai querer guardar. Você vai querer guardar cada pedacinho dele: uma foto, um perfume, uma frase... – explicou, sem precisar citar nomes. - E eu não tô falando que você vai esquecê-lo, mas a nossa memória às vezes trai a gente, e depois de um tempo, você começa a esquecer episódios, momentos, sons, cheiros... Mesmo que não queira. Essas memórias são teimosas e vão embora por mais que a gente queira guardá-las. E eu só queria te ajudar a conservar isso tudo.
Charlie terminou e olhou para mim, esperando pela minha reação. Seus olhos imploravam para que eu não ficasse brava. Fiquei em silêncio por um momento, olhando para a minha amiga, refletindo sobre tudo que ela tinha dito. A visão realista dos fatos com a dose certa de delicadeza. Charlie sempre faz a coisa certa. Como eu poderia ficar brava?
Atirei os braços em volta dela e a abracei com força. Primeiro porque eu não sabia de que outra forma mostrar o quanto o presente era perfeito. Segundo porque era uma ótima forma de esconder as lágrimas que se formaram nos meus olhos e que insistiam, como crianças manhosas, em tentar descer.
Como eu tinha previsto, meu pai não deixou que chegássemos atrasados. Batemos à porta dos às sete horas em ponto. Fomos recebidos com muitos sorrisos. Ceiamos, cantamos e trocamos presentes, tudo de acordo com a tradição. Entreguei meu presente a , e meu coração transbordou alegria ao ver no rosto dele exatamente o sorriso que eu previra quando o comprei.
- Minha mãe ficou horrorizada quando viu o que eu comprei. – disse , franzindo o cenho ao me entregar um pequeno embrulho envolto por uma seda azul-clara. – Mas espero que você goste. Ela falou que ia parecer que eu estava tentando colocar um preço em você. – ele revirou os olhos de um jeito fofo. – E que eu deveria ter te dado um presente mais original, mas você sabe que eu não sei fazer nada direito, e se eu tentasse...
- Relaxa, . – eu ri. – Tenho certeza de que vou gostar.
Tirei do pano uma caixinha de veludo preto, que continha um par de brincos pequenos e delicados, com pedrinhas de cristais.
- A Charlie me ajudou. Quer dizer, ela foi comigo, pelo menos. Porque todos os que ela queria que eu comprasse eram bem... menos discretos.
Sorri e tirei os brincos do suporte.
- Eu amei, , eles são lindos. – tirei os meus e os substituí pelos novos. – De verdade.
Levei a mão até o rosto de e o puxei para mim, depositando um selinho demorado em seus lábios quentes.
Olhei à minha volta, sentindo-me completa. Sorri, porque pela primeira vez em muito tempo, eu senti que tinha uma família - que ia além do meu pai e Phyllis.
Capítulo XXIV – Little hope that you just might find your way up outta here "Believe the tunnel can end, believe your body can mend. I know you can make it through, cause I believe in you. So let’s go put up a fight, let’s go make everything all right."
Go – Boys Like Girls
Encostei a cabeça no vidro, encarando a paisagem lá fora coberta de neve. Não havia quase ninguém nas ruas. Meu relógio marcava 16:37 e já era noite lá fora. Por mais que eu até gostasse do frio, o começo do inverno é sempre deprimente. Não só no clima, sua chegada é clara pela mudança no comportamento das pessoas. Elas ficam mais fechadas, mais distantes, ansiosas pela volta do sol. É impossível não ficar irritada nos dias em que amanhece às nove e escurece às quatro da tarde.
Eu podia ver a praia ao longe. Soprei, e meu hálito embaçou um pedacinho do vidro. Eu sentia falta do mar. Peguei meu caderno de desenhos e a caixa de lápis novos que Charlie tinha me dado. Pensei por um momento, e então, pela primeira vez, me pus a desenhar .
Não cheguei muito longe, no entanto, porque o esboço de seus olhos no papel à minha frente me lembrou que eu tinha prometido ir visitá-lo hoje. Olhei o relógio mais uma vez. Atirei o caderno na cesta ao pé da cama de novo e fui até o armário pegar um par de meias de lã e um cachecol.
Toquei a campainha. Ouvi os passos pesados até a porta e ela se abriu. Sean olhou para mim no escuro do hall de entrada. Todas as luzes atrás dele estavam apagadas, com exceção da luz da sala, que iluminava minimamente seu rosto.
- Oi, Sean. – cumprimentei.
- Olá, . – ele respondeu com a voz suave, dando espaço para que eu entrasse.
Pisei para dentro da casa, limpando meus pés no tapete e já desenrolando meu cachecol do pescoço. Pisquei para focalizar sua expressão na escuridão, e me pareceu que ele tinha no rosto um sorriso melancólico. Olhei para a minha direita, de onde tudo que eu podia ver na sala era o sofá. Brianna estava sentada, em silêncio, o rosto voltado para os joelhos e as mãos atrás da nuca. Meu cérebro se acendeu, alarmado. O que havia acontecido?
Sean fechou a porta atrás de mim e o baque me trouxe de volta dos meus pensamentos. Tirei meus sapatos molhados pela neve e os depositei atrás da porta junto com os outros. Tirei o casaco e ele o pegou gentilmente das minhas mãos.
- Tá tudo bem? – perguntei cautelosamente.
Sean sorriu mais uma vez, muito bondoso.
- Por que você não vai até o quarto de ?
Assenti com a cabeça e me dirigi lentamente às escadas. Também não vinha nenhuma luz do andar de cima, e eu comecei a subir. Todos os meus instintos alertavam que eu me preparasse para algo desagradável. Eu não sabia o que esperar. Quando cheguei ao segundo andar, bati à sua porta, mas não esperei que ele viesse abrir. Eu mesma o fiz e entrei determinada.
estava sentado na poltrona em frente ao computador, porém virado para a porta. Ele levantou os olhos para mim, e eu esquadrinhei seu rosto rapidamente, procurando por qualquer coisa fora do normal. Tudo parecia no lugar certo. Suas mãos estavam apoiadas em cima do abdômen relaxadamente.
Um suspiro aliviado. Primeiro sinal de que estava tudo bem.
- ?
- Oi. – ele disse brandamente. Sua voz era tranquila, e arranquei dele até um sorriso suave. Mais uma onda de alívio.
- Tá tudo bem?
Seu sorriso aumentou, ainda difícil de interpretar.
- "Bem" é uma palavra muito relativa.
- Acho que seus pais não concordam. – dei um sorriso fraco. – O que aconteceu?
não respondeu, mas estendeu um papel no ar e o balançou levemente.
Caminhei até a sua cama e me sentei, estendendo a mão até o joelho dele.
- O que é isso? – perguntei, esforçando-me para soar calma.
- O resultado do meu último raio-x chegou.
Engoli em seco e sorri.
- E aí? – perguntei esperançosa, na triste ilusão de que ele fosse me dar a resposta que eu queria. O que eu sabia bem que não ia acontecer.
- Bem... As previsões estavam certas. O tumor tá bem espalhado. Não foi removido.
Ou seja, ele teria que ser operado de novo, completei mentalmente o raciocínio. Mas preferi confirmar.
- O que quer dizer que...
- Que eu vou morrer. – ele completou displicentemente, olhando pra mim como se estivesse me contando seu sabor de sorvete preferido. E eu vi de volta aquele resignado, quase frio sobre o assunto.
- Não fala assim... – ofeguei. Fechei os olhos porque não queria vê-lo olhar pra mim daquele jeito, com aquela negligência. Eu me levantei e me joguei no colo de , apertando meus braços em volta dele e afundando o rosto em seu pescoço. Respirei fundo, inalando o cheiro dele na tentativa de me dar segurança. – Não fala assim. Vai ficar tudo bem, eu sei que vai. – tirei meu rosto do seu pescoço e olhei para ele. – Você vai ficar bem, eu acredito em você. – repeti infantilmente, completamente ciente de como eu soava como uma criança naquele momento.
olhou para mim de um jeito que eu não esperava. E de um jeito que eu preferia não ter visto. Balançou a cabeça negativamente e riu sarcástico. Ele voltou a me encarar, e a dor que eu vi nos olhos dele automaticamente passou a ser minha também. Senti meu coração pesar e afundar, como se todas as veias o tivessem largado de repente. Não saberia explicar a dor que transpareceu naquele olhar.
se levantou de repente, fazendo com que eu quase caísse no chão. Ele pareceu nem perceber. Equilibrei-me e ocupei o lugar dele, observando-o apreensiva, esperando sua reação. Ele estava parado, de costas para mim. Passou as mãos pelos cabelos e os puxou frustradamente. Ele começou a andar de um lado para outro, de olhos fechados, ainda puxando os fios s com força. Então, finalmente, parou e se virou para mim. Eu podia ver seu peito subindo e descendo rapidamente enquanto ele parecia se preparar para falar comigo. abriu os olhos, e eles faiscavam.
- Se eu falar que acredito que você voa. – disse bruscamente. – Você vai voar?
- Quê? – gaguejei confusa, pega totalmente de surpresa pelas palavras inusitadas.
- Se eu falar que acredito que você vai voar, . – ele repetiu quase impacientemente. – Você vai? VOCÊ VAI VOAR? – perguntou, parecendo extremamente perturbado. Seus olhos tinham um brilho meio maníaco. Eu o encarava incrédula, o susto ainda não me deixava assimilar do que ele estava falando.
- Não. – murmurei. Minha voz mal saiu. Não passou de um sussurro rouco. Eu olhava para ele completamente perplexa, quase com medo. Os olhos de estavam levemente arregalados e ele parecia quase perigoso. Fechei o maxilar com força e me encolhi na poltrona.
- É a mesma coisa, . – ele falou, dessa vez com a voz um pouco mais suave, fechando os olhos novamente.
passou as mãos com força pelo rosto. Eu queria falar alguma coisa, mas não tinha certeza se tinha coragem. Ele respirou fundo pela boca, mas parou no meio do movimento e começou a tossir. se apoiou na estante atrás dele, e seu peito subia e descia rapidamente. Observei perplexa seu ataque de tosse. Ele ofegava, como se faltasse ar. Eu queria ajudar, mas continuei encolhida. Em parte porque sou covarde, em parte porque não sabia o que fazer.
Então eu esperei. Esperei, com as mãos fechadas em punhos, a mandíbula contraída e corpo encolhido. Fechada. Completamente retraída, na tentativa de me proteger daquilo. Para barrar aquelas palavras, aquele tom, aquele olhar, aquela cena. Fechei os olhos porque – mais uma vez – eu sou covarde. Depois de alguns segundos ele pareceu se recompor, e, quando sua respiração já tinha retomado o ritmo normal, foi a minha vez de respirar fundo e falar.
- Você teve seu tempo, . – eu me levantei para poder olhá-lo nos olhos. – Você teve tempo pra se acostumar com a idéia. Tempo de descobrir, entender e aceitar. Sabe, eu não tô falando que tenha sido fácil – de forma alguma! Mas você teve. – senti as lágrimas inundarem meus olhos e torci muito para que não caíssem. Estava ficando perita em segurar o choro. - Talvez você seja melhor que eu pra reagir com tanta resignação, tanto discernimento. Talvez eu é que seja fraca, não sei. Realmente não sei. Mas o fato é que eu não tive tempo. Não tive e não vou ter. Então, no fim das contas, a única coisa que me resta é acreditar. – nessa hora, apesar do meu esforço, as lágrimas já desciam livremente pelo meu rosto. – Porque se eu for gastar o tempo que eu preciso pra aceitar, não vai sobrar nenhum tempo com você. – sorri entre as lágrimas, tendo dificuldade em acreditar que eu realmente fiz aquelas palavras saírem da minha boca. – Então... Eu realmente preciso que você me deixe acreditar. – disse pausadamente. – Porque é tudo que me resta.
Puxei o ar com força para dentro dos meus pulmões, com a sensação de que eu tinha me esquecido de respirar. Eu me sentia mais leve.
havia escutado todo o meu discurso sem dizer nada, sem esboçar nenhuma reação. Soltei o ar pesadamente e o encarei, tentando ler seu olhar. E pude ver que assim como eu tinha visto claramente a dor dele, agora ele via a minha. Encaramo-nos por alguns instantes sólidos e estáveis, nos quais eu via e entendia a dor dele e ele via e entendia a minha. E por um tempo, nós dividimos serenamente aqueles sentimentos. Então, sem aviso, me envolveu em seus braços, pondo fim àqueles raros segundos de tranquilidade e reacendendo o turbilhão de sentimentos que ele sempre provocava quando suas mãos percorriam meu corpo.
Capítulo XXV – Damn, girl, dry your eyes
- Você não acha que já deu, Charlie? – perguntou docemente, puxando a garrafa da mão dela.
A música tocava alto e o máximo de iluminação que havia eram as luzes coloridas da boate improvisada no meio da sala. Charlie estava sentada no sofá e e eu estávamos de pé em frente a ela.
- , olha o seu namorado! – ela resmungou, tentando puxar a garrafa de volta.
- Tô vendo. – respondi pacientemente. – Você vomitou não tem nem cinco minutos, Charlie.
- Exatamente. – ela respondeu presunçosa. – Já saiu tudo. Posso tomar mais.
- Você prometeu que não ia exagerar, lembra? Você precisa se certificar de que não vão quebrar o cinzeiro da sua avó ou queimar o tapete tailandês da sua mãe, certo
Charlie arregalou os olhos em genuína surpresa.
- Certo. – assentiu com a cabeça. – Também preciso cuidar do e garantir que o não pegue aquela biscate de novo. – disse embolando as palavras.
- Quanto ao , fica tranquila. Ele tá precisando bem menos de cuidado do que você. – riu, dando dois tapinhas gentis no topo da cabeça dela.
- E quanto ao ... É ano novo, Charlie. Deixa ele se divertir.
- Claro que deixo! Mas é que o precisa de ajuda pra escolher essas coisas. Ele não é muito seletivo.
- Charlie, você se lembrou de trancar os quartos? – perguntei desconfiada ao ver o segundo casal subir as escadas.
- Não.
- Charlie! Eu é que não vou te ajudar a recolher camisinhas usadas por aí amanhã de manhã. – ralhei.
- Shh... – ela fechou os olhos e levou o dedo indicador à boca. Ao fechar os olhos, perdeu o equilíbrio e começou a pender para o lado. levou o braço ao seu ombro para endireitá-la, impedindo que caísse. – Cala a boca, . Amanhã ainda tá muito longe...
Ouvi a gargalhada de atrás de nós.
- JÁ? – ele apareceu entre mim e , abraçando-nos pelos ombros. – Porra, Charlie, você é fraquinha mesmo, hein? – riu. – Não são nem meia noite!
- Cala a boca.
- Ele tem razão. Você não queria estar bêbada na hora da virada. – comentei.
- Minha mãe diz que o que você faz na hora da virada é o que você vai passar o resto do ano fazendo. – murmurou Charlie olhando para cima com tristeza, esperando que desmentíssemos.
- Quer dizer então que você vai passar 2011 vomitando? – perguntou , que surgiu pela direita e se deitou no sofá, apoiando a cabeça no colo dela e sorrindo.
- Não! – discordou Charlie num gritinho agudo de desespero. – ? – ela perguntou, na expectativa de que eu confirmasse.
- Não se você parar agora. - prometi.
Ela assentiu violentamente com a cabeça. Charlie bêbada era como uma criança.
- Então você tem exatamente 17 minutos para ficar sóbria. – disse , consultando o relógio.
- Tá bom. Cadê a sua biscate, ?
riu.
- Aqui. – ele se agachou em frente a Charlie e bagunçou seus cabelos curtos.
- Vai se foder. – ela fechou a cara e cruzou os braços, fazendo-o gargalhar de novo.
- Vem cá, pequena. – esticou as mãos para ela, e ela as segurou. – Deixa eu te ajudar. Vem passar uma água no rosto, prender o cabelo...
E eles sumiram atrás de nós, em direção ao banheiro. olhou distraidamente para sua cerveja, balançou-a, constatou que estava vazia e a largou no chão, provavelmente indo buscar outra.
Vendo-o caminhar na outra direção, respirei fundo e falei uma coisa que eu não tinha conseguido tirar da cabeça.
- Ei, , sobre segunda-feira...
Ele suspirou.
- Dá pra gente não tocar nesse assunto pelo menos por uma noite?
- Claro. – respondi prontamente, envergonhada.
Segunda-feira, além da volta às aulas, era o dia da primeira sessão de radioterapia pré-operatória de .
Depois disso, abaixei o rosto, odiando-me por ter mencionado aquilo. percebeu, e, para o meu alívio, abaixou o rosto até o meu e depositou um beijo demorado na minha bochecha, seguido de um sorriso fofo e seus lábios grudados aos meus.
- Ela vomitou de novo?
- Não, mãe. – Charlie rolou os olhos, ainda pendurada no ombro de . – Cadê o agora, hein?
- Ele tá vindo. – apontou com a cabeça para trás.
- Bom mesmo. – ela sorriu, estendendo sua mão livre para , que veio correndo e a segurou, passando o outro braço em volta dos meus ombros no momento em que a contagem regressiva começou.
Duas meninas bêbadas à nossa frente puxaram o coro e foram acompanhadas pelo restante. Uma delas, ao tirar um pé do chão para gritar "sete", tombou para o outro lado, fazendo sua saia curta subir até o umbigo e suas coxas se sujarem de terra.
- Podia ser você. – murmurei para a minha amiga, que me mostrou a língua.
No instante em que as vozes entoaram "zero", os fogos de artifício explodiram e luzes de todas as cores surgiram no céu. Ouvi diversas pessoas gritarem "feliz ano novo" aleatoriamente, mas a voz que eu mais queria ouvir veio baixinha e clara ao pé do meu ouvido:
- Feliz ano novo. – murmurou, mordendo o lóbulo da minha orelha em seguida.Seu braço, que já estava em volta da minha cintura, me fez virar para ele, para que me abraçasse com força. Afundei o rosto em seu pescoço, sentindo seu cheiro, seu perfume, antes de levantar o rosto para e deixar que sua língua invadisse minha boca. Todos os meus membros formigaram, e meu corpo agradeceu pelo contato. Ele apertou meus quadris carinhosamente e eu afaguei seus cabelos. Eu me perguntei se os beijos de sempre teriam esse efeito em mim, se eu nunca me acostumaria à sensação de ter seus lábios junto dos meus. Todos os gritos e estouros à nossa volta eram mínimos diante das batidas do meu coração. mexia a língua agilmente, beijando-me no misto perfeito de ternura e desejo. Era assim que eu me sentia completa.
Suspirei, ainda de olhos fechados, quando nossas bocas se separaram.
- É isso que eu quero passar o ano fazendo. – falei com toda a sinceridade do mundo e sorri. Refleti sobre o que tinha dito e um pensamento desagradável me veio à mente. Abri os olhos, a testa encostada à de , e vi que exatamente o pensamento que me ocorrera passou pela cabeça dele. Mas nenhum de nós discordou. Na maioria das vezes, aceitar uma mentira parece mais seguro que o medo da verdade.
Apesar de as horas ajudando Charlie a limpar a casa, recolher garrafas e camisinhas usadas – sim, eu acabei ajudando – terem se arrastado, foi como se segunda-feira chegasse mais rápido do que deveria. As aulas voltaram, eu tive que me acostumar a levantar enquanto ainda estava escuro e colocar 3 camadas de roupa para enfrentar o caminho até o colégio. No entanto, não foi a volta às aulas que marcou o dia para mim. Para falar a verdade, aquela foi a parte insignificante do dia. O que não me saía dos pensamentos era a consulta de . Apesar de sua muito educada e silenciosa oposição, fiz questão de acompanhá-lo.
Fomos direto da escola. tinha de estar de jejum, e eu naquele momento não tinha estômago nem para água.Entramos no hospital e eu já me sentia desconfortável. Apesar da construção ser bonita, antiga e quase parecer um lugar agradável, como uma escola ou uma biblioteca, o interior do St James’ Hospital era outra coisa. Era uma energia completamente diferente. Para mim, naquele momento, não era nada mais que um lugar onde pessoas morriam e recebiam notícias ruins. Respirei fundo, tentando ver as coisas de outro ângulo: também era um lugar onde pessoas nasciam e recebiam notícias boas. É tudo uma questão de perspectiva, certo? Mas apesar do otimismo, eu estava muito incomodada. pareceu não se importar tanto quanto eu - e o motivo fez meu coração se apertar ainda mais porque era muito triste – mas talvez ele já estivesse acostumado. Ele permanecia em silêncio, não tinha dito quase nada o dia todo, só abria a boca para responder às minhas perguntas e às minhas tentativas medíocres de puxar assunto. No entanto, para o meu imenso alívio, ainda segurava minha mão firmemente. Depois de passarmos pela recepção, ele foi nos guiando até o elevador, que nos levou ao 2º andar. Caminhamos até o quarto 218, que estava vazio, com a porta aberta.
parou abruptamente à porta e se virou para mim, olhando nos meus olhos. Estranhei sua reação e tentei olhar por cima de seu ombro, mas não consegui ver muita coisa.
- Você não tem que... ir fazer alguma coisa? – balançou a cabeça, claramente insatisfeito pela escolha das palavras. – Avisar alguém que você tá aqui? Seu pai sabe? A Phyllis sabe que você não vai almoçar em casa?
Rolei os olhos pela tentativa. Eu não queria ir embora tão cedo, queria ficar com até o último minuto permitido.
- Não. Os dois já sabem. – sorri, querendo tranqüilizá-lo e fazer parecer que eu não tinha entendido seu pedido disfarçado para que eu fosse embora. Eu respeitava sua privacidade, não é isso. Mas era orgulhoso e não admitia quando precisava de mim, apesar de ser tão claro.
Entramos e eu olhei à minha volta. O quarto era confortável. Todos os móveis e aparelhos eram claramente da melhor qualidade. O cômodo era, no entanto, mórbido, completamente vazio de cores, de energia, de vida. Perguntei-me por que quartos de hospital eram brancos. Que idéia ridícula. O objetivo não podia ser outro além de levar os pacientes – e qualquer pessoa que pisasse ali dentro – à depressão.
caminhou até a cama e se sentou silenciosamente. Meus olhos acompanhavam seus movimentos, apesar de minha mente estar longe. Quando ele correspondeu meu olhar, no entanto, voltei à realidade. Um segundo depois, ouvi passos atrás de mim e me virei. Uma enfermeira alta e rechonchuda, de cabelos castanhos presos em um coque e bochechas rosadas entrou no quarto.
- Boa tarde. – ela sorriu educadamente para nós e estendeu um pano branco dobrado para . – Sr. , o senhor pode vestir isto e aguardar, volto em alguns minutos. – e se retirou.
soltou a roupa ao seu lado na cama e afundou o rosto nas mãos, esfregando-o.
- Tá vendo, ? – suspirou. – Tá tudo errado, isso aqui tá errado...
Ele fez uma pausa, e eu não respondi.
- Você não devia estar aqui. – disse por fim.
- Claro que devia, . Seus pais não puderam vir, e eu nunca te deixaria vir sozinho. – respondi calmamente.
- Não devia, não! – ele reclamou, soando um pouco como uma criança mimada. – Que merda, . – disse com a voz dura.
Respirei fundo, tentando deixar a grosseria me atingir o mínimo possível, já que ignorá-la completamente era impossível. Que merda, por que ele continuava fazendo isso?
- Pára de fingir que você não precisa de ninguém e consegue fazer tudo sem ajuda, você não precisa dar conta de tudo sozinho! – repliquei quase impacientemente.
- Então pára de agir como se você me conhecesse melhor do que eu mesmo. – retrucou rispidamente, com rancor na voz, olhando para a janela.
Inclinei o rosto, procurando pelo seu olhar. relutou em me corresponder, mas consegui por fim. Encarei seus olhos . Não havia rancor ou rispidez ali. Para falar a verdade, não havia nada. Ou havia, mas eu não sabia identificar o quê. Eu não soube interpretá-los. Senti aquela sensação nauseante na boca do estômago se intensificar. Eu não conseguia mais decifrar seu olhar. Aquilo me atingiu como um baque, e eu me obriguei a permanecer em pé. Talvez ele tivesse razão. Talvez eu não o conhecesse tão bem assim. Seus olhos estavam vazios, mas a dureza na voz de permanecia ali, ainda ecoava nos meus ouvidos. Não sou do tipo de pessoa que se deixa afetar por grosseria dos outros, mas era incrível como tinha o dom de fazer tudo dentro de mim se despedaçar simplesmente por causa de um tom de voz áspero. Comecei a me sentir sufocada dentro daquela maldita sala branca de hospital. Meus olhos se encheram de lágrimas e eu senti que minha voz ia tremer.
- Se você quer que eu vá embora, eu vou. – disse baixo, sentindo-me vencida. Eu sabia qual seria a resposta.
- Eu quero que você vá embora. – disse sem hesitar, como eu tinha previsto.
Desviei os olhos dele, que já encarava a janela de novo, e me dirigi lentamente à porta. Não me virei para ver, mas ouvi se levantar e senti sua presença atrás de mim. Quando passei pela porta, eu me virei para ele, mas antes que eu pudesse buscar seus olhos e dizer qualquer coisa, era tarde demais. O estrondo da porta se fechando à minha frente me atingiu antes da visão dela. tinha batido a porta na minha cara.
Pisquei lentamente, perplexa, e me perguntei se seria fisicamente possível que meus órgãos realmente estivessem mais pesados, como eu sentia que estavam. Se sim, a sensação de que meu coração estava se despedaçando provavelmente também era real. Fechei os olhos e levei às mãos à raiz dos meus cabelos, puxando-os em frustração. Obriguei minha mente a repassar todos os momentos em que agia assim, forçando-me a lembrar que ele não queria realmente dizer e fazer aquilo, era a perturbação do momento. precisa de mim, disse a mim mesma, por mais que não queira admitir. Bati na porta com o punho fechado e falei alto, para ter certeza de que ele escutaria.
- Sumir da minha vida não vai ser tão fácil quanto fechar a porta na minha cara, .
Encostei a testa à porta, contei até três e me virei, sentindo as pernas bambas. Estava na hora de decidir se iria embora ou se ficaria ali, correndo o risco de aborrecê-lo ainda mais. Então, inesperadamente, a porta se abriu atrás de mim, e a voz de , agora sem rancor nenhum, chegou aos meus ouvidos.
- Tá vendo, ? Esse é exatamente o motivo pelo qual eu terminei com você no começo. Eu não gosto de te ver triste, eu não quero te ver assim. Eu nunca mais quero te ver chorar, e, pior, saber que a culpa é minha! Eu não quero te fazer chorar nunca, nunca.
Ele me alcançou em dois passos largos e levou as mãos à minha mandíbula, direcionando meu rosto para o dele com firmeza. Eu não poderia deixar de olhá-lo nos olhos, nem se quisesse.
- Deixa de ser estúpido, . – eu respondi séria. – Se você não quer me ver chorar você realmente acha que a melhor opção é se afastar de mim? Presta atenção no que você tá falando.
- Acho! – ele respondeu impaciente. – Porque por mais que te fizesse chorar no começo, uma hora ia passar. E você ia ficar bem. Mas se você tá comigo você vai ser constantemente lembrada de que tem motivos pra chorar. E eu não quero que você tenha. Então, sim, eu acho que é a melhor opção. – concluiu.
Balancei a cabeça negativamente, incrédula.
- Que idéia ridícula! – levantei a voz, indignada. – Você tá se ouvindo?! Deixa de ser idiota! – eu exclamei, sentindo as lágrimas encherem meus olhos e me esforçando em mantê-las lá. - Eu prefiro chorar todos os dias da minha vida desde que eu passe todos eles com você do que chorar por duas semanas e nunca mais te ter. - senti minha voz falhar e pigarreei. – Você sabe disso. Ou deveria saber, pelo menos.
- É, . – falou agora tranquilo, ainda me encarando intensamente. Dessa vez era a voz dele que parecia falhar. Ele soltou meu rosto e deu um passo para trás. - Mas o problema – fez uma pausa, parecendo analisar se valia a pena terminar a frase – é que você não vai poder passar todos os dias da sua vida comigo. E você sabe disso. Ou deveria saber, pelo menos.
Eu não soube o que responder àquilo. parecia sempre tentar me dar motivos para terminar com ele, já que eu me recusava a deixá-lo fazer isso. E às vezes ele sabia ser incrivelmente insensível. Eu não duvidava que ele gostasse de mim, mas ele sempre deixava claro que nós não deveríamos estar juntos. Deixei as palavras saírem da minha boca sem pensar sobre elas:
- Quer saber, ? Vira homem. Se você quer terminar comigo, à vontade. Termina. – explodi. - Mas não faz como se fosse por mim, porque não é. Não é por mim porque EU sei o que eu quero. Então se você quer fazer isso e estragar tudo, vai em frente, mas pelo menos assume a responsabilidade por isso.
Meus joelhos tremeram. Respirei fundo e me apoiei na parede atrás de mim. Não sei se eles iriam ceder, mas só por precaução. Continuei encarando , lutando para que as lágrimas não caíssem. E elas não caíram. Então ele abaixou os olhos e afundou o rosto nas mãos. Suspirou pesadamente e se precipitou na minha direção mais uma vez. ergueu as mãos e segurou meu rosto de novo, a dor estampada em seu rosto e a sinceridade transbordando de seus olhos.
- . – disse com a voz firme. – Eu não sei por que eu falo essas coisas. – então ele passou os braços pela minha cintura, envolvendo-me em um abraço apertado que fez o alvoroço dentro de mim se acalmar instantaneamente. - Na verdade eu só queria que você não sofresse. Eu queria que você não gostasse de mim, e não tivesse lutado por mim nenhuma das vezes que eu provoquei uma dessas brigas idiotas. Eu queria que você nunca tivesse me olhado diferente, incentivando um sentimento que eu já tinha, mas contra o qual eu lutava com todas as minhas forças! Eu queria que você nunca tivesse me dado esperança de ficar com você, porque assim eu teria me obrigado a ficar longe de você, e hoje você não estaria aqui. Você ia estar na sua casa, na praia, na casa da Charlie, sei lá. No máximo ligando pra cá pra saber se eu tô melhor, porque nós seríamos amigos. – ele sorriu tristemente. – Não sei dizer o quanto dói saber a dor que eu causo em você, porque te fazer sofrer é a última coisa que eu quero na vida! Eu queria que você nunca tivesse se apaixonado por mim, e eu por você. – ao ouvir essas palavras, finalmente permiti que as lágrimas rolassem livremente pelo meu rosto. – Mas aconteceu, eu fui imprudente, irresponsável e egoísta, e permiti que isso acontecesse. E hoje infelizmente não tem mais nada que eu possa fazer pra reverter isso - acredite, eu faria se tivesse. E é esse o motivo de eu te tratar assim e te falar essas coisas. Porque eu queria mais que tudo que você terminasse comigo e seguisse em frente. Mas uma outra parte mesquinha e egoísta de mim quer mais que tudo ficar perto de você, porque a sua importância pra mim é absurda. E eu tenho tanto medo de você não saber disso... – encostou a testa na minha e fechou os olhos. – Medo de que além de tudo eu ainda te dê mais um motivo pra sofrer: pensar que eu não te quero. Porque eu quero. Muito, mais que tudo. Mas algum lugar da minha cabeça desfigurada ainda tenta resolver a situação, só que acho que acaba ficando ainda pior. Então eu só queria que você soubesse que apesar de todas as merdas que eu te falo e de como eu te trato como lixo às vezes, eu te amo muito. Acho que eu nunca deixei isso claro o bastante. E acho que nunca vou conseguir me perdoar pelas merdas que eu te falo. Você vai? Você me perdoa? – ele abriu repentinamente os olhos e eles me encararam, desconsolados. continuou antes que eu pudesse responder. – Porque eu só... queria que você soubesse sua importância pra mim. E o quanto eu preciso de você. Eu te amo. – repetiu.
Acho que nunca fiquei tão sem fala na vida. Abri a boca, mas não consegui pronunciar nada, tomada por um sentimento que eu não saberia explicar, mas que não cabia em mim de tão grande. Alegria, alívio, amor? Não sei. Talvez os três juntos?
- Eu também te amo. – consegui fazer aquilo sair da minha boca. Encarava seus olhos maravilhada, sentindo-me tão completa, tão feliz, que aquele sentimento me preenchia toda, explodia dentro de mim, vazava pelos poros. Torci para que ele entendesse meu olhar, porque eu não conseguia formar mais nenhuma frase coerente. Puxei seu rosto para o meu e beijei com todo aquele sentimento. Seus braços se apertaram à minha volta e sua língua respondeu aos meus movimentos. Lar. Ele era meu lar, aquilo era estar em casa, aquilo era estar inteira.
Capítulo XXVI – Fake a smile so he won’t see
A radioterapia durou cerca de uma semana, na qual resistiu, como sempre, e aguentou todas as sessões sem se queixar ou reclamar de nada uma vez sequer. No entanto, por mais que tivesse sido forte, ele passou a semana seguinte à radioterapia com pouco apetite e sentindo dores de garganta. E apesar de os efeitos terem-no deixado um pouco abatido, também não reclamou deles. Quanto a nós dois, acho que nunca antes havíamos estado tão bem, e aquilo deixava a ambos em um humor maravilhoso. Se eu achava que nossa relação era boa antes, aquilo não podia ter outro nome senão perfeição. No entanto, por mais que as coisas com corressem da melhor forma possível, eu não podia esquecer que a radioterapia se chamava "pré-operatória" por um motivo, e esse motivo estava chegando. seria operado no dia seguinte, e, em contradição à paz que estar com ele me dava, aquilo estava me corroendo por dentro.
Meu pai já tinha me explicado como tudo ocorreria. seria operado por uma equipe de três médicos, entre eles meu pai, fora a equipe de enfermeiros. Acho que nunca, nem antes nem depois, eu me senti tão nervosa quanto para aquela cirurgia – e não era uma ansiedade boa. A previsão era de que a cirurgia durasse cerca de 4 horas, e eu poderia ver antes e depois – se tudo corresse bem. "Se". Aquela palavrinha que muda tudo. "Se" eu não tivesse dito isso, "se" não tivesse acontecido aquilo. Se tudo corresse bem.
Segunda-feira de manhã, fui sozinha com para a escola, porque meu pai e já estavam em Londres. O hospital local não comportava nenhuma cirurgia mais complexa que a retirada de uma pinta ou qualquer outra coisa inútil do tipo. Eu iria de trem para Londres depois da escola. Meu pai não queria que eu faltasse à aula, mas não teve coragem de me proibir de ir – por mais clara que fosse sua contrariedade.
Tentei prestar atenção às aulas – em parte porque reparei que minha vida emocional tinha começado a interferir demais na minha vida escolar e em parte porque eu precisava me distrair. Provavelmente pelo segundo motivo, consegui me concentrar, apesar de todos aqueles assuntos me parecerem insignificantes e fúteis. Acho que minha mente simplesmente precisava de um refúgio, e todos aqueles professores tagarelando sobre o surgimento da república na Espanha e o funcionamento dos espelhos côncavos foram um escape eficiente.
Quando cheguei à estação de trem, encaminhei-me diretamente a uma das máquinas. Escolhi o trem que saía às 13:34, dali a quase 10 minutos. Coloquei as moedas na fenda à minha direita e ouvi o barulho metálico delas batendo no fundo, enquanto a máquina aceitava meu pagamento numa lentidão quase dolorosa. Por fim, o aparelho emitiu meu bilhete e eu caminhei pelo saguão quase vazio até a Plataforma 1. No caminho, um homem passou correndo por mim, provavelmente tentando alcançar um trem que já fechava as portas à minha esquerda. Na pressa, um papel todo escrito caiu de sua bolsa e foi levado pelo vento no segundo seguinte. Perguntei-me se aquilo faria falta. Enquanto isso, um garotinho saía de um SevenEleven de mãos dadas à mãe, chorando porque ela não quis comprar um bagel. Quis ir até ele e aconselhar que fosse grato por o maior de seus problemas ser constituído de nada mais que leite, farinha e canela. Mas ele não me entenderia.
Cheguei à Plataforma 1 e me sentei, esperando que o trem chegasse. Ajustei meu cachecol em volta do pescoço para me proteger do vento frio. Quando chegou, esperei que todas as pessoas aglomeradas em volta da porta entrassem primeiro, sem paciência nenhuma para aquela pressa de entrar antes que os lugares se acabassem e as portas fossem fechadas. Subi e olhei para os dois lados. O vagão à minha esquerda estava lotado, então segui pelo da direita, em que os bancos de quatro pessoas estavam relativamente vazios. Continuei andando até o próximo vagão, que tinha cadeiras duplas, porque assim haveria menor chance de alguém se sentar perto de mim. Não estava apta a lidar com pessoas naquele momento. Sentei-me à janela e encostei a cabeça no vidro. Tirei meu cachecol e minhas luvas, liguei meu iPod, coloquei os fones de ouvido e liguei a música, desejando que aquela uma hora e meia passasse rápido. Então me deixei distrair pela música.
Conferi as horas. Só 15 minutos haviam se passado. Fechei os olhos e mergulhei em Silverchair de novo. Quando abri os olhos mais uma vez, tive a impressão de ter cochilado, e meus olhos estavam pesados. A comissária de roupas azul-marinho passava com o carrinho com café, chocolates e variados. Recusei com um sorriso educado e um sinal negativo com a cabeça. Olhei o relógio de novo e já eram 14:30. Levantei os olhos para a tela acima do corredor. Estávamos adiantados: parada em Waterloo em 16 minutos.
Antes que me desse conta, estava caminhando pela estação, felizmente em direção ao balcão, e não a mais uma das malditas máquinas. A atendente tinha grandes olhos castanhos e as raízes louras apareciam em seus cabelos pintados de preto que pediam um retoque. Ela me atendeu fria, quase maquinalmente, e informou que meu trem sairia em 3 minutos da Plataforma 3, à direita no final da escada rolante.
A Waterloo Station era sem dúvidas muito maior e mais cheia que a de Southsea. Tive a confirmação do quanto gostava de morar em uma cidade menor. Gosto de observar as pessoas ao meu redor, mas o saguão estava tão lotado de pessoas andando apressadas em todas as direções que não era possível. Um homem mal humorado e apressado que gritava ao celular passou ao meu lado, empurrando-me com força contra a parede, lembrando-me mais uma vez de porque eu morava em Southsea. Senti meu celular vibrar entre meus dedos.
"Ganhei tantas caixas de chocolate que você casaria comigo agora sem pensar duas vezes. Tá chegando? Xx "
Encarei a tela do meu celular, completamente dividida entre a felicidade pelo bom humor de e uma sensação de vazio triste demais para ser posta em palavras. Depois de meses juntos e de sentir que eu o conhecia tão bem, ainda me surpreendia todas as vezes. Sua maturidade e resignação sempre me faziam sentir tão pequena, tão indigna dele. Decidi deixar a felicidade pelo seu bom humor vencer e respondi sua mensagem.
As cinco paradas até a estação de South Kensington me pareceram quase mais demoradas que a viagem desde Southsea. Provavelmente culpa da minha ansiedade crescente. Desci do trem, e agora só me faltava seguir até o fim da Fulham Road. Estava a menos de 3 minutos do meu destino final. Eu andava com o rosto abaixado, olhando para o chão, tentando afundar as maçãs do rosto no cachecol porque o vento frio do inverno castigava meu rosto.
Quando cheguei aos portões altos do Royal Mardsen Hospital, atravessei-os e passei pelas árvores secas cobertas de neve me perguntando se o interior seria tão pouco convidativo quanto o do último hospital que havia visitado. Não era. Só o contraste de temperatura já me fez inspirar mais aliviada enquanto desenrolava o cachecol do pescoço e tirava as luvas e o casaco. Caminhei até o balcão de madeira clara onde uma atendente simpática me atendeu olhando nos meus olhos. Ela pediu documentos de identificação e então me entregou um cartão que dizia "Visitante". Com ele passei pela catraca à minha frente e fui orientada a seguir pela direita até o terceiro andar, Wallace Wing. Subi as escadas observando tudo ao meu redor. O corrimão prateado impecável, os degraus de vidro sob meus pés, as paredes em tons pastéis à minha volta. Pelo menos não eram brancas.
Cheguei a uma sala de espera espaçosa, com grandes sofás marrons. Havia plantas e flores espalhadas sobre os móveis de vidro e quadros pendurados nas paredes verde-água. Mais à frente, bebedouros e máquinas de café, de salgadinhos e essas coisas estavam enfileiradas. Ao lado da máquina de café, levando um copinho branco descartável aos lábios, para meu profundo alívio estava meu pai. Vestindo sua roupa branca impecável e uma prancheta na mão, meu pai pousou os olhos em mim quando abaixou o copo e abriu o braço na minha direção. Caminhei até ele e recebi um sorriso, tudo o que eu precisava. Abracei-o e ele afagou meus cabelos, depositando um beijo na minha testa.
- Como foi a viagem? – perguntou tranquilo.
- Tudo bem. E por aqui?
- Tudo bem.
Meu pai fez um sinal com a cabeça para a esquerda, seguindo pelo corredor, e eu o acompanhei. Apesar da decoração deste hospital ser consideravelmente mais convidativa, não posso dizer que estar lá era agradável. Continuava sendo um hospital, eu continuava ali por um motivo horrível, e cada pedacinho de mim estava ciente disso. A sensação comprimindo a boca do meu estômago, que já me atormentava desde o momento em que abri os olhos naquela manhã, só fizera crescer numa velocidade desmedida desde que eu passei pelas portas do lugar. Reparei que as portas à minha direita eram os quartos ímpares, e senti quando meu pai segurou meu ombro de leve, indicando que entraríamos ali. A placa na porta aberta indicava o número 341, e eu já conseguia reconhecer vozes familiares. Talvez até uma risada.
Era agora. A hora de controlar aquela sensação que me maltratava, começava no estômago e subia, espalhando-se como uma doença por todo o meu corpo, atingindo todos os meus órgãos e membros, comendo tudo por dentro de mim. Aquela fraqueza, aquele medo do que poderia acontecer a seguir. A vontade de dizer que não estava acontecendo, que eu não conseguia, não queria, e sair correndo dali. Mas eu precisava esconder aquilo de . Lembrei-me da mensagem que recebera mais cedo. Imaginei o sorriso em seu rosto. Respirei fundo, juntei toda a força que tinha em mim e forcei um sorriso.
Quando adentramos o quarto, a visão que tive me ajudou a sustentar, por alegria, o sorriso que eu abrira por necessidade. Brianna estava sentada na cama com as mãos entrelaçadas nas de e um sorriso no rosto. Sean estava sentado na cadeira ao lado deles olhando na direção da esposa e do filho, que já vestia aquelas horríveis roupas brancas que são dadas aos pacientes. A roupa fazia parecer ainda mais magro e doente, mas, para o meu consolo, ele sorria. Os três pareciam bem e felizes, e a visão aqueceu meu coração. O sorriso no rosto de se alargou ao se deparar com o meu.
- !
Caminhei até a cama e Brianna afagou meu ombro de leve e se levantou, dando espaço para mim. Depositei um beijo na testa de e sorri para seus pais, ocupando o lugar de Brianna ao seu lado.
- Oi. Como você tá? – afastei alguns fios da sua testa e alisei seus cabelos.
- Eu tô ótimo. – respondeu genuinamente, e meu coração se apertou um pouquinho. Como ele conseguia ser tão resignado? E então eu senti vergonha de novo. Enquanto eu reclamava do tempo, de uma roupa manchada, de uma unha quebrada, estava deitado em uma cama de hospital, prestes a ser operado para retirar um tumor, sorrindo. Então ele continuou, tirando-me dos meus pensamentos: - Tô com um pouco de fome. Não pude comer desde ontem à noite, mas se não parar pra pensar nisso, nem sinto. Mas e você, tudo bem? Perdi alguma coisa interessante na escola? – riu.
- Deixa eu ver... Conseguimos convencer a Sra. Pullman de que ela já aplicou a prova. De novo. – rolei os olhos.
- Ótimo. Uma prova a menos que eu perco. – brincou.
- Você não precisa se preocupar com isso, meu amor. – disse Brianna, colocando uma mecha dos cabelos louros atrás da orelha. – Depois a gente resolve tudo.
- Não preciso me preocupar com provas? – repetiu sorrindo. – Vou sentir falta de ouvir você falando isso, mãe.
Então meu pai voltou. Bateu duas vezes na porta aberta para chamar nossa atenção e entrou, seguido de uma enfermeira que empurrava uma cadeira de rodas.
- Estamos prontos pra você, .
Brianna ofegou discretamente ao meu lado e Sean se levantou e deu a volta na cama, parando ao lado do filho para ajudá-lo a descer da cama.
se levantou, apoiando-se no braço do pai, que passou a bolsa de soro para a enfermeira. Ele caminhou até a cadeira e se sentou cuidadosamente. A mulher foi guiando o caminho empurrando a cadeira pelo corredor comprido, sendo seguida por nós. Quando chegamos à porta do CTI, a enfermeira segurou a porta aberta enquanto Brianna se posicionou à frente do filho. Ela sorriu, segurou o rosto dele entre as mãos e depositou um beijo em sua bochecha.
- Vai dar tudo certo, mãe. – a tranquilizou baixinho e ela riu fraco.
- É claro que vai.
Sean se abaixou e imitou a esposa, pousando a mão no ombro do filho e o apertando de leve. Eu me inclinei diante de e depositei um selinho suave em seus lábios. Ele sorriu.
A enfermeira perguntou educada:
- Está pronto? – assentiu com a cabeça. E, dirigindo-se a nós, disse sorrindo: - Vamos cuidar bem dele.
E ela saiu, atravessando as portas brancas que se fecharam atrás deles.
Eu e os pais de nos dirigimos então ao "espaço-família" do outro lado do corredor. Apesar do exterior antigo, tudo lá dentro era moderno. A cafeteria ao lado tinha paredes de um roxo-escuro convidativo. A sala não estava muito cheia. Havia algumas pessoas assistindo distraídas à TV, lendo revistas ou simplesmente paradas, esperando. Juntei-me a eles. Como fazer daquelas 4 horas – na melhor das hipóteses – menos insuportáveis?
Esperei. Encarei a televisão. Não consegui prestar atenção. Tomei um café. Encarei a janela. Lixei as unhas. Tomei outro café. Cochilei mesmo assim. Acordei com os gritos manhosos de uma garotinha ao meu lado, que, como eu, esperava alguém. Ela, pelo visto, não via sentido nenhum nisso. Tomei outro café. Coloquei meu casaco e saí, brincando um pouquinho, com a ponta dos sapatos, com a neve gelada sob meus pés. Arrependi-me de não fumar. Não é isso que as pessoas fazem em filmes em situações como essa? Ir lá fora fumar um cigarro para relaxar? Admirei-me pelo pensamento. E meu namorado lá dentro, em uma sala de cirurgia, sendo operado por câncer de pulmão. Irônico. Pisei em um galho seco que se quebrou ruidosamente. O ar cortante tinha cheiro de neve. Eu costumava gostar daquele cheiro. Voltei para dentro porque estava frio e aquilo não estava ajudando em nada. Conferi o relógio pela primeira vez. Uma hora havia se passado. Uma?! Só uma. Olhei para Brianna. Sorrimos. Imaginei o que estaria acontecendo lá dentro naquele momento. Parei, porque eu não fazia a mínima idéia, e ficar imaginando só me deixava mais nervosa. Sean apareceu, meia hora depois, com sanduíches e suco e insistiu que comêssemos. Comi um pouco.
Levantei-me e fui até a janela, olhando a paisagem lá fora. Estava tudo escuro. Se não estivesse acostumada ao inverno, teria me iludido. Mas ainda não eram nem 18 horas. Abri a boca e expirei, embaçando o vidro. Fiz um rabisco espiral. Não sei por quanto tempo fiquei parada ao lado da janela. Voltei para o sofá e decidi me proibir de consultar o relógio, apostando comigo mesma que não aguentaria esperar nem até a propaganda do romance francês que passava na televisão. Ganhei a aposta. Ou perdi, como quiser. O fato é que consegui não olhar as horas, porque adormeci de novo. Numa posição bem pouco confortável, diga-se de passagem. Acordei sentindo os músculos da nuca e ombros protestando. Massageei a nuca e alonguei o pescoço. Esfreguei os olhos com a sensação de que tinha dormido por muito tempo. Olhei à minha volta e vi que o número de pessoas tinha diminuído bastante. O filme francês ainda passava na TV, mas eu não estava entendendo nada porque estava com preguiça de ler a legenda. Sean e Brianna estavam sentados na outra ponta do sofá. Ele assistia ao filme e ela dormia serenamente, com a cabeça apoiada no ombro do marido. Peguei meu celular no bolso para olhar as horas. Sem bateria, ótimo.
- São 19:33. – murmurou Sean.
- Já? – surpreendi-me. – Alguma notícia?
Ele apenas negou com a cabeça.
Comecei a prestar atenção ao filme, mas ele acabou antes que eu pudesse entender qual era a história. Eu não sabia como fazer o tempo passar. Tinha a sensação de que simplesmente não suportaria a espera. E, para meu profundo alívio, sem que eu percebesse, caí no sono de novo.
Abri os olhos lentamente. Olhei à minha volta. Além de Sean e Brianna, só havia mais duas pessoas na sala. Esfreguei os olhos e me aprumei no sofá, surpresa por ter dormido tão pesado. Não tinha idéia de quanto tempo havia se passado.
- Que horas são?
- Nove e meia. – respondeu Brianna.
- Nada ainda?
Ambos negaram com a cabeça.
Mais de cinco horas. Respirei fundo e passei as mãos pelo rosto, para que acordasse completamente. Estalei os dedos, um por um. Então, inesperadamente, vi de relance uma figura conhecida surgir pelo corredor. Levantei a cabeça tão subitamente que senti os músculos do meu pescoço se torcerem, e levei à mão à nuca por impulso. Levantamo-nos, os três, imediatamente, enquanto meu pai caminhava na nossa direção.
Tudo parecia no mais completo silêncio. Não sei se realmente estava, ou se era minha atenção que estava inteiramente focada no meu pai. Busquei por qualquer coisa que pudesse interpretar: seu aspecto facial, sua expressão corporal. Tentei decifrar o médico por trás dele: como seria sua postura se estivesse prestes a dar uma notícia ruim? Ele faria suspense? Como daria uma notícia boa? Ele não já teria sorrido? Mas meu pai não me deu uma dica sequer. Parecia completamente neutro, imparcial.
A sensação era de que ele andava numa lentidão proposital. Finalmente, ele nos alcançou. E falou, sem fazer suspense ou mistério, como qualquer médico teria feito se minha vida fosse um filme:
- A operação foi concluída sem complicações. está estável e tudo indica que fomos bem sucedidos, mas não podemos tirar nenhuma conclusão até o próximo raio-x. Ele está no quarto agora, vai passar a noite em observação e muito provavelmente não vai acordar antes de amanhã.
Não sei o que exatamente eu estivera esperando ouvir, mas aquelas palavras foram uma bomba de alívio. Explodiram em meus ouvidos e se espalharam por todo meu corpo, permitindo aos poucos que eu relaxasse meus membros tensos. Abaixei o rosto e o cobri com as mãos, soltando o ar pela boca. Era como se o alívio fosse tão grande que meu corpo não aguentava. Mas eu tinha de me lembrar das palavras do meu pai: "não podemos tirar nenhuma conclusão até o próximo raio-x". Porém, naquele momento, meu cérebro fazia questão de frisar o " está estável e tudo indica que fomos bem sucedidos". Ouvi que meu pai, Sean e Brianna continuaram conversando, mas meus ouvidos bloqueavam tudo. A única coisa que eu ouvia era a crescente esperança dentro de mim.
- ? – Sean chamou e eu olhei para cima. – Eu te levo até a estação.
- O quê? – perguntei confusa. - Não, eu vou ficar.
- Não tem necessidade. – meu pai me cortou. – Ele não vai acordar tão cedo, e só há acomodação para um acompanhante aqui. Sean vai para um hotel e é melhor que você vá pra casa descansar.
Assenti com a cabeça. Não tinha forças para discutir e, para falar a verdade, uma noite bem dormida na minha cama não faria mal nenhum.
- Ele está em boas mãos. – meu pai completou sorrindo. – Prometo que você vai ficar sabendo se houver qualquer novidade. – continuou tentando me convencer sem necessidade.
- Tudo bem. – concordei e meu pai pareceu satisfeito.
Sean já estava de pé me esperando. Peguei minha bolsa, levantei, fui até meu pai e o abracei com força, murmurando contra seu peito:
- Obrigada, pai.
Capítulo XXVII – All you did was save my life
Fevereiro chegou trazendo boas notícias. Depois do aparente êxito na cirurgia, fez todas as seções de fisioterapia pós-operatória de boa vontade. Não que ele costumasse reclamar de qualquer coisa, mas suas esperanças estavam, assim como as minhas, renovadas. Ou pelo menos eu pensava que estivessem.
O primeiro raio-x depois da operação estava marcado para aquela tarde, e Brianna, que não gostava que andasse de metrô ou fizesse qualquer coisa que ela considerasse esforço demais, fez questão de nos levar de carro, apesar da oposição do filho. se recusava a se privar de atividades do dia-a-dia ou mudar sua rotina em qualquer aspecto.
tinha agendada uma sessão de tomografia computadorizada, que, segundo meu pai, consiste em diversas imagens de raio-x e fornece informações sobre o tamanho, forma e localização do tumor.
Respirei fundo antes de adentrarmos o St. James Hospital, já esperando uma onda de agonia e estresse. Para minha surpresa, continuei caminhando firmemente, de mãos dadas a , até o balcão. Compreendi que estava ficando como : acostumada àquele lugar. Pela primeira vez, não tive a sensação de que sufocaria dentro daquelas paredes tão pobres de cor e de vida. O que, como tudo na vida, poderia ser visto como algo bom ou algo péssimo. Bom porque, obviamente, sentir aquela aflição que hospitais me causavam não era exatamente divertido. E ruim porque, mais obviamente ainda, habituar-se a uma situação como essa é extremamente triste.
Fomos encaminhados para o andar certo e nos sentamos no sofá em frente à porta do corredor que levava à ala radioterápica. levou as mãos ao rosto, esfregando-o, e eu reparei no quanto seu pulso estava fino.
- Tá tudo bem? – perguntei calmamente. Já tinha aprendido quando perguntar só por precaução e quando realmente me preocupar.
assentiu com a cabeça e sorriu, olhando para mim. Eu também tinha aprendido a não soar preocupada, por mais que estivesse. mantinha o braço esquerdo apoiado no braço do sofá e a cabeça apoiada na mão, o rosto virado na minha direção. Seus olhos, no entanto, estavam fechados. Apertei de leve a mão que eu segurava, acariciando as costas de sua mão com o polegar. sorriu.
- ? – ele abriu os olhos. – Como funciona? A tomografia.
- Você tem que ficar imóvel numa mesa enquanto uma máquina fira em torno de você e tira as imagens.
- Por quanto tempo?
- Mais ou menos meia hora. Geralmente, depois das primeiras imagens, injetam um contraste radioativo em você, então repetem a série.
Meus olhos analisavam cuidadosamente seu rosto enquanto eu prestava atenção total ao que falava.
- Contraste radioativo? – repeti, curiosa.
- Uma substância opaca para raios-x, para definir melhor as estruturas do corpo. – respondeu pacientemente, e então tossiu. As tosses de vinham ficando cada vez mais longas, produzindo um ruído áspero e seco. levou a mão à garganta e eu imediatamente tirei da bolsa a garrafa de água que sempre levávamos conosco.
- Desculpa. – eu disse, balançando a cabeça para os lados em reprovação e passando a água para ele. – Eu fico te enchendo com todas essas perguntas.
riu, exibindo seus dentes brancos e fazendo seus olhos brilharem.
- Qualquer coisa é melhor do que esperar em silêncio. – disse com a voz levemente rouca, antes de levar a garrafa à boca.
Sorri triste, olhando para baixo, e admiti em voz baixa:
- Às vezes fico pensando se eu não te causo mais estresse que qualquer outra coisa.
- Ei. – disse carinhosamente, levando a mão até meu queixo para que eu olhasse para ele. - Se é que você fez alguma diferença na minha saúde, foi pra melhor. Se não fosse por você eu não teria suportado nem metade dos meses a mais que eu passei. Eu teria morrido bem antes.
- Não fala assim. – desviei os olhos para a janela à minha direita.
- Mas é verdade! – os olhos dele brilharam e ele sorriu inocentemente.
- Não fala como se você estivesse morto. – respondi baixinho. – Como se não tivesse mais solução.
- Mas não...
- Para. – eu o repreendi, olhando para ele desta vez. – Não gosto que você fale assim. A gente é quem escolhe no que acreditar.
não me contrariou. E então ficamos calados, ambos. Odiava aquele silêncio. Menos de um minuto depois, consultou o relógio.
- Não deve demorar muito mais. Você já pode ir, se quiser. – disse com a voz macia. Virei o rosto para ele de novo e o encarei, tentando interpretar seu olhar. – Talvez seja melhor você ir. Eu te ligo mais tarde.
Demorei a responder. Não por conseguir interpretá-lo – isso eu fiz em um segundo. Mas por não saber o que falar para fazê-lo entender. Sua boca me pedia para ir, mas seus olhos imploravam que eu ficasse. Respirei fundo e disse calma e simplesmente:
- . Aceita que eu te amo e pronto. E que eu não vou te deixar sozinho agora. – disse da forma mais sucinta que pude.
Assim que as palavras saíram da minha boca, pude ver o alívio se espalhar por seu rosto. E posso afirmar, com enorme satisfação, que nunca mais me pediu para ir embora, duvidou dos meus sentimentos ou tentou me provar que não deveríamos estar juntos.
Abri os olhos lentamente, espreguiçando-me na cama. Bocejei, esfreguei os olhos e me virei preguiçosamente. Estendi a mão até meu celular na mesa de cabeceira e, ao pegá-lo, um pedacinho de papel subiu no ar e foi caindo até sumir embaixo da cama. Sentei-me e me inclinei em direção ao chão, tateando pelo tapete para achar o papel. Virei-o na posição correta e li, numa caligrafia fina e levemente inclinada: "O amor nasce de pequenas coisas, vive delas e por elas às vezes morre."
George Byron
Sorri. . Era dia 14 de fevereiro, Valentine’s Day. e eu tínhamos combinado – ele, na verdade, tinha "imposto" – que a programação do dia inteiro estaria por conta dele. Eu só tinha de estar disponível. E também estava proibida de dar qualquer presente a ele – por mais que eu tivesse protestado contra isso.
Olhei as horas no meu celular: eram quase 11 e meia. Chutei meu edredom para o lado, vesti minhas pantufas e fui até o armário me trocar. Ao abri-lo, mais um sorriso se espalhou pelo meu rosto. "Só existe uma lei no amor: tornar feliz a quem se ama."
Stendhal
Depois de trocar de roupa e escovar os dentes, peguei meu celular e liguei para .
- Bom dia! Feliz Valentine’s Day! – exclamei sorrindo assim que ouvi sua voz do outro lado.
- Bom dia, linda.
- Já posso saber o que vamos fazer hoje?
- Você acabou de acordar?
- Sim.
- Já tomou café?
- Não.
- Então toma seu café, depois me liga e aí eu te falo. – orientou com a voz doce. – Tudo bem?
- Combinado.
Deixei meu celular na cama e desci, sorrindo sozinha, ansiosa por um dia inteiro ao lado de . Meu pai estava no consultório e Phyllis estava de folga, de modo que eu precisaria inventar sozinha alguma coisa para comer. Acabaria fazendo um café e comendo uma barrinha de cereais. Eu era completamente inútil na cozinha. Há muito tempo eu havia chegado à conclusão de que sem Phyllis eu morreria de fome ou de um enfarto, depois de passar a vida inteira comendo nada além de McDonald's e lasanhas prontas.
Perdida em pensamentos, fui pega completamente de surpresa pela visão que tive ao adentrar a cozinha. Parei e arregalei os olhos, atordoada.
estava sentado numa cadeira na ponta oposta de uma mesa caprichosamente arrumada em tons de vermelho e um prato exibindo uma pilha de panquecas em forma de coração, enfeitadas com chantilly e morangos cortados em pedacinhos pequenos. A cena inteira parecia irreal.
- ! – exclamei, abrindo a boca em espanto. Realmente não tinha esperado aquilo.
sorriu abertamente pela minha reação. Ele se levantou, caminhou até mim e depositou as mãos em meus quadris.
- Feliz Valentine’s Day. – disse sorrindo e me beijando em seguida.
Posso dizer com segurança que não conheço muitas maneiras melhores do que essa de começar um dia.
Depois de separar os lábios dos meus, puxou uma cadeira para mim e nós nos sentamos.
- Como você entrou? – perguntei rindo.
- Seu pai abriu pra mim.
- Você tá aqui desde a hora que ele saiu?! – espantei-me. assentiu com a cabeça, enquanto servia panquecas no nossos pratos.
- Prepare-se para comer as melhores panquecas da sua vida. – disse sorrindo convencido.
- E desde quando você é tão experiente na cozinha? – perguntei rindo, enquanto colocava syrup no prato.
- Não sou experiente na cozinha. - corrigiu . – Mas eu sei fazer panquecas.
E, realmente, sabia fazer panquecas. Estavam deliciosas, exatamente como tudo mais naquele café da manhã – especialmente a companhia de .
Depois de comermos, me disse para subir e me arrumar, pois ele estaria de volta em 15 minutos. Ele não me disse aonde iríamos, mas disse que eu não precisava me produzir, bastavam roupas confortáveis. Com medo de me vestir inadequadamente, optei pelo mais básico possível: jeans, camiseta e tênis.
Quando voltou, vestia o mesmo que eu, além de uma mochila bem cheia nas costas e um sorriso no rosto. Vesti meu casaco e saí, trancando a porta atrás de mim. Desci os degraus até a rua e falei, ainda de longe:
- Posso saber aonde vamos agora?
sorriu, claramente apreciando minha curiosidade.
- Você anda muito apressada. – disse antes de pegar minha mão com seus dedos finos e me encaminhar na direção da casa dele. Imaginei se tinha algo preparado lá, mas vi que não quando passamos por ela e continuamos subindo a rua.
Andamos por um pouco mais de cinco minutos, durante os quais tentei adivinhar o que tinha planejado para hoje, desde coisas simples como ir ao cinema a suposições extravagantemente clichês, como um jantar romântico à luz de velas e música ao vivo. Não recebi nada de além de risadas, exceto quando perguntei se ele nos levaria a uma vidente para ler nossas mãos. Ao que ele respondeu que sim.
Quando eu estava prestes a explodir de curiosidade, parou em frente à última casa da Mapple Road. A casa tinha dois andares, era feita de tijolos marrons e acinzentados e janelas brancas. então se virou para mim, jogou a mochila para frente, tirou algo de lá e pegou minhas mãos de novo. Reparei que o que ele segurava eram duas rosas vermelhas envoltas em plástico transparente.
- São pra mim? – tentei adivinhar, sem fazer idéia de onde estávamos e que casa era aquela.
- Na verdade, não. – respondeu vitorioso, sorrindo divertido.
Estreitei os olhos, segurando a vontade de rir.
- Posso saber pra quem é que você vai dar flores no Valentine’s Day além de mim?
- Aqui dentro – apontou a casa com a cabeça – mora uma garotinha chamada Sally. Sally tem cinco anos e tem um tumor em volta do nervo ótico.
Surpresa pelo assunto, o sorriso sumiu do meu rosto.
- Certo. – respondi apreensiva, esperando pelo resto da explicação.
- Eu nunca te contei... Mas algumas vezes voluntariei para o Marie Curie Cancer Care. É uma instituição de caridade que tem como objetivo dar apoio a pacientes de câncer e seus familiares. Fui voluntário fazendo visitas a pacientes. Você pode ajudar de várias formas: visitar as pessoas, ser motorista, ajudar a arrecadar fundos em eventos... No Valentine’s Day todos os voluntários se dividem e cada um dos pacientes associados à fundação recebe uma visita. Essas rosas são vendidas pela instituição por 1£ para arrecadar dinheiro.
- Você nunca tinha comentado... Isso é lindo, . – disse emocionada.
- O tumor de Sally não pode ser operado, devido ao local e tamanho. – continuou . – Então ela está fazendo quimioterapia. Hoje ela tem mais uma sessão e daqui a um tempo, um homem chamado Jim, que é motorista voluntário, vem buscá-la. E a gente tá aqui pra fazer companhia pra ela enquanto ele não chega. - finalizou, abrindo um sorriso meigo.
- , isso é... lindo. – repeti, maravilhada. Mas por mais que eu já sentisse vontade de entrar e segurar a garotinha nos meus braços sem nem mesmo tê-la conhecido, não sabia se estava preparada para aquilo. – Mas eu... Eu posso fazer isso? Quero dizer, eu nunca fiz nada do tipo, não tenho nenhuma experiência! Não é preciso ter...
- É preciso ter boa vontade. – me interrompeu, ainda exibindo seu sorriso brando. – Só isso.
Então passou uma das rosas para mim, virou-se para frente e tocou a campainha, apertando minha mão forte na sua.
Depois de alguns segundos, ouvimos a porta da frente ser destrancada e passos até o portão. O rosto de uma mulher relativamente jovem apareceu por trás do portão branco, e ao nos ver seu rosto cansado se iluminou num sorriso da mais pura alegria.
- Olá, . – ela disse, estendendo a mão para ele.
- Bom dia, Naomi. – ele sorriu e apertou sua mão. – Esta é a . Ela também veio nos fazer companhia hoje.
- Muito prazer, . – a mulher estendeu a mão para mim também, dando espaço para que entrássemos.
Caminhamos pelo jardim até a porta enquanto ela dizia:
- Sally esteve ansiosa a manhã toda. Está sentada na sala assistindo TV.
Quando entramos, Naomi trancou a porta atrás de nós e nos dirigimos para a sala. De longe eu podia ouvir o som da televisão ligada em algum desenho animado. Adentramos o cômodo, mas o sofá, virado de costas para nós, parecia vazio.
- Sally, amor? – Naomi chamou. – Olha quem tá aqui!
Imediatamente, o corpinho pequeno de uma menina apareceu de um pulo no sofá onde estivera deitada. O rosto da menina se iluminou antes mesmo de ela ver quem era. Quando viu, soltou um gritinho agudo.
- !
Ela subiu nas costas do sofá e atirou os braços para cima sorrindo, e foi ao seu encontro e a envolveu em seus braços.
- Hey. – a levantou do sofá – com visível esforço – e a colocou no chão, ainda abraçado à menina.
Ela estava vestida num pijama de algodão cor-de-rosa repleto de estrelas coloridas. Seus membros eram finos e pareciam pequenos demais em relação à sua cabeça, completamente careca, onde levava uma faixa de cabelos também rosa. se ajoelhou ao lado dela e, ao mesmo tempo, os dois levantaram para mim os olhos envoltos em círculos escuros.
- Esta é a . – disse . – E ela também vai ficar com a gente hoje.
- Oi, . – a menina respondeu, estendendo a mão para mim elegantemente.
- Oi, Sally. – respondi sorrindo. – Como você está?
- Bem. Tá passando Tom & Jerry. – comentou displicentemente, dando a volta no sofá e se sentando novamente.
Eu e a acompanhamos, sentando-nos um de cada lado dela.
- Sally, princesa, a mamãe vai preparar seu suco, tudo bem? – disse Naomi sorrindo. A menina concordou com a cabeça, os olhos fixos na televisão. - Vou estar na cozinha, se precisarem de mim. – disse para mim e .
- E aí, o que você quer fazer hoje? – perguntou , consultando o relógio em seguida. - Temos quase uma hora até Jim chegar.
Sally desviou os olhos da tela.
- Vocês sabem jogar Ludo?
- É claro que sim. Eu ganho de você todas as vezes. – brincou.
- Não ganha, não! – Sally protestou ofendida. E, virando-se para mim: - E você?
- Sei. Mas acho que não sou tão boa quanto vocês dois. – admiti.
- A caixa tá em cima da mesa. – ela disse, apontando para o lado oposto da sala para que fosse buscar o jogo.
Enquanto montávamos o tabuleiro, ela perguntou:
- Vocês são namorados?
Olhei para , deixando que ele respondesse. Ele sustentou meu olhar e sorriu, antes de dizer:
- Sim. Ela tá aprovada? – perguntou, tirando um peão de um saquinho e passando-o para Sally. – Eu sou o verde.
A menina me analisou, sorrindo.
- Ainda não decidi. – gargalhou, aquela risada contagiante de criança. - Eu nunca tive um namorado. – disse então, olhando para mim. Senti um nó na garganta.
- Mas aposto que você tem um monte de amigos e uma família bem legal.
- Tenho. Minha mãe faz chocolate quente sempre que eu estou me sentindo mal. E minha melhor amiga chama Abby. Ela ficava no quarto ao lado do meu, antes de me deixarem voltar pra casa. Ela ainda tem cabelos. Foi ela quem me deu essa faixa. – Sally disse sorrindo. Sim. Sorrindo.
Senti, em um instante, meus olhos se encherem de lágrimas.
- Fica linda em você. - disse sinceramente, emocionando-me mais ainda ao ver a menina ajeitar a faixa sobre a cabeça, sorrindo vaidosa.
- Podemos começar? – perguntou , exibindo o dado.
Olhei para e Sally, sentados um ao lado do outro, e reparei em como parecia, contraditoriamente, mais saudável e mais doente ao mesmo tempo ao lado dela. De repente seus braços me pareceram muito mais finos que antes, suas olheiras mais fundas e escuras e seus cabelos com menos brilho. No entanto, em comparação com ela, não parecia tão doente assim. As olheiras de Sally eram ainda mais escuras e seu corpo inteiro parecia ainda mais frágil. Sua pele inteira era pálida e fina, até sua cabeça exposta. O que era extremamente triste. A visão de uma criança, tão pequena e inocente, naquele estado era forte demais. Ninguém deveria passar por aquilo. Mas ali não era hora de chorar. Era hora de ter boa vontade, certo? Lembrei-me das palavras de e engoli o choro. Afinal de contas, até Sally sorria abertamente, achando graça de alguma bobeira que falara.
- Tenho uma prima chamada Sally. – comentei quando a garota olhou para mim. Meu comentário pareceu enchê-la de encantamento, assim como tudo fazia.
- Sério? – tudo para ela parecia motivo de alegria. – E minha antiga professora de artes chamava !
- É mesmo? – sorri, tentando demonstrar o mesmo fascínio que ela pela coincidência. – Você sabe o que "Sally" significa?
Ela balançou a cabeça para os lados.
- O quê?
- Princesa. Em hebraico.
Depois de uma hora que passou incrivelmente rápido, o tal Jim veio buscar Sally. Despedimo-nos dela, e ela foi embora, acompanhada da mãe e levando apertadas nas mãos as duas que rosas havíamos trazido.
Não sei explicar a sensação de vê-la indo embora. Tão pequena, tão forte e resignada. Sally e tinham claramente isso em comum. Foi uma experiência dessas de limpar a alma e renovar suas energias.
Depois fomos almoçar – um almoço bem tarde, dado que tínhamos tomado café quase ao meio dia – e fez questão de me levar a um restaurante que não tivesse decorado tudo em vermelho e rosa, enfeites de coração e cardápio especial para aquele dia. Porque era isso que todos faziam, e ele disse que queria que eu tivesse um Valentine's Day diferente de todos os outros que teria pela frente, então comemos em um restaurante japonês. Depois caminhamos até o Southsea Leisure Park, que ficava a não muito mais que 10 minutos dali. O parque não era muito grande, mas tinha uma área verde muito bem preservada. Ficava no topo de um morro e, apesar da primavera ainda não ter chegado completamente, as árvores já tinham começado a se livrar daquela morbidade cinzenta que o inverno trazia.
esticou uma manta na grama e nos sentamos. Já eram mais de cinco horas e o sol já estava se pondo. De onde estávamos sentados, tínhamos uma visão perfeita. Tudo à nossa volta estava deserto, tínhamos aquela vista toda para nós. E era uma das coisas mais lindas que eu já tinha visto. passou o braço pelo meu ombro e virou o rosto para o meu. Acariciou meu rosto com a ponta do nariz, contornando minha maçã do rosto. Então ele me beijou, e seus lábios estavam frios como o ar à nossa volta. Sua língua, no entanto, estava quente e se movia de acordo com a minha, encaixando-se perfeitamente à minha boca. afastou o rosto do meu suavemente e me encarou. Então afastou alguns fios de cabelo do meu rosto.
- Pronta pra receber seus presentes?
- ! – choraminguei. Não só ele tinha me comprado um presente, mas ele tinha comprado "presentes"? – Nós combinamos que não haveria presentes!
- Não. – discordou sorrindo. – Nós combinamos que você não poderia me dar nenhum presente.
Abri a boca em indignação.
- Achei que o acordo valesse para ambas as partes. Por que você pode me dar um presente e eu não posso?
- Porque você é ingênua e não soube negociar. Agora... – se virou, puxando a mochila que estivera carregando o dia todo. – Vou te pedir para fechar os olhos, parar de reclamar e esperar um pouco.
Bufei, fechando os olhos em seguida.
- Você tá roubando. – disse sorrindo. Sim, pude vê-lo sorrindo porque eu estava, de fato, olhando.
- Não estou!
- Vire as costas, . – e acrescentou, quando eu estava prestes a protestar: - Sem discussão.
Obedeci e me virei, sentando-me de costas para . Durante alguns minutos, pude ouvi-lo abrir a mochila e mexer em coisas aleatórias, mas não soube identificar o que era nenhuma delas. Em um momento, tive a impressão de ouvir algo parecido com um isqueiro acendendo. Eu arrancava pedacinhos da grama no chão à minha frente, esperando curiosamente, quando ouvi sua voz naquele tom brando que eu tanto amava:
- Pode olhar.
E quando o fiz, para minha completa surpresa, toda a manta estava coberta por diferentes objetos. Corri os olhos por tudo aquilo. Um buquê de flores com lírios, rosas e orquídeas, todos em tons de rosa e roxo. Alguma coisa feita de um tecido fino e verde claro dobrado. Um ursinho de pelúcia pequeno, felpudo, do tamanho da palma da minha mão, de pelo caramelo. Um coelhinho de chocolate Lindt, envolto em papel dourado. Um globo de neve com um boneco de neve e um pinheiro dentro. Um relógio de pulso prateado deitado sobre um livro grosso de capa azul-marinho, que, pude ver depois, era uma coletânea das seis obras de Jane Austen. Por último, um cupcake com uma vela acesa no topo. E começou a falar:
- Eu sinto que nos conhecemos há anos, apesar de serem só um pouco mais que seis meses. Mas tem tanta coisa que nós ainda não fizemos juntos... E talvez nunca faremos. Então eu quero te compensar por isso. – ele disse, sorrindo em seguida. Ao falar de novo, sua voz começou a tremer: - E tentar te dar um pouquinho de tudo isso agora, porque eu não sei se vou estar aqui quando for a hora. – então pegou o ursinho e o passou para mim. Seus olhos começavam a parecer molhados. – Pra começar, feliz dia da mulher. – disse rindo. Em seguida abriu um sorriso divertido e eu o acompanhei.
- Obrigada. – disse solenemente, fungando e mantendo o sorriso para segurar a vontade de chorar.
- E feliz St. Patrick's Day. – e me passou o tecido verde claro, que eu pude identificar como uma escarfe. – Sua peça de roupa verde para o dia. – continuou, pegando o buquê: - Pelo começo da primavera, que provavelmente não vamos poder ver juntos. – e, ao falar essas palavras, lágrimas finas correram pelo rosto de . Sem perder tempo, ele pegou o relógio de pulso e o estendeu para mim. – Pra você não perder a hora, quando o verão voltar e você passar horas no píer desenhando. – disse antes de me mostrar um sorriso em meio às lágrimas que continuavam a escorrer silenciosas. Pegou então o pesado livro da Jane Austen. – Pra quando o outono começar, e você estiver se entediando em casa porque está frio demais pra ir desenhar no píer. – apesar do meu rosto todo molhado, cada palavra, cada presente arrancavam de mim uma risada. Eu amava ver o quanto me conhecia. Então ele pegou o globo de neve. – Pela chegada do inverno, que eu não vou estar aqui pra ver. – ao dizer isso, me encarou. Percebi que ambos pensamos exatamente a mesma coisa: a falta do "provavelmente". – E, por último... Feliz aniversário, . – disse por fim, estendendo o cupcake à altura do meu rosto para que eu apagasse a vela.
A essa hora o sol já tinha se posto, e eu soprei, deixando-nos no escuro completo do parque. A esta altura, minhas lágrimas desciam livremente pelo meu rosto, e eu não era a única. Inclinei-me para frente, aproximando-me de . Senti seu cheiro, e eu podia ver que seus olhos e a ponta do seu nariz estavam vermelhos. Envolvi-o nos meus braços, apertando-o forte contra mim. Nossos rostos molhados se encostaram e eu coloquei as mãos dos lados do rosto de , segurando-o de frente para mim. Então beijei sua testa, suas pálpebras, sua bochecha, queixo e, por fim, lábios. Não cabiam palavras naquele momento.
Cheguei em casa por volta das nove. Tentei subir as escadas sem fazer barulho, porque a casa estava toda em silêncio, então meu pai provavelmente já tinha ido se deitar. Eu ia passar a noite na casa de , então ele ficou me esperando na sala enquanto eu subia para buscar algumas coisas.
Adentrei meu quarto, fechei a porta suavemente e acendi a luz. Fui até meu armário, peguei uma bolsa qualquer e, quando me virei, reparei que havia um papel pendurado na porta do armário. Estava colado à madeira com durex e eu puxei cuidadosamente para não rasgá-lo. Desdobrei o papel e vi na mesma caligrafia dos outros bilhetes dessa vez um texto preenchendo quase a folha inteira.
"Depois de algum tempo, você aprende a diferença, a sutil diferença, entre dar a mão e acorrentar uma alma. (...) E começa a aceitar suas derrotas com a cabeça erguida e olhos adiante, com a graça de um adulto e não com a tristeza de uma criança.
E aprende a construir todas as suas estradas no hoje, porque o terreno do amanhã é incerto demais para os planos, e o futuro tem o costume de cair em meio ao vão. (...) E aceita que não importa quão boa seja uma pessoa, ela vai feri-lo de vez em quando e você precisa perdoá-la por isso. Aprende que falar pode aliviar dores emocionais.
Descobre que (...) você pode fazer coisas em um instante das quais se arrependerá pelo resto da vida. E o que importa não é o que você tem na vida, mas quem você tem na vida. E que bons amigos são a família que nos permitiram escolher. (...)
Descobre que as pessoas com quem você mais se importa na vida são tomadas de você muito depressa, por isso sempre devemos deixar as pessoas que amamos com palavras amorosas, pode ser a última vez que as vejamos. Aprende que as circunstâncias e os ambientes têm influência sobre nós, mas nós somos responsáveis por nós mesmos. Começa a aprender que não se deve comparar com os outros, mas com o melhor que se pode ser. Descobre que se leva muito tempo para se tornar a pessoa que quer ser, e que o tempo é curto. (...) Aprende que ou você controla seus atos ou eles o controlarão, e que ser flexível não significa ser fraco ou não ter personalidade, pois não importa quão delicada e frágil seja uma situação, sempre existem dois lados.
Aprende que heróis são pessoas que fizeram o que era necessário fazer, enfrentando as consequências. (...)
Aprende que maturidade tem mais a ver com os tipos de experiência que se teve e o que você aprendeu com elas do que com quantos aniversários você celebrou. (...)
Aprende que quando está com raiva tem o direito de estar com raiva, mas isso não te dá o direito de ser cruel. Descobre que só porque alguém não o ama do jeito que você quer que ame, não significa que esse alguém não o ama com tudo o que pode, pois existem pessoas que nos amam, mas simplesmente não sabem como demonstrar ou viver isso.
Aprende que nem sempre é suficiente ser perdoado por alguém, algumas vezes você tem que aprender a perdoar-se a si mesmo. (...) Aprende que não importa em quantos pedaços seu coração foi partido, o mundo não para para que você o conserte. Aprende que o tempo não é algo que possa voltar para trás.
Portanto... Plante seu jardim e decore sua alma, ao invés de esperar que alguém lhe traga flores. E você aprende que realmente tudo pode suportar... Que realmente é forte, e que pode ir muito mais longe mesmo depois de pensar que não pode mais. E que realmente a vida tem valor e que você tem valor diante da vida."
William Shakespeare'
Ao terminar de ler, encostei as costas na parede atrás de mim e deixei que meu corpo escorregasse por ela até o chão. Afundei o rosto nas mãos e chorei como uma criança, abraçada à carta. Todas as palavras escritas ali, escolhidas perfeita e cuidadosamente por , tinham um significado totalmente adequado a nós. Senti cada pedacinho de mim absorvendo a verdade daquelas palavras, enquanto meus olhos se desfaziam em lágrimas. Não sei dizer por quanto tempo me esperou no andar de baixo.
Capítulo XVIII – I’d withstand all of it to hold your hand
Acho que as pessoas esperam que eu diga que eu e ficávamos juntos o tempo inteiro, todos os dias e todas as noites, e que eu nunca me cansava da sua presença. A última parte é, de fato, verdade. Mas talvez o motivo seja exatamente que nós não ficávamos juntos o tempo inteiro. Eu o via quase todas as manhãs, porque fazia muita questão de ir à escola. Além disso, passávamos muito tempo juntos, sim. Mas estava quase sempre cansado, então muitas vezes dormia cedo e frequentemente precisava descansar à tarde. O que, por um lado, era bom, porque eu não vou fingir que não precisávamos de tempo para nós mesmos, como qualquer outro casal. Tudo era muito intenso e, às vezes, uma "pausa" da realidade para respirar era muito útil. Precisávamos de tempo para digerir toda a situação. E algumas horas sozinha eram uma ótima pausa. Não me entenda mal: eu apreciava estar com , e não é como se nos víssemos pouco. Mas eu acho que manter nossos hábitos individuais foi uma ótima escolha, ao invés de nos sufocar com a presença constante um do outro. Evitamos transformar o que tínhamos de mais precioso em algo rotineiro e comum. Fazia com que cada minuto ao lado dele fosse prazeroso, mesmo que não tivéssemos absolutamente nada para fazer.
Logo no começo de março, pudemos perceber que aquele seria um bom ano. O sol começou a aparecer cedo no mês, e a temperatura deu sinais de que iria subir. Estávamos quase na metade de março, no fim do recesso de primavera, e tinha faltado à escola na semana anterior porque estava com febre e completamente sem voz. Então ficou quase duas semanas inteiras sem ir à aula. O que o incomodou, pois odiava ter que ficar em casa.
estava sentado na cama dedilhando seu violão. Olhei o calendário do meu celular e, lembrando-me dos meus presentes de Valentine’s Day, uma coisa me ocorreu.
- Viu? – eu disse subitamente, sorrindo. – É St. Patrick’s Day daqui a três dias. E você tá aqui. Assim como esteve no dia das mulheres. E para o começo da primavera... – enumerei.
- A primavera começa dia 21 de março. – protestou, sorrindo. Sua voz ainda estava rouca.
- Ah, cala a boca, ! Nem vem! – exclamei, rindo. Eu me levantei e abri a cortina atrás de mim, deixando a luz entrar. – Isso não é primavera pra você?
se rendeu e sorriu, deixando o violão de lado.
- Quer ir à praia? – perguntou, e o som de sua voz era quase um sussurro.
Apesar da temperatura estar agradável, estava de casaco, porque sentia frio muito facilmente. Caminhávamos de mãos dadas pela orla. Eu estava descalça, os sapatos nas mãos para que pudesse pisar na água. Estava bem fria, mas eu gostava da sensação. Andávamos lentamente para não se cansar. A praia estava completamente vazia, e era bom pensar que tínhamos aquilo tudo para nós. Só ouvíamos o som das ondas batendo e alguns pássaros que passavam sobre nossas cabeças. Caminhamos até o píer, onde estendemos uma coberta no chão de madeira e nos sentamos, observando o mar. Respirei fundo, sentindo o cheiro do vento e da água salgada. O mar me acalmava.
passou o braço em volta dos meus ombros, puxando-me para recostar-me contra seu peito e repousando o queixo no topo da minha cabeça. Aninhei-me contra seu pescoço, sentindo o cheiro de seu perfume e o frio de sua pele. O corpo de agora estava constantemente frio. Ao contrário de antes, quando eu procurava seu corpo para me aconchegar no calor de sua pele, eu agora espalmava minhas mãos nela, na tentativa de aquecê-lo. pigarreou. Quando ventava forte demais, eu sentia seu corpo se contrair, protegendo-se, e ele tossia.
levantou sua mão de aparência frágil e afastou do meu rosto os cabelos que o vento tinha bagunçado. Então depositou um beijo carinhoso na minha testa. E disse, de repente, baixinho, como que poupando a voz:
- Eu te amo. E amei o tempo inteiro. Até quando não quis olhar nos seus olhos nem ouvir sua voz. Mesmo as vezes que deixei você ir embora ou, pior, as vezes que te pedi para ir. Mesmo que eu não faça mais parte da sua vida ou esteja longe, eu te amo.
Desencaixei meu rosto da curva de seu pescoço e levantei os olhos para ele.
- Você sempre vai fazer parte da minha vida.
sorriu. Então tocou meu queixo e eu levantei a boca em direção à dele. Meus sentidos, de uns tempos para cá, tinham ficado muito mais apurados. Os toques de eram mais suaves, sua voz era mais baixa e seus movimentos eram sutis. Através de um pigarro eu sabia se ele estava me chamando, se precisava de água ou se não era nada. Meu corpo obedecia aos seus mais delicados toques e, pelo tom e rouquidão de sua voz, eu sabia o quanto estava cansado. Descansei minha boca contra a dele e esperei, apreciando o contato. Até que abriu levemente a boca e eu deixei que sua língua causasse choques contra a minha e espalhasse calor ao meu corpo, apesar de suas mãos frias na minha mandíbula. Embrenhei minhas mãos em seus cabelos e aprofundei o beijo, ansiando por sentir cada pedacinho dele que pudesse. me correspondeu e abaixou as mãos, deslizando-as pelo meu corpo suavemente, empurrando-me levemente para trás. Meu corpo obedeceu imediatamente e eu me deitei de costas. Afagou seu rosto quando nos fitamos durante o curto tempo em que nossas bocas ficaram separadas. se inclinou sobre mim, nossos lábios se reencontrando, e acariciou minha pele por baixo da roupa. O contato brando de suas mãos contra minha pele me fez ofegar. Eu praticamente não sentia seu peso sobre mim. afastou minhas roupas lentamente e eu fiz o mesmo com as suas. Ele levou a boca ao meu pescoço e distribuiu beijos ali, acariciando-me com a ponta do nariz. Com destreza, me assegurou mais uma vez de que eu era só dele e ele era tudo que eu queria. Beijos, sussurros, toques, prazer, suspiros, minutos repletos de sentimento e desejo.
Depois de algum tempo me beijando suavemente, separou nossos lábios.
- Eu daria tudo para ter te conhecido antes. – ele murmurou tão baixo que era de se esperar que eu não ouvisse. Mas eu ouvi. Todo o meu foco, meu sentimento, meu eu, estavam voltados para ele, completa e inteiramente em função dele. Meus lábios se abriram num sorriso fraco.
- Eu daria tudo para ficar com você... Depois. – sussurrei.
Eu ouvia nossas respirações e sentia meu coração bater. Sinceridade e realismo pairavam no ar. "Depois". Depois do quê? Questionei em meus pensamentos, por mais que soubesse exatamente do quê. Mas não tinha de haver, necessariamente, um "depois". Poderíamos ter um agora, um amanhã e amanhãs pelo resto de nossas vidas. Quem disse que não podia sobreviver ao câncer? Perguntei desafiadoramente a mim mesma. Ele tinha 30% de chances de cura, não tinha? Ou, sendo dos 70% que não são curados, pelo menos 20% de chance de viver até cinco anos a partir do diagnóstico. Pensando rápido, fiz as contas de cabeça. Isso eram o quê, 14%? Menos do que a chance de cura. A probabilidade de cura era ainda maior que a de cinco anos de sobrevida! Isso era bom, não era? Uma oportunidade de ser otimista. Não era impossível. Só era difícil. E quanta coisa improvável já não foi provada possível? Além disso, o resultado de seu último exame tinha sido tão animador... Você ouve o tempo inteiro histórias de pessoas que sobreviveram a quedas de avião e desabamentos, acidentes de carro e incêndios. Pessoas que sobreviveram a dias soterradas, feridas ou sem alimentos... O corpo humano aguenta muito mais do que a gente pensa! Meu cérebro trabalhava a mil, coletando desesperadamente fatos para provar a mim mesma que eu tinha razão. E, naquele momento, fiz uma coisa que não me lembro de nunca antes ter feito. Eu rezei. Não diria que sou ateia, mas também nunca fui religiosa. Nunca soube no que acreditar. Mas ali eu rezei para que Deus, o Universo, ou qualquer que fosse a força maior, que eu fizesse alguma coisa. Porque naquele momento não havia absolutamente nada ao meu alcance. Apertei os olhos e pedi ajuda, depositando todas as minhas esperanças naquilo. Tantas coisas inesperadas, tantas situações improváveis... Por quê, então, meu Deus, eu deveria acreditar que não poderia sobreviver a uma porcaria de um tumor no pulmão?
Capítulo XXIX – Believe it, hold on to me and never let me go
Subi os degraus até a porta e entrei em casa, depois de ter levado até a dele. Estávamos voltando da escola e, apesar da minha casa ser antes, eu o acompanhava até o fim da rua e depois voltava para minha casa.
Larguei a mochila e as chaves no sofá ao meu lado e me dirigi até a cozinha, onde podia ouvir Phyllis mexendo em pratos e talheres. Quando entrei, ela estava terminando de colocar a mesa, e respondeu antes que eu perguntasse:
- Salmão, brócolis e batatas.
Reparei que a mesa estava posta para dois.
- Você vai comer comigo? – alegrei-me. Phyllis tinha todas essas manias esquisitas de comer às 11 da manhã, só beber água e, no mínimo, 30 minutos depois de comer. Ela sorriu e negou com a cabeça.
- Seu pai está em casa. – explicou. Franzi o cenho. Plena quinta feira e meu pai estava em casa para o almoço?
Então ele entrou na cozinha. Ao me ver, sorriu, caminhou até mim e beijou minha testa. Ele não estava de jaleco, nem mesmo de roupas brancas, então provavelmente não retornaria mais ao consultório.
- Tudo bem? – perguntou, puxando uma cadeira para se sentar.
- Tudo, e você?
- Também.
- Não vai trabalhar hoje?
- Tirei a tarde livre. – respondeu, sorrindo.
Meu pai destampou as travessas e começou a se servir, então disse:
- Phyllis? Será que você poderia nos dar licença um minuto?
Olhei para os dois, estranhando, mas meu pai parecia muito natural. O que me pareceu ainda mais estranho. Acho que nunca antes em minha casa Phyllis tinha sido pedida para deixar um cômodo. Ela era da família.
Phyllis secou as mãos no pano de prato que segurava, pendurou-o no suporte e fez que sim com a cabeça, antes de sair silenciosamente, provavelmente tão surpresa quanto eu.
- O que foi isso? – perguntei, encarando-o de olhos semicerrados.
- Precisamos conversar. – meu pai declarou. Ficamos em silêncio por um segundo, até que ele se levantou, foi até a porta e a fechou.
- Eu fiz alguma coisa? – perguntei, sorrindo, sem entender aquela cerimônia toda.
- Eu não podia fazer isso.
- Isso o quê?
Meu pai estava começando a me preocupar.
- O que vou fazer agora. Eu não posso, mas você é minha filha, e não há regra, norma, promessa ou lei que eu não quebre por você.
- Do que você tá falando, pai? – perguntei, confusa, controlando minha voz, tentando manter a calma. Meu pai nunca agia daquela maneira.
- Cometemos um erro com .
- Que erro? – perguntei imediatamente, antes que ele pudesse falar mais nada. Aquela frase já tinha despertado o desespero em mim, e meu pai pôde ouvir isso claramente na minha voz.
- Calma. Não é exatamente um erro. Pelo menos não tão grande. Mas fomos um pouco precipitados quanto à data do raio-x depois da cirurgia, e pedimos que ele fizesse outro.
Inspirei lentamente. Tudo bem. Isso não era grave. Eu tinha esperado coisa pior.
- E quando ele vai fazer? – indaguei, já mais tranquila.
- Ele já fez.
Surpreendi-me de novo. não tinha sequer mencionado outro exame.
- Ele não me contou nada. – eu disse desafiadoramente, quase negando. Como se o fato de não ter me contado fosse tornar tudo mentira.
Meu pai continuou:
- E eu já tenho o resultado.
Voltei a me sentir aflita. Por que ele estava falando daquela maneira?
- E...
- E eles não parecem muito otimistas. – fez uma pausa, e suas palavras saíram com dificuldade: - Se eu fosse você, não criaria esperanças demais. – meu pai disse, brandamente.
- O que isso quer dizer? – perguntei, mais uma vez desafiadoramente, antes que as palavras realmente fizessem sentido aos meus ouvidos.
Meu pai suspirou e respondeu lentamente:
- Que há uma boa chance de não conseguir.
E, pela primeira, vez eu vi o médico no meu pai. Termos sutis e eufemismos. Ele falou comigo exatamente como falaria à namorada de um paciente. Não à sua filha. Exceto pelo fato de que ele não daria informações "internas" à namorada de seu paciente. Eu encarava a comida intocada à minha frente enquanto ela esfriava. Minha mente trabalhava para processar as informações que meu pai me dava, porque minha vontade era – como já estava virando costume – negar tudo e sair correndo.
Respirei fundo e disse, lentamente:
- Você tá dizendo que ele vai morrer?
Meu pai escolheu bem as palavras:
- Estou dizendo que é pouco provável que ele se recupere. - e sua voz tremeu levemente.
- É impossível?
- É improvável. – repetiu, meneando a cabeça. Então meu pai se inclinou para frente na cadeira, olhando fundo nos meus olhos. – Eu não quero ser negativo. Não quero tirar suas esperanças. Tenho tanto orgulho da sua força, ... – suspirou. - Mas eu preciso te preparar. – meu pai quase sussurrava. Tive a impressão de que seus olhos estavam molhados. E então balançou a cabeça para os lados, sorriu triste, dando de ombros, e finalizou: - Você não pode ficar esperando um milagre.
Assenti com a cabeça lentamente. Meu olhar estava perdido e, como eu tinha aprendido a fazer, bloqueei meus sentidos. Não ouvia ou enxergava nada, porque precisava absorver aquelas palavras antes de me atordoar com mais informações. Bufei, sentindo-me uma criança, porque estava cansada de sentir aquilo. Cansada de continuar recebendo informações que exigiam tanto de mim.
Forcei palavras a saírem da minha boca.
– Tudo bem. Obrigada, pai. – disse, mecanicamente.
E me levantei, abri a porta e saí pisando mole. Aquilo não era possível. As coisas não podem dar tão errado assim, podem? Eu não queria que dessem! Além do mais, meu pai poderia muito bem estar enganado, não? Ele mesmo disse que não era impossível que sobrevivesse. No entanto, pensei, meu pai não falaria aquilo se não realmente acreditasse que fosse verdade, falaria? Coloquei a mão no corrimão e subi as escadas puxando meu corpo para cima pela força das minhas mãos, porque meus pés pareciam desprezar meus comandos. Alcancei o topo das escadas e fechei os olhos, numa tentativa infantil de impedir que as lágrimas caíssem. Tentei pensar claramente por um segundo. Certo, eu tinha de aceitar que meu pai nunca diria isso a não ser que realmente acreditasse. Caminhei até meu quarto, puxei uma caixa debaixo da minha cama e a depositei sobre a colcha. Abri-a e encarei o conteúdo.
Respirei fundo. Eu precisava seguir o conselho do meu pai: precisava me preparar. Talvez estivesse na hora de me conformar. Mas eu sabia que, bem no fundo, independente do que meu pai dissesse, uma parte de mim continuaria esperando por aquele milagre.
Quando saí do meu quarto de novo já era noite. Estava escuro lá fora e todas as luzes da minha casa estavam apagadas, com exceção da do quarto do meu pai, de onde saía luz por baixo da porta. Desci as escadas e saí, trancando a porta atrás de mim.
Havia poucas luzes acesas na rua e tudo estava silencioso. Perguntei-me que horas eram e, quando cheguei à porta da casa de , peguei meu celular. 23:37. Droga. Meu raciocínio estava lento. O que fazer? Eu não podia tocar a campainha àquela hora. Também não podia voltar para casa. Fora de cogitação. Eu precisava vê-lo.
Arfei, ainda um soluço preso das horas seguidas de choro, e encontrei seu número nas ligações recentes. Ao ouvir sua voz ao telefone, sussurrei, afobada:
- ? Eu quero muito te ver. Eu preciso te ver! – corrigi. – Eu posso te ver? – balancei a cabeça, frustrada, sentindo-me retardada. Eu não devia ter atrapalhado o sono dele! – Quer dizer, deixa pra lá. Desculpa! Eu devia ir embora. Você tava dormindo?
Ouvi sua risada ao fundo, e o som dela me fez sorrir. Não. Eu não devia ir embora. Eu devia vê-lo!
- Calma, . – então ouvi um barulho de metal se arrastando acima da minha cabeça. Joguei o pescoço para trás e me encarava, debruçado na janela. – Quem diz que namorar é chato... Definitivamente nunca conheceu uma garota como você. – sua voz disse num tom baixo e divertido, e eu pude ver sua boca se abrir num sorriso.
Sua figura sumiu na escuridão do quarto e eu esperei. Alguns segundos depois, ouvi passos abafados do outro lado da porta e chaves girando. Quando apareceu, me olhou de cima a baixo e, provavelmente vendo que alguma coisa estava errada, indagou:
- O que foi?
Joguei meus braços em volta dele – talvez com mais força do que deveria, porque ele cambaleou para trás e se apoiou na parede – e desabei no choro.
- Ah, ! – murmurei contra seu peito. – Você me desculpa? Eu quero te mostrar uma coisa que eu fiz, mas eu não deveria ter vindo. – eu gaguejava, falando entre soluços. Palavras foram jorrando descontroladamente da minha boca. - Tá tarde e você tá cansado. Mas eu precisava! Porque ele me contou e eu não sabia o que fazer. E foi a Charlie que me deu pra eu não te esquecer, mas eu não quero te esquecer! E nem vou! E você? Você vai me esquecer, ? – perguntei, angustiada, afrouxando meus braços ao redor de seu tronco para permitir que nossos olhares se encontrassem. Como se não bastasse o escuro, meus olhos estavam tão cheios de lágrimas que eu não via nada além de seu contorno.
Em parte, eu sabia que nada do que eu estava falando fazia sentido, porque minhas palavras tentavam acompanhar o ritmo dos meus pensamentos – e falhavam terrivelmente.
depositou as mãos nas minhas bochechas, emoldurando meu rosto, e me fitou. Se as luzes estivessem acesas, eu teria visto todos os traços de seus olhos . Mas não fazia diferença, porque eu sabia exatamente como eles eram. continuou imóvel, estudando meu rosto. Então, depois de algum tempo, sua mão esquerda escorregou do meu rosto e pegou a minha. Ele fechou a porta atrás de nós e caminhou até a escada me puxando pela mão, fazendo-me acompanhá-lo. Subimos as escadas em completo silêncio. Subíamos tão calmamente que nem nossos pés faziam barulho contra o chão. Ao alcançarmos o quarto, me conduziu até a cama e se sentou. Alisou o espaço ao seu lado e disse:
- O que foi? Senta aqui e me explica.
Obedeci, com as lágrimas ainda rolando pelo meu rosto. Tirei meu álbum da bolsa e o abri sobre meu colo.
- Meu pai me contou sobre o segundo exame. – disse, olhando em seus olhos, e apenas assentiu lentamente com a cabeça, compreendendo. Continuei: - No Natal, a Charlie me deu esse álbum, e eu não tinha tocado nele. Passei a tarde inteira fazendo. – murmurei, sorrindo tristemente, soando como uma criança que, orgulhosa, mostra seus desenhos à mãe.
Fui passando as páginas lentamente, tomando cuidado para que as lágrimas que caíam do meu rosto não manchassem nenhuma página. Eu tinha juntado de tudo. Fotos, bilhetes de parque, entradas de cinema, os bilhetes e uma flor seca do buquê que tinha recebido no Valentine’s Day, meu ingresso do primeiro show que os meninos apresentaram, a nota fiscal da coletânea dos Beatles que tinha dado de Natal para , papéis de chocolate, bilhetes de trem. Havia uma foto tirada na noite de ano novo junto a , Charlie, e . Uma de nós dois no píer, alguns meses antes. Antes de eu saber de tudo. tinha o braço em volta dos meus ombros e sorríamos, os dois, como se não houvesse nada no mundo que pudesse nos preocupar. Outra tirada na noite de Natal com nossos pais. E, enquanto eu passava as várias páginas, repletas de lembranças, esgueirou a mão até a minha e envolveu meus dedos entre os seus. Na última página, um desenho. O único desenho que eu fizera de . Resultado de muito tempo, dedicação e perfeccionismo. Eu tinha conseguido desenhar os traços exatamente como queria que ficassem. Apesar de que eu nunca conseguiria fazer um desenho parecer tão bonito e encantador quanto era pessoalmente.
Fechei a última página do álbum e olhei para . Seu rosto, assim como o meu, estava molhado. Encaramo-nos por alguns segundos, até que eu me encolhi e me deitei, apoiando a cabeça sobre seu colo. E ali chorei, sentindo suas mãos acariciarem meus cabelos. Chorei, sentindo meu corpo tremer sem conseguir acompanhar meu choro convulsivo. Chorei, sentindo o coração apertado de dúvida e medo.
Quando minhas lágrimas cessaram, me fez sentar de novo e passou a mão pelo meu rosto, afastando os cabelos grudados pelas lágrimas. Meu peito ainda pulava, a intervalos, acompanhado de soluços. Então se deitou na cama, puxando-me junto. Ele se deitou de peito para cima e eu me aconcheguei a ele. Sua mão afagava meu corpo, apertando-me firmemente toda vez que meu corpo tremia num vestígio de choro.
- Eu não quero ficar sem você. – sussurrei com esforço. Minha garganta estava seca.
- Você não precisa ficar sem mim. – respondeu e eu levantei os olhos para ver seu rosto. – A gente não sabe o que vai acontecer. – então fez uma pausa. - Quero dizer... Nada é impossível. "A gente escolhe no que acreditar", lembra? – disse, olhando fundo nos meus olhos.
apertou os braços à minha volta e eu voltei a me aninhar contra seu peito. Ele depositou um beijo na minha testa e eu me senti aliviada, completamente perplexa por ver em , pela primeira vez, a esperança que eu sempre tive em mim.
- Você tá com medo? – perguntei baixinho.
- Tô. – sussurrou em resposta. E repetiu: - Mas nada é impossível.
Apertei mais meus braços contra seu corpo, querendo sentir cada pedacinho dele. Eu ouvia sua voz ecoar na minha mente. "Nada é impossível". Eu mesma repeti inúmeras vezes aquelas palavras em minha cabeça.
virou a cabeça e beijou meu rosto carinhosamente.
- Eu te devo toda a minha felicidade. Tenho tanto orgulho de mim, por ter conseguido uma garota como você. – disse sorrindo abertamente, e eu não pude deixar de acompanhá-lo. Ele não sussurrava, nem falava como se estivesse fazendo um discurso especial e emocionante. simplesmente conversava, naturalmente, deixando a sinceridade em sua voz mais clara que nunca. – Ninguém poderia ter sido ou feito o que você foi e fez por mim. Você é melhor do que eu podia querer.
Balancei a cabeça para os lados. Ouvir aquilo me enchia de um sentimento bom demais para que eu explique. Sentei-me na cama, olhando para , e ele fez o mesmo. Encarei seus olhos intensamente e falei de uma vez:
- Eu te quero mais que tudo. E eu escolho acreditar em nós. Então fica comigo, me abraça e me diz o que você quer. E o resto não importa. O que os outros pensam não importa, assim como todos esses exames e estatísticas estúpidas. Se a vida pisa em você, levanta e mostra que você é mais forte! O que importa somos eu e você. E que você tá aqui agora, não tá? Então diz que me ama, me abraça, e não me solta mais.
E obedeceu. Ele sorriu e me puxou para junto dele.
- Eu te amo. – disse imediatamente, ao pé do meu ouvido.
Então ele suspirou, apertou-me contra seus braços e me deitou na cama novamente, selando seus lábios perfeitos aos meus, permitindo-me sentir mais uma vez seu gosto, seu cheiro, seu eu inteiro. Sorri por dentro, satisfeita, e apertei os braços em volta de . Quis permanecer assim para sempre. E, afinal, quem iria me dizer que eu não podia?
Nota da Autora: ATENÇÃO. ESTA N/A CONTÉM SPOILER. PENSE BEM ANTES DE LER.
Oi pra você, que foi curiosa demais para passar direto por essa n/a :) Não vou enrolar porque já acho que ela vai ficar bem grandinha. Foi muito difícil pra mim decidir o que fazer em relação ao final da fic, então espero que todo mundo goste da opção que eu escolhi.
Pra fazer vocês entenderem o motivo disso aqui, vou dar um exemplo. Muitas de vocês já devem ter lido ou ouvido falar da fic Beating Heart Baby. Eu amava essa fic. Mas a autora me perdeu no final, quando "me" fez terminar tudo com o principal e ficar com o Chris, o melhor amigo. O Chris era ok, mas eu juro que fiquei triste mesmo, de coração partido pensando "COMO você faz uma coisa dessas sem me preparar psicologicamente para o fato de eu e terminarmos separados?". Eu ainda amo a fic porque a escrita é maravilhosa e indico sempre que posso, mas aquele final sem nenhum aviso realmente fez a fic perder metade do que era para mim. E eu não gostaria de cometer o mesmo erro, mas desde que comecei a escrever Two is Better Than One eu já tinha o final pronto na minha cabeça e não quero mudá-lo. Acontece que todos os pedidos para que o principal não morresse me deixaram muito dividida. Então agora eu estou dando às leitoras a oportunidade de escolher o final da história. Se você gosta de finais felizes e perfeitos, pare de ler por aqui e dê o final que você quer à história. Use a imaginação! É uma coisa preciosa. Se não, agora é a hora em que que te preparo psicologicamente para o fim original. Espero de coração que eu não tenha estragado a história pra ninguém e que ninguém tenha se arrependido de ler essa nota.
Capítulo XXX – Could it be any harder? "I wish you didn’t go away, to touch you again with life in your hands..."
Could It Be Any Harder – The Calling
Consultei o texto à minha frente antes de voltar a escrever. Virei a página, procurando as informações de que eu precisava, quando ouvi dizer sugestivamente atrás de mim:
- Eu detesto história...
Larguei a caneta imediatamente, sorrindo, e girei a cadeira para trás.
- Eu também! Não aguento mais. Tava só esperando uma desculpa pra parar. – ri. – O que você quer fazer?
Eu estava sentada em frente à escrivaninha de terminando um trabalho de história, e ele estava deitado na cama atrás de mim.
suspirou.
- Qualquer coisa. – disse, dando de ombros. – Só não quero ficar dentro de casa.
Olhei para a janela e vi o sol brilhando convidativo.
- O tempo tá ótimo. – comentei.
- A gente pode ir ao píer.
- . – sorri. – A gente não precisa ficar indo no píer todo dia só porque eu gosto de lá.
- Eu também gosto. – afirmou.
Mas o fato de eu achar que fazia aquilo só para me agradar não era o único motivo para eu achar que não deveríamos ir ao píer. Ele estava consideravelmente fraco.
- Mas não tem ninguém em casa. – argumentei. – Não dá pra gente ir a pé...
- Dá sim. – insistiu. E acrescentou, rindo: - Desde que você não esteja com pressa.
Sorri e balancei a cabeça. Eu não me importava em ter de ajudá-lo e nem me incomodava que até as mais simples atividades levassem muito tempo.
- Isso foi um sim? – ele pediu, sorrindo irresistivelmente.
Rolei os olhos, dando-me por vencida. Caminhei até sua cama levando um par de tênis e esperei calçá-los. Então eu o ajudei a se levantar. apoiou o braço esquerdo em volta dos meus ombros e se pôs de pé. Inspirei fundo, torcendo para que junto com oxigênio eu conseguisse absorver um pouquinho de força. Não física, porque, para falar a verdade, por mais que apoiasse quase todo seu peso em mim, eu não precisava fazer esforço nenhum. Força psicológica, porque vê-lo naquele estado partia meu coração. De novo, deixo claro que eu não me incomodava de forma alguma em ajudá-lo. Mas a imagem de tão frágil e dependente de mim era uma visão difícil de suportar.
Caminhamos até a porta numa lentidão bem maior do que o normal. Eu sentia ficar mais frustrado a cada passo que dávamos, então eu sorria para ele a todo momento, tentando mostrar que estava tudo bem e que podíamos levar o tempo que fosse. No entanto, minha tentativa era inútil porque por maior que fosse minha paciência, a frustração de era em relação a si mesmo e à dificuldade em aceitar a própria fraqueza.
Quando chegamos à escada, ambos encaramos os degraus à nossa frente, provavelmente pensando a mesma coisa. Sem querer ser pessimista e ignorando completamente o que minha intuição me dizia sobre as chances de aquilo dar certo, indaguei, confiante:
- Pronto?
assentiu com a cabeça e levou sua mão livre ao corrimão, descendo o primeiro degrau. Fomos descendo, então, a passos vacilantes. apertava mais os dedos em mim à medida que ia ficando mais irritado. Quando chegamos à metade da escada, nós dois já tínhamos percebido que aquilo não ia dar certo. Não havia a mínima condição de caminharmos até a praia daquele jeito. largou o corpo de uma vez e se sentou em um degrau, encarando a frente com um olhar vazio. Sua respiração estava forte. Sentei-me ao seu lado, virada para ele.
- Ei, tá tudo bem. – apressei-me a dizer. – A gente pode fazer qualquer outra coisa aqui mesmo.
apenas balançou a cabeça para os lados. Seu desânimo era tão forte que só olhar para ele me dava vontade de chorar.
- Por favor? – tentei de novo. – Tá fazendo sol lá fora, a gente pode ficar no jardim. Eu busco uma coberta, a gente coloca uma música... Estamos os dois precisando de um bronze mesmo. – finalizei, sorrindo, na esperança de arrancar um riso dele. E, para meu alívio, consegui.
abriu um sorriso discreto, virou o rosto para mim e fez que sim com a cabeça em movimentos sutis, pequenos, ainda sem vida.
- Tá. Espera aqui! – exclamei sorrindo. Subi as escadas correndo, em êxtase pela expectativa de conseguir manter o bom humor de .
Peguei uma manta num armário do corredor e o laptop de . Então voltei, encontrando-o de pé quase no fim da escada. Ele tinha descido sozinho. Olhou para mim lá de baixo e sorriu docemente, enchendo-me de alívio. Desci as escadas também e caminhamos até o jardim.
O quintal da casa de tinha um espaço amplo, com flores que agora voltavam a nascer e um gramado que voltava a ser verde ao invés de branco.
Estendi a coberta na grama e nos deitamos, sentindo a sensação confortável do sol batendo sobre nossa pele. A parte de que precisávamos de uma cor não era exatamente mentira. Depois do inverno, minha pele sempre parecia pálida e macilenta, e a saúde de não colaborava, exatamente, para que a dele estivesse melhor.
Depois de um tempo, fui até a cozinha e busquei suco. Ficamos ali deitados pelo resto da tarde, aproveitando um ao outro, o sol e nosso álbum preferido dos Beatles.
Fui embora por volta das nove da noite. Meu pai ainda não estava em casa e Phyllis já tinha ido. Entrei no meu quarto e peguei meus materiais, porque ainda tinha que terminar meu trabalho de história. Trabalhei nele até por volta das onze, então fui tomar banho e me preparar para dormir.
Antes de me deitar, dei uma volta pela casa para conferir se meu pai ainda não tinha chegado. Era comum ele atender algum paciente até mais tarde, mas, ainda assim, eu sempre ligava para me certificar. Ele não atendeu, então desisti e fui dormir.
Tive aquela desagradável sensação de que você se deitou há literalmente cinco minutos e o despertador já está tocando. Empurrei o colchão para longe de mim, obrigando meu corpo a se sentar, enquanto pensava que aquilo não poderia estar certo, eu ainda não tinha dormido o suficiente! Peguei meu celular, e, para minha completa confusão, li "Charlie" na tela. Atordoada e ainda com sono, lembrei que eu cometi o erro de colocar a mesma música como toque e despertador. Apressei-me em atender antes que ela desligasse.
- Alô? – atendi com a voz embargada.
- ? – Charlie chamou, com a voz alarmada.
Tirei o celular do ouvido para conferir as horas. Uma e dezessete da manhã. Por que, diabos, ela estava me ligando àquela hora?
- Oi? – disse. Quando eu acordo bruscamente, meu cérebro demora a voltar a funcionar.
- Tudo bem? – ela perguntou cautelosamente.
- Aham. – resmunguei.
- Você tava dormindo, né?
- Sim. – confirmei, ainda monossilábica. Comecei então a me perguntar por que ela ainda não tinha dito nada importante. Para ligar à uma da manhã tinha de ser importante, não tinha? – Por que você ligou?
- Ah, é. – Charlie disse, vagamente. – Você tá sozinha em casa? Tá, né? Ou a Phyllis ainda tá aí?
- Estou sozinha, Charlie. – respondi pausadamente. Tinha alguma coisa errada e eu não queria mais esperar para ouvir, então repeti: - Por que você ligou, Charlie?
- Certo. Você tá sentada?
Que merda de pergunta era aquela? Que coisa mais clichê!
- Tô. O que é?
- Eu preciso te falar uma coisa, , mas preciso que você fique completamente calma e não se desespere ainda, porque não tem motivo pra isso, tá?
- O que é?
- Promete que não vai se desesperar?
- Fala logo. – sibilei impacientemente.
- Promete, . – Charlie impôs, soando como uma mãe convencendo a filha a comer a salada.
- Prometo, Charlie, porra! Só estou nervosa porque você tá enrolando tanto! – quase gritei, já sentindo a adrenalina correr pelo meu corpo antes mesmo de saber o que era. Não me atrevera a tentar adivinhar sozinha, porque, o que quer que fosse, eu sabia que provavelmente me desesperaria.
- passou mal durante a noite. – ela informou com a voz transbordando calma. – Ele foi levado para o hospital e ainda não temos detalhes de nada.
Senti a mão em que eu apoiava meu corpo formigar contra o colchão. Quis aliviá-la e me deitar, porque, mais uma vez, eu quis negar tudo. Não. Não é verdade, então agora eu vou voltar a dormir. Boa noite. Era o que eu tinha vontade de falar. Mas não o fiz. Ouvi a voz de Charlie continuar:
- Levanta e põe uma roupa. O vai passar na sua casa em cinco minutos. Ele vai te trazer até o hospital, vamos estar todos juntos e as coisas vão dar certo. Tudo bem? – ela continuou naquele tom de professora do primário, mas, ao invés de ficar irritada, eu segui suas instruções obedientemente. Fiz que sim com a cabeça, mesmo que ela não pudesse me ver. Então, depois de controlar um pouco minha respiração, respondi:
- Tudo bem.
- Ótimo. – ela soou orgulhosa. – Estou te esperando. - Charlie disse docemente.
Então desliguei o celular e encarei a parede oposta à minha cama. O quarto estava um breu. Eu me levantei, caminhei até meu armário e peguei a primeira roupa que alcancei. Vesti-a e calcei meu tênis, agindo completamente no automático, porque se eu parasse para pensar, não sei se teria forças.
Desci as escadas pela casa completamente escura, meus olhos já habituados à falta de luz. Não fiquei com medo de atravessar a sala escura sozinha - como eu muitas vezes ficava - porque eu não estava pensando. Minha mente estava absolutamente vazia. Abri a porta e vi o carro dos pais de estacionado em frente à minha casa. estava encostado a ele, esperando por mim. Ele andou até mim a passos largos e me encontrou na metade do caminho. A rua estava escura, silenciosa e completamente vazia, a não ser por nós dois.
não disse nada, apenas deu um beijo na minha bochecha e levou as mãos aos meus braços, apertando-os de leve. Então ele continuou andando e eu me virei para entender porque ele estava indo até a porta da minha casa. então trancou a porta, que eu tinha deixado aberta e com a chave para fora. Ele voltou até onde eu estava parada, passou o braço pelos meus ombros e me guiou até o carro. Entramos e fomos direto para o hospital. Não sei quanto tempo o percurso durou, nem por onde passamos.
Quando chegamos, estacionou e deu a volta no carro para abrir a porta para mim, porque eu nem ao menos havia me mexido. Mais uma vez, ele passou os braços em volta de mim, dando-me – além de apoio moral – sustento físico, porque meu corpo não queria fazer nada daquilo. Eu não queria me levantar, entrar ali, ouvir notícias ruins. Mas também não queria ficar para trás, sozinha, pensando em mil teorias horríveis do que poderia estar acontecendo lá dentro. Eu não queria nada. Eu queria simplesmente desistir.
Quando entramos no elevador, encarei minha imagem no espelho. Meus cabelos estavam bagunçados e olheiras fundas circundavam meus olhos. Meu corpo estava levemente curvado, encolhido. Passou pela minha cabeça que eu provavelmente deveria consertar minha postura, mas não o fiz. Quando chegamos ao terceiro andar, levou a mão à base das minhas costas e me encaminhou para a frente, e seguimos até o final do corredor que levava à sala de espera.
Quando entrei, vi rostos familiares se virarem na minha direção. Charlie, e , os três sentados em um sofá, levantaram-se para me receber. Quando meus olhos pousaram em Charlie, imediatamente pude ver que aquela calma toda no telefone era pura encenação. Seus olhos e a ponta de seu nariz estavam vermelhos, e seu rosto, ainda úmido. Seu cabelo e suas roupas indicavam o mesmo que as minhas: que tinha sido acordada de repente e saído com pressa. Caminhamos até lá e permiti que minha amiga envolvesse seus braços à minha volta, porque ambas claramente precisavam daquilo. Senti seu corpo tremer junto ao meu e aquilo apenas incitou meu medo. Eu estivera tentando me convencer de que não seria nada grave. Lembrei-me das palavras de Charlie ao telefone: "não se desespere ainda, porque não tem motivo pra isso". Ainda... O que isso queria dizer? Que agora tinha?
Abracei , depois , então me afastei dele e olhei por trás de seu ombro. Havia mais pessoas conhecidas ali, elas só não tinham me visto entrar. Sean e Brianna estavam sentados em outro sofá, do lado oposto da sala. Brianna, sempre tão bem vestida e elegante, estava encolhida no sofá envolta pelos braços do marido. Vestia algo parecido com um moletom e seu rosto tampava as mãos. Sean apoiava o queixo na cabeça da esposa, com o olhar completamente perdido.
- O que aconteceu? – perguntei vagamente.
Charlie soluçou, fungou e abriu a boca, dando a entender que iria responder. Então fez uma pausa e sua boca se fechou de novo, como se simplesmente não conseguisse.
olhou para a amiga, apreensivo, e enquanto a puxava para si, respondeu:
- se sentiu mal antes de ir dormir. Depois de algum tempo a mãe dele foi até o quarto conferir se ele estava bem e ele estava tendo dificuldade para respirar. Então eles chamaram uma ambulância.
- E depois? – perguntei aflita. A imagem de deitado em uma maca lutando por ar através de uma máscara de oxigênio me atormentava. Eu não queria imaginar aquilo!
- A gente não sabe. – disse . Sua voz estava baixa, sem vida. – Estamos aqui há 10 minutos e ainda não deram notícia nenhuma.
Respirei fundo e assenti com a cabeça. Apesar de ter tido meu sono interrompido há apenas alguns minutos, agora estava tão desperta que me sentia como se nunca mais fosse precisar dormir. Caminhei até Sean e Brianna e me agachei em frente a eles. Só então percebi que eu não sabia o que dizer, nem porque tinha ido até eles. Mas quando seus olhos encontraram os meus, entendi. Eu precisava simplesmente mostrar que estava ali. Encaramo-nos, cúmplices, e eu pousei minha mão nos joelhos de Brianna. Então ela assentiu com a cabeça e eu me levantei novamente, como se tivéssemos tido a mais profunda conversa sem que tivéssemos trocado uma palavra sequer.
Caminhei até onde Charlie, , e estavam sentados e me juntei a eles em um sofá.
Respirei fundo mais uma vez, tentando colocar meus pensamentos em ordem. Eu queria me convencer de que era só um susto. Mas toda vez que meus olhos pousavam na postura derrotada de Brianna, nos olhos inchados de Charlie ou nos semblantes abatidos dos meninos, aquilo parecia impossível. Por que estavam todos reagindo assim? sentir dificuldade para respirar não significava nada! Ou significava? Eles sabiam de algo que eu não sabia? Ou era apenas discernimento que me faltava? Minha cabeça rodava cheia de dúvidas. Obriguei minha mente a parar de evitar o pensamento do qual eu vinha fugindo. estava morrendo? Pronto. Era isso. Morrer. Ele estaria morrendo? Arfei, sentindo meus ossos comprimirem meu pulmão, dificultando a entrada de ar. A informação era forte demais. Puxei desesperadamente ar para dentro do meu corpo, e essa sensação fez a imagem de com uma máscara de oxigênio voltar à minha mente. Era aquilo que ele estava sentindo? É claro que não, o que ele sentira era bem pior... Meu coração se apertou quando pensei no sofrimento que estaria passando. Ele morreria assim? Com a sensação dolorosa de não conseguir sugar ar suficiente? Era horrível demais. Mas, então, de novo: ele morreria? Lembrei-me de mais cedo, na casa dele. Eu deveria tê-lo levado à praia, se era isso que ele realmente queria. Culpa me atingiu em cheio. Como pude ser tão preguiçosa?! Ele só queria ir à praia, não a Paris, pelo amor de Deus! Comecei a pensar na hora em que voltei para casa. Não conseguia me lembrar se o tinha beijado antes de ir embora. Eu ao menos o abraçara? morreria sem que eu me lembrasse de tê-lo beijado pela última vez? Oh, não, não, não. Liberei o nó preso na minha garganta e comecei a choramingar. Meus soluços começaram a ficar mais fortes e vieram acompanhados de lágrimas grossas descendo pelo meu rosto. Dobrei o corpo para frente, encostando o tronco às minhas pernas e deitando-me sobre minhas coxas. Comecei a chorar alto, sem me preocupar com nada. Com o rosto escondido nas mãos, senti as lágrimas molharem toda minha face e o gosto salgado delas na minha boca enquanto meu corpo todo tremia. Senti mãos em volta de mim e um corpo encostado ao meu, mas não sei de quem era.
Doente de dúvida e medo, tentei controlar o choro. Era difícil. Nunca antes eu tinha me sentido tão perdida, tão confusa quanto ao que aconteceria a seguir. Lembrei-me da noite em que recebi a notícia do acidente da minha mãe. Foi a primeira vez que eu tive de lidar com uma perda tão grande, com algo que eu podia chamar de tragédia. No entanto, por mais difícil que tivesse sido, foi de uma vez. Um dia minha mãe estava sentada na cozinha, jantando ao meu lado. No dia seguinte, estava morta. E por mais que sua perda tivesse sido imensurável, foi definitivo. Não era discutível, não cabiam dúvidas. Ela faleceu e ponto. Não era como agora, que qualquer coisa podia acontecer e eu tinha de estar preparada para tudo. E eu precisava desesperadamente de uma certeza, de algo concreto. Mais uma vez, desejei de todo o coração que ela estivesse ali comigo.
Aos poucos consegui controlar minhas lágrimas. Elas tentavam voltar, mas eu fazia o meu melhor e as segurava no lugar. Apesar de ter me sentido sem sono nenhum há apenas alguns minutos, numa velocidade incrível, o cansaço tomou conta de mim, e eu só me lembro de adormecer com aqueles braços protetores ainda em volta de mim.
As batidas do meu coração foram a mil em um segundo. Joguei o tronco para frente e abri os olhos, ofegando alto e me sentando ereta. O grito agudo de puro desespero que me acordara ainda ecoava nos meus ouvidos. Olhei à minha volta, mas não enxergava nada. Pisquei algumas vezes para clarear a vista, mas tudo ainda estava embaçado. Barulho. Passos, sombras, ganidos – não mais gritos – figuras borradas à minha frente, palavras que eu não conseguia entender. Antes que eu estivesse completamente acordada e pudesse entender qualquer coisa que estivesse acontecendo, aflição já tomou conta de mim. Meu corpo ainda estava em choque, coração batendo forte, sangue pulsando acelerado e mãos suando, e eu sentia adrenalina e terror, puro terror, correndo pelas minhas veias. Lágrimas brotaram dos meus olhos, ofuscando ainda mais o pouco que eu conseguia enxergar. Um peso terrível pressionou meus pulmões e eu mal conseguia respirar. "O que está acontecendo?" era tudo que eu pensava, mas acho que não cheguei a falar. Alguém segurou meus braços e disse alguma coisa, mas eu não entendi nada. Eles não falavam minha língua?
Escutei outra voz começar a chorar baixo e descompassado e olhei à minha volta. Minha visão começou a voltar aos poucos, e eu reconheci os cabelos castanhos à minha frente. Percebi que o choro baixo era meu e que Charlie estava agachada à minha frente. As palavras que saíam de sua boca começaram a fazer sentido aos meus ouvidos.
- Shhh. – ela pediu, parecendo aflita. Charlie chorava e olhava para mim desconsolada. – , você tá me ouvindo? Oh, meu Deus! Respira. Você tá me assustando! – disse, agoniada. - Está tudo bem, você está bem, respira pela boca e solta pelo nariz.
Tentei obedecê-la. Inspirei, com esforço, e expirei. De novo. E de novo. Levei as mãos aos olhos e os esfreguei, secando-os. Então olhei à minha volta. Eu estava no mesmo lugar em que me lembrava de ter adormecido. Mas todos os outros não. Meus olhos varreram a sala em um segundo. Charlie estava à minha frente, e só então vi que estava ao seu lado, parecendo tão desnorteado quanto ela. chorava. – que era só sorrisos, com quem não havia tempo ruim – chorava. estava de pé, atrás deles, abraçado a , cujo corpo estava mole e o rosto apertado contra o ombro do amigo. ! Eu não podia ver chorar e não sentir necessidade de consolá-lo. Quis me levantar e correr até ele, mas algo me impediu. Ao lado de e estavam os pais de . Brianna estava largada no chão, literalmente. O corpo magro da mulher se debatia no chão enquanto o marido tentava segurá-la protetoramente, seu rosto encharcado até o último centímetro. Então me atingiu em cheio. O grito que me acordara fora, sem sombra de dúvidas, de Brianna. Logo eu teria de admitir que, por mais confusa que estivesse, eu já sabia o que aquilo tudo queria dizer.
Apesar de todo aquele momento de compreensão parecer ter durado longos minutos, não mais que alguns segundos haviam se passado. De repente, a voz de Charlie voltou, mansa, trêmula:
- ? Você tá me ouvindo? – ela repetiu. Apenas fiz que sim com a cabeça. Então perguntei, juntando toda minha coragem:
- O que houve?
Arrependi-me de perguntar. Eu não queria ouvir! Não, não, Charlie, NÃ... – mas ela já tinha respirado fundo e murmurou:
- morreu.
Minha visão foi ficando embaçada de novo e eu senti as lágrimas molhando meu rosto. E dessa vez eu nem tentei segurá-las. Eu sentia meu coração acelerado espancar minhas costelas. Olhei para os seus olhos apreensivos esperando pela minha reação e me dei conta de que eu estivera preparada para aquilo. Eu sabia que aconteceria. Minha mente sabia, meu coração sabia, cada pedacinho resignado de mim absorvia aquela informação, porque eu sabia que era verdade. Ao mesmo tempo que cada célula do meu corpo gritava que era mentira e tentava negar, a parte racional de mim sabia que não havia o que negar.
Senti meu corpo inteiro enfraquecer, como se meus músculos tivessem desistido. Deixei a cabeça pender para trás porque meu pescoço não conseguia sustentá-la. Procurei pela força ou pela negação, mas elas tinham me abandonado. Tudo parecia estranho, completamente errado. Tudo doía. Da minha cabeça aos ossos, até meu estômago se revirando. Eu sentia meu corpo inerte, como se meu sangue tivesse parado de circular e meu coração quisesse parar de bater. Minha pele parecia subitamente gelada. Obriguei o ar a voltar para os meus pulmões. A única coisa no meu corpo que ainda parecia funcionar eram os canais lacrimais, e estes – ah, estes não falhavam. Meu corpo permanecia paralisado, sem conseguir reagir. Não gritei, nem me debati. Afinal, acho que não havia reação física possível que eu ainda não tivesse tido. Imagino que só me restava desmaiar. Mas não, eu não teria essa sorte... Continuei bem acordada, sentindo cada mínimo detalhe daquele momento. O simples fato de estar acordada parecia me rasgar por dentro.
Então, não sei bem por que, eu me levantei. Minhas pernas agiram sem comando, e em um segundo eu estava de pé alguns passos à frente, cambaleando em direção à parede oposta. Só depois que estava quase lá, percebi que eu caminhava trôpega, tropeçando sobre meus próprios pés. Quando cheguei à parede, senti mãos tentando me amparar por trás, mas era tarde. Eu desabara, largando meu corpo no chão. Na queda, minha cabeça atingiu o concreto da parede em cheio, mas, por incrível que pareça, não senti absolutamente nada. E chegou, enfim, minha reação atrasada. Eu me encolhi toda, abraçando os joelhos, sentindo minha bochecha contra o chão gelado e chorando abertamente. Eu engasgava com meus próprios soluços, sendo obrigada a escancarar a boca na tentativa desesperada de sorver oxigênio. Charlie, ajoelhada à minha frente, chorava, passando as mãos pelos meus cabelos, mas eu não sentia seus dedos. Seu toque carinhoso era fraco demais, desprezível em relação à dor que me dominava. Esta, por sua vez, era grande demais... Perguntei-me como era possível que doesse tanto, como era possível que eu sentisse algo daquela amplitude. Eu não ouvia nada além do meu próprio choro. Fechei os olhos, apertando-os com força, e esperei. Eu desisto, desisto. Continuei esperando... Já acabou? eu me perguntei em pensamento. Porque eu não queria mais, não podia mais! Já posso abrir os olhos? Se eu abrisse, tudo ia voltar a piorar? Ou aquilo já era o pior? Existiria alguma coisa além disso, sensação pior que aquela? Não, não era possível. Não tinha como piorar. Debati-me com mais força contra o chão, sem me importar se me machucaria. Por que aquela sensação não passava? Por que esse sentimento não ia embora? Eu não o quero, não quero! Alguém me ajuda... Eu precisava de ajuda, precisava de alguém que tirasse aquilo de mim. Mas ninguém tinha esse poder. Tinha? Eu não podia mais. Não tinha forças para resistir, para me controlar. Voltei a ver o rosto de em minha mente. Por quê? Não imaginei meus dias sem porque não consegui, mas as palavras, puramente o conceito, passaram pela minha cabeça. "Minha vida sem ". Por que eu merecia aquilo? Deus, como eu era egoísta! A pergunta certa seria por que ele merecia aquilo? Pensei, mais uma vez, na última vez que o vira. Forcei minha memória. Eu precisava me lembrar. Eu o tinha beijado? Desejei que conseguisse chorar mais baixo, para que pudesse me concentrar... Fomos até a porta. a abriu, sorriu para mim... Seu sorriso! E então me beijou. Sim, ele havia me beijado! Soltei um gemido, não sei se de agonia ou alívio. Ele me beijou e me apertou entre seus braços. Pela última vez... Então eu saí, desci as escadas e ele fechou a porta atrás de mim. Por que eu não olhei para trás mais uma vez? Como sou burra! Poderia tê-lo visto mais uma vez. Mas teria feito alguma diferença? Provavelmente não... Se tivesse olhado, certamente teria encontrado outra coisa da qual me arrepender. Pensei em seus olhos e em cada pequeno detalhe de suas íris , tentando gravá-los em minha memória. E se eu os esquecesse? Eu não faria isso, faria? Quis vê-los mais uma vez. Eu precisava olhar nos olhos de de novo. Mas eu não podia. Imaginei seu rosto pálido, sem vida, e os olhos fechados. Tentei imaginá-los abertos de novo, mas não consegui. Abra os olhos, implorei ao na minha mente. Mas ele não obedeceu. Engasguei, incrédula. Era só minha imaginação, como ele podia não obedecer?! Aquilo era tortura. Eu não conseguiria suportar que aquela seria a imagem que eu guardaria de . Eu precisava me lembrar dele de olhos abertos, vivos, sinceros; sorriso sereno, convidativo; mãos dadas às minhas. Frustrada, gritei mais alto. Eu não podia vê-lo? Nem ao menos na minha cabeça? Abra os olhos, repeti. Por favor, abra os olhos. , , ...
E então ele abriu. Seus olhos se abriram para mim, assim como seu sorriso irresistível voltou e sua mão se estendeu para mim, como se me convidasse a acompanhá-lo. Eu podia fazer isso? Podia acompanhá-lo. Maravilhada pela perspectiva, acho que sorri, em meio às lágrimas, mas não posso ter certeza, porque meu rosto ainda estava contraído numa careta de choro. Mas senti uma pontinha de alívio crescer em algum lugar. Aquela sim era a imagem certa. Olhos brilhantes, sorriso único, mão junto à minha.
End of flashback
Capítulo XXXI – You stick to me forever, baby "Goodbye, my lover. Goodbye, my friend. You have been the one, you have been the one for me."
Goodbye my Lover – James Blunt
Adentro o quarto, deixo minha bolsa sobre a cama e desenrolo a escarfe verde do pescoço.
- Ainda não acredito que você vai me abandonar. - ouço a voz de Charlie atrás de mim e me viro. Ela está encostada à porta. Suspiro sorrindo.
- Ah, Charlie, deixa de ser exagerada! São só três meses.
Sento-me na cama e começo a abrir o zíper da minha bota enquanto Charlie ainda me olha emburrada de braços cruzados.
- Mesmo assim... – murmura. – Isso não se faz.
Charlie tirou carteira de motorista recentemente, e ela acabou de me dar a "honra" de me levar de carro até o Portsmouth City Museum para fazer minha inscrição em um curso de pintura de três meses em um Studio chamado Atelier Alupi, em Paris. O curso terá início em janeiro e eu estou ansiosa, mas Charlie ainda não me perdoou. Então sua voz me tira dos meus pensamentos:
- Vou pra casa agora, pra você ter uma chance de pensar sobre suas atitudes.
Rolo os olhos e respondo, rindo:
- Vou pensar. Boa noite, Charlie.
Então ela me lança um beijo e some pela porta, e eu ouço seus passos escada abaixo.
- Obrigada pela carona! – tenho tempo de gritar antes de ouvir a porta se fechar no andar de baixo.
Estico meu corpo até a outra ponta da cama e ajusto o aquecedor. É novembro e eu detesto quando meu quarto fica frio. Afasto o ursinho de pelúcia de pelo caramelo do meu travesseiro e me deito sobre minha cama. Tiro o relógio de pulso e o deixo sobre a mesa de cabeceira. De lá, pego a coletânea da Jane Austen e abro o livro na página marcada por uma rosa seca que eu guardei. Já terminei Orgulho e Preconceito, Razão e Sensibilidade e agora estou lendo Mansfield Park. Começo a ler, mas me vejo logo sem a menor paciência para Fanny naquele momento. Fecho o livro e o ponho de volta à mesa.
Então meus olhos passam pela prateleira acima da minha cama, onde há, entre outras coisas, um porta-retratos de madeira teca exibindo uma foto de e eu. Foi tirada no Natal, e tinha um aspecto feliz e até saudável. Seus cabelos ainda tinham cor e brilho, e aquele sorriso sincero em seu rosto aquece meu coração todos os dias, quando eu bato os olhos naquela foto.
Deito-me de costas, encarando o teto branco acima de mim. Já é quase inverno de novo, e eu usei todos os presentes de na hora certa. Sorrio ao pensar nisso. Foram de grande utilidade. É claro que não há absolutamente nada que eu não daria para ter tido comigo em cada uma daquelas ocasiões, mas, ainda assim, os presentes me deram, pelo menos um pouco, a sensação de tê-lo ali comigo.
morreu em abril. Aquele foi um bom ano, e eu fico feliz por ele ter tido a chance de aproveitar os últimos dias em tempo agradável e quente. Teria sido triste – como se já não fosse o suficiente – que a última visão de fosse árvores secas, neve derretida e pessoas sem brilho.
Continuo encarando a foto, e assim como acontece sempre que olho para ela, lembranças de todos os tipos invadem minha mente. Lembranças de momentos, sentimentos, da textura da sua pele, do som da sua voz. Apego-me a elas, como sempre faço. Penso nos pequenos detalhes e características de todos os dias, com medo de esquecê-los. Porque memórias são traiçoeiras, e se não prestar atenção, elas vão embora sem que você perceba. O cérebro funciona assim. Se alguma parte não é utilizada, é logo descartada. Como uma pessoa que fica cega de repente. Depois de algum tempo, ela começa a se esquecer de tudo. E então não lembra mais o que é azul, o que é vermelho, ou como é o formato de uma árvore ou um trem. A não ser que exercitem o cérebro, obrigando essas lembranças a permanecerem. E é o que eu tento fazer. É engraçado como memórias de um momento de choro podem despertar um sorriso. E lembranças de momentos de sorrisos podem nos trazer lágrimas. O tempo passa e traz coisas novas. Sentimentos, pessoas. Mas algumas coisas ele não traz de volta, por mais importantes que sejam. E eu sei disso, não me iludo ou perco meu tempo esperando que as coisas voltem a ser como eram. E, acima de tudo, acalma-me saber que ele não está mais sofrendo. Não vale a pena desperdiçar tempo, mente e coração tentando entender por que aconteceu o que aconteceu. Só o que importa é que eu tive a sorte de algum dia tê-lo tido na minha vida, e isso é algo ninguém pode tirar de mim.
Começo a sentir aquela vontade de chorar chegando. Não é de tristeza, mas ela vem. Aparece pequena, tímida, e vai ganhando espaço, crescendo dentro de mim. Viro meu corpo na cama, tentando achar uma posição mais confortável. Puxo a colcha debaixo de mim e me cubro. Levo a mão ao interruptor ao meu lado, deixando todo o quarto escuro. Respiro fundo, tentando afastar qualquer sentimento nocivo, focando-me apenas na parte boa, que são as memórias. E essas sim, são maravilhosas... As melhores que eu poderia ter. Guardo cada uma delas. São reconfortantes. E não há mais nada que eu possa fazer. A tristeza volta de tempos em tempos, mas em maior parte, sou só saudade. Penso de novo na foto e fecho os olhos. Ainda consigo ver seu rosto quando fecho os olhos. E é só disso que eu preciso: a lembrança de , perfeita, intacta, preservada na minha mente para sempre. Por trás das minhas pálpebras, revejo seu sorriso e enxergo o brilho dos seus olhos. No entanto, seus lábios não tocam mais os meus, sua mão não acaricia mais a minha. Mas, de novo, eu sei que nada vai voltar. E está tudo bem. Então eu aperto os olhos com força, como se quisesse grudá-los, e vou dormir, para ver mais uma vez em meus sonhos.
"Lembrar é fácil para quem tem memória. Esquecer é difícil para quem tem coração."
William Shakespeare
N/A: Não acredito que estou escrevendo a N/A final de Two is Better Than One. Sério mesmo. Comecei a escrever e postar a fic em 2009, nem parece que já faz tanto tempo!
Pra começar eu quero falar sobre a N/A que eu coloquei antes do capítulo 30. É muito importante pra mim saber o que vocês acharam sobre ela. Quantas das que leram a nota continuaram a ler a fic? E quantas se arrependeram? Eu sei que eu simplesmente "contei" o fim da fic naquela N/A, mas acho que nela eu já expliquei meus motivos (se você não a leu, leia agora :). E, por acaso, logo depois de eu ter enviado a atualização pro site chegaram alguns comentários pedindo "se o final for triste, dê um jeito de me preparar". Fiquei me sentindo super vidente HAHA. Enfim... gostaria muito de receber um feedback sobre isso. (e sobre todo o resto da fic também, é claro!)
Eu espero que eu tenha conseguido passar a sensação que eu queria no final da fic... de que a protagonista estava bem. Quero dizer, por mais que tenha sido imensamente difícil perdê-lo, ela conseguiu superar. Espero que isso tenha ficado claro. Queria mostrar que é possível, sim, superar e ser feliz de novo depois de algo assim, mesmo que a saudade fique pra sempre. E que o fato de você aceitar e ainda conseguir sorrir por outros motivos não diminui o amor e a saudade que você sente pela pessoa que partiu. Eu recebi alguns comentários de pessoas que estavam realmente tristes por causa da fic, e tomara que isso tenha mudado! Fico feliz e orgulhosa de conseguir emocionar e tocar as leitoras com a história, mas não quero, de verdade, que Two is Better Than One deixe ninguém triste ou arrependido de ter lido.
Eu gosto muito mais da fic da metade dela pra frente, não gosto muito dos primeiros capítulos. Tava relendo aqui outro dia e decidi que assim que tiver tempo, vou reescrever o começo – sem modificiar nada na história, só tirando ou mudando algumas cenas que não gosto e acho mal escritas. Mas, no geral, fiquei satisfeita com o resultado final. E nada mais clichê: preciso agradecer as leitoras. TODOS os comentários sempre me deixaram super hiper mega feliz, de verdade, e quem aí escreve sabe que eu tô falando a verdade quando digo que a resposta das leitoras é um incentivo gigante. Principalmente na época em que eu tava pensando em colocar a fic em hiatus. Não vou responder nenhum comentário específico porque eu realmente não saberia quais escolher, a N/A ficaria gigante. Mas todos os comentários, ou todas as vezes que me procuraram no formspring, tumblr, twitter ou email pra falar sobre a fic aqueceram meu coração, meninas <3 Obrigada por terem transformado TIBTO em algo tão legal pra mim!
Quero agradecer à Lilá, que foi uma beta e conselheira linda, eficiente e incentivadora por um bom tempo. E obrigada, Vanessa, por assumir a fic e me salvar agora nos capítulos finais :)
Bom, acho que é isso... Tenho certeza de que depois que eu enviar vou lembrar mais alguma coisa que eu queria colocar aqui, mas aí vai ser tarde demais... HAHA
Ah, já comecei a enviar outra fic (dessa vez sem tanto drama, hehe) e espero que eu tenha causado uma impressão boa o suficiente aqui pra rever vocês por lá :) chama Fuel To The Fire, tá em McFly/Andamento e espero que vocês dêem uma chance pra ela.
Então, mais uma vez, um enorme OBRIGADA a cada uma que acompanhou a fic que chegou até aqui, foi um prazer escrever essa fic e ter vocês comigo :)
xx,
Bih.
Contatos: Twitter | bih_hedegaard@hotmail.com
Minhas outras histórias: Fuel to the Fire - McFly/Andamento 180 Dias de Inverno - McFly/Shortfics The Red String of Fate - Especial Mitologia What Lies Beneath - McFly/Shortfics Reminisce - Outros/Shortfics Um Colar de Lágrimas - Especial Equinócio de Setembro
Nota da Beta: Juro que não queria colocar essa nota aqui no final, porque me sinto super intrometida depois de ler esse final e essa n/a. No entanto, não consegui me segurar e me senti na necessidade de escrever essa nota.
Bom, basicamente, eu só dei uma mãozinha pra Bih na betagem agora no final e confesso que não li a fic desde o começo mas, ainda assim... TIBTO me fez chorar. E te garanto que isso não é fácil, já que minha função é ler os erros, não a história. Mas não deu, não me segurei. Esse final foi tão emocionante e lindo que eu me senti na pele da personagem, perdendo alguém tão querido.
Queria deixar meus sinceros parabéns à Bih. Essa fic merece todas essas leitoras que têm hoje, e merecerá todas as futuras leitoras. E tenho certeza que tanto as que pararam de ler no aviso quanto às que não pararam de ler adoraram o final. A fic é maravilhosa. Obrigada por me deixar participar, mesmo que só um pouquinho, da "história" dessa fic. Foi um prazer imenso, mesmo.
Vou calar meus dedos agora. E vocês, leitoras, já sabem, né? Erros nos capítulos 28, 29, 30 e 31, me avisem por e-mail. E não esqueçam de comentar, claro. Xx. Vanessa.