Capítulo 01
As luzes da sala estavam apagadas e a única iluminação do local vinha do projetor multimídia que projetava a imagem do mapa da Inglaterra sobre a lousa branca. Joseph, meu professor de geografia, a matéria mais maçante da cadeia de disciplinas que eu enfrentava, explicava, com auxílio de sua caneta-laser, alguma coisa daquele mapa que o meu sono cotidiano não me deixava focar a atenção para descobrir, então, do que se tratava a aula de geografia daquela manhã. Tudo à minha volta parecia contribuir para o meu sono: a pouca iluminação, a voz calma do meu professor emitida no silêncio da sala e o meu desinteresse por matérias humanas. Exatamente tudo parecia incentivar a minha vontade de depositar minha cabeça no meu caderno, que até parecia macio como um travesseiro, e desistir da minha tarefa de manter os olhos fixos naquele mapa.
Todavia, eu sabia que mesmo se eu desistisse de ceder ao meu sono e me permitisse fechar os olhos, transportando-me para algum sonho melhor do que aquela aula, Matthew e Lucy não deixariam que isso durasse muito tempo, a ponto de que Joseph me pegasse mais uma vez desatenta à sua aula, fazendo com que eu ganhasse mais uma advertência. Fora que, se eu dormisse ou cabulasse mais uma aula de geografia, certamente o diretor Benjamin não se contentaria apenas em me presentear com uma advertência e como brinde convocaria meu irmão para comparecer a escola. Por mais que dormir em sala de aula não fosse algo tão monstruoso quanto às coisas que os drogados faziam naquela escola, uma suspensão estava batendo em minha porta e, para evitá-la, meus olhos tinham que estar bem abertos. E, além de ter que evitar a suspensão, eu tinha que evitar os discursos de , meu irmão, sobre o futuro que eu estava destruindo em minhas aulas de geografia.
Meus pais se mudaram para Califórnia, aquele lugar americano cheio de Sol, deixando aqui em Londres eu e meu irmão expostos à dura realidade de morar sozinhos com mesadas mensais vindas da América e , ao nos ver em tal situação, se tornou um irmão obsessivo pelo meu futuro e assumiu uma responsabilidade por mim como se eu tivesse cinco anos. Então, se ele fosse convocado mais uma vez para comparecer a diretoria da minha escola para assinar mais uma advertência, provavelmente eu teria que aturar longos dias de reclamações entrando pelos meus ouvidos. Isso era exatamente o que eu não desejava, Matthew e Lucy sabiam disso e por isso estavam prontos para me chacoalhar caso eu não conseguisse agüentar o peso das minhas pálpebras.
Lucy estava sentada ao meu lado enrolando seus cachos falsos no seu dedo indicador e fingindo, assim como eu e metade daquela sala, prestar atenção no que Joseph estava tagarelando. Entretanto, sua atenção além de estar focada em mim, também estava focada no professor. Como eu já disse, não porque ela estava prestando atenção na matéria e sim porque Lucy tinha uma tara anormal por professores, especialmente por Joseph. Estava o analisando e tendo suas fantasias cotidianas. Eu apostava, com toda a certeza, que ela não estava gostando muito de ter que esquecer o professor por algum tempo e olhar de soslaio para mim. Todavia, Matthew, a pessoa que mais se preocupava comigo depois de , havia feito ela concordar que como bons amigos eles teriam que me ajudar na minha tarefa. Então ela cumpria com a sua parte do trato e só cumpria simplesmente porque, caso não o fizesse, não teria mais com quem ficar naquele colégio. Lucy só andava comigo e com Matthew por conveniência.
Ela não se encaixava em nenhum grupo, simplesmente porque aos olhos de todos Lucy era muito estranha. Além da sua tara anormal por professores e suas notas excepcionalmente excelentes, ela carregava com ela características que impedia o seu ingresso em qualquer grupo que fosse daquele colégio. Suas notas altas podiam fazer dela mais uma nerd, porém os nerds não aceitavam pessoas como Lucy, com piercings no mamilo, maquiagem carregada preta nos olhos e um histórico de remédios antidepressivos intenso. Pessoas como ela normalmente estavam no grupo dos drogados, eles tinham o mesmo gosto para maquiagem e piercings que ela e também tomavam remédios, mas não por estarem doentes.
Matthew, por sua vez, não ficava muito atrás de Lucy no quesito não conseguir ingressar em algum grupo. Ele era bonito e poderia com isso entrar facilmente para o grupo dos mais cobiçados da London Central High School se trocasse seus neurônios por horas e horas em uma academia de musculação. Entretanto, além de magricelo e de manter seu hábito não saudável do cigarro, outro ponto fazia Matthew passar longe do grupo dos cobiçados do colégio: Matthew era gay. Isso tira, então, a possibilidade de entrar para qualquer grupo composto por machos, seja qual fosse.
Eu, também como Matthew e Lucy, não me encaixava com nenhum dos grupos existentes naquele colégio. Não porque eu fosse homossexual ou tivesse piercings em lugares estranhos. Simplesmente não era nada demais, não tinha uma característica, física ou psicológica, que me destacasse e me colocasse em algum grupo dali. Não era fútil, não usava drogas, não era nerd, não era desleixada e não tinha nenhuma espécie de problemas alimentares. O único problema que eu enfrentava era a minha dificuldade em manter meus olhos abertos em alguma matéria que não fosse da área de exatas.
- O maciço de Cumberland que, submetido às geleiras quaternárias, constitui a chamada Lake District, e culmina no monte Scafell, encontra-se... – Matthew, que estava como sempre sentado na carteira atrás de mim, beliscou meu braço e eu levantei a cabeça rapidamente, ao mesmo tempo em que soltei um gemido de dor. Meus olhos se arregalaram ao encontrar o sorriso malicioso e de dentes amarelos de Joseph. Lucy adoraria se aquele sorriso tivesse sido dirigido a ela. – encontra-se onde mesmo, ? – perguntou, com um tom de vitória já enlaçado a sua pergunta.
O sorriso amarelo do meu professor somado aos olhares dos alunos que caiam sobre mim aumentava a pressão. Olhei para o meu caderno e as linhas azuis pareceram algum tipo de imagem hipnótica, deixando-me tonta. Fechei os olhos e, esquecendo que a sala toda esperava que eu vomitasse a resposta logo, concentrei-me em lembrar a pergunta do professor. Eu não estava dormindo quando Matthew me cutucou, escutava perfeitamente a voz de Joseph ao fundo, então se eu me concentrasse conseguiria lembrar a pergunta.
Minha tentativa frustrada de recordação fez com que eu apelasse e olhasse para Lucy de soslaio. Contudo, ela mantinha seus olhos excitados no sorriso amarelo de Joseph, como se aquilo fosse excitante e não assustador. Voltei então a olhar para o professor, já estando certa de que mais uma advertência estava por vir, e por trás do sorriso debochado dele vi mapa da Inglaterra, onde o título “Geografia - Relevo” chamou minha atenção. Apaguei todos os olhares que estavam em mim, concentrei apenas no mapa para lembrar da pergunta e, em um choque, parte do que Joseph tinha falado ressoou pelos meus ouvidos novamente.
Maciço de Cumberland. Era isso. Fácil. Onde ele se encontrava, ?
- No extremo noroeste. – respondi, deixando de olhar para o mapa e voltando meu olhar para o professor. Escutei Matthew suspirar aliviado atrás de mim e vi Lucy fazer cara feia quando o professor, após escutar a resposta certa sair da minha boca, deixou de sorrir para ficar com uma expressão de decepção estampa.
- Muito bem. – Joseph caminhou até a minha direção, sustentando agora uma expressão séria e de desaprovação. – Quem foi que soprou a resposta para você desta vez? Matthew ou Lucy?
Claro, ele nunca acreditaria em mim e nunca se daria por vencido. Porque Joseph nunca acreditou que eu fosse capaz de responder alguma questão da sua aula por conta própria, sem precisar de sopros e colas. Além de também nunca acreditar na veracidade das minhas notas razoáveis, sempre achava que eu era a mais sacana e esperta daquela sala para conseguir colar sem ser pega no flagra. A questão era: Eu nunca colei e nunca precisei que alguém me soprasse alguma resposta, porque por mais que eu fosse desatenta, conseguia manter minhas notas regulares em geografia.
- Nenhum de nós, Sr. Joseph. – Matthew sussurrou nervoso da carteira de trás.
Joseph retirou os olhos fuziladores de mim e os pousou, agora voltando a sorrir debochado, no meu amigo, que provavelmente estava tão assustado quanto eu.
- Matthew, quer fazer companhia a sua amiga até a sala do Sr Benjamin? – Escutei o sussurro dele negar rapidamente ao convite do professor. – , - falou, voltando-se a minha direção. – creio que o seu amigo não seja tão caridoso quanto foi para lhe soprar a resposta correta. Então, retire-se sozinha desta aula e vá dar sua palavrinha com Benjamin. Aliás, não volte para essa aula, por favor. Fique na diretoria até dar o sinal de término, depois disso você pode subir para a sua próxima aula.
Por osmose, peguei meu material, levantei da carteira e fui a caminho de mais uma advertência, ou quem sabe algo pior. Minha real vontade era de levantar e dizer para Joseph que ninguém tinha soprado a porcaria da resposta, porque qualquer inglês com um cérebro razoavelmente normal sabe que o maciço de Cumberland se encontra no extremo noroeste e que não é preciso ficar acordada durante uma aula cansativa de geografia para se saber isso. Poderia até acrescentar mais um fato geográfico sobre o relevo, clima e o que mais ele quisesse sobre a Inglaterra. Talvez com isso ele concluísse que eu fosse alguém um pouco sabida de geografia e não uma burra necessitada de colas para responder questões simples como aquela. Contudo, por mais que a vontade dentro de mim fosse maior do que eu mesma e fizesse meu coração bater numa velocidade raivosa, apenas, por instinto e costume, levantei-me da carteira, sem olhar para seus olhos assustadores, e me coloquei para fora da sala sob os olhares dos meus colegas, que provavelmente tinham o mesmo pensamento de Joseph sobre mim, exceto Lucy e Matthew.
Desci os três lances de escadas que me levariam ao diretor, planejando o que eu exatamente diria à ele, para tentar evitar mais uma punição injusta. No entanto, eu sabia que, por mais que eu contasse a verdade, Benjamin nunca acreditaria em mim, porque ele, assim como a maioria das pessoas daquela escola, acreditava que eu era a adolescente mais pilantra que pisou na London Central High School e, por mais que minhas notas razoáveis provassem o contrário, eles ainda mantinham essa opinião errada sobre o meu caráter. Estavam todos cegos para os fatos que eu tentava expor para provar que era apenas uma vítima do professor Joseph, apegavam-se então apenas no que queriam ver e do modo como queriam ver.
Entrei no corredor branco repleto de portas de madeira com letreiros de metal que indicavam a secretaria, a sala dos professores, a tesouraria e a, tão visitada por mim desde quando pisei pela primeira vez naquele colégio, sala do diretor Benjamin. Parei em frente à porta e pensei em, já que não tinha ninguém ali me olhando, ir correndo e me trancar em um banheiro, ou fugir da escola. Contudo, como a sorte não era nem um pouco minha amiga e porque eu já tinha tentado fugir antes, das duas formas, e não obtive sucesso, respirei fundo, girei a maçaneta e abri a porta, depois dar duas leves e quase inaudíveis batidinhas.
A mesa onde sempre se encontrava a recepcionista gorducha e com voz nasal estava vazia, assim como a mini sala de espera que ficava em frente à mesa de recepção. Conclui, então, que eu mesma teria que ir até a porta seguinte, que me levaria ao escritório onde Sr. Benjamin provavelmente estaria, e perguntar se ele poderia me atender e me dar mais uma advertência. Cômico.
Planejei rapidamente e outra vez uma fuga, mas o medo falou mais alto dentro de mim e fez com que os planos virassem mais uma vez pó. Assim, desta vez sem bater, simplesmente porque uma pressa tomou conta de mim, girei a maçaneta e empurrei a porta sem me importar em parecer sem educação, afinal Benjamin já achava que eu era mesmo, não faria diferença alguma se eu batesse e esperasse que ele me permitisse entrar.
Entretanto, percebi, enquanto encostava a porta atrás mim, que a poltrona verde-musgo do diretor estava vazia. Misturada com a minha curiosidade, afinal Benjamin sempre estava ali, assim como a recepcionista, um alívio percorreu meus pulmões e eu suspirei, com os olhos fechados, por isso.
- Posso te ajudar? – Uma voz soou logo que meu suspiro terminou e, em um susto, pulei para trás, batendo meu corpo na porta. – Desculpe, não queria assustar. – Um garoto apareceu na minha frente e, apesar de seus olhos estarem preocupados, sua boca estava comprimida, segurando um riso.
Capítulo 02
Coloquei minha mão na região acima do meu cotovelo, que tinha batido na maçaneta da porta e que agora doía intensamente, enquanto analisava, ainda surpresa, o garoto que estava na minha frente, que continuava também a ainda segurar um riso. Idiota. Mas, no mesmo instante que o xinguei mentalmente, seu quase-riso-escapulindo se transformou em um sorriso fraco e de lado. E, embora eu estivesse com uma raivinha surtida pelo susto e pelo machucado que ganhara no meu cotovelo, tinha que assumir que aquele sorriso deixava seu rosto atrativo demais. Todavia, isso não diminuía a minha vontade de raspar seu cotovelo na maçaneta, só para ver se aquele sorriso malandro continuaria estampado.
Perdi-me por alguns segundos, que pareceram passar em câmera lenta, em seus olhos, chegando até a esquecer o machucado do meu braço que remetia dores até a ponta dos meus dedos. Mas ok, foco! Foi o que eu gritei para mim mesma. Não era porque ele tinha um par de olhos brilhantes e que pareciam sorrir junto com seus lábios, que realçavam seu tom claro de pele e que... Ok, ele era um idiota.
- Está tudo bem? – perguntou, parecendo agora até um pouco preocupado, e chegou mais perto para analisar melhor meu rosto. Só duas palavras: Pra quê? – Eu fiz você se machucar? – Sim, idiota. Mas era como se eu estivesse em choque, como se seu rosto bonitinho me fizesse desaprender a emitir sons. E porque eu tinha a impressão de que também estava sorrindo? Talvez fosse um efeito da dor, que nem era tão forte assim, mas que pode ter feito eu perder o controle das minhas ações faciais. - Certo. – e se afastou um pouco. – Você queria falar com Benjamin, ou algo assim?
- É, Professor Joseph me mandou vir até aqui, mas ele não está, não é? – respondi rápido, como se os pontos e as vírgulas que deveriam estar ali embutidos na fala, tivessem sido digeridos pelo meu estômago.
- Não. Mas você pode falar comigo e eu resolvo o seu problema. – disse e caminhou até a poltrona verde-musgo, que deveria estar sustentando o peso do Benjamin e não o dele, sentando-se. Então, sorrindo, apontou para uma das duas cadeiras que estavam em frente à poltrona, pedindo, deduzi, para que eu sentasse.
- Acho que você não pode substituir o papel de Benjamin. – disse, rindo. Até achava a gracinha dele engraçada, mas eu queria era mesmo ver quando Benjamin chegasse e pegasse um vândalo qualquer sentado em sua poltrona. E, vendo o garoto me olhar com dúvida, expliquei. - Olhe para você... Tem um pouco mais que a minha idade e... Quem me garante que você não está fazendo algum tipo de brincadeira comigo? – perguntei, arqueando uma sobrancelha e o fazendo gargalhar por algum tempo.
- Certo, estou fazendo tudo errado, não é? – perguntou mais para si mesmo. – Desculpe. Sou , filho do seu diretor. Estou aqui hoje porque meu pai teve que resolver uns problemas pessoais. Ele disse que volta logo, antes do intervalo. Contudo, se você estiver com pressa, eu posso tentar resolver o seu problema.
Fiquei encarando o sorriso dele por algum tempo, tentando encaixar os fatos na minha cabeça e, também, admirando a beleza convidativa dele. Foco, foco. Corei ao concluir que ele estava realmente falando a verdade. Já tinha ouvido falar naquele colégio sobre , o filho do diretor, cobiçado pela maioria das garotas que já pisaram ali. Finalmente entendi o motivo de tanta euforia por parte feminina, quando esse tal , que agora estava ali na minha frente, aparecia para visitar o seu pai. Todavia, ele ainda parecia ser um idiota.
Mas então, vendo que a idiota naquele caso em especial era eu, sentei na cadeira, um pouco desconfortável por ter seu olhar sobre mim, analisando-me com curiosidade, principalmente porque ele ainda parecia querer rir da minha cara. Todavia, foquei e pensei em como começar a explicar o que tinha acontecido na sala de aula, já que ele não fazia parte do grupo de pessoas da London Central High School que achava que eu era uma espécie de malandra. Isso pelo menos era um ponto positivo, talvez eu conseguisse fazer ele acreditar que eu era uma vitima desprovida de ajuda.
- Joseph, meu professor de geografia...
- Espera um pouco – me parou, colocando sua mão em frente aos meus olhos. – Qual é o seu nome?
- , . – disse, tentando sorrir tão bem quanto ele. E quando retirou a mão da frente dos meus olhos e fez sinal para que eu continuasse, continuei. – Bom... O professor Joseph me mandou vir falar com Benjamin, seu pai, porque eu estava desatenta em sua aula. – Vendo o garoto me olhar intrigado, resolvi ser mais direta. Novato. - Quase dormindo, entenda como quiser. – dei os ombros e ele riu.
- Oh, você é a . – disse, levantando as sobrancelhas e parecendo se divertir com sua descoberta particular. - A que está no último ano do colégio, dorme nas aulas de geografia, cola nas provas, foi abandonada pelos pais por ser muito rebelde, anda com uma garota que é hipocondríaca e com um homossexual drogado.
A imagem distorcida que eu pensava que criaram sobre mim era muito mais distorcida do que eu pude imaginar. Eu rebelde. Lucy hipocondríaca. Matthew drogado. Uau. Não gostava de imaginar o que pensavam mais sobre nós. Talvez nós fossemos mais comentados do que os drogados de verdade, sem saber. Mas, no fundo, eu não estava acreditando, olhei por um bom tempo para indignada e esperando que ele dissesse que tinha exagerado um pouquinho. Entretanto, ele parecia totalmente certo e convencido do que estava falando. Conclui então, que seria inválida também para ele a minha tentativa de explicar a verdadeira vítima. Suas idéias sobre mim já estavam provavelmente formadas.
Fui, assim, rapidamente a caminho da porta, esperando que ele não tivesse em mente (ele era novato, afinal) a idéia de me presentear com uma advertência, como seu pai sempre fazia. Aliás, devo deixar constado aqui, o filho era tão idiota quanto o pai. Mas, antes de girar a maçaneta, olhei novamente para e, ao encontrar seu (lindo) rosto confuso, formulei uma explicação rápida, porém não muito convincente.
- Aula de biologia! – disse, antes de fechar a porta atrás de mim.
Olhei para os dois lados, o esquerdo, que me levaria para a escada e de volta para a sala de aula, e o direito, que me levaria ao portão principal do colégio, para longe dali, e travei uma luta com duas partes de mim, onde a primeira queria seguir para a direita e segunda achava arriscado demais. Pensei durante alguns segundos e resolvi verificar se o porteiro estava, como a recepcionista e o diretor, fora do seu local de trabalho. Fui então pela direita, apertando meu material contra o meu corpo e olhando todos os lados com receio de ser pega.
Para minha decepção o porteiro estava lá em seu posto. Contudo, para me colocar um pouco de esperança e para que eu travasse outra luta comigo mesma, ele estava com a cabeça pensa para trás e com os olhos fechados. Aquilo poderia ser um sono, então eu poderia passar por ele sem ser pega, mas corria o risco de ser apenas um cochilo. Tirei por conseqüência então que eu já tinha me arriscado demais, era melhor eu voltar para sala e encarar minha aula de biologia. Entretanto, antes que eu pudesse pisar no corredor novamente, escutei a voz de Benjamin se aproximando, juntamente com a voz nasal da recepcionista. Soltei um gemido baixo ao me dar conta da situação que eu tinha me metido e, depois de olhar para o porteiro mais uma vez, decidi que tentar escapar seria mais digno do que esperar parada o pior se concretizar. Então, apertei o meu material mais forte contra mim e corri em direção a rua, permitindo-me olhar apara trás apenas se alguém, Benjamin ou o porteiro, gritasse meu nome.
Comecei a andar devagar quando conclui que estava a salvo e então tomei o caminho que me levaria até minha casa, esperando que não estivesse lá para brigar comigo por ter fugido da escola. E agora, pelo menos, eu estava aliviada, sem mais aulas para encarar, apenas eu e aquelas ruas de Londres. Mas bem, aquela parte de mim que queria, naquele momento de indecisão, virar a esquerda e enfrentar as aulas restantes, agora me lembrava da advertência, ou quem sabe suspensão, que eu iria tomar no dia seguinte quando dessem por minha falta. Eu era mesmo muito esperta, quando escapei de uma advertência, em vez de aproveitar minha sorte e voltar para a sala, fui a caminho de mais uma. Aham, , parabéns.
- . – alguém gritou meu nome, atrapalhando assim toda a minha briga comigo mesma enquanto caminhava e fazendo meu coração bater numa velocidade incrível. Virei-me para trás quando o meu nome voltou a ser gritado e, ao constatar correndo em minha direção, depois de me livrar do choque, voltei a andar como se não o tivesse visto. – , espera! – gritou mais uma vez. ?
Ótimo! Agora eu estava decididamente ferrada, conclui, parando de andar, fechando os olhos com força e tentando acreditar que eu não tinha feito a burrada que fiz. E em pouco tempo senti sua mão em meu ombro e ouvi sua respiração ofegante perto do meu ouvido. Pelo menos, ele era mais atlético e bonito que seu pai. Muito melhor ter sido pega por ele. Pensando nesses pontos retardados, mas positivos, mantive meus olhos fechados e esperei ouvir a recriminação que sairia da sua boca, quando sua respiração se aquietasse.
- Onde você está indo? – perguntou, ainda lutando para controlar sua respiração. Não, ele não sabia mesmo as coisas certas para se falar. Novato idiota. Abri os olhos e ri sem humor.
- Estava fugindo da escola. Não está óbvio?
- Isso eu sei. – disse, sorrindo. Sorrindo? E ok, ele não iria me tomar pelo braço e me arrastar para a escola? Como se entendesse que minha mente estava mais confusa do que nunca, explicou. - Eu sei que você está fugindo. – disse, pausadamente, como se eu fosse a idiota – Quero saber para onde você está indo. – Não respondi, ainda acreditava que aquilo era uma piada e estava esperando as câmeras aparecerem. - Onde você mora?
- , qual é a sua? Para que tudo isso? – perguntei, rindo sem humor e logo em seguida bufando. – Não é mais fácil você me falar agora que eu tenho que voltar para a escola nesse exato momento ou eu serei expulsa, condenada à fogueira ou qualquer coisa assim? – Como se eu tivesse feito uma piada, ele gargalhou. Colocou suas mãos dentro do bolso da sua calça, que provavelmente era um, ou dois, números maiores que ele e enfim deu uma explicação mais lógica. Ou não.
- Não vim aqui fazer você voltar para escola. – Fiquei atônita e ele, ao perceber, explicou-se. – Meu pai voltou ao posto dele, então estava indo embora, encontrei você fugindo e resolvi te fazer companhia até o lugar onde você pretendesse se esconder. – riu. Então tudo o que eu fiz foi voltar a andar, balançando a cabeça, como se isso pudesse me ajudar a entender a mente estranha daquele garoto. - Algum problema? – perguntou, após voltar a ficar ao meu lado, acompanhando meus passos.
- Você acha que eu sou o que falam? – Mudei então todo o foco da nossa conversa, se é que poderíamos chamar de conversa o que estávamos tendo, e parei de frente para ele para que me analisasse.
- Não sei. Estou tentando te entender. – foi tudo o que disse e então voltamos a nossa caminhada.
Mantive-me em silêncio, assim como o garoto, e tentava entender por que ele, o filho do diretor, estava tentando me entender. Não havia sequer lógica. Benjamin me odiava com toda a alma, desejava furiosamente que eu cometesse algum ato muito horroroso, para que ele pudesse me expulsar sem receber reclamações do meu irmão. E não era só isso, não apenas essa pergunta, mas muitas outras, como duas pessoas que se conhecem hoje já saem por aí caminhando juntas. Não fazia isso com ninguém, mas por que com eu simplesmente deixava? Deveria era tomar um táxi e nem sequer dizer tchau. Todavia, incrivelmente, eu estava preocupada em não ser tão chata quanto costumava ser. Estava sendo, sabia, respondendo de forma errada e não como ele esperava, mas eu estava bem menos. Normalmente, eu nem responderia. E o mais intrigante: nas duas vezes que olhei para de soslaio, percebi que ele ainda me analisava como se fosse algum problema de álgebra muito avançado, mas que ele tentava realmente entender.
- Vocês são amigos há muito tempo? – E quebrou o silêncio, assim como os meus pensamentos. – Você, Lucy e Mattew se conhecem há muito tempo? – reformulou e desta vez eu nem me assustei por ele saber os nomes dos meus amigos.
- Eu e Matthew sim. Nós estamos juntos desde o final do primário, às vezes ele parece mais meu irmão do que meu próprio irmão, que agora parece ser mais meu pai. – Olhei mais uma vez de soslaio e ri ao perceber que ele estava confuso. – É uma longa história. Mas, voltando a responder sua pergunta... Lucy começou a ser nossa amiga há pouco tempo. Ela anda comigo e com Matt apenas por conveniência. Ninguém vai com a cara dela só porque ela tem piercings no mamilo, já tentou se matar, extrapola demais na maquiagem e porque acham que ela é hipocondríaca. Mas na verdade, o que ela tem é depressão. Assim como Mattew, que é gay e não drogado, construíram uma imagem errada sobre Lucy.
- E você? – perguntou com interesse, quebrando minha fala que eu (susto) tinha vontade de alongar. - Você é o que falam? Sei que você deve estar pensando que isso não é do meu interesse e, na real, não importa para mim se você é ou não, mas é que estou curioso sobre você. – Colocou as mãos no bolso e corou. – Desde sempre, mas eu não sabia. Ouvia falar de você e tinha curiosidade para te conhecer, todos têm, na verdade. Mas... Você é como um enigma, não dá para entender o que se passa na sua cabeça. É estranho, é como se você gostasse do status que carrega. Mas, ao mesmo tempo, você parece ser bem mais do que isso.
- Status. – repeti a palavra com certa repugnância e ri, balançando a cabeça negativamente.
- Vai responder à minha pergunta?
- Quer mesmo saber? É fácil, , descubra. – instiguei e, antes que minhas bochechas corassem, porque as palavras dele estavam agindo de forma estranha em mim, fazendo-me sentir vergonha, voltei a andar.
Todavia, desta vez ele não me seguiu e isso me desapontou um pouco. Não olhei para trás, seria muito fraco da minha parte se eu fizesse isso e tinha que continuar com a minha fantasia de forte perto dele, assim como fazia com todos os outros. Só não entendia porque com ele, um garoto idiota (e lindo) qualquer, era muito mais difícil segurar a máscara que eu sempre sustentei. Difícil porque meu coração batia em um ritmo alucinado, como se ele fosse pular para fora de mim, e estava corada. Bochechas queimavam por causa dele, era completamente ridículo. E justo naquele momento eu não tinha respostas, elas nem pareciam sequer existir, mas eu tinha tantos “por ques” ressoando em minha mente.
Capítulo 03
- Lucy, porra, abre essa porta! – gritei, já irritada demais pela situação, dando mais alguns socos na porta.
Em resposta a todo o meu desespero recebi mais um barulho de fungada, logo seguido por um gemido de dor, do outro lado da porta, onde Lucy estava reclusa. A mais plausível explicação que eu tinha em mente para o que estava acontecendo, era que Lucy não havia tomado alguns (ou nenhum) dos seus três (quem sabe agora até mais, depois da sua última visita ao psiquiatra) remédios antidepressivos, os únicos que faziam sua mente ponderar o certo, o errado e o muito errado. E o que ela estava fazendo agora era o muito errado e eu era a encarregada de fazer o serviço de seus remédios, ou seja, de fazer ela parar e ponderar o que estava fazendo. Ótimo!
Suspirei derrotada, encostando minhas costas na porta e escorregando devagar até sentir a cerâmica fria e suja do banheiro feminino congelar minha bunda. Coloquei meus cotovelos sobre meu joelho, fiz uma concha com as mãos, apoiando meu rosto nela, e desejei fervorosamente que Matthew não tivesse faltado justo naquele dia. Só ele sabia ser sentimental e convincente o bastante para conseguir fazer Lucy ponderar. Eu costumava, em uma das minhas brincadeiras de humor malvado, dizer que ele era o quarto remédio antidepressivo de Lucy. E toda brincadeira tem um fundo de verdade. Com certeza ele conseguiria fazer a garota abrir a porta e chorar em seu ombro magrelo, impedindo assim que ela se matasse, e faria isso rapidamente. Contudo, Matthew resolveu não comparecer justo no dia que Lucy certamente não tomou algum remédio. Então, agora o dever de fazer Lucy sair do banheiro com vida, ou sem machucados, era meu e isso fazia minhas pernas tremerem e minhas mãos suarem frio.
Não era capaz de imitar os discursos de Matthew, dizendo que Lucy era tudo na minha vida e na vida de várias pessoas. Na realidade, estava cansada e se ela se matasse, após o peso na consciência por não ter feito muita coisa para impedir (a não ser gritar e bater na porta) sentiria um grande alivio, o peso seria retirado das minhas costas. Mas também confesso que ouvir as fungadas dela, um pouco abafadas pela porta e pelas duas paredes que a separavam de mim, me deixa um pouco menos angustiada, embora ainda irritada. Significava que ela estava ali, chorando, porém viva. Assim, concentrei-me em seus fungos e em sua respiração falhada, pois caso alguns desses se silenciassem, eu sairia do banheiro e o diretor, ou qualquer outra pessoa que estivesse ali por perto, arrombaria a porta e tiraria o corpo de Lucy de lá.
Trágico, mas era a pura realidade.
O banheiro do terceiro andar, onde nós estávamos, estava interditado. Tudo porque Lucy estava psicologicamente afetada e dentro dele, o que, segundo diretor Benjamin, significava perigo para as outras alunas da London Central High School. Eu só estava lá porque, também segundo Benjamin, era amiga de Lucy e única capaz de tirá-la dali. Entretanto, claro que o motivo era que, se Lucy fosse um perigo para mim ele pouco se importaria. Afinal, era eu, .
Pensei em ligar para Matthew, explicar toda a situação e, então, colocaria no viva-voz e pediria para ele implorar do jeito sentimental que ele sempre fazia para Lucy sair do banheiro e tomar um remédio. Porém, como de costume, havia esquecido meu celular em casa. À vista disso, o dever era só meu e não havia escapatória ou métodos que me ajudassem.
- Lucy, escute o que vou falar. – pedi, desapoiando meu rosto da concha que havia feito com as minhas mãos. – Eu não sei o que está passando pela sua cabeça. Mas eu sei que você só está assim pela falta de remédios. Então, se você colaborar com você mesma, abrindo essa porta e tomando seus remédios, você verá que as coisas ficarão muito melhores. – Tentava manter um tom sentimental na voz, porém a minha irritação não deixava isso fluir com naturalidade. – Gosto de você, Lucy. Não queria te ver em uma situação assim. Sei que se Matthew estivesse aqui ele ia te animar muito mais... Aquele gay é sentimental e sabe falar coisas bonitinhas. Contudo, você sabe que eu não sou assim, porém isso não significa que eu não gosto de você. Gosto. – disse, com os olhos fechados e sentindo minhas bochechas queimarem pela confissão ridícula.
Após alguns tensos minutos dentro da expectativa de saber se minha fala ajudaria ou agravaria as coisas, sentindo minhas bochechas pararem de queimar pouco a pouco na mesma velocidade que os fungos de Lucy se cessavam, o barulho da porta sendo destravada fez com que eu desapoiasse minhas costas e virasse meu corpo para frente dela. Ainda sentada, empurrei com meu dedo indicador a porta, escutando-a ranger.
Lucy estava sentada na tampa da privada, com o rosto preto e molhado, conseqüência das lágrimas somadas à maquiagem excessiva que ela sempre usava, apertando sua mão no pulso esquerdo e com um olhar que suplicava desculpas. Meu queixo caiu de desespero, surpresa e irritação ao ver duas listas de sangue que sua mão não conseguiu estancar, escorrendo pelo seu braço.
Mudei o foco da minha visão instantaneamente e encontrei, jogado no lixo ao lado dela, a arma utilizada para confiar tal masoquismo. Um arrepio passou pelo meu corpo, congelando-o, e eu gemi conforme meu estômago deu um giro completo.
- Desculpe. – ela sussurrou, com uma voz fina e falhada.
Suspirei e, embora ainda sentisse minhas pernas tremerem, levantei do chão frio e sujo. Aproximei-me devagar de minha amiga, controlando as respostas que meu corpo dava dentro de mim para a imagem horrível a minha frente, agachei para ficar na mesma altura que Lucy e, ainda em choque, recriminei:
- Que porcaria, Lucy! – sussurrei, enquanto tirava minha blusa fina de linha bege que estava por cima da minha regata preta favorita. – Que bela porcaria você fez! – ri sem humor tentando não inalar o odor de sangue, sem sucesso.
Dobrei a roupa, coloquei a peça sobre meus joelhos e, segurando minha respiração mais ainda, fiz com que Lucy tirasse a mão de cima do pulso cortado. Estremeci mais ao ver o sangue espalhado pelo pulso, agora escorrendo livremente pelo braço. Entretanto, parecendo forte, puxei o machucado para mais perto de mim e amarrei minha blusa nele, apertando o nó com força e recebendo gemidos de dor da garota em resposta.
Levantei, estendendo minha mão para ajudá-la a levantar também e ganhei, com isso, mancha de sangue na minha mão. Levei-a até a pia, sem dizer nada, e lavei a mão manchada de sangue da garota, ouvindo suas fungadas finais e observando de soslaio ela encarar com dor a própria imagem refletida no espelho.
- Obrigada, . – disse, pegando-me de surpresa ao me abraçar, logo quando estava acabando de secar sua mão com o papel toalha.
- Certo. – Desfiz o abraço. – Você tem que ir para a enfermaria agora. Benjamin está lá fora, com a enfermeira, esperando você.
- Merda! – bufou – Já ligaram para os meus pais, não é? – perguntou, mesmo que já soubesse a resposta.
- Sim. – respondi, enquanto a arrastava para fora do banheiro.
Minhas pernas ainda tremiam, a imagem do corte no pulso de Lucy se punha diante meus olhos e intensificava isso. Eu ainda mantinha o ritual anterior, tentava não respirar, com medo de que o cheiro de sangue, conforme eu inspirasse e expirasse, fizesse meu estômago se revirar mais ainda. Por um momento agradeci por não ter colocado nada na boca de manhã, senão provavelmente eu já teria posto boca para fora em alguma privada dali, no momento que vi o tanto de sangue no pulso de Lucy. Contudo, a falta de alimento me deixava tonta e intensificava a tremedeira em minhas pernas.
Os expectadores, tensos como sempre, estavam nos esperando, assim como sempre ficaram desde quando Lucy começou com seus surtos depressivos. Benjamin e a recepcionista gorducha da voz nasal arregalaram os olhos quando me viram finalmente saindo do banheiro. A enfermeira, que provavelmente ainda não estava sabendo que já haviam inventado uma maravilha que pintava fios brancos, como sempre estava com eles, pronta para socorrer alguma de nós caso algo acontecesse. Entretanto, tínhamos ali, olhando ansioso como os outros, porém com olhos (e todo o resto) muito mais bonitos, um novo expectador.
Meu corpo pareceu ficar rígido com o choque, porém, não em muito tempo, as tremedeiras voltaram. Sem querer, no mesmo instante em que parei e analisei ali, proporcionando a beleza que aquele quadro de expectadores nunca teve, apertei a mão de Lucy que estava segurando e a garota gemeu. Só então voltei para fora dos meus pensamentos e lembrei que Lucy precisava de ajuda logo.
Fiquei perto dos expectadores, com os olhos e pensamentos apenas em um, e puxei Lucy para que ela ficasse na minha frente. Todos gemeram em uníssono quando seus olhares encontraram minha blusa bege, agora toda ensangüentada, amarrada no pulso da garota.
- Vou levá-la para enfermaria, dependendo do corte ela precisará ir para um hospital. – disse a enfermeira, com uma voz aguda, e puxou Lucy para ficar ao lado dela.
- O que você usou para fazer isso, Lucy? – Benjamin perguntou, apontando com nojo para o pulso da minha amiga. Lucy abaixou um pouco a cabeça e mordeu o lábio inferior. Estava evidente que ela precisava logo de seu remédio. – RESPONDA garota, ou você tem problema para falar também?
- NÃO GRITE COM ELA. – gritei, sem me importar com quem estava fazendo isso. – Porra! Ela cortou com um estilete, ele está dentro do cesto de lixo de uma das cabines. Foi um corte superficial, eu vi. Mas, porra, - Virei para a enfermeira, elevando a voz a cada palavra. – leve-a logo para a enfermaria.
A enfermeira não esperou ordem do diretor e, olhando para mim como se tivesse medo, assim como a recepcionista olhava, começou a guiar Lucy, que mantinha sua cabeça baixa, em direção a enfermaria.
O sangue queimava a minha bochecha e pulsava na minha cabeça, fazendo-a doer e aumentando o meu mal estar. Diretor Benjamin começou a falar alguma coisa que minha tontura, misturada com a minha tremedeira, não me deixava entender. Abaixei a cabeça, fechando os olhos e respirando fundo, para que assim voltasse a ter controle do meu corpo. A voz do diretor começou a se tornar mais audível, apesar de ainda incompreensível, talvez não porque eu estivesse melhorando e sim porque ele estivesse aumentando o tom da voz, estando agora em um quase grito.
Respirei fundo novamente e agradeci por não haver nenhum odor de sangue. A consciência foi, aos poucos, se fazendo presente em mim e só então tomei conta de que provavelmente estava bem ferrada. Afinal, eu tinha acabado de gritar com o diretor e, claro, ele não deixaria isso passar em branco. Marcaria minha sentença com a caneta mais indelével do mundo.
- Acho que vamos ter que chamar seu irmão novamente. – finalmente consegui compreender o que ele estava falando. – , a senhorita precisava era entrar em alguma escola de bons modos. Mas, talvez nem isso adiantaria, afinal, se até seus pais desistiram de você, não acho que exista algum meio de te concertar... Talvez uma suspensão. – Ainda estava olhando para baixo, mas estava evidente o sorriso que provavelmente ele carregava nos lábios.
- Pai, pare com isso. – pediu e instantaneamente, ao escutar sua voz, levantei minha cabeça fixando meu olhar nele. – Ela não está bem. Acho que ela também precisa ir para a enfermaria. – disse sério mantendo o olhar em seu pai.
- , o diretor aqui sou eu. – Benjamin disse e voltou seu olhar para mim. Eu apenas continuei olhando chocada para , que ainda olhava para o seu pai. – Se ela não está bem, irá para enfermaria. Mas antes tomará uma boa suspensão.
As palavras foram fazendo sentido aos poucos, como se ele tivesse falado lentamente, e só quando isso aconteceu, desviei o olhar de e concluí o quão ferrada eu estava. Abri a boca duas vezes, para tentar me explicar, ou implorar para que ele repensasse minha sentença, mas eu não tinha forças suficientes para isso.
- Não acho que ela mereça uma suspensão. – disse novamente. – Ela só estava nervosa por ver a amiga naquele estado.
- Filho... Escute o que eu estou te falando, essa garota é a pior encrenqueira dessa escola. Ela está merecendo uma suspensão há algum tempo.
- Pai, por favor, não seja injusto. – disse, revirando seus lindos olhos. – Se ela é encrenqueira, eu não sei. Pode ser. Mas o que ela acabou de fazer não lhe dá o direito de reivindicar com uma suspensão. E olha pra ela. – disse, finalmente olhando fixamente nos meus olhos. E eu fiquei mais rígida, sentindo um arrepio percorrer minha espinha. – Ela está horrível! – Oh, Obrigada, ! – Precisa ir para enfermaria agora!
E, sem o consentimento do diretor, ou o meu (não que eu fosse reivindicar), me pegou pela mão, fazendo um leve alivio idiota percorrer meu corpo ao sentir sua mão quente e macia, e começou a me guiar rapidamente. Esperei ouvir a voz de seu pai gritar em protesto, mas nada ecoou pelos meus ouvidos além de nossos passos apressados e as batidas do meu coração, que ficaram rápidas assim que me pegou de surpresa com sua ação caridosa.
Definitivamente havia alguma coisa errada com aquele garoto. Ele devia ter algum tipo de problema de assimilação que fazia com que ele não entendesse que eu, , a garota que agora ele estava ajudando, era a garota que ele deveria evitar.
- Espere. – disse, soltando a mão do garoto e parando de andar. – Não preciso ir para enfermaria, obrigada pela ajuda. Tchau. – Virei em direção à escada e comecei a andar, mas logo senti a mão de segurar meu braço.
- Você precisa sim. Você não está bem. – falou, com seus olhos fixos nos meus. Certo, Alguém poderia avisar para ele que eu não ficaria bem com aqueles olhos pertos dos meus? Meu estômago vazio revirava muito mais.
- Muito bem, vou te explicar três coisas. – Ele soltou meu braço e franziu a testa, - Primeiro: Eu só estou assim, horrível, porque eu acabei de ver sangue escorrendo livremente pelo pulso na minha amiga. Ao passo que, se eu for para enfermaria, provavelmente verei isso de novo e não vai ser bom. Segundo: Eu só preciso ir para casa, comer alguma coisa e ligar para o Matt. Então, seria muito útil se você me ajudasse e inventasse alguma desculpa para o seu pai. Terceiro: Obrigada por não me dedurar aquele dia e obrigada por hoje, mas eu acho que você não deveria ficar sujando sua reputação nessa escola. Eu não sou tão bem falada e você sabe disso. – Ele me encarou sério por alguns segundos, imaginei que estivesse tentando assimilar tudo o que eu havia dito rapidamente, então, após isso ele sorriu de lado.
- Então, é verdade? – perguntou, sorrindo mais.
- O que?
- Você é o que falam? Você ainda não me respondeu desde aquele dia. – cerrou os olhos como se com isso conseguisse descobrir algo. Eu revirei os olhos e ri.
- Acho que eu não te devo respostas. – levantei uma de minhas sobrancelhas e sorri.
Ele pareceu frustrado enquanto passava as mãos pelos cabelos e olhava em outra direção. Depois de um tempo sorriu, voltou a olhar para mim e meu coração começou a bater ridiculamente mais rápido enquanto eu analisava seu corpo, que era tão atrativo quanto o seu rosto era.
Oh Deus, o que estava acontecendo comigo? Eu já tinha conversado com garotos muito mais bonitos que e meu corpo não respondeu idiotamente como agora respondia. Meu estômago não revirava e não era como se estourasse fogos de artifício dentro de mim toda vez que algum deles sorria.
- Certo. Consigo fazer você sair dessa escola. – disse e estendeu sua mão direita a fim de selar algum trato.
- O que você vai querer em troca? – perguntei, bufando, e ele sorriu animado (mais fogos de artifício em mim).
- Algumas respostas. – propôs.
Capítulo 04
Certo, onde eu estava com a cabeça? “Algumas respostas” é uma coisa muito vaga. E retorno a perguntar: O que estava acontecendo comigo? Normalmente eu fazia as propostas e os outros aceitavam. Pelo menos Matthew e Lucy aceitavam sempre e, às vezes, . Com o resto, a regra era ser como sempre fui, uma garota sem respostas. Simplesmente tinha que carregar minha máscara e isso nunca foi algo difícil, até resolver dar o ar da graça. Qual era o meu problema? O fato de ele ser um garoto bonito não justifica a minha ação de estender a mão e aceitar o trato. O fato de ele ser simpático não dá o direito de meu estômago dar voltas. E, o principal, o fato dele conseguir fazer minhas bochechas corarem e meu coração bater rápido não significa que eu tenho que sair dando “algumas respostas” para ele.
Meu coração se aquietou um pouco e minha respiração ficou mais livre quando cruzamos o portão principal do colégio. Ajeitei as alças da minha mochila melhor no meu ombro esquerdo e suspirei aliviada quando a brisa arrepiou os pelos do meu braço. Fechei os olhos, sem parar de andar, e respirei fundo, permitindo que o oxigênio dominasse meu corpo e fizesse todas as coisas estranhas dentro de mim pararem. E pararam, algumas. As tremedeiras não estavam mais ali e nem a tontura. Contudo, como se fosse algo que só desgrudaria de mim quando estivesse bem longe de , a confusão no meu estômago, entre outras coisas, teimavam em ficar.
- Posso acender um cigarro, ou você se incomoda? – perguntei, ainda de olhos fechados, sorrindo de lado ao supor a feição de .
- Não... Pode acender... Se você quiser... – respondeu, gaguejando, então eu abri os olhos e segurei o riso, gostando da brincadeira.
- Maconha. Tem problema? – Olhei para ele e, mesmo que estivesse andando ali o meu lado, dificultando assim a minha visão da sua feição, pude ver seu rosto congelar. E então, ao notar nisso, não agüentei mais segurar e gargalhei. - É brincadeira. – disse em meio aos risos. – Eu não fumo.
- Oh! – Ele sorriu de lado e suas bochechas coraram.
- , você acha mesmo que eu tenho cara de drogada? – perguntei, quando consegui parar de rir. Ele deu os ombros.
- Bem, acho que você já respondeu uma das perguntas que eu faria. – disse, após algum tempo de silêncio.
- Certo, uma pergunta respondida. – falei, lembrando da proposta, e de mau gosto ordenei. – Próxima.
Ele não a fez prontamente como achei que faria. Pareceu lutar com ele mesmo, como se escolhesse a melhor pergunta a se fazer, dentre todas que vagavam pela sua cabeça. Eu esperei, temendo o tipo de pergunta, e por isso já programando uma forma de evitar todas as inconvenientes sem parecer grossa.
Certo. Existia mesmo algo errado comigo. Por que eu não podia ser grossa com ele? Seria tão mais fácil e tão mais eu.
- Para onde seus pais foram? – perguntou. Franzi a testa e olhei para ele com dúvida. Fácil demais.
- Califórnia.
- Por quê?
Eu hesitei, pensei primeiramente em uma forma de não responder e me mantive em silêncio enquanto abria e fechava a boca sem emitir som. Talvez se eu dissesse “Próxima” ele pularia para a seguinte sem reclamar. Contudo, tive medo da pergunta seguinte ser pior, porque ele parecia estar selecionando primeiro as mais fáceis. Então, após fazer uma careta, ao me dar por vencida, comecei a organizar os fatos na minha mente de modo que eles saíssem de maneira objetiva, verdadeira e sem sentimentalismo exagerado.
- Meu pai pode ir para a filial que ele quiser da empresa que ele trabalha. É uma espécie de supercobiçado funcionário. Em tal caso, pode ir para o canto do mundo que bem pretender, se nesse canto sua empresa tiver uma filial. – Seus olhos estavam analisando cada detalhe de expressão que eu deixava escapulir pelos buracos que minha máscara apresentava quando estava com ele, por isso controlava ao máximo meus sentimentos em relação os fatos. – Minha mãe adora Sol. Passávamos as férias na Califórnia e ela parecia explodir de felicidade ao adquirir coloração laranja. E para a satisfação plena dela, a empresa do meu pai tem filial nesse lugar cheio de Sol. Então, após convencer meu pai, eles se mudaram para lá.
- E por que você e seu irmão estão aqui? – Eu podia considerar essa como a última pergunta? Estava ficando pessoal demais, difícil demais de responder, logo que eu não podia deixar escapar nenhumas das coisas que sentia.
- não gostou da idéia. Disse que não deixaria a Inglaterra e consequentemente os sonhos, amizades e todas as coisas que o ligam a esse lugar. E eu, bem... Tudo que eu tenho é o e o Matthew. Eles são os meus dois grandes amigos, os únicos que sempre importaram. – dei os ombros e após algum tempo continuei - Naquele dia em que meus pais contaram a novidade, ao cogitar a possibilidade de ficar longe de , eu tremi. Fiquei ao lado dele e segurei firme seu braço, enquanto ele segurava firme a feição decidida. Eu o escolhi, escolhi a Inglaterra e escolhi o Matt.
- E seus pais deixaram? – perguntou, incrédulo.
- Meu pai ama minha mãe e minha mãe ama o Sol. – disse, simplesmente, dando os ombros.
Muitos pormenores já haviam escapado com apenas aquelas perguntas. Partículas de sentimentos e desgostos foram postas para ele, escondidas por trás das minhas respostas e escapando mesmo que eu forçasse para que elas se mantivessem reclusas em mim. Com apenas quatro perguntas ele conseguiu alcançar, pelo menos, o dobro de respostas e, o pior, ele não havia feito nada além de perguntar. Só. Não havia feito nada que me forçasse ou que fizesse com que eu tivesse o dever de vomitar a verdade nele.
Controlei minha mente, pensei nas melhores palavras que me dispusessem as melhores respostas, sem demonstrar nada e apenas expondo os fatos. Não obstante, como se olhar seu lindo rosto ou o seu lindo corpo de soslaio fosse um gatilho para eu vomitar palavras e escapar sentimentos demais, eu me empolgava e acabava respondendo além do que minha mente havia planejado. Como se só com ele minha boca fosse mais rápida do que meu cérebro e, a partir do momento que eu abria, não poderia mais controlar o discurso.
Parei de costas para minha casa. , ao perceber que eu havia parado de andar, fez o mesmo e depois virou, deixando toda a sua dolorosa beleza posta a poucos centímetros, bem à frente dos meus olhos. Seu olhar profundo segurava o meu, não me deixando meios de escapar e tirando, com isso, todo e qualquer pensamento que antes percorria a minha mente. Meu cérebro então estava incapaz de processar, ou cogitar o processo, de qualquer coisa que fosse a não ser , e . E, apesar de ser apenas dentro de mim naquele momento, eu me sentia completa, como se olhar e pensar nele fossem as duas coisas mais certas a se fazerem no mundo.
- Sua casa é aqui? – perguntou, apontando para minha casa e desviando o olhar para ela.
- Sim. – respondi, e abaixei minha cabeça ao notar que, novamente, as minhas bochechas estavam ficando coradas. Ridículo! Eu tinha dezessete anos ou treze?
- Bonita. – disse. E eu sorri, olhando rapidamente para ele, em agradecimento. – Acho que você precisa entrar, né?
- Sim. Preciso comer algo e ligar para Matt para contar sobre Lucy. Ele vai definitivamente me matar, mas eu preciso fazer isso. – Olhei dessa vez para ele, porém ainda procurando evitar os olhos. Ele concordou com a cabeça, embora franzisse a testa como se não entendesse.
- Posso continuar as perguntas amanhã, então? – perguntou, sorrindo.
Havia mais perguntas? Ele estava de brincadeira, estou certa? Depois de todas as respostas escapadas ele ainda precisava de “algumas respostas”? Ou ele não conseguiu captar todas as respostas que eu deixei escapar, ou ele realmente estava curioso sobre o, segundo ele, enigma que eu representava.
- Mais perguntas? Achei que fossem só algumas. – disse, fazendo feição de chocada.
- O “algumas” meu pode não ser o “algumas” seu.
- Definitivamente não é. Mas, estou me questionando sobre o que mais você quer saber. – Ele mordeu discretamente o lábio inferior e, mesmo não sendo seu objetivo, como se fosse alguma técnica de sedução, meu corpo se arrepiou todo.
- Posso fazer mais uma hoje, então? – perguntou e sorriu tímido.
Eu ponderei. Talvez uma resposta não me gastasse muito mais tempo. Contudo, se só andando ao seu lado, sem olhar muitas vezes para o seu rosto, eu já deixava escapar coisas demais, estando ali, a poucos centímetros dele, eu corria o risco de embalar com o discurso e acabar contando toda a minha vida no fim.
- Não. – sorri – Preciso entrar.
Mas, antes que eu pudesse me virar totalmente para minha casa, ele segurou meu braço, fazendo com que eu virasse novamente para ele e encarasse novamente aquele olhar que agora estava mais perto do que antes.
- Eu preciso fazer mais uma pergunta. – disse com uma voz baixa e rouca, que ao se misturar com o seu hálito que soprou em meu rosto, fez com que eu tivesse a sensação de estar mole e fez meu estômago se debater dentro de mim com força.
Eu esperei ele soltar o meu braço e fazer logo a pergunta que tanto queria. Entretanto, ele permaneceu como estava, não moveu nem um centímetro do seu corpo. Seus olhos estavam fixos nos meus e nossas respirações se tocavam falhadas. Meu corpo e minha mente estavam completamente embriagados e eu tinha certeza de que se ele soltasse meu braço eu despencaria mole no chão.
- Desistiu? – sussurrei, agarrada ao um por cento de lucidez que ainda estava em mim.
Ele cerrou os olhos como se estivesse frustrado e eu admirei isso, embriagando-me mais ainda quando ele bufou levemente.
- Estou com medo da sua resposta. – disse, quase em um sussurro. Eu fechei os olhos por um momento para conseguir falar.
- Ora essa, minhas respostas anteriores foram tão ruins assim? – perguntei e rapidamente voltei a abrir os olhos, pois mais valia a pena naquele momento me entregar àquela visão.
- Não. – disse e respirou fundo. – Mas eu acho que agora prefiro não saber a sua resposta. Vou fazer mesmo com medo que você me respondesse com um não.
Antes que minha mente pudesse analisar cada palavra e processar a frase, afinal, por toda a proximidade e, o que eu queria acreditar ser um problema fisiológico, pela falta de alimento, eu estava completamente afetada e lerda, juntou nossos lábios com força. Seus lábios quentes pressionaram os meus como se ele tivesse medo de que, se não colocasse força, eu os separaria. Como se eu tivesse coragem para fazer algo no estado em que eu estava, toda afetada. Após algum tempo, quando provavelmente percebeu que manter nossos lábios colados daquele jeito não era uma das melhores idéias, ele soltou meu braço, diminuindo a pressão sobre meus lábios, e segurou com uma de suas mãos o meu rosto, fazendo com que uma onda de leves choques irradiasse meu corpo. Então, me beijou de uma maneira mais sutil, colocando sua outra mão delicadamente em minha cintura e acariciando minha bochecha com a outra. Não em muito tempo, senti sua língua roçar meu lábio inferior pedindo passagem e, após tomar consciência de que o meu estômago não revirava por eu estar passando mal e sim pela situação, abri a boca e permiti que ele intensificasse o beijo. Sua língua encontrou a minha e todos os arrepios que agora percorriam o meu corpo, como se eu estivesse estourando fogos dentro de mim, fizeram meu corpo ficar mais mole do que o normal e minha mente mais bloqueada a todo tipo de pensamento, porque agora eu era só sensação. Apenas queria sentir o beijo de e nada mais. Por querer sentir melhor seu corpo próximo ao meu e com medo de despencar de tão mole que estava, aproximei mais, enquanto nossas línguas brincavam rápidas, passei minhas mãos pelo seu ombro até chegar em sua nuca e, então, apertei seus cabelos levemente, no mesmo momento que ele apertou minha cintura, grudando seu corpo mais ao meu.
A consciência foi tomando conta de mim conforme meu corpo, já farto do beijo rápido, pedia ar. Contudo, minha vontade de continuar aquilo, mesmo sem ar e sem consciência era maior porque aquele beijo despertou sensações inéditas e inexplicáveis, tornando o oxigênio a coisa mais inconveniente do mundo naquele momento.
Meus lábios pulsavam de desejo implorando mais e, ao sentir o ar preencher meus pulmões, voltei ter os pensamentos de volta na minha mente, misturando-se com o desejo de ter os lábios de novamente nos meus. Abri os olhos devagar, ainda estava embriagada pelo momento, e vi desaparecendo pelo caminho de onde tínhamos vindo, apressado, sem olhar para trás.
E por algum momento eu fiquei ali, sem me mexer.
Capítulo 05
O último sinal daquela manhã de sexta soou agudo fazendo com que eu tivesse de despertar do meu sono e dando informe de término da última aula daquele dia. Sociologia. A única matéria que eu sabia exatamente o horário de início e término de cada dia sem precisar olhar para o horário de aulas colado no meu fichário e, também, pregado no mural de informações do piso térreo. Não porque fosse minha matéria favorita da cadeia de matérias que eu encarava – nem de perto, aliás. – e também não porque eu precisasse focar toda a minha concentração no quadro branco, sem piscos e bocejos, como tinha que ser em todas as aulas de geografia, já que sociologia era tão boa quanto biologia no sentido de dormir sem levar algum tipo de punição em permuta. A explicação está longe de ser por conta de algum interesse meu pela sociedade e, sim, encrespado a uma nojenta luxúria.
Levantei minha cabeça, sentindo-a latejar, praguejando contra o inoportuno sinal, ao mesmo tempo em que abria os olhos e tentava acostuma-los com toda claridade vinda das luzes fluorescentes da sala. Foi se tornando nítido aos poucos o borrão dos alunos passando apressados e ansiosos pelo final de semana, enquanto o professor Michael segurava a porta, desejando um bom descanso para todos que passavam, mesmo que ninguém se importasse com o eventual carisma dele e, então, apenas ignoravam, olhando para o lado oposto ao que ele estava, ou para baixo.
Michael, professor de sociologia da London Central High School, para evitar as delongas, é a explicação para o fato de eu decorar o horário apenas de sua matéria em especial. Mas, antes que pensem errado, claro que não sou como Lucy, que tem tara anormal por professores, inclusive por Michael, e fica com olhos esbugalhados em todas as aulas tendo fantasias estranhas e nojentas. E, não, obviamente eu não sinto nada por Michael. Pelo menos não enquanto ele permanecesse assim a uma distância significativa de mim.
Fechei meu livro, que estava aberto em uma página qualquer apenas para servir de apoio para minha cabeça, ainda um pouco confusa pelo sono, enquanto Mattew, o amigo caridoso, guardava meus outros materiais na minha mochila. Sorri em agradecimento quando ele tirou o livro de sociologia da minha mão e também o guardou, antes de fechar o zíper e me passar o peso para que eu pudesse jogar no meu ombro para, então, sair e me manter longe do colégio por gloriosos dois dias.
Em poucos minutos a sala estava vazia, porém Michael continuava segurando a porta, olhando agora para Mattew e eu, carregando um sorriso não mais eventualmente carismático e sim um malandro, de lado, que deixava leves rugas aparecerem no canto do seu olho esquerdo. Um dos poucos sinais que denunciavam seus trinta e seis ou sete anos. Seu plano cravado por trás daquele sorriso era evidente e eu o li em segundos.
Suspirei me sentindo derrotada e cansada, enquanto uma mistura de nojo e raiva percorria todas as veias do meu corpo em milésimos de segundos, causando choques irritantes e fazendo assim meu coração parecer se encolher e consequentemente doer. Mattew, como sempre, pareceu entender tudo, tanto o que se passava dentro de mim, assim como o que aconteceria então, após olhar para o meu rosto e logo em seguida para o do professor, repetindo isso duas vezes como se para verificar sua leitura dos meus sentimentos e dos fatos futuros. Pousou então sua mão magrela e comprida em meu ombro e sussurrou no meu ouvido, enquanto eu ainda mantinha meus olhos fixos na porta, embora com pensamentos sem nenhum ponto estável ao certo.
- Você não precisa fazer isso. – disse e logo em seguida tentou me empurrar para irmos embora.
Mas meus membros estavam travados e não respondiam a nenhuma ação que minha mente conseguia, em meio a tantos pensamentos, ordenar, fixados assim como meus olhos estavam naquela porta. Meus pés pareciam ter sido colados ao chão e eu sabia que não era assim tão fácil quanto Mattew insinuava por trás de sua fala clichê porque, olhando agora para os olhos cheios de luxúria do meu professor, eu sabia que precisava, sim, fazer o que ele planejava, conseguia ter plena certeza de que ele estava esperando aquele momento por algum tempo. Duas semanas, eu havia contado. E também sabia, embora não tivesse feito nada que sugerisse e comprovasse meu medo, que ele era capaz de muitas coisas que me prejudicariam muito se eu simplesmente seguisse o conselho do meu amigo e cruzasse aquela porta, fingindo que nada demais havia acontecido.
- Vamos lá, . Ignore isso. – escutei baixo demais.
A voz de Mattew já estava em um pano de fundo, como uma melodia posta em volume baixo para acompanhar uma cena de filme ou novela qualquer, sendo nada mais do que descartável, assim como ele próprio, e agora as únicas pessoas que protagonizavam a cena em questão eram eu, meu professor de sociologia e, devo acrescentar, minha memória que brincava de relembrar fatos tão nojentos quanto os pensamentos de Michael naquele momento provavelmente eram. Porque quando você faz uma coisa errada, e repete ela algumas vezes, sua memória tende a te punir sempre, deixando seus membros completamente travados e seus olhos sem a necessidade natural de piscar.
- Mattew... É melhor você me deixar ter uma conversa em particular com sua amiga aqui. – A voz grossa de Michael me fez sair das minhas recordações e voltar a sentir não só meus membros, mas também todos meus órgãos que agora se reviravam ou pulsavam irritantemente dentro de mim.
- Não. – Mattew, que agora voltava a ser um personagem importante da cena e não um figurante, respondeu e se posicionou na minha frente, segurando meus ombros com força. – Você não precisa fazer isso, . Não precisa, não. – Seu olhar suplicante tentava passar segurança, mas eu não conseguia captar nada mais do que medo, que talvez fosse só um reflexo do que meus olhos emanavam.
Michael gargalhou logo atrás de Mattew e eu só reparei que minha respiração havia começado a ficar falhada quando Mattew, ainda me segurando pelos ombros com força, me sacudiu para frente e para trás algumas vezes, provavelmente para que eu voltasse a respirar normalmente e fizesse o que ele gostaria que eu fizesse, e que eu deveria fazer. Contudo, embora agora o ar estivesse entrando de maneira correta em meus pulmões, isso não significava que eu estava melhor ou de alguma forma com coragem.
Escutei uma porta se fechar e deduzi ser a da nossa sala, então, não em muito tempo, vi o rosto do meu professor aparecer atrás de Mattew e sorrir.
- , diga ao seu amigo para sair. – pediu, agora fingindo estar sério.
Com certeza uma resposta psicológica para aquela pressão em que agora eu me sentia colocada, afinal Michael estava, embora mais perto, ainda a uma boa distancia de mim, senti seu cheiro entrar em minhas narinas e percorrer meu corpo, arrepiando meus pelos. Então, meu sentimento estava começando a ficar dividido em dois tipos, o que ainda sentia raiva daquilo e o que apenas queria empurrar a barreira inoportuna que Mattew era, a fim de me aproximar mais de Michael.
- Matt, depois eu converso com você. – falei, seguindo o instinto que agora começava a brotar em mim, tirando as mãos do meu amigo do meu ombro e caminhando para ficar ao lado do nosso professor.
Vi a raiva borbulhar nos olhos de Mattew quando ele virou e me encarou balançando a cabeça negativamente. Sabia que ele estava certo, que eu deveria parar de agir por instinto, começar a pensar nas conseqüências das coisas e agir, então, com a razão. Contudo, quando se tratava dessa situação, eu não era e não tinha em mim nem um por cento da corajosa e forte que sempre aparentei ser. Observei sua boca abrir e fechar duas vezes, embora nenhum som emanasse de lá, e eu também tentei falar algo para acalmá-lo quando percebi que a sua raiva estava quase explodindo, mas, mais inútil ainda do que ele, nem a boca eu consegui abrir e fechar. Segui com os olhos suas mãos subirem até seu cabelo, apertando-o na região da nuca enquanto olhava para os próprios pés e depois, rápido demais para que eu pudesse continuar analisando, ele correu para fora daquela sala.
Mattew talvez carregasse muito mais do que raivinha por eu não conseguir mais pôr um fim em toda esse ciclo de erros que eu cometia após as aulas de sociologia. Afinal, foi ele que, no mês de outubro, havia estimulado o que me colocou nessa situação. A culpa sempre anda escondida, e sempre presente, quando se trata de Mattew.
Estávamos sentados na grama bem aparada do colégio, após o término da última aula de sexta-feira. Mattew já segurava entre os dedos seu quarto cigarro e Lucy, completamente eufórica, citava os melhores professores da London Central High School e algumas de suas fantasia. O que me restava, então, era gargalhar e receber em troca cutucões de desaprovação de Mattew.
Nesse dia minha cabeça latejava em protesto à noite de insônia e eu não prestava tanta atenção assim na hiperatividade de Lucy, já que ela, naquele tempo, havia começado a engolir de manhã um novo remédio para sua depressão e ele, nos primeiros dias, a deixou hiperativa, apenas quando ela narrava alguma cena muito nojenta com algum professor muito nojento.
Mattew soprou um monte de fumaça perto do meu rosto e depois olhou para Lucy e disse algo que hoje, quando eu não estou sendo embriagada pelo cheiro de Michael, eu gostaria muito que não tivesse dito.
- Aposto que o professor Michael está ainda na nossa sala, tentando lidar com toda aquela papelada. Por que, querida Lucy, em vez de ficar devaneando na grama, não vai lá e tenta colocar em prática suas idéias? – perguntou e eu gargalhei de imediato, enquanto Lucy apenas se manteve séria.
- Porque, querido Matt, Michael nunca iria querer nada com uma aluna, fosse ela qual fosse, senão eu estaria lá agora mesmo. – respondeu, deitando agora seu corpo todo na grama.
- Duvido muito. Já reparei que ele adora secar algumas alunas. Acho assim, querida Lucy, que você deveria ir lá e checar se você é uma delas. – retrucou novamente. Segurei o riso ao perceber que Lucy já estava ficando incomodada com o assunto.
- Por que não vai você Matt? Aposto que você também gostaria. – Com essa eu gargalhei.
- Pare de rir sua ordinária. O assunto não envolve você, fique na sua. – Mattew disse, soprando mais fumaça na minha cara.
- É que ela também queria, Matt. Também queria ter coragem de ir lá e trocar amassos com o professor de sociologia.
Eu parei de gargalhar. Olhei, com uma sobrancelha erguida, de Lucy deitada na grama para Mattew ali ao meu lado. Coragem era uma coisa que não faltava em mim, nunca. E eu odiava que duvidassem disto. Então, sorrindo de lado, comecei a ferrar com minha vida escolar naquele momento.
- Pois, se vocês estão pensando que eu não tenho coragem, estão completamente enganados. – Levantei-me e observei o queixo de Mattew cair e Lucy levantar parte do seu corpo, ficando apoiada pelos cotovelos, enquanto me observava caminhar novamente para dentro da escola.
Pessoas normais ririam da gracinha particular de seus amigos e, no máximo, retrucariam com alguma gracinha pior e mais engraçada. Mas, de fato, quando me encontrava nesse ponto, de ser julgada sem coragem, eu não poderia me encaixar no grupo das pessoas normais.
Tão anormal a ponto de, ao caminhar em direção a sala que Michael estava, eu não sentia medo, não sentia minhas pernas vacilarem e meu estômago estava sereno. A única coisa que sentia, e que me impulsionava a ir determinante até a porta 310, era a súbita vontade de fazer fechar a boca daqueles que duvidaram minutos atrás da minha coragem.
Parei com os braços cruzados em frente à porta 310, ainda sem a prudência que deveria estar em mim para me fazer parar. Fiquei na ponta dos pés e observei pelo pequeno quadrado de vidro a figura do professor Michael borrada pela sujeira e pelos trincos no vidro. Não me detive, apenas sorri e girei a maçaneta da porta, apenas pensando no rosto dos meus amigos ao saberem o que estava por vir.
Michael tirou os olhos dos inúmeros papéis ao escutar a porta se fechar e sorriu levemente ao me ver. Eu sorri mais.
- Esqueceu algo na sala, ? – perguntou, ajuntando os papéis que estavam sobre a mesa.
Tinha uma resposta, poderia arranjar palavras e soltar alguma desculpa convincente por estar ali, porém não fiz sequer um movimento com a boca porque minha mente funcionava rápida demais, impedindo assim que ela desse algum comando senão o de andar e analisar Michael agora não como o professor de sociologia. Ele não é feio, afinal, Foi uma das coisas que pensei, E nem tão velho. Não é como se ele sustentasse os quarenta e cinco anos do meu pai. Dez anos a menos, talvez. Que bom!, Acho que sorri ao pensar isso, Desta forma não vai ser como se eu estivesse beijando meu pai. Enquanto pensava, por osmose, caminhei devagar até a mesa onde ele se encontrava, agora de pé, com alguns papéis na mão, e quando consegui excluir grande parte das coisas que vagavam pela minha cabeça, percebi que ele estava separado de mim por alguns poucos centímetros. Sua testa estava franzida e seus lábios levemente puxados para baixo. Não, ele não era feio. Embora também não fosse bonito.
- ... Posso saber o que você tem? – perguntou.
Contudo, a única coisa que eu ouvia claramente, olhando agora no rosto intrigado de Michael, era a voz de Lucy. É que ela também queria, Matt. Também queria ter coragem de ir lá e trocar amassos com o professor de sociologia. Então, querendo acima de tudo me livrar daquela voz e dos meus outros pensamentos, segurei o rosto do meu professor e juntei nossos lábios, logo forçando minha língua encontrar a sua. No começo seu corpo estava rígido e ficou assim até quando eu escutei a papelada cair e, então, suas mãos se ocuparam agora em apertar nossos corpos um no outro. Quanto mais ele apertava, mais eu tinha a sensação de querer estar mais próxima.
Isso rendeu mais do que fazer com que meus amigos acreditassem na minha coragem e mais do que a inveja borbulhando e se transformando em raiva nos olhos de Lucy. Rendeu também chantagens que vinham sempre lotadas da luxúria adquirida por Michael desde aquele dia de outubro. E agora, graças às chantagens que nem eram muito mais do que olhares intimidadores e sorrisos de lado, tudo o que eu fazia era repetir o erro porque as minha escolhas eram, senão nulas, poucas.
Além de que, nesse caso em especial, eu não me encontrava como a vítima. Michael se encaixava mais nesse personagem do que eu, ao passo que fui eu quem, naquele dia de outubro, abriu a porta da sala de aula e gerou o início de uma sessão de amassos. Então, obviamente, eu não poderia descer e contar para Benjamin das chantagens, atrapalhando assim toda a vida profissional do meu professor e até quem sabe o futuro que enxergava em mim.
Capítulo 06
- Espero que você não demore mais duas semanas para voltar a ficar um pouco mais de tempo aqui. – Michael disse assim que terminei de colocar minha blusa e jogar minha mochila em um ombro. E eu realmente esperava que eu tomasse alguma atitude e voltasse a nunca mais me preocupar com meu tempo em finais de aula de sociologia. Quem sabe agora seria o momento ideal para eu dizer que, sim, eu demoraria e pretendia demorar muito. Entretanto, tudo o que consegui fazer foi dar um meio sorriso e balançar a cabeça positivamente, confirmando algo que nem mesmo sabia o quê. – E, se você demorou por causa de Mattew, não acho que ele ficará bravo com você se continuarmos com isso. Vocês parecem ser tão unidos e não vejo porque ele não aceitar uma escolha sua. – Como se, em algum momento, tivessem fornecido alguma escolha para mim. Talvez as escolhas até existissem, porém tudo que eu fiz foi ignorar as que me rebaixariam e, por orgulho e vontade besta de provar coragem, escolher justo as que eu nunca desejaria escolher. – As escolhas sempre foram e serão suas. – E sorriu, ajuntando seu material melhor na mesa.
- Prefiro que não me dêem escolhas. – Porque sem elas eu cometia menos erros e com elas eu tendia sempre a optar pela pior, cometendo o mesmo erro inúmeras vezes. Contudo, Michael não pareceu entender o que eu deixei subentendido nas entrelinhas da minha fala. Ele apenas me olhou sorrindo mais e depois voltou a organizar a papelada na mesa.
Desci as escadas em passos rápidos, chegando a quase cair ao descer dois degraus de uma vez só, preenchida pelo desespero de fazer logo uma ligação ou quem sabe melhor, encontrar sentado na árvore em que sempre sentávamos no final das aulas de sextas-feiras e assim engatar as desculpas, que já havia passado em minha cabeça quando notei seus olhos furiosos, pessoalmente. Minhas mãos deslizavam pelo corrimão em velocidade recorde e, ao chegar finalmente no piso térreo, segurei firme o final do corrimão e fechei os olhos com força, retomando assim o ar que eu havia esquecido de respirar quando descia os três lances de escadas. Retirei a mão de lá e ajeitei minha mochila em minhas costas, agora distribuindo o peso para os dois ombros de maneira proporcional. Apenas queria perder um pouco mais de tempo para retomar o ar, afinal não seria capaz de engatar desculpas ofegante, e após conseguir respirar sem abrir a boca, caminhei até o portão principal que me levaria ao gramado onde eu esperava encontrar Mattew sentado com seus cigarros.
Contudo, a árvore com nossos nomes, e o de Lucy, estava vazia, assim como todo o resto das árvores e dos bancos que havia ali em frente à escola, distribuídos de maneira proporcional. Nenhuma sombra de nenhum aluno estava desenhada no gramado a não ser a minha, que eu encarei por algum tempo desapontada e tentando formar um plano B para as minhas desculpas.
Joguei minha mochila ao meu lado e encostei minhas costas na árvore, sentando no gramado, onde eu pretendia achar Mattew segundos atrás. Retirei meu celular do bolso lateral da minha calça e digitei o número do meu amigo, começando assim o plano B, que nem havia sido muito criativo. Entretanto, era melhor esse do que esperar pela manhã seguinte, quando eu sabia muito bem que Mattew era o tipo de pessoa que aumentava o rancor conforme os dias passavam e as desculpas não vinham. Coloquei o aparelho no viva voz, apoiei-o em minhas pernas e esperei ouvir a voz de Mattew irritada atender logo. Contudo, tudo o que ouvi, após longo tempo escutando o aparelho me informar que estava chamando, foi a voz programada de Mattew dizer: Oi. Aqui é Mattew. No momento não posso atender, ou esqueci o celular em casa, ou não estou escutando essa bosta tocar, ou eu não quero te atender mesmo. Então, se quiser, e não que signifique que eu vou escutar, deixe uma mensagem. Apertei o botão end com força e finalizei a ligação. Sabia que, no meu caso, a última opção se encaixava melhor, Mattew não queria me atender, e por isso, aos poucos, junto com a vontade de pedir perdão veio uma raivinha. Afinal, o que ele tinha a ver com o que eu deixava de fazer ou não? Se existia uma pessoa que tinha o direito de me ignorar e não atender minhas ligações, essa pessoa era Lucy, e não Mattew.
Olhei para o aparelho ainda apoiado em minha perna e, após respirar fundo e ignorar a irritação, apertei o call duas vezes e esperei que caísse na caixa de mensagens novamente. Sabia também que a parte do “e não que signifique que eu vou escutar” não se encaixava no meu caso. Então, ao ouvir o sinal, mantendo meus olhos fixos em uma árvore a minha frente, engatei:
- Mattew, eu sei que você vai ouvir essa mensagem de voz. Eu ligaria, ou, se você estivesse lá, até iria a sua casa, mas sei que você não está. – Engoli um pouco de saliva junto com o meu orgulho besta que deveria ir a baixo. – Eu sinceramente peço desculpas, embora ainda acho que você não tem que ficar sentindo dores por mim e... – E ficar com raiva só porque eu fico até mais tarde nas aulas de sociologia. Não falei isso, embora quisesse, porque sabia que em vez de concertar eu pioraria as coisas. – e... Ok, desculpas. Gostaria muito de conversar com você, como costumávamos fazer alguns anos atrás... Estou cansada de pisar errado, mas eu não consigo me agarrar a outras escolhas. Você deve saber que eu sou péssima com escolhas, não é? Acabo sempre com a pior e depois, como agora, vejo-me presa. E aquelas escolhas melhores que deveria ter feito somem como partículas de pó em uma ventania. Então, tudo o que eu faço é repetir o mesmo erro sempre e sempre, como um rádio-relógio programado para despertar todos os dias, nos mesmos horários. – Gostaria que fosse tão fácil fazer os erros pararem de se repetir assim como era fácil desprogramar um rádio-relógio. E, embora soubesse que conversar com meu amigo não daria a chave de solução, seria menos angustiante podendo compartilhar, assim como fazíamos antes de tudo isso começar. – Você odeia minhas analogias, eu sei. Mas elas são necessárias e explicam bem o que estou querendo te mostrar. Retorne isso de alguma forma e não finja que você não ouviu essa mensagem. – finalizei, apertando o botão end e jogando o aparelho em cima da minha mochila.
Encostei todo meu corpo no tronco da árvore e fechei os olhos, ignorando todos os pensamentos aos quais antes eu me agarrava com força. Queria apenas pensar em nada, deixar que minha mente vagasse no vazio, na falta de problemas. Onde não existia Michael e seu perfume, Mattew e seus olhos furiosos e nem Lucy e seus pulsos. Respirei fundo, ignorando também todas as sensações que ainda estavam no meu corpo. As mãos de Michael ainda pareciam aquecer minha cintura, meu pescoço ainda parecia molhado com a saliva e minhas pernas ainda pareciam ter ele ao meio. Mas eu ignorei e sabia que era assim que deveria ser.
- Problemas com o amigo? – disse uma voz conhecida. Em um susto abri meus os olhos rapidamente e o dono dela, que havia se materializado e agora estava ali sentado à minha frente, vendo que o susto que havia me dado me fez ficar sem ação, continuou – Desculpe, mas eu peguei sua conversa, na verdade, o seu monólogo, e percebi que você estava tentando pedir desculpas a Mattew... – Ainda em choque, achando que talvez eu tivesse caído no sono e agora estava dentro de um sonho, não respondi. – E, aliás, eu gostei da sua analogia e estou me perguntando porque Mattew não gosta delas. A do radio relógio foi boa, as outras também devem ser. – falou e riu, um pouco tímido, coçando a nuca e logo em seguida arrumando a parte da frente do cabelo.
- Ele diz que minhas analogias são óbvias demais. – Foi tudo o que eu consegui dizer, baixo, e mantendo os olhos fixos aos dele. Tentava entender, em meio àquelas coisas que sempre aconteciam dentro de mim, como ele conseguia ser tão casual mesmo sabendo que nosso último contato havia sido com um beijo intenso como despedida.
- Óbvias a partir do momento em que você fala e ele encaixa que são duas coisas parecidas. Mas, antes de você falar, eu aposto que ele nunca deve ter associado. – disse, sorrindo e eu ri um pouco, revirando os olhos. Afinal, por que estávamos falando sobre minhas analogias? – Mas acho que não é por discussões sobre analogias que você estava pedindo desculpas para seu amigo, estou certo?
- Está sim. – disse e sorri apenas porque ele também o fez. Eu parecia não ter controle do que falar diante da imensidão dos olhos dele. Sabia que não deveria conversar com ele como se ele fosse ou Mattew, contando tudo e mais um pouco. Contudo, estando com ele, as coisas não saiam como eu planejava. As palavras saiam sem eu saber ao certo se usei as corretas. – Matt não entende que eu não sei fazer escolhas certas. – Ele me olhou confuso e eu apenas balancei a cabeça e tentei fugir dos seus olhos para continuar. – Mas não é nada com o que você deva se preocupar.
- Eu provavelmente posso te ajudar. Você disse também em seu monólogo que precisava conversar. Sei que não posso substituir seu melhor amigo, mas talvez eu possa te dar alguns conselhos, se não quiser, então, te ofereço só meus ouvidos. – E então se aproximou mais de mim, ajeitando-se melhor na grama, e logo em seguida colocando uma de suas mãos sobre a minha.
Sua mão estava alguns graus mais quente que a minha temperatura e isso me fez ficar confortável, embora ainda um pouco insegura sobre a escolha de palavras e como agir. Contudo, ao sentir seu dedo acariciar minha mão, como se a nossa diferença de temperatura fosse imensa, meu corpo todo recebeu um choque térmico e se esquentou - muito - depressa.
Olhei para nossas mãos juntas sobre a minha perna e, confusa, tentei me lembrar o que ele tinha falado segundos atrás. Eu lhe devia uma resposta, mas não conseguia nem me lembrar qual ela deveria ser. A imagem de sua mão grande sobre a minha e todo o calor e conforto que elas traziam, não me permitia lembrar de nada, se não dos últimos instantes, no último dia em que estivemos juntos, do beijo. Voltei meu olhar para ele e reparei que ele esperava ansioso que eu falasse algo.
- , como você consegue isso? – perguntei e não me importei se pareceria confuso, ou se não seria a resposta que ele esperava ouvir para o que ele havia falado antes de me tocar e fazer, com isso, a lembrança do beijo voltar à tona.
- Desculpa, não entendi. Faço o que, ? – perguntou, cerrando os olhos e sorrindo confuso.
Suspirei, sentindo meu coração bater forte. Ele sabia como me fazer ficar confusa sem fazer muito. E isso me irritava. Era absurdo o que ele fazia comigo. Às vezes eu não conseguia pensar em nada e às vezes me fazia pensar em tudo, tentando achar alguma forma de prestar atenção no assunto e não cair na imensidão que seus olhos proporcionavam.
- Tudo isso. – disse, irritada. Olhei para seus olhos e não me importei no quanto de palavras eu vomitaria sem pensar, porque eu apenas precisava o entender.– Você consegue arrancar coisas de mim e não faz muito para isso. Você só pergunta e, então, me olha nos olhos. Eu consigo ver as opções, sei que eu posso te dar uma resposta qualquer assim como dou para quem ousar perguntar, mas eu não consigo apertar esse botão quando estou com você. Porque, quando eu vejo, já falei, vomitei a verdade e, então, você descobre mais sobre mim sem fazer esforços. – Bufei de leve e continuaria a falar se ele não tivesse roubado a minha vez.
- Eu achando que não tinha conseguido, ainda, nada de você e você acaba de me dizer que eu consegui arrancar tudo de você? - Riu, embora não houvesse muito humor em seus olhos, e engatou. – , eu realmente gostaria que você vomitasse as palavras em mim, assim como você diz que faz, assim como você fez agora. Quero conhecer você. Eu tenho uma infinidade de perguntas e gostaria das respostas.
- Não sei se gosto ou não do que você me faz ser. – vomitei mais essas e olhei para nossas mãos novamente. Tentei formular perguntas para mim mesma. Eu gostava daquilo? Gostava. Era estranho e perturbador, porém eu gostava.
- Você pode terminar um assunto para começar outro, por favor? – E riu, aproximando-se mais, sem retirar sua mão da minha, fazendo meu olhar voltar para o dele. Então, eu concluí que o que eu queria era reviver aquele nosso último momento, queria beijá-lo de novo e sentir meu corpo ficar mole. Queria tocar o seu cabelo e sentir sua respiração bater na minha boca. – Tudo bem, ao outro assunto... Como eu te faço ser? – perguntou sorrindo e me tirando dos meus desejos particulares.
- Alguém confusa. Porque, olhe só... Nós nem nos conhecemos muito, mas quando eu estou com você te sinto tão perto, como se você já me conhecesse muito, e tão perto que fico sem saber o que está acontecendo. É como se agora o mundo girasse aqui e só aqui, mas eu estou confusa e não sei o que isso significa. – Respirei fundo e, antes que ele roubasse minha vez, continuei. – E as recordações estão passando pela minha mente. Elas passaram desde quando você me deixou em casa no dia do acidente de Lucy, mas sem você por perto, e com os outros problemas e pessoas, eu conseguia ignorar. Contudo, agora elas passam pela minha cabeça em flashs tão perfeitos que eu posso sentir de novo. E tudo que eu sei é que...
- Que você não sabe. – completou minha frase, com um meio sorriso no rosto, e eu confirmei, balançando a cabeça positivamente. – Se eu disser que é parecido comigo vai parecer errado. Também sinto que o mundo está girando aqui e que muitas coisas parecem confusas. Mas eu sei de outras, sei o que eu quero... Agora, por exemplo, eu sei exatamente o que eu quero.
Minha cabeça girou um pouco e eu tive a impressão de que ele se aproximou mais. Seus olhos pareciam intensos e para não ficar mais tonta, tentei olhar para outra coisa que fosse. Entretanto, o mundo estava girando ali e como conseqüência só conseguia enxergar . Resolvi que não deveria olhar para o seu rosto, se não quisesse desmaiar, e olhei então para o seu corpo. O verde lhe caia absurdamente bem, fazendo minha mente não conseguir raciocinar nada. Apenas sentia vontade imensa de abraça-lo e depositar minha cabeça ali, naquele verde tão convidativo. Fechei os olhos e tive a impressão que a sua respiração estava batendo em meu rosto.
- O que você quer? – perguntei, ainda de olhos fechados, apenas para saber se ele estava realmente tão perto ou se era algum tipo de alucinação que seus olhos me fizeram ter.
- Você. – sussurrou com uma voz rouca que fez todo o meu corpo se arrepiar. Seu hálito soprou em minha boca e eu tive a certeza de que ele estava ali, afinal, eu não seria tão boa a ponto de ter alucinações assim.
E desta vez não foi ele quem colou nossos lábios com força como se tivesse medo de fugas. Fui eu quem o fez. Apertei de leve o cabelo de sua nuca e passei logo a língua por seus lábios, querendo sentir logo o que senti naquele dia. Meu estômago começou a se revirar todo e eu sorri um pouco, em meio ao beijo, quando eu tive a impressão que não existia mais o gramado. Parecia que só existia ele. Suas mãos acariciavam meu rosto e puxavam meu cabelo da nuca de leve, fazendo com que eu desse mais alguns sorrisos desajeitados. Nossas línguas estavam rápidas e sincronizadas, como se tivessem sido treinadas apenas uma para a outra.
- E quando você sabe exatamente o que quer... – sussurrou no meu ouvido e deu alguns beijos no meu pescoço, fazendo com que eu soltasse alguns gemidos baixos. – Você não tem essa necessidade de entender o que está acontecendo. – mordeu de leve meu lóbulo e meu corpo todo pareceu tremer. – Você apenas quer. – Selou nossos lábios e depois nos separou. Abri os olhos devagar, esperando todas as coisas passarem e esperando que minha mente processasse as palavras e ordenasse algum comando. – Eu tenho que entrar. Vim aqui falar rapidamente com o meu pai, mas você atrapalhou meus planos. – disse, levantando-se, sorrindo com malícia. – Quero você atrapalhando mais alguns dos meus planos. – E eu o observei dar as costas e caminhar até o portão principal do colégio, ainda atordoada por tantas sensações.
Capítulo 07
- Oh! Veja que fofo, desta vez eles gastaram o precioso tempo deles e a tinta de alguma caneta! – Olhei confusa para meu irmão que tinha acabado de abrir um envelope fino e o olhava sorrindo de leve, porém sem humor. - Escreveram algo para nós. – explicou, rindo debochado, e jogou o papel de carta no meu colo, sentando logo em seguida ao meu lado no sofá. – Leia. Estou a fim de rir hoje.
Revirei os olhos e desdobrei o papel, enquanto abaixou o volume da televisão e passou um de seus braços em torno do meu pescoço. Observei a caligrafia corrida do meu pai, desenhada graças a alguma caneta de tinta preta naquela folha amarelada, e segurei minha respiração por alguns segundos.
A caligrafia, ou algo maior que isso, pareceu apertar meu coração e trazer algumas memórias de volta para os meus pensamentos. A imagem de duas passagens aéreas, dentro do criado-mudo da minha mãe, parecia estar de novo ali me perturbando, juntamente com a imagem de malas colocadas perto da porta, sendo seguida pela última imagem, a do aeroporto, onde inúmeras pessoas circulavam, mas eu focava só em duas que ficavam cada vez menores, assim como suas malas, pouco a pouco, até sumirem completamente. E o mesmo braço de agora tornava meu pescoço e me apertava para perto do corpo do meu irmão, como se assim as minhas lágrimas pudessem ser, se não contidas, amenizadas.
Voltei a respirar pesadamente no mesmo instante em que as imagens pararam de se colocar diante os meus olhos. Olhei para de soslaio e reparei que ele mantinha seus olhos grudados na carta sem uma expressão que pudesse ser definida no rosto. Supus primeiro que as mesmas imagens estivessem passando por seus olhos, perturbando sua mente assim como fez com a minha. Entretanto, logo joguei essa suposição no lixo, pois, conhecendo meu irmão, sabia que ele não se abalava com isso da mesma forma como eu me abalei. Então, fiz minha última e certa suposição: estava com raiva. Assim como sentiu raiva quando nossos pais avisaram da viagem. E ele só me passou o papel carta e pediu para eu ler em voz alta porque sabia que, se fosse ele que o fizesse, acabaria rasgando o papel antes mesmo de chegar à metade da leitura, exatamente como quando quase rasgou as duas passagens aéreas. Então, voltando meus olhos e a minha atenção para o papel em minhas mãos, ajeitei meu corpo melhor no sofá e mais perto do meu irmão, a fim de me sentir mais segura para iniciar a leitura da carta e também para passar segurança a ele. Afinal, nós estávamos juntos nisso.
- Estou aqui na sacada olhando uma praia incrível e lembrando de vocês. Lembrando de quando passávamos as férias aqui. – me apertou mais nele e acariciou de uma maneira meio desajeitada meu ombro. - Vocês deviam estar aqui. Sinto a falta de vocês e sei que Ellen também sente. – Parei de ler por alguns segundos, que até pareceram horas, quando levei um pequeno susto ao escutar, depois de tanto tempo, o nome da minha mãe sair pela minha boca. Pareceu errado. Voltei meus olhos para o nome escrito ali e, por mais que eu soubesse que era o da minha mãe, ao ler, nos pensamentos ou em voz alta, parecia diferente. Distante. bufou de leve, tirando com isso meus olhos do nome que não conseguia ler da forma certa, com os sentimentos certos, e fazendo-me continuar. – Agora quero saber... , como está o colégio? – Senti meu rosto ficar quente, mas não como quando minhas bochechas coravam. Quente de um jeito que incomodava. – , como anda você e seus sonhos envolvendo a ? Vocês est...
Mas, antes que eu pudesse concluir a leitura da frase, o papel escapou dos meus dedos com facilidade. Olhei para frente assustada e, tão rápido quanto foi para tirar o papel de minhas mãos e ficar de pé, logo ali na minha frente, o mesmo foi rasgado com brutalidade pelo meu irmão, que tinha a feição agora transbordando de ódio. Vi pedaços da caligrafia do meu pai caindo e se misturando com os pelos azuis claros do tapete da sala, fazendo a carta perder assim todo o sentido, e me encolhi mais no sofá, sentindo meu rosto esquentar ainda mais daquele jeito estranho.
estava com os olhos fixos nos pedaços da carta espalhados pelo tapete, enquanto os meus estavam fixos no rosto dele, tentando calcular o quanto de raiva carregava dentro de si naquele momento, e o que pôs fim àquele silêncio incômodo foi o barulho da campainha estridente. Contudo, eu não mexi sequer um músculo, continuei com os olhos em , que levantou o olhar ao escutar o barulho e, depois de olhar para mim como quem quisesse pedir desculpas, caminhou até a porta para atender quem quer que fosse.
Juntei mais minhas pernas perto do meu corpo, encolhendo-me mais, e fiquei analisando os pedacinhos de papéis dispersos ali na minha frente. Tentei entender o porquê de estar sentindo aquela vontade de me encolher cada vez mais, o porquê de ter travado e estranhado tanto quando o nome da minha mãe saiu pela minha boca, o porquê da vontade súbita de abraçar quando o vi rasgando a carta e, principalmente, o porquê de eu estar chateada com ele por tê-la rasgado. Afinal, aquilo não importava para mim, não havendo, então, explicação para o fato de eu querer pegar os pedacinhos e juntá-los novamente para poder finalizar a leitura.
- Tem um cara ai na porta querendo falar com você. – falou, agachando-se à minha frente. Seus olhos pareciam bem menos agressivos agora e, ao invés da raiva, pareciam carregar as desculpas que ele provavelmente logo me empurraria. – Disse que é seu amigo. Eu falei para ele entrar, mas não quis. – deu de ombros e continuou – , desculpa por isso. – e indicou com os olhos os pedacinhos da carta. – Eu sei que você está chateada e não adianta fingir que não, porque comigo isso não funciona. Mas é que eu realmente não entendo porque ele fez isso. Para nos machucar mais? Para nos dar esperanças? Para fingir que está fazendo um bom trabalho sendo pai? – Balançou a cabeça negativamente, como quando ele fazia quando eu falava alguma coisa muito confusa ou estranha, e depois se levantou – Eu vou tomar um banho, talvez isso ajude. É melhor você atender seu amigo. É um tal de . – E subiu as escadas pulando degraus como sempre fazia.
Fiquei ali na mesma posição por algum tempo. Agora não pensando na minha vontade de juntar pedacinhos rasgados de carta e sim na pessoa que, segundo meu irmão, esperava minha presença em frente à minha casa. Porque, afinal de contas, ele não era meu intimo a ponto de tocar a campainha e pedir para falar comigo em pleno sábado de manhã. Ou era? Enfim, só depois de fazer perguntas como essa para mim mesma, e não achar as respostas, foi que coloquei meus pés no tapete, desencolhendo o meu corpo, e olhei para a parede amarela à minha frente, a fim de, ao tirar os olhos dos pedacinhos, tirar também todas as sensações e pensamentos que eles haviam me proporcionado. E, ao me sentir recomposta, mesmo que fosse só externamente, levantei do sofá e fui até a porta atender a minha visita inesperada.
- Você esteve chorando? – foi mais rápido e, antes mesmo de eu chegar até a porta e fazer a recepção, perguntou e depois continuou. – Seus olhos estão meio estranhos. – Meio estranhos? Meio estranho era ele. – Aconteceu alguma coisa? Ainda o problema com Mattew?
- Oi para você também. – disse e ri ao ver suas bochechas corarem – Não, não estive chorando e se meus olhos estão meio estranhos deve ser algum tipo de alergia. Eu sou uma muito alérgica. – Riu um pouco da minha piada sem graça e eu o acompanhei. E, apenas para que o silêncio não reinasse, e não porque eu fizesse questão de saber, perguntei – O que você está fazendo na porta da minha casa em um sábado de manhã? – Após parecer captar minha pergunta, bufou de leve, como se estivesse frustrado, e passou sua mão na região da nuca. Apoiei parte do meu peso na porta e tentei parecer casual, embora soubesse que aquela cena era no mínimo estranha. Para nós pelo menos era.
- Estava na minha casa sem fazer nada... Quer dizer, posso contar o pensar em nós como sendo uma coisa? – perguntou e sorriu de lado. E eu não respondi, não fiz nada a não ser sentir um calor muito forte na minha bochecha e não era preciso reflexo para eu saber que estava corando. – Certo. Ignore isso, se preferir. – disse, ao perceber que eu havia travado e depois continuou. – Estava pensando se você gostaria de sair. Não sei, fazer alguma coisa... Se você não tiver planos, é claro.
Eu tinha planos, é claro. E Mattew era o principal deles naquela manhã de sábado, e o que eu mais queria fazer acontecer, porque, por pura birra do meu amigo, ele não havia respondido, de nenhuma maneira, a minha ligação frustrada de ontem. Minha última chamada não atendida era da semana passada e minha última mensagem de texto era de Lucy, perguntando se eu queria levá-la até o psicólogo, porque estava com medo de caminhar sozinha. Ou seja, meu celular se tornou, desde ontem, uma tecnologia totalmente inútil e que não prestava para nada a não ser me dar raivinha toda vez que olhava o visor e não constatava nada que me fizesse ter algum progresso na reconciliação da minha amizade com Mattew. Portanto, meu plano naquele sábado, principalmente após o ocorrido com a carta do meu pai, era correr até a casa de Mattew e implorar, por mais que eu não fosse boa nisso, as desculpas que eu gostaria desde ontem ter feito, como meu irmão fez com as dele, empurrando-as para mim. E, após cumprir com sucesso o plano, teria então alguém para descarregar as frustrações que um papel carta havia me causado.
Contudo, olhando agora para e seu casaco verde musgo, que lhe caia super bem, eu não conseguia pensar nos planos e não conseguia escolher o que eu queria. Os planos estavam se aproveitando da minha fraqueza para então escapar tão facilmente quanto a carta do meu pai escapou da minha mão. Mas eu tinha que ter foco, afinal não é justo que toda vez que ele estiver perto de mim, eu simplesmente ignorar os problemas e pessoas, achando que o mundo gira só em torno das vontades que ele desperta em mim. Então, ao tentar colocar minha mente de volta ao lugar correto, mudando meu foco de visão e enxergando ali, estacionado em frente a minha casa, um carro azul marinho, tive um estalo dentro de mim.
- O carro é seu? – perguntei, apontando para a figura que havia acabado de me dar uma idéia e que, se a resposta do garoto fosse sim, ajudaria e muito que a idéia fosse posta em prática.
- Sim. – soltou uma risada nasalada e depois perguntou. – Você sai comigo se eu te disser que deixo passar o tempo que quiser no carro? – Riu mais. Tirei meus olhos do carro no mesmo instante e, um pouco irritada, voltei a olhar para o garoto, que parecia achar sua piadinha realmente engraçada. Eu poderia rir, se não estivesse totalmente frustrada por dentro.
- , seu idiota. – e dei um tapa no seu braço, fazendo-o se recompor e segurar o riso. – Não quero passear no seu carro, idiota. Se eu quisesse, pediria ao meu irmão, ou para qualquer outra pessoa no mundo, menos para você. Idiota. – balancei a cabeça para me concentrar, indo ao ponto que gostaria, e ele parecia ainda se divertir com a situação, onde eu não vi nenhuma gota de graça. – Você pode me dar uma carona? Até a casa de Mattew. – pedi, por mais que a entonação da minha voz, somada com a frustração que eu tentava não expor, mas expunha, fizesse a fala parecer mais uma ordem.
- E o que eu ganho em troca? – perguntou, levantando uma de suas sobrancelhas e sorrindo de lado, daquele jeito que me fazia vomitar palavras e só perceber depois. Contudo, embora sentisse todas as coisas que ele sempre me proporcionava, mantive a pose e o foco. Acho que estava aprendendo a lidar com .
- Você tem que parar de achar que tudo tem que ter algo em troca. – Afinal, ele nunca ouviu falar em solidariedade? – E, querendo ou não, infelizmente, você terá algo em troca, . – disse, já sorrindo ao planejar um jeito de acabar com aquela situação rápido. – Você terá a minha presença por uns quinze minutos – e sorri mais, saindo de casa e encostando a porta atrás de mim -, depende de como está o trânsito. – Caminhei, então, sem a permissão dele e embora com medo de que um não fosse a resposta, para a porta do passageiro do carro azul-marinho.
Parei de frente para a porta do carro e sorri ao ouvir passos vindo até onde eu estava, junto com o som do carro sendo destravado. Eu, de verdade, estava aprendendo a lidar com . Pelo menos em nenhum momento eu havia deixado escapar palavras demais e também não havia demonstrado ser a pessoa fraca que fui nos outros dias em que ele estava comigo. Assim que ouvi o barulho que o carro fez, indicando que ele estava destravado, dirigi minha mão para frente, a fim de abrir e entrar logo ali. Mas, antes que eu alcançasse o meu objetivo, a mão de foi mais rápida e ultrapassou a minha.
- Espero que esteja muito trânsito. – sussurrou no meu ouvido, dando um beijo na base do meu pescoço. – E, antes de qualquer coisa, quero deixar uma coisa bem clara. – Meu corpo tremeu e eu tive novamente a sensação de só existir nós. Talvez porque ele sussurrava, talvez porque seu copo estava encostado no meu, fazendo o seu cheiro dominar minha mente, ou talvez porque ele estivesse beijando meu pescoço, fazendo meu corpo parecer dormente. – Se você quer uma carona, eu devo ter algo a mais em troca. – Riu, derramando seu hálito perto da minha orelha. – Juro que não vai doer. – E mordeu meu lóbulo antes de continuar. - Apenas me chame de ... E pare de se fingir de difícil. – concluiu, dando um beijo, com um pouco mais de vontade, novamente na base do meu pescoço, irradiando choques por todo meu corpo.
Os estímulos estavam dados, então, a parte que me cabia era virar meu corpo de frente para o garoto e responder a todos os estímulos que ele havia me dado. E eu queria. Queria muito sentir seus lábios nos meus, e sua mão puxando de leve meu cabelo. Tinha medo, mas mesmo assim queria. Medo de ele ser mais um daqueles que deixam as garotas loucas e depois vão embora. Não que eu fosse apenas uma daquelas garotas que se deixam envolver e não que eu me importasse muito se ele fosse embora. Pelo menos eu acho que saberia esquecer as sensações e apagar o fogo. Afinal, eu poderia me considerar uma pessoa acostumada com despedidas. Entretanto, no mesmo instante que eu resolvi virar e responder aos estímulos, ele não estava mais lá atrás de mim. Estava do outro lado, abrindo a porta do motorista e sorrindo para mm.
Eu, de verdade, nunca aprenderia a lidar com .
Entrei no carro e meu coração parecia pulsar dentro da minha cabeça. Minhas orelhas ainda pareciam estar quentes pelo hálito do garoto. Olhei para de soslaio e pude perceber que seus lábios estavam levemente inclinados para cima, em um sorriso, enquanto seus olhos estavam fixos em algum ponto a sua frente. Observei, nervosa e ainda inquieta com meus pensamentos, ele girar a chave na ignição e ligar o carro. Tudo parecia se mover em câmera lenta e cada parte dele parecia ser convidativa para os meus olhos.
Encostei minha cabeça no vidro ao meu lado e observei as coisas passarem rápidas do lado de fora do carro, enquanto respirava fundo e tentava voltar ao meu estado normal. Agradeci por não precisar ficar ordenando o caminho para , bastou falar o endereço e ele nos conduzia pelo caminho certo. E agora, sem olhar para e principalmente sem precisar pensar em falas, eu voltava a lembrar do papel carta e da minha vontade de saber o meio e o fim. Talvez até guardá-lo, apenas para ter a certeza de que as coisas não eram como dizia, embora eu soubesse que eram sim.
Capítulo 08
- , você não vai tocar a campainha? – Estava com olhos fixos em um ponto qualquer da porta, planejando as desculpas que daria a Mattew assim que ele aparecesse na minha frente e transformasse o ponto fixo, que passaria a ser seus olhos e não a porta de madeira, quando perguntou.
Olhei para o garoto ao meu lado de soslaio, que mantinha suas mãos dentro dos bolsos de suas jeans e me olhava com as sobrancelhas arqueadas. Respirei fundo, totalmente frustrada. Afinal, o que ele estava fazendo ali ao meu lado? O tratado era a carona, após isso ele voltaria a pisar no acelerador e iria embora para o lugar que quisesse. Mas, afinal, embora o tratado fosse esse, por que eu sentia que parte de mim o queria ali do jeito que estava? Como se eu não fosse suficiente para engatar desculpas sem aqueles olhos e aquele casaco verde-musgo por perto. Como se eu não fosse capaz de levantar meu dedo e fazer soar a campainha da casa de Mattew se não tivesse sentido a presença dele ali. E, por fim, afinal, por que eu não falei para ele ir? Por que apenas fingi o ignorar e, após o verificar ali de soslaio, voltei meu olhar para a porta e toquei a campainha?
Tentei, graças ao silêncio que estava ali do lado de fora da casa, ouvir falação ou movimentação dentro dela, ainda mantendo meus olhos no ponto fixo e, agora, tentando passar as desculpas na minha cabeça. Contudo, assim como do lado de fora, o lado de dentro estava em total silêncio, ou, se houvesse barulho, era tão mínimo a ponto de não conseguir ressoar após as paredes da casa. Então, já irritada por não ter recebido nem barulhos de resposta, levei meus dedos novamente até a campainha, tocando agora duas vezes seguidas.
Sem esperar muito desta vez, peguei o celular do bolso do meu moletom vermelho e velho, que eu costumava mais usar para dormir, e disquei rapidamente o número da casa onde agora eu esperava ser atendida. Coloquei o aparelho na orelha, escutando-o informar que estava chamando, no mesmo instante em que escutava o outro aparelho tocar dentro da casa, e bufei irritada quando escutei o meu cair na caixa eletrônica e o fixo emitir um bip, informando que a mesma estava sendo acionada. Coloquei o aparelho inútil de volta no bolso e voltei meu dedo para a campainha, apertando agora repetidas vezes, com uma raiva e vontade de chorar tomando conta de mim.
- Ei, ei. – falou, segurando meu braço e me impedindo de continuar a tocar a campainha. – Calma! Não tem ninguém na casa, se não já teriam atendido. – E abaixou meu braço devagar, ao mesmo tempo em que se aproximou, enquanto eu mantinha meus olhos na porta. – O que está acontecendo?
Eu não sabia o que estava acontecendo. Só sabia que queria que a porcaria da porta abrisse e Mattew aparecesse, principalmente porque agora eu precisava imensamente dele. Flashs se passavam rapidamente pelos meus olhos e o principal deles era o flash da carta que estava há pouco em minhas mãos. Achava naquele momento que fosse isso que estivesse fazendo meus olhos embaçar, mas logo que senti uma lágrima escorrer pelo meu rosto, percebi que os flashs não eram os culpados. E, assim como eu não sabia ao certo o que estava acontecendo, também não sabia o que havia dado em mim quando, ao sentir as lágrimas escaparem, deixei de encarar a porta e olhei para o garoto ao meu lado, logo em seguida envolvendo meus braços em sua cintura, em um abraço.
Colei meu rosto no casaco verde musgo, assim como, inconscientemente, gostaria de ter feito desde quando o vi parado do lado de fora da minha casa, e levantei um pouco minha cabeça, deixando mais algumas lágrimas escaparem, para poder sentir ainda melhor o cheiro que me confortava e fazia a sensação do mundo ser só aquela cena voltar a reinar. E, agora, tendo o conforto do casaco e do cheiro de sabonete, perfume e algo que me lembrava pêssego, eu conseguia voltar, aos poucos, ao meu estado normal e são, fazendo assim, também pouco a pouco, as lágrimas se esgotarem.
- Você pode me contar o que está acontecendo? – sussurrou, passando uma mão por toda a extensão do meu cabelo, enquanto eu me mantinha firme, com os olhos fechados, voltando a respirar como se devia, grudada a ele. – Estou cansando de tentar entender pelas entrelinhas de suas falas e, olha, estou falando que, de verdade, eu estou disposto a ajudar. Não quero ser só o que faz seu mundo girar aqui e dá caronas. Quero ser mais. – Bufou de leve, fazendo seu hálito de hortelã se misturar com o cheiro peculiar de pêssego. – Quero fazer seu mundo parar, depois continuar a girar e depois parar de novo. – riu de leve – Quero te deixar tonta, entende? Depois eu quero que você me conte sobre seus amigos, sobre sua música favorita e eu te convidarei para ir até minha casa para vermos o seu filme favorito. Mesmo se ele for brega e chato e – pausou por alguns segundos, mas depois engatou novamente -, e mesmo se nem assistirmos a ele. – Assim que ele terminou o discurso, chocada pela ordem das palavras, desfiz o abraço e olhei para o rosto do garoto, que estava levemente corado. Embora quisesse falar algo, não consegui porque só conseguia olhar e tentar acreditar que o que eu tinha acabado de escutar havia mesmo saído da boca dele. – Ok, que idiota estou sendo. – balançou a cabeça como se para organizar as idéias. E quem disse que ele não me deixava tonta? - Quer que eu te leve para casa?
- Minha música favorita é Hurricane do Bob Dylan e meu filme é O Fantasma da Ópera. – disse, tão rápido quanto essa fala pode ser lida, e ouvi o garoto se surpreender, arregalando os olhos e rindo um pouco.
- Será que posso adiantar assim as coisas? – perguntou para si mesmo, rindo logo em seguida, e depois voltou a falar, mas agora para mim. – Eu te convenceria a voltar a ocupar o lugar do passageiro no meu carro se dissesse que tenho em casa Doritos, vinho e O Fantasma da Ópera?
Mas, assim como tomei a atitude inesperada de o abraçar fortemente e depois de lhe contar minha música e meu filme favorito, tirei seu rosto do meu campo de visão e, olhando para o seu carro azul, tudo o que fiz foi sentar em um dos degraus da soleira da casa de Mattew e apoiar meu queixo sobre meu joelho dobrado. Fazendo isso, pude perceber, ao abaixar meus olhos, que meus pés estavam ainda dentro da minha pantufa do mickey. Ri, ao constar que o meu descuido havia sido muito maior do que sair de casa com um moletom velho e agradeci por pelo menos estar usando jeans, mesmo que também fosse velho.
O garoto se sentou ao meu lado na soleira e, de soslaio, após algum tempo, o peguei olhando para o horizonte, com seus pensamentos provavelmente longe. Então, deixando de olhar para o garoto, voltei meu olhar para as minhas pantufas, onde o branco já era cinza e o preto ainda mais preto, e também permiti, mais uma vez, que meus pensamentos vagassem para fora daquela cena. Mas, estando ali, encolhida daquele modo, sentindo de vez em quando uma brisa bater e trazer o frio, eu podia sentir que o cheiro de pêssego estava não só na pessoa ao meu lado como também em mim. Isso não ajudava as coisas, embora acalmasse. E, além de acalmar, o aroma que agora estava em mim, despertava a vontade de apoiar minha cabeça novamente no casaco para poder sentir o cheiro com mais intensidade e não da forma sutil como estava em mim. Então, surpreendida pela vontade de novamente agir sem ponderar, querendo, além de desabafar, liberar o desejo conforme liberava as palavras, ainda sem olhar para , comecei meu discurso:
- Eu tenho cometido o mesmo erro várias vezes e, por mais que eu saiba que devo parar, eu não consigo. É como se houvesse um imã que te puxa sempre para onde você não quer ir. – suspirei, deixando de olhar para as pantufas encardidas e começando a brincar com a manga do meu moletom. – Mattew me odeia por isso, por mais que o erro não o envolva. Odeia porque isso machuca, de certa forma, Lucy. Mas, sinceramente, Lucy sempre se machuca com tudo. E as coisas estão andando mais erradas de uns tempos para cá. – Observei nova e rapidamente o garoto ao meu lado, apenas para me certificar que ele me escutava, e ao constatar seus olhos curiosos em mim, voltei a olhar para a manga do moletom e continuei. – Mattew e eu costumávamos ser tão mais unidos e agora esse laço parece estar se desfazendo. E é horrível saber que a culpa é, embora também um pouquinho da birra dele, toda minha.
- Você fez algo tão ruim assim? – perguntou, cortando meu discurso ao meio e fazendo meu olhar voltar para o seu rosto.
- Mattew não atende telefonemas, não responde minhas mensagens de voz, então para ele provavelmente sim. – disse e logo voltei a continuar o discurso que ele havia interrompido. – Mas, enfim, eu só queria chegar aqui e jogar as desculpas para ele. Então ele me chamaria para tomar suco de abacaxi, porque é o nosso favorito, assistindo algum seriado escroto e eu contaria que meu pai finalmente me enviou uma carta, mas que a rasgou em pedacinhos, que ainda devem estar jogados no tapete da minha sala.
- Por que ele rasgou? – E interrompeu novamente, agora aproximando mais de mim e colocando sua mão sobre a minha, interrompendo assim a minha brincadeira com o moletom.
- Raiva. Mas, enfim, eu gostaria de ter lido toda a carta. Só vi o começo e logo ela estava nas mãos do meu irmão, perdendo todo o sentido a cada puxão que ele dava. – suspirei novamente, agora pegando a mão do garoto com as minhas duas mãos e, no fundo, não achando mais estranho aquele momento, assim como os outros tinham me soado, e sim completamente acolhedor. – Obrigada, . – Assustei um pouco ao chamar o garoto pelo apelido. – Por isso. – e ergui um pouco as mãos.
- De nada. – Soltou uma risada baixa. – Você está me surpreendendo hoje. Obrigado. Por isso. – Sorriu de lado e entrelaçou seus dedos em uma das minhas mãos.
- Eu estou me surpreendendo também. – disse, apenas.
E com os dedos dele ali, entrelaçados aos meus, por mais que houvesse ainda aquela vontade de derramar lágrimas de raiva, ou pegar o celular e deixar quantas mensagens fossem necessárias para que Mattew aparecesse, eu estava muito mais calma e disposta a enfrentar algumas horas ali, até que meu amigo resolvesse aparecer e me chamasse para sentar em um sofá e não em uma soleira. Embora de pantufas, moletons velhos e o frio do chão ultrapassando o tecido grosso da minha calça e congelando a minha bunda, eu estava bem melhor do que quando sentada no quente do meu sofá, confortável, olhando para o tapete azul claro.
Sabia que isso só se devia ao , ao seu casaco verde musgo, seu cheiro de pêssego, seu abraço e, agora, suas mãos entrelaçadas as minhas. E, embora hoje mais do que qualquer outro dia eu houvesse vomitado palavras, não soou como das outras vezes porque eu havia conseguido compreender, naquele silêncio que ficou após minha última fala, que se surpreender era bom e que, algumas vezes, o destino ou não, por mais que não quiséssemos, coloca pessoas em nosso caminho. Por mais confusa que me fizesse sentir, por mais que eu soubesse que era errado eu me envolver com o filho de Benjamin e por mais que eu não soubesse muito sobre ele, era completamente bom poder vomitar palavras e se sentir confortável perto de alguém.
Com as mãos juntas e minha cabeça repousando em seu ombro eu poderia esperar Mattew para sempre ali sem reclamar, ou me importar com dores musculares. Entretanto, ao sentir alguns pingos em mim, conclui que havia sim um fenômeno que não só tiraria o garoto dali, como a mim também.
- Chuva! – exclamou, assim que eu bufei de raiva e levantei minha cabeça, olhando para o céu meio azul-acinzentado. – Estamos em Londres, não é? – Riu. – Isso estava totalmente previsto. E agora, já que tenho aqui uma desculpa e já que você não respondeu a minha pergunta, eu volto a te convidar. – E levantou. Subi meu olhar até poder encarar seus olhos, que sorriam juntamente com seus lábios, e observei depois alguns pingos molharem seu rosto de um jeito que eu gostava. Estendeu a sua mão, que antes estava entrelaçada a minha, e continuou. – Doritos, vinho e O Fantasma da Ópera. Vamos para minha casa?
Capítulo 09
Estiquei meu pé, já quente e não mais úmido graças ao edredom que trouxe de seu quarto, e coloquei as pontas dos meus dedos na pantufa que estava deixada de qualquer modo no carpete bege da sala dele, verificando assim que elas continuavam ainda úmidas e geladas por culpa do percurso que tive de fazer até o carro do garoto, que agora dormia com a cabeça apoiada em minhas pernas, só separada delas pelo edredom em tons de laranja. Voltei, então, meu pé novamente para o calor isolado pelo edredom e também minha atenção para o filme que eu, há algum tempo, já havia até decorado, além das músicas, algumas falas, assistindo assim o seu final.
Tomei o controle que estava colocado em cima da barriga do garoto, com o máximo de delicadeza que eu era capaz de ter, desligando a televisão logo que os créditos começaram a subir, e coloquei, logo em seguida, o aparelho de volta ao lugar de origem como a mesma delicadeza de antes. Não tendo mais estórias se passando ali na televisão, observei a taça com resto de vinho que eu ainda segurava na minha outra mão e a ergui, brincando de mexer o líquido e o observar passar pelas laterais da taça. Refletindo não em algo relacionado ao vinho, ou a taça, e sim em como estar na casa de , com ele dormindo sobre minhas pernas, era no mínimo estranho. Afinal, quando eu iria pensar que uma ida até a diretoria renderia o quanto estava rendendo? Ao cair novamente em mim, então, cansada da brincadeira com a taça, e pensando se o certo seria acordá-lo, ou observá-lo dormir, tomei o resto do vinho e depositei a taça ao chão, ao lado da taça dele. Fitei por algum tempo as duas taças, como se houvesse, fora o significado real, algum que envolvesse destino por elas serem nossas e estarem lado a lado. E depois ri do quão ridícula eu estava sendo ao sentir felicidade por duas taças estarem próximas. Talvez fosse só um reflexo do álcool ingerido.
Troquei a imagem das taças pelo rosto do garoto, que tinha a boca um pouco aberta e os cabelos levemente bagunçados, e conclui que seria muito mais proveitoso observar o sono dele. Contudo, ao jogar toda a minha concentração em sua pele e seus traços convidativos, não tendo agora o filme rodando no dvd player para me distrair, uma vontade de tocar suas bochechas, que estavam levemente rosadas pelo vinho, mesmo que fosse só com a ponta dos dedos, estava dominando cada um dos meus músculos.
Eu não havia tocado sequer uma vez nele durante todo o filme. Não que não existisse vontade. Existia e tive que agüentar olhar para o meu colo e perceber o garoto ali quase durante o filme todo, logo que não bastaram muitas canções e ele já havia cedido, apoiando sua cabeça em minhas pernas. Contudo, embora a vontade existisse, toda a vez que o fantasma não estava em cena para me distrair, eu consegui, graças à falação vinda do filme, resistir. Apenas mantive uma de minhas mãos segurando a taça e a outra apoiada no sofá, em um pequeno espaço que o corpo dele não ocupava.
Porém, agora, com nada mais do que o barulho de respiração pesada, sem fantasma e sem taça, as coisas ficavam um pouco mais complicadas. A fim, então, de me distrair, com um pouco de cuidado demais, estiquei meu braço e peguei um pacote de doritos que havíamos deixado em cima da mesa de centro. Continuando com o cuidado exagerado, com medo que pudesse acordar com o barulho do pacote sendo mexido, levei minha mão ao fundo do doritos com demora exagerada para, no fim, constar que não havia mais nem migalhas ali. Então, coloquei o pacote no espaço que não ocupava, onde antes minha mão estava, e bufei baixinho por não ter mais nenhum recurso ou utensílio para eu jogar minha atenção.
Mas, assim como fiz ao jogar os braços ao redor de em frente à casa de Mattew; ou quando ignorei qualquer coisa e contei para ele parte do meu problema sem me importar com mais nada; ou quando deixei que nossos dedos se entrelaçassem, apoiando também minha cabeça em seu ombro e assumindo que eu não estava me sentindo como quando me senti naquele dia em que nos conhecemos; tão impulsivo e surpreendente como tudo isso foi, levei a ponta dos meus dedos até as bochechas do garoto. Enquanto que com a outra mão toquei no cabelo macio, com a ponta dos dedos fui desenhando todos contornos de seu rosto e quase podendo sentir faíscas saírem dos meus dedos, tamanha era a minha vontade de tocar.
Desenhei com os dedos o nariz, chegando depois nos lábios e lembrando assim dos nossos únicos e indeléveis beijos. Demorei em seu queixo, apenas porque, ao tocá-lo uma onda com várias imagens nossas se passou diante os meus olhos. Mas logo depois segui tocando, agora não só com a ponta dos dedos e sim com toda a mão, o braço, até chegar em sua mão que estava apoiada em sua barriga. Refiz o caminho e ao chegar novamente em seu lábios, permanecendo meus dedos ali para sentir a textura, vi o garoto abrir um pouco os olhos e logo voltar a fechar. Com vergonha por aparentemente ter sido pega de surpresa, eu retirei minha mão de seu rosto, deixando apenas a que tocava o seu cabelo no mesmo lugar, e esperei que ele desse algum sinal, para eu poder dizer se tinha mesmo o acordado ou ainda continuava a dormir.
- Sabe, você realmente faz tudo girar ao contrário. – disse, fazendo a vergonha aumentar e minhas bochechas corarem, e, ainda com os olhos fechados, continuou. – Sempre acho que vou saber lidar com suas reações e sempre caio na besteira de achar que planejar momentos com você vai me levar para algum lugar. Como se você fosse apenas mais uma e não você.
- Planejar momentos nunca é uma coisa boa, . – Coloquei minha mão em cima do peito do garoto e me vi falando. – A não ser que você goste de se frustrar.
- Odeio me frustrar. – E pegou minha mão que estava em seu peito e fez meus dedos tocarem novamente seu rosto. – Mas acho que desta vez não vou, apesar de você ser intrigante e surpreendente, porque eu acho que não só eu sinto como se houvesse Sol toda vez que estamos juntos. – disse e beijou a palma da minha mão, logo em seguida voltando a colocá-la sobre seu peito e continuando. – E espero que não só eu esteja com o coração com batimentos rápidos e... leves. Mesmo que você acorde dessa que eu gostei de hoje e venha me falar que eu deveria me afastar, eu não vou. Porque eu simplesmente sei que você está precisando de mim da mesma forma como estou de você.
- Eu estou? – perguntei, tentando embalar à fala um tom sarcástico.
- Você precisa assustadoramente de mim, . – e riu tão baixo quanto era o volume de sua voz. – Não acredita nisso?
Olhei para as mãos do garoto que brincavam com meus dedos e tentei pensar em alguma resposta. Abri a boca umas três vezes, mas nenhuma resposta arquitetada em minha cabeça parecia ser boa o suficiente para dar, fazendo com isso, então, após o garoto cessar a risada e ficar algum tempo em silêncio esperando a minha fala, um sorriso brotar em seu rosto. Como se ele tivesse ganhado uma disputa qualquer que não envolvesse sentimentos, porque, apesar de eu não ter retrucado, as três respostas estavam ali, em mim. Não completas como eu gostaria que estivessem, mas havia fragmentos suficientes para que ele pudesse entender que eu não precisava assustadoramente dele. Eu só ainda não conseguia ter a certeza que era necessária para que o som saísse quando eu abrisse a boca. Mas elas estavam ali. Isoladas e talvez com um pouco de mentiras, mas estavam.
O garoto abriu os olhos e então eu desviei meu olhar de nossas mãos para cair na imensidão do seu olhar. Não eram apenas olhos brilhantes e bonitos. Pareciam me fazer estar no ápice de uma cordilheira que de tão alta eu não conseguia enxergar o fim, só sabia que se desse um passo cairia. Cairia numa imensidão sem fim. E uma parte de mim, aquela mesma parte que ousou tantas vezes atrás, queria dar o passo, enquanto a outra tinha medo de cair. E essa imensidão nada mais aparentava ser do que um monte de sentimentos querendo escapar dele, querendo ser libertos e gritados. Tão chocante, e até mais, quanto era quando ele começava a falar sobre o que sentia, eram aqueles olhos. E apesar do desejo de ouvir mais, de saber que algumas coisas não se passavam apenas em mim, eu tinha ainda o medo de arriscar. Afinal, nós poderíamos ser tão frágeis quanto taças.
- Você pode acreditar no que quiser, . – disse, tirando os olhos de seu rosto e olhando para a televisão desligada. – Você pode acreditar no que quiser, assim como também pode planejar momentos. Bom, se você quer acreditar que eu preciso de você – dei de ombros e voltei então a olhar para o seu rosto -, então, acredite.
- Esse pequeno discurso, grande demais em comparação à resposta que você deveria me dar, pode ser simplificado com um não? Você poderia, algumas vezes, encurtar suas falas e parar de achar que eu devo entender por entre elas? – retirou a cabeça do meu colo, fazendo com que eu sentisse um frio onde antes ela estava e rapidamente se ajoelhou de frente para mim. – Você precisa de mim. Se não precisasse, não teria vindo, não teria me abraçado e não teria sorrido enquanto passava suas mãos pelo meu rosto. – Abri a boca, já que agora, em meio à confusão repentina na cena, que antes era leve, com toques em um garoto dormindo em minhas pernas, e, de repente, virou uma espécie de discussão, com falas desnecessárias para o momento e olhares se cruzando. Contudo, ao perceber que eu estragaria sua vez, com provavelmente alguma resposta mais uma vez subjetiva, o garoto pressionou o dedo indicador sobre meus lábios e se aproximou. – Assim como, se você não precisasse demais que eu me aproximasse agora, me empurraria. – Seu hálito de hortelã, agora misturado ao aroma do vinho, fez meus olhos se fecharem e eu o respirei com a maior força que era possível eu ter. E, tendo agora seus lábios próximos dos meus e seus dedos segurando minha nuca, embora com vontade de empurrar o garoto, eu apenas fiz como da última vez, quebrei a distância pequena e tão rapidamente deixei que nossas línguas se encontrassem de novo.
Aquela parte de mim que queria fugir da imensidão de qualquer coisa que eu não pudesse controlar, agora se dissolvia como milhões de isopores em thinners, restando apenas algo que me fazia querer me grudar mais àquele garoto. Maior do que qualquer desejo físico já sentido, porque envolvia muito mais do que querer corpos juntos, querer sentir na pele, também envolvia algo que era completamente incontrolável e que colocava fogo não só em partes comuns e sim também no coração. Algo que me fazia precisar dele e que, assim como ele havia mencionado, eu não conseguia empurrar. Apenas me aproximar. Grudar.
Senti minhas costas grudarem no encosto do sofá e o corpo de me apertar mais contra o estofado. Uma de suas mãos puxavam meu cabelo da nuca e a outra, desajeitada, percorria minhas costas com um toque frio que fazia meus músculos se contraírem. Tudo isso sem deixar de desgrudar os lábios e, conforme o ar nos fazia falta, mais aumentávamos a velocidade do beijo. Apertei meus dedos mais fortemente ao pouco cabelo do garoto, agora em sinal de protesto, quando ele separou nossos lábios, embora ainda pudesse sentir sua respiração pesada batendo em minha boca. Abri os olhos devagar quando, ao tentar voltar a beijá-lo, ele recuou um pouco mais, e meus olhos encontraram a imensidão dos deles novamente. A imensidão estava ali de novo e eu pude ver todos meus sentimentos e vontades refletidas. Como se compartilhássemos exatamente as mesmas coisas e, se não, as vontades se completavam.
Percebi em seus lábios um sorriso leve, antes dele desviar e beijar meu maxilar, quando pela terceira vez tentei voltar ao beijo. E eu sabia exatamente o que aquele sorriso, quase imperceptível, significava. Porque, afinal, ele havia provado que eu, realmente, precisava dele e que, embora as tentativas de fuga, no final eu sempre ia para o mesmo ponto de sempre, querendo mais.
- , o seu celular está vibrando. – sussurrou no meu ouvido, beijando logo em seguida meu lóbulo, e só então eu consegui sentir, no bolso do meu moletom, o celular vibrar. – Deve ser o Mattew. Eu não pararia de te beijar se não soubesse que pode ser ele. – Selou nossos lábios e, muito rápido para eu poder processar, já estava afastado de mim, estendendo o meu celular, que eu não sabia como tirou do meu bolso sem eu perceber.
- É ele. Matt. – disse, ainda com a respiração descompassada, em um misto de surpresa e felicidade, deixando de olhar para o visor do celular e voltando a olhar para o garoto a minha frente, que apenas sorriu e concordou.
Então, voltando agora a olhar para o visor, lendo o informe de uma chamada não atendida, vinda da casa de Mattew, tudo o que fiz foi voltar o celular para o seu lugar de origem e me levantar do sofá, jogando o edredom de qualquer jeito sobre o mesmo. Desviei de , que me olhava confuso, provavelmente porque esperava que eu retornasse a ligação e não que calçasse pantufas molhadas e frias e ajeitasse, sem sucesso, o meu cabelo.
- Tchau, . – E, talvez, apenas pela felicidade repentina que a ligação havia colocado em mim, selei nossos lábios e sorri para o garoto que ainda parecia estar confuso. – Obrigada pelo filme, pelo doritos e pelo vinho. – puxando o garoto pela mão até a porta da casa dele, fui agradecendo. – Enfim, obrigada pelo dia. Foi... Legal. – E o coloquei de frente para a porta, para que ele fizesse uma despedida e a abrisse logo. Mas antes selei mais uma vez seus lábios.
- , você não pode ir para a casa dele assim. – O garoto falou, virando-se de frente para mim, e fazendo o sorriso que antes estampava meu rosto desaparecer. – Suas pantufas estão molhadas e, embora menos, ainda chove.
- , eu preciso fazer isso. Estou acostumada com chuvas e minhas pantufas estão confortáveis. – disse, e ao notar que ele retrucaria outra vez, continuei. – Por favor, eu preciso ir falar com Mattew. E, não, não quero carona porque, além de vocês morarem perto, eu preciso fazer isso sozinha. Fora que... – Soltava as palavras rapidamente, querendo que ele compreendesse logo e me liberasse. E, então, causando surpresa maior em mim, fez com que eu parasse de falar ao girar a maçaneta e indicar o caminho para fora, sorrindo de lado. – Obrigada. – gritei, começando a correr, sem olhar para trás.
Capítulo 10
Embora as pantufas não fossem assim tão velhas e eu até pudesse dizer que as palmilhas delas não estavam desgastadas, sentia o concreto incomodar um pouco e, se não estivesse sentido o tecido molhado cobrir meus pés, até poderia dizer que era como se estivesse correndo descalça. Contudo, ignorei a dor que parecia ficar maior cada vez que pressionava os pés no asfalto e, a única coisa que fiz para aliviar a maré de sensações ruins por correr em um final de tarde debaixo de uma chuva fina e gelada, foi vestir o capuz do meu moletom. E, ainda nem na metade do caminho, quando meu capuz e todo resto estavam ensopados, assim como as pantufas, eu praguejei a minha presa e , que poderia ter me parado e oferecido um guarda-chuva.
Mantendo a cabeça abaixada, como se isso adiantasse a não me molhar tanto e minhas mãos dentro dos bolsos laterais do meu moletom, corri por algumas ruas na velocidade máxima que eu conseguia obter estando com pantufas ensopadas, e por isso pesadas, em meus pés. E, por estar com a cabeça abaixada, atenta ao concreto em que eu pisava, acabei trombando com um garoto, que vinha na minha direção oposta, segurando um grande guarda-chuva roxo. Sem me importar em pedir desculpas e ignorando todos os xingamentos que ele deixou escapar baixinho, parei por alguns segundos, apenas para retirar as pantufas dos meus pés, já que o peso agora incomodava demais, e logo em seguida voltei a correr, segurando agora o par com as mãos.
Toquei a campainha três vezes seguida e, já que era impossível me molhar mais, sentei na soleira da casa, no mesmo lugar que eu ocupava naquela manhã, porém agora sentindo falta da companhia de antes. Seria bom ter um ombro ali para eu apoiar minha cabeça e poder voltar a respirar normalmente, depois de uma maratona até aquela soleira, de brinde podendo sentir cheiro de pêssego com hortelã. Porém, tudo o que eu tinha era o cheiro de chuva e uma tentativa frustrada de respirar normal, quando, embora parada, pensar agora em desculpas, fazia o ar faltar mais.
- ? O que você está fazendo? – Ouvi a voz de Mattew perguntar e, ao mesmo tempo em que senti alivio, porque finalmente eu poderia fazer o que desde de ontem pretendia, senti um aperto estranho no coração. Medo.
Levantei da soleira e me virei para o garoto, que segurava a porta de sua casa, olhando-me com uma mistura de nojo e intriga, apenas de camiseta e boxer, deixando suas pernas e braços magrelos, e nada convidativos, de fora. Abri a boca duas vezes, sentindo a chuva se intensificar mais e molhar meus lábios, mas não consegui escolher a melhor coisa para falar. Então, após concluir que nenhum dos discursos que eu havia planejado durante todo o tempo que tive eram bons para serem falados naquele momento, joguei minhas pantufas molhadas no chão e agi, novamente, por impulso.
- Desculpa, Matt. Eu sinto muito. – disse, com uma voz um pouco afetada pelo cansaço e, como há tempos não fazia, o abracei, sentindo não o cheiro de pêssego e sim de cigarros. Mas, naquele momento, cigarro parecia o cheiro mais certo.
- Que nojo, você está ensopada, garota. – disse, rindo. – Credo, sua fedida, você cheira a cachorro molhado com um... – e cheirou meu cabelo – com um cheiro de salgadinho. Sai de mim.
Assim como ontem sabia que ele ouviria minha mensagem de voz, hoje eu sabia que o “sai de mim” significava, além de nojinho, que eu estava perdoada. E estar perdoada, sem precisar fazer discurso, ou explicar coisas que eu não sabia como explicar, sentimentos que eu não gostaria de expor e, principalmente, sem precisar a voltar ao monólogo da mensagem de voz, era aliviante. Porque existem certos sentimentos, vontades, sensações e uma porção de particularidades que foram feitos apenas para ficarem calados. Talvez porque, pelo menos para mim, essas coisas eram difíceis de serem ditas e, por isso, preferia deixá-las guardada em mim a fazer palavras tentarem explicar cada uma delas.
Estar perdoada por Mattew na minha situação significava que eu era bem vinda de volta para ocupar o lugar esquerdo de sua cama de casal, assistindo seriados, no meu ponto de vista, escrotos e, no ponto de vista do meu amigo, legais. Isso acompanhado por bebidas, que antes costumavam ser sucos, porém se transformaram em chá quente, por culpa de todo o frio que eu havia passado até chegar àquela casa. Significava também um banho quente, que colocou em mim um cheiro de shampoo masculino, que na verdade parecia não cheirar muito a nada, a não ser a banho, e roupas, também masculinas, que cheiravam a sabão em pó e cigarro.
Embora o seriado fosse escroto e, no fundo, até chato para mim, poder estar ali, ouvindo a risada do meu amigo, que mantinha os olhos fixos na televisão e de vez em quando tragava um cigarro, era ótimo. Mesmo que eu ainda não tivesse contado nada do que eu queria, mesmo que eu precisasse mais do que tudo que ele parasse de prestar atenção em piadas idiotas que os atores falavam e escutasse alguns dos meus lamentos.
- Mas que bosta! – Mattew exclamou e levantou da cama, indo em direção a sua mesa, repleta de peixes, cigarros e livros, onde o telefone tocava, atrapalhando algum episódio de seu seriado repetido. – Juro que se for minha mãe eu desligo na cara. Ela já me ligou duas vezes hoje – reclamou, desviando dos milhões de coisas que estavam espalhadas pelo carpete do quarto, e me fez rir mais quando, ao olhar para o telefone, agora em suas mãos, fez uma careta para o aparelho. Logo em seguida apertou um botão, rindo também de sua própria bagunça ou irritação, e voltou a falar, mas agora com alguém que estava do outro lado da linha. – Quem é? – sua voz numa mistura de desânimo e irritação perguntou e eu ri mais, jogando o travesseiro que antes ele estava se apoiado em sua direção, a fim de irritar mais. – Está sim. É... Está. – Porém, após provar que seu reflexo era de dar inveja, ao pegar o travesseiro sem deixar ele tocar em nenhuma parte de seu corpo a não ser nas mãos, parou de agir com desânimo e olhou para mim com as sobrancelhas arqueadas. – Claro, vou passar para ela. Só um minuto. – e se jogou na cama, estendendo o aparelho para mim. – Você andou fazendo novas amizades e não me contou? Traidora!
- O quê? – perguntei, confusa, e ele apenas riu e piscou, indicando o telefone, que agora estava em minhas mãos, com o olhar e voltou ao seu lugar de antes, voltando também a sua atenção para a televisão. – Alô?
- ? – ouvi do outro lado da linha a voz de e, se ele não tivesse voltado a falar, juraria que estava alucinando. – Aqui é o ... Bom, eu esqueci de falar para você me ligar quando chegasse aí. E você nem tem meu telefone, não é? – riu, aparentando estar nervoso, mas logo depois engatou uma fala em velocidade alta. – Eu só queria saber se você chegou bem, porque você estava de pantufas, correndo na chuva, e... Não que isso tenha me surpreendido. Acho que estou aprendendo a lidar com esse seu jeito, restrito e impulsivo. Ok, o que eu estou falando? Idiota. Enfim, eu fiquei preocupado e achei que deveria ter te levado até a casa do seu amigo de carro. Mesmo você sendo chata e já descartando essa possibilidade antes mesmo de eu supor. – Riso do outro lado da linha. Silêncio e um sorriso de lado no meu rosto. – É só isso... Você chegou bem? Está bem? Não está molhada não, né? Quer dizer... Mattew te ofereceu roupas secas? – Mais silêncio, mas agora de ambos os lados. E sorrir de lado não era mais suficiente, eu estava trancando o riso. – , você me ouviu?
- ... – e, sem conseguir trancar mais, soltei um risinho rápido, logo voltando a me concentrar. – Como diabos você tem o número do telefone da casa de Mattew? – Ri mais, agora sendo acompanhada pelo garoto ao meu lado e pelo o outro que estava do outro lado da linha.
- Digamos que eu tenho meus contatos. – explicou, e eu soltei mais algumas risadas, não por conta da última resposta do garoto e sim porque eu ainda não estava acreditando que ele havia ligado na casa de Mattew porque ficou preocupado e se sentindo culpado. – Benefícios de poucos. Mas, pode responder alguma as minhas perguntas anteriores?
- Cheguei bem, estou bem, completamente seca e, sim, Matt é um travesti nas horas vagas e tinha algumas roupas femininas para me emprestar. – respondi, logo em seguida dando um grito histérico e gargalhando quando Mattew soltou alguns palavrões e quase me fez cair da cama, ao me empurrar. – Espera um pouco. – disse, ainda rindo.
Então, a fim de me concentrar na conversa com o garoto do outro lado da linha, embora com medo de, após ter a resposta que queria, ele fosse desligar, levantei da cama, deixando Mattew com seus cigarros e seu seriado ali naquele cômodo e com o telefone na orelha e um alívio por ter certeza que agora ninguém me trocaria por seriados escrotos, sai do quarto de Mattew, ignorando seus chamados e risos. Afinal, agora, eu poderia enfim falar sem ninguém me pedir silêncio ou simplesmente me ignorar. Desci os degraus de madeira clara da casa de Mattew, parando no último e sentando ali mesmo, encostando-me à parede e apoiando meu braço que segurava o telefone no degrau acima.
Com o aparelho ainda no ouvido, idiotamente tentando respirar baixinho para que não descobrisse o que estava fazendo, tentei decifrar os sons que vinham do outro lado da linha e se misturavam com a sua respiração. Notei, então, que eram pessoas falando e, sabendo que morava sozinho, logo supus que era a televisão. Contudo, não satisfeita com isso, tentei descobrir o que ele estava assistindo, e, ao ouvir risadas programadas e falsas, que eu estava ouvindo até agora no quarto de Mattew, suspirei derrotada ao perceber que provavelmente ele também assistia a algum seriado idiota.
- ? – perguntou, quando o suspiro saiu da minha boca e, já concluindo que poderíamos agora conversar, continuou. – Eu não quero te atrapalhar com Mattew. Se você quiser, eu desligo, porque só precisava saber se está tudo certo com você.
- Não. Mattew estava me trocando por seriados mesmo. – disse, engolindo todo o orgulho que ainda poderia restar em mim, porque, assim como havia concluído, eu precisava dele. – Então, o que está fazendo? – perguntei, achando-me ridícula por perguntar algo tão idiota, embora tivesse mesmo a curiosidade de saber.
- Falando com uma garota ao telefone. – respondeu e riu baixo. – E, se você quer mesmo saber, queria que ela estivesse ainda aqui. Mas ela me trocou por um garoto que a troca por seriados. Veja como as coisas podem ser injustas.
- Eu também fui trocada. Minha presença com vinho e doritos foi trocada por uma hora de sono. Parece que crio momentos de tédio e, então, ou me trocam por sono, ou por seriados. – falei, entrando na brincadeira dele e o fazendo rir do outro lado da linha.
- Ainda tenho vinho e cobertas. Por que não volta? – perguntou, agora parecendo não estar mais continuando a brincadeira e sim, falando sério. Contudo, após o último riso acabar e uma mistura de surpresa e felicidade bobinha me dominar, não soube como responder. Afinal de contas, por que eu não voltava? – Eu prometo que da próxima vez que você vier eu não dormirei. – disse, quebrando o silêncio constrangedor que havia instalado naquela ligação. – Mas para isso teremos que assistir a um filme menos... Tedioso. E, também, quem sabe, fazer algo melhor do que ver filmes.
- Não era um filme nada tedioso. – disse, ignorando sua última frase e me apegando a penúltima, apenas para me manter sã. – E, da próxima vez, é melhor que você não tome tanto vinho, porque, não adianta negar, foi isso que te deixou sonolento. – Ouvi o garoto rir baixo do outro lado da linha e isso, ridiculamente, fez com que eu ficasse arrepiada.
- Eu tenho 23 anos, . – e, rapidamente, engatou outra vez uma fala a fim de me deixar constrangida. – Talvez eu não tivesse pegado no sono se você não tivesse preferido um fantasma idiota em vez de conversar comigo e... Fazer algo melhor. – Ri, inconformada de como por telefone ele conseguia ser ainda mais atirado.
A ligação seguiu sempre com o garoto querendo tomar um rumo que me fazia corar e querer não participar, e comigo, sempre puxando o assunto para coisas mais fáceis de se conversar, estando eu na escada da casa de meu melhor amigo, que, se não fosse o seriado, teria certeza que estaria ali vigiando minhas falas. Curiosidades eram aliviadas a cada pergunta respondida e, embora com bastantes respostas, eu, assim como ele, ainda tinha várias questões a serem postas naquela ligação. E, o engraçado e confuso, era que nós havíamos conversado muito mais e descoberto muito mais um sobre o outro naquela ligação do que em todas às vezes que estivemos juntos. Talvez porque, agora, estando ali sentada naquela escada, eu não estava vendo o seu rosto para ficar com pensamentos perturbados ou deixar um discurso sair sem um porquê certo. Assim como ele não estava ali, pegando minha mão, e me dizendo o quanto estava disposto a me entender e ajudar. Então, juntando tudo isso, as coisas ficavam muito mais fáceis, os diálogos mais leves e sem muita importância, porque eram falados apenas para saber um pouco mais de gostos e vontades. Sem dramas, sem cheiros, sem pensamentos perdidos, sem vômitos de palavras.
- Emma? – perguntou baixinho, não falando comigo, e sim, provavelmente com o seu celular que eu havia escutado tocar. – , um minuto, por favor. – pediu e eu o escutei atender o celular. – Emma? – perguntou, novamente, agora provavelmente com a chamada iniciada. – Tudo sim, e ai? – Algum tempo de silêncio. – Que ótimo! Você espera só alguns minutos? Estava com uma pessoa no telefone. – Escutei, então, o barulho de sua respiração leve de volta, e ele logo engatou a fala que eu já imaginava que engataria. – Voltei. , eu posso te ligar depois? Tenho uma ligação importante aqui. – disse, e antes que eu pudesse concordar, voltou a falar. – Quer dizer, melhor eu ligar quando você estiver na sua casa. – e riu, provavelmente lembrando que a nossa ligação, que levou horas, foi feita comigo estando na casa de Mattew. – Qual é o número do telefone da sua casa? – perguntou, finalmente deixando que eu falasse algo.
- Você não tem seus contatos? – perguntei, rindo. – Descubra, ! Aposto que você consegue. – E ri mais quando o garoto bufou, aparentando estar frustrado, logo em seguida rindo comigo.
- Pode apostar que eu descubro. Só queria ser educado ao menos uma vez. – disse e diminuiu o tom de voz para continuar a falar, como se tivesse medo de alguém, a não ser eu, ouvir. – Vou sentir saudades da sua voz, mas preciso desligar. Beijos.
Capítulo 11
Meus olhos estavam mais pesados do que o costume e por isso demorei muito mais para acostumá-los com a luz fraca que penetrava pela persiana bege do meu quarto, não me deixando conseguir dormir mais e fazendo com que, assustada, percebesse que estava claro demais para o horário que eu costumava acordar nos dias de semana. Então, virei minha cabeça para onde meu rádio relógio ficava, constatando assim como eu suspeitava, que já estava bem atrasada para ir à escola. Observei, sentindo minha cabeça latejar ainda mais forte, por culpa do movimento rápido que fiz com ela, o 10:33 piscar no aparelho, mudando as cores de tons de amarelo até os de azul, até mudar para 10:34. E depois notei mais alguns minutos passarem, conforme minha cabeça ficava menos dolorida, voltando à dor inicial que estava em mim desde o domingo de manhã, quando acordei e tomei consciência de que correr na chuva garantia não só uma amizade de volta, como também um resfriado.
Após me acostumar totalmente com a claridade, permitindo assim que, de verdade, acordasse, reparei que, preso no criado-mudo pelo rádio relógio, estava um papel de caderno rasgado ao meio e ainda com as rebarbas. Sentei, apoiando minhas costas à guarda da cama, retirando o papel debaixo do relógio e observando assim a caligrafia de que até parecia a de um garoto de doze anos. Após decifrar letras desenhadas estranhamente em algumas palavras, e por isso demorando tempo demais, consegui compreender o que ele queria com o recado.
O antigripal estava na cozinha entre a cafeteira e um copo de leite, que estava coberto por um guardanapo. Se ele demorasse é porque tinha ido a casa de um amigo que estava precisando urgente dele e que eu sabia que não existia. Afinal, por que gostava de me enganar mesmo sabendo que eu sabia o que, na verdade, ele estava fazendo? Ignorando isso, pois sabia que meu irmão sofria demais com as obrigações de ser o responsável naquela casa e, talvez, isso fosse um motivo suficiente para ele tentar, em vão, esconder coisas de mim, então, li a última linha que avisava que ele voltaria só de noite. E terminando a leitura do papel, amassei-o e deixei jogado na cama, logo me levantando e indo para a cozinha procurar o antigripal, já que a dor na minha cabeça e meus olhos lacrimejando não eram bem-vindos naquela segunda-feira.
Ao chegar na cozinha, observei o leite colocado até a metade do copo e o comprimido ao seu lado, refletindo no quanto , embora com todas as suas noitadas, bebedeiras e os acréscimos, tentava preencher o papel de pai e mãe que faltavam ali naquela casa. Quando minha cabeça já não me deixava mais refletir, tirei o guardanapo que cobria a boca do copo e com um gole do leite frio engoli o comprimido. Sentei em uma dos bancos da cozinha, deixando o copo, ainda com a maior parte do leite, no mesmo lugar de antes e apoiando minha cabeça dolorida sobre o mármore da mesa. Fechando os olhos, esperei que o comprimido junto com o frio do mármore fizesse a dor se amenizar ou quem sabe até parar.
Sem conseguir dizer por quanto tempo estive meio desacordada, com a testa agora dolorida e quase grudada ao mármore, levantei minha cabeça e estiquei meu braço para pegar o telefone com fio que ficava ali na cozinha e que tocava insistentemente. Puxei o aparelho para o mais parto de mim que o fio podia permitir e, voltando a minha posição inicial, porém sem testas em mármore agora, atendi à ligação.
- ! – ouvi a voz de Mattew gritar do outro lado da linha e depois começar a rir junto com outra pessoa, provavelmente Lucy. – Você tem cinco segundos para se explicar. Por que diabos faltou nessa segunda linda e ensolarada? – perguntou, rindo mais um pouco.
- Pode até estar ensolarada, mas linda só está para vocês que não estão com uma dor de cabeça do inferno, obtida graças a uma idéia maluca de ir buscar perdão de uma criatura debaixo de chuva. – disse, sem um pingo sequer de humor na minha voz e pude escutar a risada de Mattew se cessar, podendo assim, só escutar a de Lucy.
- Viada! – e voltou a rir. – Ninguém mandou você esquecer que existem guarda-chuvas e sapatos nesse mundo. – Não querendo retrucar, apenas me mantive em silêncio e esperei que ele falasse algo útil ou desligasse logo, deixando minha dor e eu em paz. – Mas, como eu e Lucy somos amigos para a vida, vamos passar ai na sua casa mais tarde, ok? Levaremos chás e chocolates. – informou, agora colocando em seu tom de voz algo menos sarcástico e mais acolhedor.
- Amo vocês. – disse, suspirando e escutando risos do outro lado da linha. – Mas tragam também antigripais fortes, porque o que tinha aqui parece não ser muito útil. – completei.
- Nós vamos ter que voltar para a sala, amor. – disse, agora diminuindo o tom de voz, provavelmente tentando não deixar que algum inspetor o visse usando o telefone. – Aliás, Joseph passou um trabalho valendo muito. Você terá que falar com ele... Porra, a inspetora me viu... Tchau. – e desligou, não me deixando me despedir.
Colocando o telefone apenas de volta no gancho, mantendo ele agora em cima do balcão e não em seu lugar original, por pura preguiça, bufei irritada ao pensar no que Mattew havia acabado de falar. Porque, por mais que eu já esperasse, causou raivinha saber que Joseph aproveitou minha falta para aplicar um trabalho. Todavia, não querendo piora de dores na cabeça, tratei de esquecer Joseph e qualquer outro professor daquele colégio. E, para me ajudar, ou atrapalhar, o telefone tocou outra vez e, já imaginando que Mattew havia dado um jeito de escapar de olhares de funcionários e me ligar, atendi novamente o aparelho.
- Bom-dia – Uma voz conhecida falou do outro lado da linha e logo continuou. – Aqui é , da London Central High School e gostaria de saber porque faltou à escola hoje. – e, não agüentando manter a voz falsa e o tom formal, o garoto começou a rir, junto comigo, ao telefone.
- ! – exclamei, ainda entre risos. – Não é que você conseguiu meu número?
- Eu disse que conseguiria. Foi fácil. De brinde sei seu endereço e – disse, como se já não o soubesse. – sei que você já levou, só nesse ano, quatro advertências. Faltou também quatro vezes e, com a de agora, se você não se justificar, tenho uma caneta e posso marcar a quinta falta injustificável aqui.
- O que você está fazendo no colégio de novo? – perguntei, ignorando totalmente a fala do garoto e rindo, quando ele bufou como costumava fazer.
- Sério. Você adora me ignorar e responder minhas perguntas com outras perguntas. – Revirei os olhos, sentando-me melhor no banco, com o telefone no meu colo e os pés no outro banco, porque sabia (e queria) que aquela ligação duraria muito mais do que a anterior. – Se você não me responder, eu não te respondo e ponto final. – fez birra e eu revirei os olhos mais uma vez, suspirando e me dando por derrotada.
- Estou resfriada. Sabe, olhos lacrimejando, respirando pela boca, cabeça doendo. – e, lembrando de outra coisa enquanto explicava para o garoto o que era um resfriado, mudei o assunto e perguntei. – Por que você não me ligou ontem? Você falou que ligaria para continuarmos aquela conversa e... – Antes que eu começasse a corar e a me praguejar por ter mudado o assunto, ele me cortou.
- Eu sabia que você ia ficar resfriada, sabia que devia ter te arrastado e ter levado você até a casa de Mattew. – E, mais parecendo falar consigo mesmo, continuou listando o que podia ter feito, até eu deixar um riso escapar e, então, ele voltar a ter foco. – Desculpa. – e riu – E desculpa também por não ter ligado, mas é que eu tive um compromisso. – Após eu soltar um ok baixo, não me deixando continuar, como sempre, engatou novamente. – Já que você foi uma boazinha, vou dar a resposta que você queria. Bem, meu pai foi resolver uns assuntos e eu estou encarregado de cuidar desse lugar por uma semana. – explicou e eu, surpresa, quase perdi o controle e cai do banco, levando o telefone junto.
- Isso é ótimo! – exclamei animada e ouvi sua risada do outro lado da linha. – sem advertências por uma semana! – Embalada pela alegria repentina, tirei os pés do banco e coloquei o telefone sobre o balcão, onde meus cotovelos agora estavam apoiados e, já refletindo na semana que me esperava, balancei minhas pernas mecanicamente, como fazia quando estava agitada demais.
- Isso depende muito, lindinha. – falou, fazendo uma voz enjoativa. – Depende do que eu terei em troca por acobertar você. – E senti, então, minhas pernas pararem de se mexer automaticamente ao mesmo tempo em que minha felicidade repentina broxou um pouquinho.
- Acobertar não é a palavra correta. – Não era mesmo e eu até perderia tempo, tentando explicar naquela ligação para o garoto qual era a palavra certa. Todavia, passar por um papel de vítima não me atraia, por mais que eu soubesse que, naquele caso, eu o representava com exatidão. Então, apenas para quebrar o silêncio incomodo que pairou ali, engatei – , eu vou desligar porque minha cabeça dói horrores e acho que a única coisa que me resta é tentar dormir. Afinal, - e ri antes de continuar. – amanhã não quero perder a chance de te ver sentado na cadeira verde do seu pai.
- Claro. – disse, após rir da minha fala. – Você será bem vida aqui e, bem, podemos matar a saudade nessa cadeira verde. Ela me parece boa. – completou.
- Saudades? – perguntei, não deixando de sorrir idiotamente para o nada e sentindo minhas bochechas corarem.
- Morto de saudades de você também, !
Após colocar o telefone no gancho, desviando a preguiça e também a dor no corpo para outro lugar, levantei do banco e decidi que mármore e ligações não me ajudariam em nada, então, seguindo para a sala, o sofá me parecia muito mais aconchegante para aquele momento. Esticando o meu corpo nele e ligando a televisão, mesmo que eu não fosse jogar minha atenção nela, fechei os olhos e tentei, por meio dos diálogos, descobrir qual canal e qual programa eu deveria estar assistindo.
Contudo, os diálogos foram se tornando falas baixas, postas em segundo plano, e os que rondavam meus pensamentos viraram os principais e, naquele meu estado, após uma ligação especial, os dignos de minha atenção. Falas de voltavam a minha cabeça, fazendo-me sorrir de leve e até ter a impressão de que a dor estava passando. E, junto com elas vinham minhas vontades. Voltar no tempo seria uma boa opção, mas eu sabia que esses momentos nostálgicos não seriam os únicos porque, pelo menos se dependesse de mim, aquilo continuaria por algum tempo. Não seria forçado ou apenas prevalecendo a luxúria como no meu caso com Michael. Seria de uma forma completa, porque com , todas as pequenas coisas tinham o seu valor. Todas as falas, os olhares, sentimentos escapados, risadas, beijos, toques e, enfim, tudo o que nos envolvia juntos fazia uma necessidade de estar junto, seja para ouvir discursos ou para quando eles eram inúteis, vir à tona.
Lembrando de cenas aleatórias, das mais simples até as mais complexas; das mais intensas até aquelas leves, eu só conseguia ter certeza que nenhum antigripal seria bom porque o que me levantaria mesmo do sofá, sem sentir a cabeça pesar, era . Ele seria o melhor remédio.
Esticando o meu corpo ainda mais dolorido por ter dormido no sofá, abri meus olhos e, ao me deparar com a luz acesa me cegando, percebi que a dor de cabeça só tinha piorado com a minha idéia de trocar mármore por estofado. Desligando a tv, pois seu barulho agora, não pertencendo mais a um segundo plano, irritava, levantei do sofá e fiquei parada, massageando a região dolorida da minha cabeça, até ouvir a campainha tocar, fazendo-me lembrar do que havia me feito acordar. E, lembrando da ligação de Mattew, dos chás, chocolates e antigripais fortes que ele me prometeu trazer com Lucy, fui logo abrir a porta para os dois.
- Parece surpresa, embora também pareça quase morta. – disse, rindo, fazendo minha atitude de piscar para provar que não estava doente a ponto de ver rosto de outra pessoa em um rosto diferente, como acontece em filmes, parar. Então, deixando de agir como uma idiota e aproveitando que o garoto tinha lido os meus pensamentos de antes de dormir, dei espaço para que ele entrasse.
- Quase morta, acertou! – tentando recuperar o meu humor que aquele resfriado tinha destruído, sorri e nos dirigi até o sofá. - E também surpresa. Afinal, , o senhor não deveria estar assinando comunicados, boletins, e atendendo alunos irresponsáveis naquele colégio? – Com as minhas mãos unidas e em meu colo, tentei não expressar meu nervosismo por não ter certeza de como era o modo certo de recebê-lo.
- Eu não pude lidar com todos aqueles problemas, boletins, comunicados e o diabo à quarta, sabendo que a melhor aluna de lá, e o motivo para eu aceitar essa loucura do meu pai, está doente e sem receber devidos cuidados. – E se levantou do sofá, agachando à minha frente e me fazendo lembrar da sexta-feira em sua casa. Mas, infelizmente, não como naquele dia, ele não me puxou para um beijo, muito menos continuou a falar coisas que me faziam ficar arrepiada. Apenas senti sua mão na minha testa e, então, imediatamente fechei os olhos, arrepiando-me agora pelo toque frio, que logo depois desceu para tocar meu pescoço. – Você tem noção de que está queimando de febre, ?
Talvez pela junção da seqüência dos toques, do tom repreensivo que ele adotou e a frase, que me lembrava quando minha mãe ainda morava naquela casa e se preocupava menos com o Sol na Califórnia e mais comigo. Ou talvez por simplesmente estar, por culpa do resfriado e da febre, um tanto fora de mim. Mas, com os olhos fechados eu podia voltar a sentir o que eu pensei que nunca mais pudesse ter a oportunidade de sentir. Uma sensação que, embora como eu estava, conseguia fazer um sorriso interno brotar. Aquela sensação que temos quando alguém (se ela for importante, melhor) fala algo que nos faz ter certeza de que se preocupam. A mesma sensação que tive ao encontrar o copo de leite e o comprimido em cima da pia quando entrei na cozinha naquela manhã. Contudo, diferente, posso dizer até melhor, porque com já era comum ver esses atos que fazem bem. Com parecia ainda mais intenso por ser algo completamente novo.
O garoto voltou da cozinha, segurando minha caneca de elefantes, que soltava a fumaça, revelando a alta temperatura do chá. Retirando minhas mãos debaixo da coberta, descobrindo assim todo o meu corpo da cintura para cima e, com isso, sentindo o frio aumentar mais, peguei a caneca e também o comprimido que o garoto me ofereceu.
- Esse comprimido vai resolver tudo. O chá nunca funciona sozinho, mas não podemos descartá-lo da medicação. – e riu, sentando do meu lado e me puxando para apoiar a cabeça em seu peito. – Afinal, somos britânicos!
Assoprando o chá e mantendo minha cabeça apoiada no peito do , que hoje vestia uma camiseta rosa, pude sentir o aroma de pêssego dominar minha mente. Porém, não sabia se era do garoto, do vapor do chá, ou dos dois juntos. Então, com o primeiro gole do chá, que ajudou o comprimido a descer, percebi que ele era sim de sabor pêssego. E, olhando para o líquido dentro da caneca, como se houvesse graça em seu sabor, sorri, sentindo acariciar meu cabelo de um jeito que me fazia querer fechar os olhos.
- Você cheira parecido com isso. – Não agüentando manter só para mim, falei, olhando agora nos olhos do garoto e erguendo a caneca. – Pêssego! – E sorri, vendo o garoto fazer o mesmo, porém parecendo confuso.
- Eu cheiro a pêssego? – Deixou uma risada curta escapar quando eu concordei. – Ninguém nunca me falou isso e nem eu reparei. Mas... Isso é bom pelo menos? Porque, sabe – riu novamente -, parece meio gay cheirar a pêssego.
- Não é gay, não. É ótimo! – Deixando de olhar para ele por vergonha, voltei a colocar minha cabeça em seu peito e tomei mais um gole do chá. – Eu poderia te cheirar por horas, . O tempo todo. – completei, de olhos fechados, sentindo não muito depois o garoto beijar o topo da minha cabeça e voltar assim a acariciar meu cabelo. – Tem hora para ir embora? – perguntei, já podendo sentir meus olhos pesarem. E, ao ouvir ele negar com um som estranho e baixo, fiz outra pergunta. – Se eu dormir você vai embora?
- Claro que não. Espero você acordar, ou alguém chegar... Seu irmão, não é?
- É. – concordei e ri, depois resolvendo, já que tinha feito o mesmo revelando meu devaneio com o pêssego, revelar meu pensamento. – Você dormiu sexta, eu vou dormir hoje provavelmente daqui a alguns minutos. Não era assim que deveria ser, não é?
- Não é o comum. Mas, eu espero, na próxima ninguém estará com sono ou resfriado. – Ele, então, parou de passar a mão por toda a extensão do meu cabelo e começou a fazer um cafuné na minha nuca, ainda melhor. – E, sabe, acho que isso nos torna pessoas especiais!
- Dormir nos torna pessoas especiais? – Levantei a cabeça, abrindo os olhos e encarando o garoto que segurou o riso até me ver rir. Depois, parando de rir, tocou meu rosto e com uma intensidade incrível olhou dentro dos meus olhos.
- Você é especial. – Sorriu, antes de puxar meu rosto para perto dele, a fim de começar um beijo, que, seguindo o contrário dos outros, embora intenso como qualquer um deles foi, aconteceu calmo. E especial, assim como ele também o era.
Coloquei a caneca na mesa de centro, logo em seguida voltando a depositar a cabeça no rosa daquela camiseta. Ainda mais cansada e agora ofegante graças ao beijo, fechei os olhos, desistindo de tentar ficar acordada. E, com aquele cheiro de pêssego, que agora estava até misturado com o meu, esperei que o sono me dominasse completamente e retirasse logo o sorriso idiota do meu rosto, que eu não estava conseguindo conter.
Contudo, antes mesmo de meus pensamentos ficarem livres e, então, os devaneios me consumissem, assim como sempre acontecia quando eu estava quase adormecendo, a campainha soou mais uma vez estridente e, em um susto, desapoiei meu corpo e fiquei em pé, olhando para o garoto e logo em seguida para a porta. Repeti o ato duas vezes, já sabendo quem estava, ou melhor, estavam, ali do outro lado da porta. E, não sabendo se o certo seria fazer apresentações ou esconder em algum armário, como se ele fosse um amante de filmes clichês, continuei parada no mesmo lugar, esperando que alguma idéia, melhor do que as duas anteriores, surgisse.
- Você não vai atender? – perguntou baixinho, como se soubesse que as pessoas ali do lado de fora não podiam, não naquele momento, saber da presença dele ali. – Quer que eu me esconda? – e sorriu, como se gostasse da idéia de se enfiar em algum espaço daquela casa até suas costelas doerem. – Você não vai me trocar de novo, não é?
E, lembrando do sábado, quando saí correndo de sua casa de pantufas, esquecendo de agradecer como deveria, sorri, assim como ele fazia. Coloquei meu dedo indicador sobre minha boca, pedindo para que o garoto não fizesse barulho e, segurando sua mão, o fiz caminhar até a cozinha, enquanto ainda podíamos escutar a campainha. Abrindo a porta dos fundos, que dava para um pequeno jardim, agora acabado já que minha mãe não estava ali para regar as plantas e dizer qual gostava de sol ou não, levei o garoto até o muro que dividia a minha casa da casa do fundo, que estava sem moradores há um bom tempo.
Eu sabia que poderia esperar Mattew e Lucy desistirem de tocar a campainha, para depois poder sair de casa usando o método convencional, sem a necessidade de pular muro e cair em um jardim pior que o da minha casa. Entretanto, dominada pela vontade, talvez, de aventura, fugir dos meus amigos, com o filho do diretor me acompanhando, parecia algo realmente válido naquela segunda-feira. Além do mais, eu já tinha fugido de para encontrar Mattew, enfrentando chuva e com pantufas. Então, por que eu não poderia fazer o contrário, enfrentando muro e com resfriado? Ok, demência sempre foi algo que me dominou, principalmente quando com febre.
Ao escutar o barulho de caindo na grama do jardim da casa, e após retirar pedaços de coisas verdes da minha jeans, sorrindo, caminhei até a porta dos fundos da casa, abrindo-a logo em seguida. Encontrando ali uma cozinha, com um armário velho que só devia guardar mofo e uma pia sem louças, mas com teias de aranha, entrei na casa, podendo ouvir os passos do garoto atrás de mim.
- Você sabe de quem é essa casa? – perguntou, e eu, sem olhar para ele, neguei com um movimento de cabeça. – Então, estamos, tecnicamente, invadindo propriedade alheia? – Então eu gargalhei, achando “invadindo propriedade alheia” uma definição com a aventura no ponto que eu gostaria quando pulei o muro.
- Ninguém mora aqui, . Não percebeu a falta de coisas nessa cozinha? – e ri mais, agora parando de analisar o cômodo e me virando para ficar de frente para o garoto. – Mas é uma boa cozinha, não é? Esses pisos – disse, apontando para o chão, que ornava em pisos pretos e brancos, formando algo que lembrava tabuleiro. – é bem legal, você não acha? – Antes que ele pudesse responder, se é que ele iria fazer, já que só pude notar ele rir enquanto balançava a cabeça como se não acreditasse, engatei. – Sabe uma coisa que sempre gostei de fazer? Dançar em pisos frios.
- O que? – perguntei, rindo, e imitou meu ato, sentando também no chão daquela cozinha.
- Dançar em pisos frios, iguais a esses mesmo. – e, como se estivesse sustentando um diálogo sério, expliquei. – Tablado e piso de madeira não parecem bons para dançar. Pisos frios parecem sempre convidativos. Vai me dizer que você nunca dançou em um banheiro, antes de entrar no Box e tomar banho?
- Não possuo demência, . – disse, fazendo-me soltar um riso rápido. – Mas, sério, eu não tenho mais os seus dezessete anos, sou já velho e sei que não deveríamos entrar em propriedade alheia, sentar no piso frio de uma cozinha mofada e discutir sobre vontades de dançar.
- Você tem vinte e três! Não é ser velho e, , por favor, quem vai nos descobrir aqui? – e, antes mesmo de escutar mais alguma reclamação, levantei, já planejando um próximo destino e uma próxima maneira de fazer o garoto me entender, já que, usando as palavras, ele não parecia compreender o quanto verdade era a minha demência particular. – Vem comigo.
Subindo as escadas na casa vazia, ignorando as falas de , que, embora não quisesse, estava seguindo a minha loucura, deixei risos se escaparem, como se fosse muito engraçada a minha idéia. Ao chegar no andar de cima, já podendo ver ao meu lado esquerdo portas que dariam, provavelmente, para quartos e uma que estava entreaberta e bem próxima da escada, dando para um banheiro de pisos cor azul escuro, entrei dentro do cômodo e puxei comigo.
- Tire o seu tênis e a sua meia. – ordenei, enquanto fazia o mesmo, tirando minhas meias e colocando-as dentro do meu all star, podendo sentir, com isso, o frio do piso fazer meu corpo inteiro se arrepiar e a ponta dos meus dedos do pé se encolher. – Demos sorte! – avisei, sorrindo – Meu ipod está no meu bolso.
- Por favor, pare com isso e coloque seus sapatos. Você está resfriada.
Rindo do seu tom autoritário, desenrolei o frio do meu ipod e tentei achar ali, no meio de tantas, a música que eu gostaria e planejei no pequeno espaço de tempo que tive antes de levantar do chão daquela cozinha e correr para o banheiro. E, ao encontrar a que eu gostaria, coloquei um fone no meu ouvido e outro no de , aproximando assim dele e, já que ele não havia obedecido a minha ordem e sim me dado outra, subi em seus pés, com as pontas dos meus, ficando assim do mesmo tamanho que ele, e livrando meus pés do frio do chão. Apoiei minha cabeça em seu pescoço, sorrindo ao lembrar do chá de pêssego, e apertei o play do meu ipod, liberando a música escolhida, no mesmo instante em que ele segurou minha cintura e me trouxe mais para perto.
- Agora você dança. – disse, tentando conter a vontade de rir. – Não que você vai conseguir entender a magia de se dançar em pisos frios. Porque você deveria estar descalço. Mas acho que você vai conseguir ter uma idéia do que eu estava falando lá na cozinha. – E, ao terminar de falar, pude escutar a letra de Creep, do Radiohead, começar, ao mesmo tempo em que começou a se mexer, de um jeito um pouco desajeitado.
When you were here before, couldn't look you in the eye. You're just like an angel, your skin makes me cry. You float like a feather in a beautiful world. I wish I was special...
- Perceba que não sei dançar. – sussurrou, como se para não atrapalhar a música, e riu – Mas, sinceramente, está sendo a minha melhor dança e, não, não é porque estou dançando em pisos frios. Já disse que não possuo demência. – dei um leve tapa em seu braço, o fazendo rir e depois continuar. – Um pouco pela música, mas principalmente por você.
... What the hell am I doing here? I don't belong here. I don't care if it hurts. I wanna have control, I wanna a perfect body, I wanna a perfect soul. I want you to notice when I'm not around. You're so fuck special. I wish I was special...
- . – ouvindo, então, a última estrofe em questão, eu senti a necessidade de, assim como ele, falar por cima da canção. Logo que lembrei naquele instante de quando o garoto deixou escapar quando estávamos em minha casa, revelando que me achava especial. Já eu, por pura vergonha, ou talvez orgulho demais, não deixei que minha fala escapasse da minha boca, revelando assim o que eu achava. Então, agora, já que tinha feito coisas surpreendentes mesmo, decidi que uma a mais não faria diferença. – Você também é especial.
Tomando coragem, deixando a vergonha e orgulho de lado, desapoiei minha cabeça do seu pescoço e o olhei nos olhos, vendo-os, assim como seus lábios, sorrir. Com as testas juntas, sentindo sua respiração se misturar com a minha, sabendo o que viria logo em seguida, meu corpo começou a amolecer e aquelas mesmas sensações de antes voltavam pouco a pouco. A música já não parecia conseguir ser ouvida, tornando-se só uma melodia posta bem longe dali e a única coisa que eu sentia totalmente era o meu coração. E, quando não conseguimos resistir e, então, juntamos nossos lábios, como se isso tivesse sido um choque para parar a pausa anterior, eu pude voltar a escutar a música, já em seu final.
... Whatever makes you happy, whatever you want. You’re so fuck special. I wish I was special, but I'm a creep. I'm a weirdo. What the hell am I doing here? I don't belong here. I don't belong here.
Letra e tradução da usada música nesse capítulo aqui: http://letras.terra.com.br/radiohead/63485/traducao.html
Capítulo 12
Nem meus desenhos rotineiros em aulas práticas de biologia poderiam me distrair naquela terça-feira, aliviando o nervosismo maior causado por saber que estava dois andares abaixo de mim, e não só pela vontade de descer escadas, mas também porque aquele cheiro podre estragava qualquer vontade de desenhar. Nem mesmo olhar desenhos de aulas anteriores, em geral sempre os mesmos, móveis no preto e branco intercalados com as principais anotações sobre relatórios, matérias e trechos de livros, fazia a inspiração aflorar em meio o cheiro que o peixe emanava.
Sentia que poderia vomitar no papel branco em vez de fazer o que a rotina mandava e segurava a respiração o máximo que conseguia, só puxando o ar quando meu pulso estava sob meu nariz, fazendo o cheiro de peixe se misturar com meu perfume cítrico.
Lucy colocou as luvas, fazendo-me trocar imediatamente olhar com Mattew, que até estava completamente vermelho por falta de ar suficiente em seus pulmões, e olhando ora para o professor e ora para o peixe, começou a tocar o animal podre. Mattew gemeu no mesmo instante que meu estômago deu um giro. Como se fosse natural, a garota começou a tocar partes internas do animal e, inacreditavelmente, sorrir deslumbrada. Afinal, que porra de remédios Lucy tomava? Não havia ninguém ali, senão ela, reproduzindo o que o professor explicava, por meio de slides, no peixe. Nem mesmo os nerds. Nem mesmo os drogados.
Fechei meu caderno e planejei o que viria depois, decidi que ficar naquela aula não me forneceria nada mais do que odor de peixe. Então, enquanto ajuntava meu material, conclui que passar aquela aula na enfermaria seria muito mais proveitoso do que observar minha amiga mexer em órgãos internos de um animal. E eu até poderia, quando a enfermeira daquela terça se distraísse com a televisão da sua sala, descer os degraus e entrar mais uma vez na sala do diretor, mas agora não para receber papéis que meu irmão deveria assinar. Lancei um olhar para Mattew, indicando a porta, e ele apenas deu de ombros, como se não se importasse de ficar ali sozinho com o odor e com uma maluca. Mas eu sabia, ele se importava muito e, pela sua cara, estava louco para sair dali e ascender um cigarro.
- Com licença, professor. – Entretanto, antes que eu pudesse recolher o material já organizado e fugir para a enfermaria, uma voz conhecida falou. E eu a conhecia tão bem a ponto de, ao ouvi-la, não conseguir sequer mover minha cabeça para a porta. Vi todas as cabeças viradas para trás, observando a pessoa que eu adoraria observar, se não estivesse completamente travada e apenas com uma taquicardia dando inicio dentro de mim. – Wow! Que cheiro bom. – E todos riram, menos eu, que mantive meus olhos em Mattew e observei brotar um meio sorriso cheio de segundas intenções sobre o garoto que estava ali na porta, que já havia até dançado em pisos frios comigo. E só então eu ri, atrasada em comparação aos outros e logo parando quando a figura que antes estava na porta caminhou até o lado do professor, parando de frente para todos. Assim, disponibilizou para mim a oportunidade de observar seus traços, fazendo-me lembrar de momentos que não deveriam ser lembrados em um laboratório de biologia, cheio de cheiro de peixe. – Meu nome é , sou filho do diretor Benjamin, e vim avisar que estarei, provavelmente por essa semana, tomando conta da escola e fazendo os serviços que meu pai faz com tanta competência. – Não, . – Não pude me apresentar ontem porque tive muitos papéis para colocar em ordem e ligações importantes para fazer. – E lançou um olhar para mim. – Gostaria também de lembrar do baile de sábado. Os ingressos estão à venda na secretaria e todo o dinheiro será revertido para a instituição de caridade que vocês visitaram na semana retrasada.
Poderia fazer tantas coisas que gostaria, planos que em minutos atrás eu passava em minha cabeça, como o de ir para enfermaria e depois escapar de lá, para ir ver , se ao menos aquela aparição não tivesse me perturbado. Se ao menos os burburinhos que o garoto deixou ao sair da sala não tivessem me fazendo refletir, roubando a minha atenção que antes era sobre descer escadas. Falas que eu tentava capturar em meio às outras, que enchiam aquela sala de um barulho irritante, e que também estavam misturadas às falas dos meus amigos. Mas eu não queria escutar nenhum dos diálogos dali, a não ser o do bancada de trás, que apenas pela junção de um nome ao nome de , havia feito minha curiosidade brotar. Afinal, quem era Emma?
Acho que e Emma ainda estão juntos. Mas ela está na Suíça, por que ele continuaria com ela? Eu ouvi dizer que ele está pensando em passar um mês lá com ela. Mas ele não estava com a Ally semana passada? A líder de torcida? Ela estava mentindo..
- Por deus, Lucy, pára de mexer nesse peixe fedido, porque eu preciso falar com você. – Puxando minha amiga pela manga da camiseta, fiz com que ela se sentasse no banco, ao meu lado e de frente para Mattew. Ignorei os burburinhos, principalmente os da bancada de trás, e percebendo os olhos arregalados não só de Lucy, mas também de os Mattew, continuei. – Quem diabos é a líder de torcida chamada Ally? – perguntei no meu tom mais baixo e, segundos após terminar de perguntar, ouvi Mattew gargalhar e Lucy fazer o mesmo, porém de uma forma menos extravagante e gay.
- e seu mundinho particular. – Mattew disse, com as mãos levantadas, cortando assim a explicação que Lucy me daria e fazendo vergonha alheia brotar em mim. Por que ele tinha que ser tão chamativo sempre? – Sério, sei que somos os mais legais e bonitos, mas você realmente só nos conhece nessa escola toda?
- Cala a boca, Matt. – Lucy tirou as palavras da minha boca, embora ainda estivesse rindo, e ao voltar a feição séria, continuou. – Ally é a líder de torcida, que, não olhe agora, está sentada na segunda bancada da fileira da direita. A do cabelo preto e enrolado ou a que mais te parecer puta. – Desobedeci a ordem da minha amiga e automaticamente olhei para a bancada mais à frente, podendo notar uma coisa chamativa, meio puta, meio lilás demais. Provavelmente era Ally. – Mas, por que resolveu conhecer seus colegas de classe agora? – Ouvi Lucy perguntar, entretanto não respondi, preferi analisar a garota que parecia ter brilho no rosto, como naquelas revistas em que os modelos usam maquiagens com gliter.
- Credo, ela brilha. E aquilo é uma arcada dentária de um esquilo. – comentei, um pouco alto demais, fazendo Mattew gargalhar como um louco, a ponto de saírem lágrimas de seus olhos, enquanto Lucy voltava sua atenção para o peixe. Lembrei, então, como eu queria sair dali o mais rápido possível. E, já com meu material em mãos, falei. – Bom, vou para a enfermaria.
- Depois temos que conversar, . – foi o que eu ouvi antes de deixar a bancada, meus amigos e o peixe para trás.
E detalhes de dias atrás voltaram rapidamente para a minha mente, fazendo-me lembrar que eu tinha assuntos pendentes com Mattew. A conversa que deveríamos ter feito no dia em que fui na sua casa, embora agora não tivesse tanta importância quanto antes, ainda precisava ser feita. Assim como ainda sentia necessidade de sentar no gramado da escola e compartilhar a angustia que me dominava toda vez que saia mais tarde de alguma aula de sociologia. Contar sobre meu novo amigo, que era mais do que amigo e menos que um namorado, e explicar que ele era o garoto que atrapalhou seu seriado para falar comigo naquele outro dia. Explicar como minhas pernas ficavam fracas e rir, contando que pêssegos agora viraram minha obsessão particular, uma demência a mais.
Entretanto, agora, havia detalhes que eu não desejava colocar em nenhum discurso que faria. Personagens desconhecidos que não gostaria que tivessem entrado para o começo de uma história que estava se construindo tão bem. A minha história com , que parecia tão certa a cada pequena coisa que fazíamos juntos, cada ligação engraçada e cada vontade de abraçar e sentir cheiro, ainda enrustida, porém agora mostrando mais as caras.
Emma e Ally eram personagens que, se pudesse, apagaria com prazer, porque elas me mostravam que talvez, embora eu pensasse que sim, a obsessão por pêssego não fosse só minha. Pernas dormentes, uma espécie de taquicardia e vontades de abraçar. Tudo isso que me proporcionava, provavelmente, não era só para mim. E eu não gostava de dividir, queria que o mundo parecesse parar de girar só para mim e, embora ainda não tivéssemos nada sério, eu pensava, em momentos de devaneios, que logo isso se tornaria concreto, pouco a pouco. Contudo, agora a certeza de que a história continuaria e fluiria para algo sério, tornava-se menor a cada vez que os burburinhos da bancada de trás voltavam a ser pronunciados pelo meu inconsciente, perturbando-me.
Deixei a sala e o cheiro desgraçado de peixe para trás, procurei pensar, enquanto descia devagar demais as escadas, no que fazer com os dois nomes na minha cabeça, assim como também o que fazer com o garoto que estava lá na sala do diretor. Mas, eu sabia, não poderia e não tinha razão alguma para fazer algo, senão ignorar aquela raivinha de duas garotas que eu nem sabia direito quem eram. Logo que também seria impossível planejar qualquer coisa, quando aquela vontade de abraçar estava dominando cada fibra do meu corpo, pedindo para que eu não parasse no primeiro andar e sim que fosse para o térreo.
Contive qualquer vontade de voltar a agir por impulso e me enfiei em uma das cabines do banheiro feminino do segundo andar, deixando meu material todo no chão e sentando na tampa da privada. Apoiei meus pés também na tampa e encostei minha testa entre meus joelhos, fechando os olhos e deixando que memórias, devaneios, vontades, frases, medos e tudo o que mais quisesse vir, viessem à vontade.
Porém, outra sensação, que antes estava um pouco mais escondida, agora brotava em mim, dominando qualquer outra coisa que quisesse aparecer. Uma raivinha crescia, fazendo se iniciar uma vontade de pagar na mesma moeda, e, embora eu não tivesse certeza de nada, eu me sentia cada vez mais traída. Sentia que, talvez para , todos aqueles dias não tiveram o mesmo significado que tiveram para mim. E, dominada pela vontade de vingança e também pela luxíria sem limite que me dominava ao lembrar daquele nome, esquecendo o quanto isso machucaria Lucy ou Mattew, pensei em Michael.
Sem ao menos parar para ponderar o certo e o errado, destranquei a porta da cabine e encontrei, sentadas debaixo da pia, duas garotas desconhecidas, fumando cigarros com seus materiais espalhados pelo chão do banheiro. Ignorei as duas e me dirigi ao espelho, para verificar minha aparência e, por alguns minutos, tive nojo da minha imagem refletida. Tive nojo ao pensar no que iria fazer de novo, mas mesmo assim não me contive, porque Michael era quase como um vício, um imã que sempre acabava me puxando.
- , você quer uma tragada? – uma das garotas me perguntou, estendendo o cigarro aceso para mim e me fazendo parar de olhar para o meu reflexo. Se ela sabia meu nome, eu deveria saber o dela? – Se você quiser pode ficar com ele. – E, porque diabos ela estava me dando o cigarro se eu nunca falei com ela na minha vida? – Você fuma, não é? – Não. Isso era com Mattew.
- Sim, obrigada. – disse e peguei o cigarro da mão da menina, analisando por um tempo, para lembrar como era mesmo que Mattew fazia aquilo. Não engula, foi o que eu lembrei. E, então, colocando o cigarro na boca, dei uma leve tragada, fechando os olhos, assim como meu amigo costumava fazer. – Vocês sabem quem está tendo aula do professor Michael agora? – soltando a pouca fumaça, perguntei e, como se eu tivesse dado uma ordem, a outra garota, que até então não tinha sequer aberto a boca, começou a abrir seus cadernos, procurando, provavelmente, o horário de todas as aulas da London Central High School.
- Ele não está em aula agora, mas a próxima é com o segundo ano B, na sala 210. – respondeu e sorriu de uma forma exagerada, que me deixava até com um pouco de medo.
Olhei para o cigarro em minhas mãos, tentei pensar em uma forma de retirar o professor de sociologia da sala dos professores, sem ninguém me ver. Traguei mais uma vez, e desta vez mais forte, o cigarro, sentindo meu corpo ficar incrivelmente mais leve, como se tivessem descarregado um peso de mim, e o entreguei de volta para a garota que me havia oferecido. Dei um sorriso fraco para as duas, que me retribuíram com dentes a mostra e sai daquele banheiro, esperando que nenhum inspetor estivesse por aqueles corredores.
Descendo o lance de escadas que me levaria ao piso térreo e ao corredor que eu tanto queria ir antes dos burburinhos começarem, tinha a sensação que minhas pernas estavam fracas, como se eu pudesse cair ali a qualquer momento. Mas não fracas como elas ficavam quando eu estava com , prestes a um beijo ou a algo que revirasse meu estômago. Fracas de um jeito ruim, como se eu realmente fosse cair e não conseguir levantar mais. Ao chegar ao piso térreo, olhando em volta para verificar se tudo realmente estava vazio como a falta de sons insinuava, parei no último degrau, segurei o corrimão com uma força além do necessário e senti meu corpo querer mais uma tragada daquele cigarro, para eu poder voltar a me sentir mais leve.
Contudo, antes de eu conseguir me recompor para ir logo para a sala dos professores, o sinal soou estridente, fazendo minha cabeça doer e meu corpo querer, mais do que nunca, desabar. E, antes que eu pudesse me esconder em algum lugar daquela escola, vi ninguém menos que Michael saindo da sala dos professores, com uma pressa que eu tinha certeza que nenhum outro professor dali teria. Vendo-o caminhar em direção a escada onde eu ainda me encontrava parada, agora sorrindo de leve por me ver travada ali, a minha vontade de vingança e de me sentir, de novo, naqueles braços, aumentava gradativamente, a cada passo que ele dava. Maior do que a necessidade de tragar mais uma vez um cigarro.
- Vamos, antes que alguém nos veja. – disse, entendendo o que eu queria por meio do meu sorriso, que acompanhou o dele, e pegou na minha mão, para subirmos quatro lances de escadas em uma velocidade surpreendente. – Você acha que meus alunos vão se importar se eu demorar uns quinze minutos? – perguntou, ofegante, quando chegamos no último andar, onde só havia laboratórios de eletrônica e um anfiteatro, e eu apenas sorri, mostrando os dentes e deixando que aquele cheiro de... homem dominasse minha mente.
Capítulo 13
Não era nem de perto como o cheiro de e muito menos completava tanto quanto o do garoto conseguia fazer. Vontade de abraçar e estar junto existia, porém de uma maneira menos bonita e muito mais física. E não era como se o mundo parasse e começasse a girar apenas ali, o contrário, era como se o mundo estivesse girando tão rápido, deixando-me tonta, que eu nem conseguia pensar com clareza em nada. Como se eu virasse, novamente, apenas sensação, sem sentimentos e sem sanidade. Michael era uma droga e eu a usaria, naquele momento, não só pensando em prazer mas também para aliviar a raiva que estava dentro de mim. Vingança era a pior forma e a mais suja, porém a única que eu conseguia tocar naquele momento.
Ally, Emma e que se ferrassem, porque eu tinha Michael naquele momento.
Entretanto, em fileiras de sanidade, que brotavam em meio ao momento, eu pude perceber que aquilo não era mais como antes e que existiam, sim, sentimentos ainda presos em mim e que nem mesmo Michael os tiraria de lá. Porque havia aquela parte que imaginava no lugar do professor de sociologia e que insistia em fazer comparações. Minhas pernas não estavam mais fracas e nem ficariam, meu estômago não estava dando voltas e meu coração só batia rápido porque estávamos fazendo movimentos fortes e acelerados. Não era como se ele conseguisse, só de me tocar, deixar cada parte de mim arrepiada, atenta à mais pequena troca de olhares. Mas ainda assim existia a vontade física, que me puxava, que queria mais proximidade e que fazia meus dedos agarrarem os fios da nuca do seu cabelo, dando assim incentivo para que ele não parasse.
Abotoei minha calça jeans e sorri, pegando meu par de all star, quando Michael, já com suas roupas no corpo e sentado agora em uma das cadeiras do anfiteatro, estendeu-os para mim, sorrindo de um jeito cúmplice. Sentei no chão e quis por alguns segundos conversar com ele, contando, quem sabe, de Mattew e nossa briga de sexta-feira. Mas, apenas vesti minhas meias, desejando que ele parasse de me analisar, ou que simplesmente puxasse alguma conversa idiota.
- Michael, o quanto você conhece o filho de Beijamin? – Não agüentei e, enquanto dava o laço em um dos meus tênis, perguntei. – Ouvi dizer que ele vai para Suíça. – informei, antes que ele respondesse a minha pergunta e, subindo agora meu olhar para o meu professor, esperei que ele me passasse informações.
- Suíça? Acho que não, . Quer dizer, ele me disse hoje mesmo, logo que cheguei, que a namorada dele volta de lá semana que vem. E, bem, se ele tem que cuidar da escola essa semana... Acho que te passaram informação errada. – disse, levantando-se da cadeira e estendendo a mão para me ajudar a levantar também. – Você vai para o gramado de trás agora? – perguntou, já sabendo que lá era onde Mattew, Lucy e eu ficávamos no intervalo. Concordei e, mais rápida do que ele, eu sai do anfiteatro, descendo as escadas o mais rápido que consegui e agradecendo mentalmente por ter trinta e cinco minutos a mais e sozinha de intervalo.
Não gostava nem um pouco do papel que agora eu representava, porque eu não era má o suficiente para caber nele e não pretendia estragar a vida de alguém que eu nem sequer conhecia. Apesar de saber estragar a vida da minha amiga, não significava que eu tinha a capacidade de estragar a de mais alguém, porque arruinar a vida de Lucy já era o suficiente para desarranjar toda a minha cabeça, fazendo Mattew e meu inconsciente virem com falas cheias de punições.
E, antes de conhecer , eu nunca havia pensado muito no lado de Lucy, ou nos sentimentos que ela poderia ter por Michael. Eu não sabia se amava , não sabia nem direito o que era amar uma pessoa do sexo oposto que não fosse o meu irmão ou Mattew, mas eu sabia que havia alguma espécie de mágica quando ele estava comigo. Se essa mágica fosse ou não o que chamam de amor, ou paixão, ela fazia outras sensações aflorarem, até o ciúme, que parece queimar nosso interior, como se fosse um ácido poderoso. Levando isso em conta, não sabendo se Lucy tinha apenas uma tara por Michael, ou se também parecia acontecer mágica, eu começava a ponderar o quanto eu arruinava sua vida, machucava e fazia o ácido do ciúme a corroer.
Contudo, se existia um vilão nessa história toda, esse era , que sustentava uma máscara de bom moço, enquanto traía alguém que poderia, em um dos dias que ele me beijou, estar a olhar fotos, desejando intensamente voltar para casa e não precisar de ligações para poder se sentir um pouco menos distante. Assim como cravava ódio em mim, que para ele, mesmo em tão poucos dias de encontros e conversas, permiti-me contar segredos e vontades que costumei a guardar só para mim. Revelar demências e filme favorito; sorrir junto e tomar vinho; permitir que a mágica pudesse acontecer e fazer explodir sensações.
Mattew caminhava em direção ao banco em que estava sentada, já com um cigarro entre os dedos, sem Lucy, e tendo como música de fundo o assovio sofrível do sinal da escola. Sua camiseta mais curta comparada as dos outros garotos, assim como também mais larga, deixava notar um pequeno pedaço do final da sua barriga, magra demais e com alguns pelos. Nojento, mas era tão reconfortante ver aquilo, saber que, enfim, teríamos a conversa que merecíamos e que eu poderia parar de apenas pensar, jogando um pouco de problemas naqueles ossos fracos.
- Lucy está fedendo muito. Mandei ela passar um perfume e ficar distante, para o odor não atrapalhar nossa conversa cheirosa. – disse, sentando-se à mesa e colocando seus nikes em cima do banco, ao meu lado. Eu deveria avisar que ele também estava fedendo? – Acho que também estou fedendo. – Não precisaria. – Mas ok, o que foi aquele filho do Beijamin fazendo metade da sala babar e a outra metade ter inveja?
- Você fazia parte da metade que babou que eu vi. – disse, rindo, e recebendo em toca um chute de leve no meu braço. As risadas foram se cessando e dando inicio ao silêncio típico de quando ninguém sabe como iniciar a conversa. Então, vendo que ele não daria o mote, resolvi fazer uma das tantas perguntas que rondavam minha cabeça desde quando resolveu aparecer. – Como você descobre se ama alguém? – E, como o garoto não fez nada a não ser sorrir, deixando-me assim com vergonha, refiz a pergunta. – Ou, como você sabe se está ou não apaixonado?
- Acho que pessoas apaixonadas ficam arrebatadas. – finalmente falou, com os olhos no céu, parecendo querer buscar as palavras certas ali. – Parecem flutuar, têm necessidade de cantar extasiada e de dançar como um dervixe.
- Meio gay, mas acho que entendo. – disse, rindo de leve, sendo ignorada da melhor forma por ele, que pareceu chegar a uma conclusão.
- É quase como ser delirantemente feliz, ou predisposta a ser. – E, após finalizar sua explicação, deixou o céu e voltou a olhar para mim, sustentando um sorriso leve. – Você se sente assim? – Então, corando um pouco pela conversa ter se voltado para mim, sorri como ele e concordei. – Então, você ama alguém. Não precisa ter vergonha de amar. Eu, por exemplo, amo você mesmo sendo uma garota estranha e chata. E não tenho vergonha de dizer. – Rindo junto comigo com sua risada escandalosa, desceu da mesa e sentou no banco, para poder me abraçar de um jeito desajeitado.
- É diferente, Mattew. – Em meio às risadas, falei e depois, quando ele resolveu se desgrudar de mim, eu continuei. – Se eu amo eu não sei, mas acabei de descobrir que não deveria sentir nada. Mas, não é como se eu pudesse acionar um botão e parar de sentir. É tão estranho. – Então, desenvolvi não só a história, mas também o que eu pensava sobre, para meu amigo, contando sobre o vinho, sobre Radiohead embalando uma dança mal feita e também sobre os burburinhos vindo da mesa de trás, que geraram não só raiva como também uma ida até o anfiteatro com o professor de sociologia.
Vinte minutos de intervalo não foram suficientes e eu tinha a impressão de que, se ele deixasse, falaria até o Sol se pôr. Entendendo o quanto eu precisava conversar, e não ir para uma aula de geografia, como também, descobrindo que havia perdido partes importantes da minha vida, Mattew me pegou pela mão e me fez correr até o gramado da frente, nos escondendo atrás da estátua que ficava fixa em um canto esquerdo. Então, eu pude continuar a tagarelar, explicar demências, sensações, raivas, usando metáforas e movimentos exagerados com as mãos. Fora os sorrisos, que na maior parte das vezes eu não conseguia prender.
- Eu nem sei como deixei que ele se aproximasse tanto, mas de repente me vi assim, - e apontei para mim mesma, sorrindo incrédula. – dependente de abraços e, enfim, de estar com ele de alguma forma. – Voltei a apoiar minhas mãos sobre os meus joelhos e esperei que Mattew dissesse algo, assim como ele estava fazendo quando eu terminava de explicar, ou contar alguma coisa.
- Talvez ele também esteja assim, idiota como você. Ou talvez ele seja um cafajeste rico e com bons vinhos em casa. Mas, suponhamos que a primeira opção seja a correta, ele pode ter se apaixonado por você, mas ainda não tido a oportunidade de terminar com a tal Emma. – Enquanto olhava minhas próprias mãos, tentava pensar por aquele lado que Mattew supunha. Só fazendo com que eu me sentisse mais nojenta por ter ido até o anfiteatro com Michael. – Telefonemas não prestam para terminar um relacionamento. Acho que esse é o tipo de coisa que devemos fazer pessoalmente, cara-a-cara. Emma também tem sentimentos e ele deve se preocupar com isso.
Talvez porque eu quisesse que Mattew estivesse certo, agora aquela raiva de antes havia virado pó, sendo substituída por outra raiva, agora de mim mesma. E se não fosse o vilão que eu imaginava? E se os vinhos e doritos também significaram para ele? E se ele apenas estava esperando Emma voltar para terminar com ela e ficar comigo?
- Vamos sair daqui e ir tomar um sorvete, me sinto um criminoso escondido. – Mattew, cortando meus pensamentos, disse rindo. – Eu tenho que pegar meu caderno no armário, enquanto isso vai indo para a sorveteria, se eu não aparecer, é porque fui pego.
- Pega meu caderno também, só estou com o de biologia aqui. Confio em você! – E abracei meu amigo, não para passar ou mostrar confiança, e sim como um agradecimento pela conversa que tivemos.
Sentada não em um gramado e sim em um banco acolchoado na cor verde, com a voz da Lily Allen saindo por aquelas caixas de som em um volume baixo, mas suficiente, esperaria Mattew o tempo que fosse. Entretanto, não demorou muito e logo o vi entrar por aquela porta de vidro, fazendo soar um sino, que informava a entrada de clientes.
Parecia mais animado do que antes, quando estava olhando para o céu e refletindo sobre o que era amar. Segurava, fora os cadernos, um envelope de carta azul escuro, que ele chacoalhava, para que eu notasse, enquanto vinha em direção a mesa que estava.
- Caiu no chão logo que abri seu armário e, como está lacrado, deduzi que você ainda não sabe o que tem aqui dentro e, talvez, nem saiba da existência disso. Até agora – disse, ao sentar, e estendeu o envelope para mim. – Mas tem seu nome ai, e um escrito como remetente. – Sorriu, acompanhando o meu sorriso, e fez sinal para que abrisse logo e verificasse do que se tratava.
Eu não sabia o porquê, mas meu coração parecia querer pular para fora de mim. Assim como também não conseguia deixar de sorrir, enquanto abria o envelope para poder retirar a carta dali e ler seu conteúdo. Talvez fosse porque, assim como Mattew tinha insinuado, eu estava apaixonada. E todas as pequenas coisas que envolviam pareciam ter um enorme valor.
Eu sei que você sabe de uma pessoa que não te falei. Emma. Mas não acredite em tudo o que você escuta. Errei, confesso, mas não como talvez você está imaginando agora.
E se por um acaso a mentira da tal de Ally chegou aos seus ouvidos, saiba que é mentira.
Acho que você percebeu um convite junto com a carta no envelope, para o baile de sábado. Sei que parece meio inapropriado, mas podemos conversar lá, enquanto ajudamos crianças carentes!
.
Capítulo 14
Where am I gonna look? They tell me that love is blind... Steven Tyler gritava, assim como meu irmão, e com isso eu tinha a nítida impressão de que a cada palavra gritada por eles minha ansiedade, junto com a dor de cabeça, era elevada ao cubo. Afinal, eu estava mesmo com meu vestido preto, que antes só mofava no meu closet por falta de ocasião, indo para um baile idiota que meu colégio ofereceria e que eu nem ao menos fazia idéia de como seria. E estava indo não pelas crianças carentes e sim por , o que era meio engraçado e idiota, já que poderíamos muito bem (e seria até melhor) conversar em outro lugar menos agitado, e não em um baile. Mas, talvez os três dias sem falar com ele, depois de receber a carta, vendo-o apenas como o diretor temporário do colégio e sem a coragem de ir lá e começar a conversa que queria ter, fez com que eu pegasse o convite que ficou no criado-mudo, assim como meu vestido no closet, e depois pedisse uma carona para . Decidindo assim, não esperar a segunda-feira ou qualquer outro dia, para enfim falar sobre duas pessoas que eu estava curiosa sobre.
Ao contrário do meu irmão, a minha janela, do passageiro, não estava aberta para chamar atenção de algum desconhecido, nem mesmo queria mostrar para os carros que estavam por perto que gostava de Aerosmith... E que ele cantava mal quando tentava ter o mesmo tom de voz de Steven. Só queria poder ouvir algum barulho da cidade, qualquer que fosse, para poder não só escutar a Love In An Elevator ser gritada por dois dementes (fãs de Aerosmith, perdoem-me), mas também algum outro som. Contudo, o volume do aparelho de som estava mais alto do que qualquer outro que aquelas ruas reproduziam e tudo que a janela aberta me proporcionava era um vento desagradavelmente gelado no meu rosto, bagunçando meu cabelo. Entretanto, pelo menos daquele jeito, eu me preocupava mais com ajeitar e segurar os fios da minha franja em vez de me relembrar para onde eu estava indo e o porquê de estar indo.
... Lingerie, second floor. She said: Can I see you later? And love you just a little more... Buscando distração, e já que a música estava sendo gritada nos meus ouvidos, não me restando assim outra coisa, resolvi pensar em Steven Tyler em um elevador, fazendo assim um clipe particular e bizarro na minha cabeça. Mas ok, no fundo eu sabia que essa minha demência de imaginar clipes só acontecia quando estava muito nervosa para algo, e eu estava. Então, logo o clipe se desfez e naquele momento percebi que nem o vento, nem Aerosmith junto da minha imaginação afetada, fariam a ansiedade passar, principalmente porque agora eu me encontrava a três faróis do meu destino.
- Sabe... Eu tenho uma teoria particular sobre o porquê de Joe Perry ter escrito essa música. – O garoto finalmente abaixou o volume do aparelho de som do carro para poder falar, e eu agradeci mentalmente, embora também não quisesse saber teoria nenhuma. E certo, foi Joe Perry quem escreveu e não Steven Tyler? Isso estragava meu clipe. – Você está me escutando?
- Porque você ainda não me perguntou o porquê de eu estar indo para um baile tosco do meu colégio? – Então ele abaixou mais o volume da música, deixando ela apenas como um som ao fundo da nossa conversa. – Sério, eu nem sei porque estou com esse vestido, nem gosto realmente dele. – disse, parando de analisar minha roupa e observando, assim, meu irmão rir, enquanto olhava para frente, focado no trânsito.
E como eu havia ignorado a sua tentativa de explicação sobre uma teoria da letra (que eu achava até pervertida demais) associada ao guitarrista da banda, apenas voltou seus dedos para o botão do volume, para que assim os últimos versos pudessem ser gritados novamente naquele carro.
Mas, ao descer do carro, vendo-o parar ao sinal do farol logo mais à frente, percebi que não só havia músicas sendo gritada ali, como também naquela escola. E, já acostumada com a temperatura fria que estava naquela noite, por ter vindo com a janela do carro aberta, ajeitei meu vestido e observei a frente do meu colégio, iluminada com luzes coloridas e com alguns enfeites bizarros de papel. Ao analisar aquela frente, que parecia tão mais viva do que todos os dias de manhã, eu me sentia totalmente em uma atmosfera distante da minha, como se me colocassem para participar de algum filme que eu não me encaixava, e eu sabia que a sensação de deslocamento só aumentaria quando eu entrasse por aquele portão logo a minha frente.
A árvore onde sempre ficávamos encostados nas sextas-feiras estava lá, dando a impressão de ser o único lugar dali aconchegante e fazendo também, junto da vontade de fazer o caminho inverso, uma sensação de falta se juntar a todas as outras que já me preenchiam. Porque, ao contrário de todas as vezes que eu entrei naquele colégio, agora nem Mattew e nem Lucy estariam ali, para conversarem algo inútil comigo, enquanto o real motivo de eu estar ali não me encontrasse. Contudo, após retirar da minha bolsa o convite, já caminhando em direção ao portão, pude perceber que parado ali, junto do garoto que recebia os convites e permitia a entrada das pessoas, um de smoking também estava.
Parei, por um tempo que não pude calcular, a poucos passos do portão, no mesmo momento em que meu celular vibrou duas vezes, avisando o recebimento de algum torpedo, e ainda olhando para a versão formal do garoto que estava a minha frente, iluminada por uma luz amarela, retirei com dificuldade meu celular da bolsa. Confirmei assim minha suspeita e, como o número do remetente era desconhecido, imaginei que pudesse ser alguma promoção inconveniente da minha operadora. Mesmo assim, usando da minha pouca (leia-se: inexistente) unha para descer a barra de rolagem, verifiquei se minha segunda suspeita também estava correta. Mas não, não estava.
Gostei do vestido! Mais alguns passos para estar no lugar certo, em um vestido certo, com o homem certo. .
Li a segunda vez, só para ter certeza de que ele havia mesmo me mandado um sms estando a alguns passos de mim, e depois de olhar para sua direção novamente, percebendo um sorriso animado em seu rosto, voltei minha atenção ao meu aparelho, entrando na brincadeira.
Belo smoking! Quase não te reconheci dentro dele. Dúvida: Será que dou alguns passos, ou não?
E apertando o botão enviar, olhei de novo para , sem dar nenhum passo sequer, transformando o sorriso dele em uma expressão de dúvida, até quando seu aparelho o avisou da minha resposta. Ignorei o fato de que estava parada, literalmente, no meio do gramado frontal do colégio, provavelmente deixando aquelas pessoas que chegavam para o baile e me notavam ali plantada encabuladas, e esperei. Mas a vergonha de ser alvo de atenções era esquecida facilmente enquanto observava o garoto digitar a resposta à minha resposta, principalmente quando ele sorriu para mim, ao mesmo tempo em que o aparelho em minha mão voltou a querer minha atenção.
Sim! Se você não der, eu corro atrás de você. Estou com mais disposição desde que comecei a pular muros e dançar em banheiros.
Então eu gargalhei, ao lembrar das situações que protagonizamos alguns dias atrás, fazendo o olhar de alguns desconhecidos caírem mais uma vez sobre mim, agora por um motivo mais concreto. Como resposta, digitei duas letras, mas não apertei o botão enviar. Ajeitei minha bolsa melhor ao meu ombro, e ainda com o celular em mãos, comecei a dar os passos esperados, percebendo assim sorrir mais e tentar desviar das pessoas que passavam por ele para entrar no baile, para assim não me perder de vista. Faltando quatro passos para estar a uma distancia aceitável dele, apertei o botão enviar, e mais uma vez ignorei, agora que eu estava atrapalhando a entrada de algumas pessoas, que reclamavam baixo.
voltou a olhar seu celular, desta vez mais rápido do que da outra, por o conteúdo do sms ser de somente duas letras. Oi. Idiotamente idiota, no meu ponto de vista, mas já que ele havia começado aquilo de uma maneira tão inesperada, resolvi fechar com chave de ouro. Talvez aquele momento seria um dos tantos que relembraríamos quando velhos, rindo juntos em um sofá de cor e modelo ultrapassados. Ok, ignorem isso.
- Oi. - respondeu, ao terminar de verificar o conteúdo do corpo de texto, em um tom muito baixo, que eu só pude entender por um dom de leitura labial. E depois, quando ao tentar entrar, esquecendo do convite, o garoto que permitia a passagem bloqueou a minha, continuou. - Ela está comigo, Kevin. - e me puxou para dentro do colégio.
Eu poderia parar e retirar o convite, que eu voltei a guardar na minha bolsa quando fui retirar o celular de dentro ela, e entregar para o garoto que me pareceu irritado por eu não ter lhe entregado o passaporte para o baile, se não tivesse me puxado pelo corredor, em direção a quadra interna, não me permitindo assim parar ou fazer outra coisa senão ser arrastada, rindo de como ele estava mais animado do que nunca. Parecido até comigo no dia em que dançamos em pisos frios.
Chegando à quadra, onde uma grande quantidade de pessoas dançava, ou ficava sentada em mesas dispostas nas laterais, e já todas preenchidas, tive a nítida noção de deslocamento. Luzes piscando, dando a impressão de que todos faziam movimentos lerdos, uma música desconhecida e alta a ponto de parecer ser tocada dentro da minha cabeça, e toda aquele clima de baile, realmente, não era para mim. Contudo, antes que eu pudesse reclamar, ou tentar fugir dali, me puxou, mas não para entrar no meio daquela gente, e sim para subir um lance de escada que, só agora eu tinha percebido, dava para uma espécie de área vip, com menos pessoas e mais mesas vagas.
Mas, ao me decepcionar, não me deixando sentar em uma daquelas cadeiras, tive vontade de ter marcado a conversa em um lugar com menos olhos. Puxou-me para a pequena, comparada à de baixo, área de dança, e no meio tempo, desviar de mesas me fazia notar que ali, naquela área que eu julgava ser vip, estava repleto de professores e, se eu não o conhecesse bem, quase acreditei que Joseph estava sorrindo para mim. Impossível, .
E só então lembrei de alguém que não gostaria de lembrar. Cercada de professores, Michael poderia muito bem estar ali, em alguma daquelas mesas, ou prestes a ocupá-la, e isso, de certa forma, fazia um medinho de não-sei-o-quê tomar conta de mim. Não devia satisfações a ele, mas tinha certeza de que perguntas viriam se me visse de mãos dadas com , sendo que dias atrás eu havia lhe perguntado sobre o garoto. Ou talvez o medinho fosse por causa de flashes, que poderiam vir em nossa mente, e fazer uma vontade de estar junto voltar. Não era o que eu queria naquele momento. Não tendo quem eu gostaria me puxando pela mão, usando um smoking que lhe caía perfeitamente bem e exalando o perfume que eu tanto gostava de sentir.
- Acho que pode cair mal dançar comigo, quando essas pessoas provavelmente sabem que você tem alguém lá na Suíça. – Poderia ignorar a vontade de obter respostas, já que dançando ali, bem próxima ao garoto, eu poderia ignorar o que quer que fosse.
Mas eu necessitava de explicações e, na verdade, naquele momento eu estava sim preocupada com os pensamentos de alheios. Principalmente porque aquele andar superior estava repleto de funcionários daquele colégio que podiam, muito bem, estragar ainda mais a imagem que tinha. Além de criar fofoquinhas sobre a revoltada do terceiro ano que resolveu se socializar em um baile apenas para dançar com o filho do diretor.
- Achei que você não ligasse para opiniões alheias. – Mas se lembrava exatamente de tudo, inclusive que eu gostava de segurar a máscara de não-ligo-para-opniões-alheias. E, ao falar, pôs sua mão em minha cintura, aproximando-se mais ainda.
- Não ligo, mas achei que você ligasse. – Estava começando a me irritar, não gostando mais de como o garoto conseguia achar boas respostas para tudo, conseguindo escapar das respostas que na verdade deveria dar.
Afinal, eu havia me dirigido até ali não para dançar músicas e sim em busca de explicações, esclarecimentos que ele disse que me daria naquela carta deixada no meu armário escolar. Mas, apesar de tudo, e da crescente vontade de falar pelos cotovelos, apenas para aliviar tudo o que eu planejei falar durantes os dias que decorreram desde o laboratório de biologia, eu não conseguia ter coragem de abrir a boca. E nem me parecia tão convidativo ter uma conversa ali, quando eu teria que gritar para que ele me escutasse.
Todavia, no momento que havia decidido que ficar quieta era a melhor opção naquela situação, a música foi novamente trocada, mas diferente de antes, não por uma mais agitada ainda, e sim com uma batida e volume mais propícios para uma dança lenta. Assim como, também, mais convidativos para iniciar uma conversa, já que agora poderia falar em um tom normal, sem forçar minha garganta. E ironicamente, quem cantava a música, que, pode parecer estranho, mas era até confortável de escutar, era Steven Tyler, que antes gritava e me irritava no carro do .
Agora sentia necessidade de agradecer a Aerosmith, que embalava tão bem um momento que era tão confortável quanto à música, porque abraçada agora ao , podendo assim voltar a sentir todas aquelas sensações que explodiam em mim quando estava com ele, não conseguia pensar em um momento melhor do que aquele. E I Don't Want To Miss A Thing naquele momento era mais do que uma música com uma letra bonitinha, perfeita para escutar em um dia depressivo, jogado ao sofá. Na verdade, como Steven falava naquela letra, eu poderia ficar perdida naquele momento para sempre, porque todo o momento passado com era um momento que eu valorizava.
Don't wanna close my eyes, I don't wanna fall asleep 'cause I'd miss you baby and I don't wanna miss a thing... Mas, mesmo embalada pela música e disposta a ficar para sempre daquela forma, se fosse possivel, resolvi falar o que já queria bem antes.
- Mesmo não importando com opiniões, acho que você deveria me falar mais sobre Emma. – Talvez por não poder fixar meus olhos aos olhos do garoto, já que estava agora com a cabeça repousando em seu pescoço, que tenha conseguido falar com tanta firmeza.
- Ela é minha namorada. – E, se houvesse esperanças em mim de ela não ser o que eu já sabia que era, aquela fala me acertaria em cheio. – Emma é fotógrafa e recebeu, dois meses atrás, uma proposta para ir a Suíça, fazer fotos para sua empresa. Ela foi. Acho que tirar fotos de Alpes rende mais do que qualquer coisa que possa haver em Londres. – E riu sem humor, logo em seguida fazendo instalar um silêncio, que só era causado porque minha mente estava processando fatos demais.
Eu não queria saber sobre a gloriosa vida de fotógrafa de Emma, sua namorada que levava chifres enquanto fotografava Alpes Suíços. Queria saber o que ele iria fazer, se iria terminar com ela, se só estava comigo para passar o tempo, já que estava a dois meses sem um beijo sequer da sua namorada. O que ele iria fazer? Dançar comigo uma música depressiva e contar seu relacionamento, como sentia falta? Não achava justo. Não para mim.
- Mas nós resolvemos dar um tempo. É assim que eles chamam, não é? Quando um casal resolve ficar afastado, mas sem perder o compromisso um com o outro. – Sim, , é assim e não, , você não está respeitando as regras do “dar um tempo”. Logo que não sabia que poderíamos ficar com outras pessoas, enquanto estivéssemos dando um tempo. – Demos um tempo e ela embarcou para lá. Já não estávamos tão bem, Emma se preocupa demais com o trabalho. Então, eu conheci você – De repente fui inserida na história compactada da vida amorosa de . – e me vi envolvido. Agora, olha Steven falando por mim, neste momento eu só quero ficar com você para sempre, para sempre e sempre. – disse, logo após Tyler ter cantado a mesma parte, fazendo-me, involuntariamente, sorrir idiotamente, e depositou um beijo em meu pescoço.
E me encontrava naquele instante não precisando, e nem mesmo me importando mais, com esclarecimentos mais concisos, que satisfizessem totalmente as minhas dúvidas iniciais, porque, pelo o que eu senti e pelo o que suas palavras me fizeram refletir (por mais que fosse complicado com ele distribuindo beijos em meu pescoço) a resposta que eu queria estava ali, exposta indiretamente para mim. Não só não era um passatempo para o garoto, como também ele queria, assim como eu, que perdurasse. Para sempre, para sempre e sempre. Bastava saber isso, não precisava de mais nenhuma palavra que tentasse explicar qualquer coisa que fosse, para eu ter certeza de que ter ido àquele baile foi a melhor atitude tomada.
Pedacinhos de tempo, como o de agora, valiam tanto a pena quando estava com aquele garoto. E nem era necessário beijar meu pescoço ou mesmo minha boca, bastava apenas estar ali por perto, iluminando qualquer escuro que pudesse haver nos meus olhos, qualquer falta de crença. Quase como um refúgio... Ou melhor, exatamente como um refúgio, um refúgio com aroma de pêssego e lábios macios, confortáveis como a música, o momento, como ele todo era. era um conforto ambulante. Por isso agora todas as perguntas que vagavam nos meus pensamentos e tentavam ser cuspidas logo, eram deletadas, e até esvaziadas da lixeira automaticamente. Nada mais importava.
... I don't wanna miss one smile. I don't wanna miss one kiss. I just wanna be with you, right here with you, just like this. I just wanna hold you close. Feel your heart so close to mine and just stay here in this moment for all the rest of time....
Já nos versos finais, retirou uma de suas mãos da minha cintura para tocar minhas bochechas, coradas provavelmente, e assim voltar a encostar seus lábios aos meus, agora não da maneira preocupada de antes, que fazia acontecer apenas selinhos esporádicos, e sim fazendo nossas línguas se tocarem, não se importando mais com opiniões alheias, assim como eu fingia que também não o fazia.
Mas ao terminar o beijo, terminado justamente no mesmo instante que a música, percebi que aquele momento, que gostaria, gostaríamos, que durasse para sempre e sempre, acabaria. Ao ver se virar, para poder olhar a secretária gorducha que antes, provavelmente, o cutucava por atenção, e saber assim o que ela queria ao atrapalhar nosso beijo, então uma vontade de abraça-lo de novo voltou. Queria grudar meus braços ao redor do pescoço do garoto novamente, para poder assim, quem sabe até, retornar a dança e a música. Mas não havia ainda como voltar no tempo, reviver coisinhas bobinhas e legais, de gente apaixonada. E agora, ao escutar falar que teria que ir, mas que poderia passar amanhã na minha casa, para uma conversa, uma explicação que eu já nem queria mais, mas que ele queria dar, eu sentia ainda mais a necessidade de uma máquina para voltar para minutos atrás.
Nem ao menos aquela música que agora tocava eu conhecia, e sem mais o garoto ali, ficar sozinha em uma pista de dança parecia estúpido. Mais válido era eu sentar em um daqueles bancos brancos dispostos ali, de frente para o bar, e esperar a coragem para descer o lance de escadas e encarar a noite, o frio, e as ruas que me levariam de volta para minha casa.
Letra e tradução das músicas usadas nesse capítulo aqui e aqui. :D
Capítulo 15
Pensei que jamais sairia daquele sonho, que em algumas partes se tornava pesadelo, com pedaços de acontecimentos que por instantes pareciam ser reais. E, talvez, se eu tentasse relembrar, eles fossem em grande parte não apenas obra da minha mente e de uma noite mal dormida. Mas sentada agora naquele sofá na cor preta, que havia me servido de cama e que eu nem ao menos sabia onde estava localizado, podendo, assim, tanto estar em Londres, não muito longe da minha casa, como também em algum lugar longe demais, eu conseguia, ao menos, assimilar fatos do sonho com os de uma noite que suspeitava ser a passada. E, lembrando também do personagem principal participante daquele baile, poderia muito bem estar naquela casa novamente, onde agora eu realmente gostaria de estar. Todavia, conhecia muito bem o sofá da sala de e, nem o tom, nem o modelo, eram iguais ao que agora eu observava, passando minhas mãos e descobrindo que havia dormido em um grande pedaço de couro, coberta por um edredom verde-musgo, que fazia uma boa combinação com o estofado. E, por mais que sentisse vontade de voltar para os sonhos e as cores fossem agradáveis de olhar, mesmo ainda com a curiosidade de saber onde estava, aquele móvel não me parecia convidativo para dormir. Queria mesmo era uma cama, a minha.
Mas ao lembrar mais um pouco da noite anterior, quando me deixou para trás e eu fui me isolar em uma daqueles bancos de frente para dois barmans, não conseguia lembrar de ter feito o que eu estava lá buscando coragem para fazer, sair do baile e ir para casa. Então, eu poderia muito bem ter sido seqüestrada (talvez até por um dos barmans) e posta, inconsciente, no sofá da casa do meu seqüestrador. Contudo, analisando a situação, não tendo cordas amarrando meus pés ou minhas mãos, e, na verdade, com um edredom macio, aquilo não parecia realmente um seqüestro.
Então, ao deixar a paranóia de lado, vendo agora algo que me chamava à atenção, assim como também poderia me dar respostas, movi meus dedos até a moldura posta em cima da pequena mesa de centro, rodeada de almofadas coloridas (que também combinavam bem com o sofá e com todo o cômodo). Percebendo, assim, por meio da pequena luz que penetrava pelas cortinas na cor bege, a fotografia ali guardada, descobri, mesmo sem ainda saber a localização certa, onde eu estava, ou melhor, na casa de quem.
Michael, em uma versão mais nova, e uma moça sorriam, com duas casquinhas de sorvetes na mão (morango, conclui pela cor) e, como plano de fundo, árvores na cor do outono. Até parecia conhecer aquele cenário, porém o garoto ali (que agora era meu professor de sociologia) não me parecia tão familiar. Não porque naquela foto ele provavelmente tinha dez anos a menos, ou porque aquela leve barba que ele possuía hoje, naquela foto nem havia pistas dela existir. Talvez a diferença estava nos seus lábios e em seus olhos. Sim, era exatamente isso. Nunca havia visto Michael sorrir como naquela fotografia, sorrir de verdade, do jeito que não só as pontas dos lábios se curvam para cima, como também os olhos brilham, querendo também sorrir. Mas, voltando ao foco, desistindo de analisar sorrisos e parando de brincar do jogo das sete diferenças, a pergunta me pegou de surpresa, O que diabos estava fazendo na sala de Michael?
Já que havia acordado com resquícios de uma dor de cabeça, não tenho ninguém ali para deixar remédio e copo de leite sobre a pia, fui até a cozinha e decidi, além de procurar remédio, deixar a minha curiosidade tomar conta do meu corpo, assim avaliando mentalmente os móveis e objetos da casa do meu professor. Sabia que isso era invadir privacidade, que deveria ficar ali na sala até alguém resolver aparecer para me esclarecer as coisas. Mesmo eu podendo me considerar até intima do dono daquela casa, ao fazer o que fazíamos escondidos, não me dava nenhum passe para poder andar por sua casa e procurar remédios. Mas ok, eu estava fazendo exatamente isso. E, aliás, o piso daquela cozinha era ainda mais bonito do que o piso daquela casa vazia visitada alguns dias atrás. Não porque estava mais bem cuidado, na verdade, tons pastéis me agradavam também.
Ao sentar em uma das cadeiras, dispostas ali ao redor da mesa, de cor transparente, com material parecido com um plástico mais resistente, após desistir de abrir armários e procurar algo que curasse dores de cabeça, ouvi passos se aproximando da cozinha, também aproximando, assim, quem poderia me oferecer remédios e me explicar porque havia dormido em um sofá de uma casa que eu só sabia de quem era por ser uma curiosa demais.
- Desculpa, eu acordei e resolvi vir tomar um copo de água. – disse, já me desculpando e me assuntando. Susto de surpresa e não medo, ao ver meu professor de sociologia com a cara amassada de sono, vestindo uma camiseta branca e uma boxer xadrez. – Gostei dessas cadeiras, aliás, e resolvi sentar em uma delas. – Não que eu devesse ficar surpresa, já que eu havia visto aquele homem, várias vezes, de uma maneira muito mais constrangedora. Mas, talvez por agora ele parecer tão mais meu professor, isso fosse um bocado mais constrangedor, fazendo até eu desviar os olhos para a toalha da mesa.
- Eu gosto delas também. – foi o que ele disse, simplesmente, como se o assunto pudesse se finalizar ali. E, ao passar por mim, para abrir o refrigerador, eu me perguntei por que não levantava dali e ia para minha casa. Lá pelo menos teria remédios e um garoto que estava acostumada a ver andar de boxers pela cozinha. – Se lembra da noite de ontem? – Mas então ele perguntou, colocando a jarra de água sobre a mesa e também dois copos.
Engoli um bom gole da água, que gelou minha garganta completamente, e tentei recordar mais alguns fatos da noite passada para então lhe responder com certeza. Mas as únicas imagens certas que se passavam por minha mente tinham ordem certa e paravam exatamente no mesmo ponto, não me permitindo lembrar mais nada depois dele. Mensagens instantâneas trocadas antes de entrar no colégio, dançando comigo, Aerosmith embalando uma cena bonitinha e depois tudo virando pó, quando o garoto teve de ir embora. Lembrava também dos bancos na cor branca e dos barmans, esse era o ponto final. Após ele, não havia nada a não ser uma dor de cabeça forte.
Perdi alguns minutos contando ali para ele das partes que me recordava, omitindo, claro, coisas como as mensagens instantâneas e a música confortável. E só então parei para pensar, que ou eu havia, por qualquer motivo que fosse, ficado inconsciente, ou eu havia ficado bêbada a ponto de não lembrar de nada. O que era vergonhoso e provável, logo que o momento fui-abandonada-em-um-baile-tosco pedia um término regado a álcool e fossa musical. Agora, ao terminar de refletir no quão provável a segunda opção era, outras imagens até se desenvolviam na minha mente, desfocadas e parecendo sonhos. Mas, sabia que eram reais, assim como as anteriores, e eram aqueles barmans de novo, servindo bebidas de cores chamativas para mim.
- No caminho até aqui você dormiu e eu agradeci, porque você estava falando muito antes. – E ao escutar sua narrativa compactada, sentia tamanha vergonha a ponto de querer me jogar dentro de um poço e morrer ali. Agradecia também por não poder relembrar das partes constrangedoras que ele citou que fiz. – Então eu só te coloquei no sofá e te cobri.
- Desculpa. – foi tudo o que eu consegui dizer, e então tomei mais um gole da água gelada para tentar engolir aqueles fatos.
Até achava bonitinho como ele havia sido prestativo, retirando-me daquele baile ao me ver completamente bêbada e, ainda sim, bebendo mais, mas eu estava agora me perguntando se ele não gostaria, no fundo, de algo em troca. Contudo, aquele olhar que fazia meu estômago revirar não estava ali posto em seus olhos e nem seus lábios estavam puxados de um jeito safado. Parecia que não estava sentada ali com o mesmo homem que me fazia (mesmo sem pedir muito) ficar até mais tarde em uma sala de aula, ou anfiteatro. Talvez fosse a cara de sono, que ainda estava ali nele mesmo após uma provável lavagem de rosto ao acordar e alguns copos d’água. Precisava de um café forte para arregalar aqueles olhos.
E eu até senti vontade de perguntar se ele não costumava tomar a bebida de manhã, porque eu costumava e precisava de café para me sentir acordada. Copos de água gelada não conseguiam tomar o lugar do meu vício matinal e eu até tinha vontade de levantar daquela cadeira e procurar filtro de papel e pó de café. Mas seria muito ousada se eu o fizesse. Também porque ele parecia bem feliz em contar, tomando copos de água, como eu era engraçada com doses de álcool no meu sangue. O que me lembrava , logo que era o garoto que costumava lembrar meus momentos constrangedores e rir, e o que também estava começando a me irritar profundamente. Eu não costumava ter humor de manhã. Não sem café.
Então, ao lembrar de , agora abstraindo as falas e risadas do meu professor, tentava imaginar o quão preocupado ele estaria naquele momento. Todavia, pensando bem, era meio idiota eu me preocupar com a preocupação do meu irmão. Afinal, ele provavelmente também não estava em casa àquela hora, e o máximo que deveria ter feito foi ligar no meu celular, mas eu não atender. O que não era motivo para ele fazer qualquer alarme, logo que, mesmo sóbria, eu não costumava atender ligações. Nunca gostei delas, para mim, ou falava cara-a-cara, ou reduzia o assunto e abreviava palavras em um sms, simples assim. Lógico que essa minha agonia a telefonemas não servia para , na verdade, eu vibrei toda por dentro nas poucas vezes que ele me ligou, não querendo nem desligar o aparelho e lembrando das falas por alguns dias seguidos.
- Quem é a moça da foto? – Não gostava de silêncios e minha curiosidade em saber quem era a moça da foto que estava posta sobre a bancada da cozinha, que também era a mesma da fotografia da sala, estava enorme. Ele parecia sempre feliz ao lado dela, em todas as fotos que estavam juntos. – Ela me lembra alguma famosa, mas não lembro quem... – Então, analisando novamente fotografia, tentei lembrar quem no mundo das estrelas tinha aqueles traços, mas Michael atrapalhou meu raciocínio.
- Sarah Gellar? Muitas pessoas dizem. – Sim, era exatamente uma Buffy versão morena. – Minha noiva, primeiro amor... Mas dizem que primeiro amor sempre acaba, diziam isso também nessa época, aos nossos vinte anos, nós não acreditávamos. Contudo, eles estavam certos. – Então, parei de analisar a sósia da buffy para olhar meu professor, que olhava a foto parecendo querer entrar dentro dela. – Tudo me faz lembrar dela, não passa um dia sequer que eu não pense nela... Talvez a culpa seja das fotos espalhadas por essa casa, mas eu gosto disso, de qualquer forma. Um dia não nos demos mais tão bem, no outro ela foi embora. Que se vai fazer? Aposto que já ouviu histórias assim centenas de vezes.
Outra vez então o silêncio voltou a reinar, ele parecia infiltrado naquela foto e eu imaginava que ele tentava reviver em sua mente o que estava ali revelado. Já eu não sabia o que falar, parecia-me que qualquer tentativa de abrir a boca poderia ser uma porrada em um machucado dentro dele, logo que já tinha o feito falar sobre algo que não parecia ser assim tão fácil. E agora eu entendia porque naquelas fotos seus olhos brilhavam, eu mesma já havia vivido emoção parecida e, embora não houvessem fotos reveladas para poder comprovar, sabia que, quando estava com , meu sorriso era tão grande quanto aquele. Até poderia considerar, por mais que não gostasse de rotular sentimentos e pessoas, que era, tecnicamente, meu primeiro amor.
- Mais do que centenas. – Contudo, resolvi falar, mais uma vez para pura e simplesmente quebrar o silêncio.
Mas eu realmente gostava de histórias como aquela, mesmo que na maioria das vezes o final fosse um tanto trágico. E talvez exatamente por isso elas fossem mais chamativas do que qualquer outra, que coloca um final feliz ao último capítulo, de modo sempre previsível e cansativo. Numa percepção que posso ter realidade, ela nunca é como se pintam na maioria dos lugares, e amar pela primeira vez, ou pela décima que seja, não significa para sempre. Porque, antes de alguns fatos dos últimos dias, eu até realmente achava que o amor desgasta, assim como solas de sapatos usados todos os dias. Entretanto, essa visão veio mudando muito desde o dia em que resolveu cruzar o meu caminho e, apesar de ser apenas uma adolescente vivendo as primeiras chamas que o amor traz, eu já que queria que, com ele, todas as minhas opiniões estivessem erradas. Porque para ele o para sempre parecia muito válido.
Todavia, caminhando de volta para minha casa e tentando não me lembrar da história sobre o primeiro amor de Michael, eu sabia que estava virando uma egoísta e idiota mais do que o normal. Ao pensar, Pouco me lixo para essa Emma, ou até, Posso continuar sendo a outra se ele preferir, idiota parecia apenas um apelido carinhoso para mim, daqueles que mães dão. Afinal, fosse Emma quem fosse, sentisse o que quisesse sentir por ela, não poderia me contentar em ficar em um cargo como o que eu agora ocupava. A outra. Não por pena da fotógrafa que agora estava na Suíça e muito menos por uma fama pouco bonita que carregaria se todos ficassem sabendo (inclusive a própria chifruda), mas na verdade, por mim, pela minha fama.
E aquela história de Michael me parecia mais triste do que as outras, pois seu prólogo era exatamente igual ao prólogo da minha, se alguém a fosse escrever. Um amor primeiro repentino (e apenas de uma pessoa), um segredo guardado; e eu só esperava que meu final não batesse com o dele. Não cogitava a hipótese de acabar sendo uma professora de ensino médio, mal-amada, que pega algum aluno ao final de aula. Era bem mais preferível que aquele final comum e cansativo de histórias fosse o da minha história com também. Felizes para sempre, felizes para sempre, felizes para sempre. Amém.
Mas logo me vi deixando a minha oração idiota ser esquecida da minha mente, assim como também todos os meus pensamentos passados, feitos só porque estava no tédio caminhando até a minha rua, permitindo devaneios tomarem conta, porque vi sentado na soleira da minha casa um motivo, com carne, osso e também moletom cinza, para parar de pensar em histórias e em um futuro que era completamente imprevisível. Tão difícil de saber como coser sem ter linha ou fio. E vendo o motivo não se mexer, apenas segurando sua cabeça pela testa, com as duas mãos, resolvi ser mais um pouco retardada e pregar um susto em .
- Se você pretende me assustar, desista. – Todavia, eu era tão ruim a ponto de em ao menos conseguir tentar e, então, tudo o que eu pude fazer foi suspirar derrotada e me sentar ao lado do garoto, que só agora tinha desapoiado a cabeça para me olhar e sorrir. – Eu estava de olhos abertos, vi seus pés. Na próxima, não se aproxime tanto, funciona melhor. – e piscou, fazendo-se do expert no assunto.
- Anotei mentalmente. Fica o aviso para você se preparar, ainda quero testar a sua masculinidade. – disse, fazendo o garoto gargalhar, ao mesmo tempo em que deitou sua cabeça em minhas pernas.
- Depois que você disse que eu cheiro parecido com pêssegos, bem... Eu realmente me sinto um pouco gay. – revelou.
E eu até pensei em sustentar aqueles instantes por mais tempo, deixar o garoto à vontade e não inventar de quebrar silêncios com falas inúteis que sempre escapavam. Porque tê-lo deitado ali sobre minhas pernas e passar a mão por seus cabelos macios era suficiente para aquele começo de domingo. Logo que domingos eram sempre daquela forma, lerdos, sem acontecimentos ou falas bombásticas e eu estava até gostando de manter o padrão. Mas, de repente, ao deixar minha mente voltar para a noite anterior, quebrei todo o momento e fiz nosso domingo sair do padrão.
- Você foi atrás da Emma, não foi? Porque ela voltou da Suíça. – E vendo agora abrir os olhos para me encarar, fugi dos olhos e encarei a rua pouco movimentada.
- Eu pensei que ela voltaria hoje, pelo menos foi o que me disse na última vez que nos falamos por telefone. Mas resolveu fazer surpresa – Surpresa! Obrigada, Emma, estragou minha noite de sábado. – e chegou ontem. Então eu fui ao aeroporto para pegá-la e levá-la para a casa dos pais dela. – Em um susto voltou a sentar ao meu lado, fazendo minhas mãos, que antes bagunçavam seu cabelo, ficarem vazias e caírem cada uma de um lado do meu corpo, no chão frio da soleira. – Eu sei que parece errado, mas eu resolvi deixar para falar com ela amanhã, quando ela já vai estar lá devidamente instalada, sem se preocupar com malas e lembrancinhas de viagem. Também acho que ela vai querer terminar, e isso de certa forma me alivia, até espero que ela faça por mim. Mas mesmo se não fizer, eu farei. Ei, você pode olhar para mim? – e riu fraco, quando envergonhada voltei meu olhar para ele e tentei, inutilmente, sorrir. Então, repetiu e logo continuou. – Mas mesmo se não fizer, eu farei, porque falei sério quando disse o para sempre com você. – E devem pensar que após isso sucederam borboletas no (meu) estômago, calafrios, e um beijo intenso, digno para aquele domingo e para a fala do garoto. Mas , quebrando todo o momento bonitinho, após algum tempo sustentando meu olhar e meu sorriso, continuou. – Vamos para a minha casa?
Capítulo 16
Até poderia dizer que aquele dia havia passado rápido, embora alguns instantes teimavam em parecer acontecer em velocidade retardada, como se o minuto começasse a valer horas. E eu até gostava dessa sensação, mesmo me perdendo nas horas, na verdade, eu gostava muito. Mas faltava algo. Algo que me fizesse ter a certeza de que aquele momento era merecidamente meu e não como se o estivesse roubando de outra pessoa. Como se todos os beijos e carícias que estava fornecendo, fossem apenas para substituir a pessoa que na verdade deveria estar naquela cena.
Falando nela, era estranho notar a falta da presença da própria ali, embora eu mesma nem a tivesse visto. Todavia, mesmo não morando com , pedacinhos dela deveriam estar ali, expostos em molduras, ou mesmo em um frasco de perfume feminino deixado em algum canto do quarto ou banheiro. Afinal, eles haviam dado um tempo e não terminado, ainda. Se até mesmo na casa de Michael havia molduras espalhadas, mesmo a companheira não estando mais com ele e mesmo que nem fosse mais voltar, por que não havia coisas da Emma ali? Mas eu também me senti idiota, afinal, por que diabos estava tentando achar coisas ou mesmo retratos dela? Se eles não estavam ali, melhor. Significava que estava realmente disposto a terminar e fazer exatamente o que falou. Isso deveria me deixar mais feliz, ou pelo menos me fazer achar que aquele momento era sim merecidamente meu.
Também pode ser que as coisas que eu sentia falta naquela casa não foram tiradas há pouco tempo, poderia muito bem ter tirado assim que eles deram o tempo deles, dois meses atrás. E isso era até melhor, significava que a garota realmente apenas fazia parte de um passado, perdido de vez talvez graças à Suíça e seus Alpes. O que tornava todo o futuro término um fato muito mais provável e não uma mentira de , como eu por instantes fiquei com medo que fosse.
Mesmo assim a televisão não conseguia prender minha atenção, olhava em volta, procurando por vestígios que eu nem mesmo sabia quais e onde. Mas talvez a minha demência de procurar o que não queria achar fosse um sintoma das duas taças de vinho. Aliás, estava começando a achar que só possuía vinho naquela casa. Voltando ao assunto, eu até tentei cheirar melhor o edredom que me cobria sobre a cama, para ver se possuía algum outro cheiro fora o de pêssego e sabonete. Nem sei por que, logo que em dois meses (então, obviamente passado por umas duas lavagens) o cheiro da criatura não estaria mais impregnado nas roupas de cama.
Enquanto esperava o garoto terminar o banho, tive até uma vontadezinha de ir verificar aquele closet e talvez até gavetas e caixas escondidas. Mas me parecia bem mais prazeroso continuar aninhada ao edredom, olhando a televisão (embora eu estivesse prestando mais atenção ao barulho da água caindo no banho de ) e engolindo mais delicados goles do vinho. E eu deveria aprender a controlar essas minhas vontades malucas, de sair andando pela casa dos outros para procurar algo como se ela fosse a minha. Nem todos chamam isso de curiosidade, afinal, e sim de má criação. Na verdade, para quem foi abandonada (não literalmente, ok) pelos pais, eu até que tinha uma educação de ouro.
Resolvi zapear canais, em busca de algo que tomasse minha atenção do barulho da ducha de água caindo sobre o corpo do garoto, e parei em um programa de turismo, que mostrava a Califórnia. De repente me vi com vontade de estar lá, porque nem mesmo aquele edredom estava me protegendo cem por cento do frio que sentia e olhar aquele Sol queimando um monte de gente ao mesmo tempo era invejável. Há quanto tempo eu não ia à Califórnia? Sete anos?
Comecei a calcular nos dedos, 2002 menos 2009... Sete. Pode parecer fácil se você não ingerir uma boa quantidade de álcool. Mas ai o celular atrapalhou minha volta ao passado, recordando os momentos de quando era eu quem estava ali torrando no Sol e tomando água de coco. Olhei para trás, na guarda da cama, onde o celular de tocava como um doido, e finalmente achei o que queria (ou o que eu não queria, mas procurava), o nome de Emma no visor piscava escandaloso. E tudo o que fiz, tudo muito rápido e planejado na hora, foi não só cancelar a ligação como também desligar o celular, logo que estava quase saindo do banho e eu não queria que algum imprevisto o fizesse me deixar de novo para trás, como aconteceu no baile.
- Pronto, agora limpo eu sou só seu. – E depositou sua toalha molhada sobre a cadeira que ficava de frente para o computador, caminhando logo em seguida para ficar ao meu lado.
- Tomei o vinho da sua taça também. Espero que você não se importe. – confessei, corando e fingindo prestar muita atenção na Califórnia.
Mas na verdade eu queria rir. Não rir... Sorrir. Todavia, sorrir porque era engraçado, como quando sorrimos quando uma coisa tem graça, mas não tanta a ponto de gerar risada. Ver com aquela camiseta preta, que pela tonalidade desgastada parecia ser velha, e com bermuda na cor verde-bosta, dava vontade de sorrir desse jeito. Mas ele estava bonito, devia admitir, e ainda mais com os cabelos molhados e por isso com uma coloração um pouco mais escura do que costumei a ver. Combinava até melhor com os seus olhos. E também tinha o cheiro de banho, aquele mesmo que eu estava sentido naquelas roupas de cama, mas com uma intensidade muito maior.
- Por que você está sorrindo? – Acho que não conseguir controlar. E quando o garoto perguntou, colocou uma de suas mãos sob meu queixo, forçando-me a sorrir não para o Sol da Califórnia e sim para ele.
- Meus pais estão lá, sabia? – mudei o assunto e aproveitei para mentir. – Estava devaneando com o Sol Californiano, estou cansada desse friozinho já. – Aliás, eu estava me perguntando se ele não estava sentido um frio pior que eu, estando de bermuda e camiseta.
- Eu também. – E colocou seu braço ao redor do meu pescoço, descansando sua mão perto do meu colo. Então foi como se tudo ficasse ainda mais frio, embora a sua temperatura estivesse bem mais quente que a minha. – Mas eu estava vendo a previsão do tempo, falaram que amanhã as temperaturas aumentam, um pouco. – Como se eu precisasse dele mais perto de mim para poder controlar minha própria temperatura.
- É, amanhã pode ser um dia legal. – disse, olhando agora pela janela do quarto de , que mostrava um céu nublado, bem cinza. Dias ensolarados costumavam ser dias mais divertidos, sem a melancolia comum daquela cidade. Mas então tomei consciência sobre a nossa conversa estranha sobre o tempo e um provável (na verdade, eu achava que era mentira) dia de sol da segunda-feira que viria. – Que fim de assunto falar sobre tempo, ! – E ri, logo sendo seguida pelo garoto.
- Verdade, pra quê? Podemos fazer coisas melhores.
Então ele fez o que eu precisava e queria, quando pôs seu braço ao redor do meu pescoço, aproximou seu corpo mais do meu e quebrou a singela distância entre nossos lábios. Já sabia onde aqueles beijos iam parar, não era nenhuma garotinha inocente e Michael que o diga por mim. Sabia também que aquele momento estava previsto para antes, mas só aconteceu agora porque ninguém sentiu necessidade de dormir enquanto um filme rodava no dvd player, nem mesmo ninguém estava resfriado e precisando descansar as pálpebras. E seria especial, estava sendo especial. Não era como os dias com Michael e nem mesmo eu havia conseguido imaginar que, quando eu sentisse amor de verdade, seria daquela forma, especial, não há outra palavra. Não gosto de ser sentimental e bancar a romântica, mas de fato para explicar aquela vez com , sou instigada a ser a mais piegas possível. Por isso prefiro omitir, para não encher isso aqui com borboletas demais no estômago e sentimentalismo exagerado.
Mas também, não posso ignorar, como se fosse só mais uma cena com diálogos desnecessários, que deveria usar para contar essa história. Então sim, eu sentia como se meu corpo todo pedisse o dele, como se choques fossem dados a cada beijo depositado em alguma parte nua do meu corpo. E eu tinha a sensação de estar plena, a cada investida, completada e transformada finalmente em um todo. Engraçado, mas era como se eu tivesse me encontrado em definitivo, sem ao menos me procurar. Entre aquelas investidas, eu conseguia ter plena certeza de que era muito especial. Até que eu o amava, mas ainda achava cedo para admitir isso.
Quando o garoto voltou a ficar ao meu lado na cama, puxando e soltando o ar tão forte quanto eu, comecei a pensar na frase que ele havia dito, assim que saiu do banho. Ele havia sido meu, naquele tempo que estivemos completos, um pelo outro, assim como eu havia sido dele. Mas foi apenas naqueles instantes (mágicos), onde nada mais poderia ou conseguiria ser pensado, quando o que mais valia era estar junto, literalmente. Depois, quando voltou a se jogar ao lado vazio da sua grande cama, voltava a ser e eu voltava a ser a .
E, na verdade, ele ainda pertencia a Emma. Não querendo bancar a dramática demais (apesar de eu ser), já que eu sabia muito bem que ele terminaria com ela, e essa certeza só se firmou depois de nossos minutos particularmente mágicos. Mesmo assim eu queria que ele fosse meu agora, queria poder olhar para ele e ter a certeza disso, e não olhar para então a pergunta impregnar na minha mente. Você é meu, ? Afinal, eu ainda era a outra e agora mais do que nunca, mas ok, sem dramas demais.
Mudando o foco, eu pensei, enquanto assistia (não de verdade) o documentário agora sobre a Argentina e recebia um carinho do garoto nos meus cabelos, pensei em construir um futuro. Deixar de andar em círculos, cometendo sempre os mesmos erros, e começar de verdade a pensar em mim daqui três anos. E nesse devaneio de futuro, estava incluindo , mais algumas taças de vinho e uma televisão maior para repetirmos aquele momento mais e mais vezes. Inédito, logo que eu nunca me importei com o que me esperaria no futuro, não me importava se estava cometendo erros ou apenas andando sem um rumo certo e caindo sempre no mesmo ponto.
Quebrando meus devaneios e as carícias do garoto, que quase estavam agora me fazendo querer cochilar, o celular tocou. Não o de , claro, este continuava bem desligado. Desvencilhei-me dele e do edredom cheiroso e, desajeitada, recolhi minha bolsa que descansava sobre o tapete verde e retirei o maldito aparelho de dentro dela, verificando a foto de Mattew com meu cachecol lilás no visor, enquanto o toque era ainda emitido. Ok, voltar a deixar o nome de Mattew e não aquela foto para aparecer quando o garoto me ligasse. Brega.
Tive até vontade de atender o celular rindo e fazer alguma gracinha com meu amigo, mas estava ali e eu não estava querendo parecer uma espécie de retardada. E foi uma opção correta, conclui, ao escutar a voz de Mattew, que parecia nervosa demais para ser apenas uma ligação qualquer de final de semana.
- Lucy está internada, ela tomou quase a caixa toda de algum remédio. Não sei direito, os pais dela estão falando com o médico, mas eu nem ao menos tenho coragem de ir lá. – Ele estava chorando, eu sabia. – , ela estava na minha casa, foi culpa minha... Eu falei que ela tinha que parar de ser idiota quando se trata de Michael e... Porque ela tem, você sabe, e além do mais... Ela disse que ia ao banheiro e não voltou, meu pai arrombou a porta e ela estava jogada no chão e... – Após o meu alou ter desencadeado tudo isso, ele ficou quieto, escutei-o bufar nervoso. Mas eu era tão inútil quanto Mattew e até pior, não sabia o que falar. Estava em choque.
Por que diabos Lucy tinha que ter um amor platônico justo pelo professor que eu... Por quê? Não era mais fácil ela gostar do Cristopher, ou até do Joseph, mas do Michael não. Matt podia falar o que quisesse, a culpa na verdade era minha, que sabia desse platônico e não fazia nada para parar de machucar minha amiga.
Entretanto o que mais me doeu foi ouvir Mattew daquele jeito, ele que sempre foi o mais forte. Quando havíamos nos perdido de nossos pais, na Califórnia, aliás, eu sentei no concreto e comecei a chorar enquanto ele pedia informação e tentava fazer ligações que nos ajudassem. Eu era a que chorava, a inútil em horas tensas. Mas de repente tudo havia mudado, Matt estava chorando (e se ele estava chorando significava que era algo grave?) e eu tinha o dever de ir lá e ser útil, acalmar com palavras e abraços. Não servia para isso, seria bem capaz eu acabar desabando de mãos dadas com ele.
Mas mesmo assim eu estava disposta a tentar, deixar de ser a que andava em círculos e só sabia mesmo fazer pessoas como Lucy tentar se matar. Por isso agora minhas mãos suavam frias, enquanto dirigia até o hospital onde meus amigos estavam. Eu era a culpada, isso não saía da minha mente. Matt estava assumindo a minha culpa, mas eu tinha total certeza de que era a responsável. E engraçado (trágico, na real) que só agora eu percebia que Lucy não andava só comigo e com Mattew por conveniência. Lucy era nossa amiga, parte do nosso grupinho decadente, mas eu simplesmente fingia que não porque eu era a criatura mais ciumenta do mundo (drama, drama).
- Ela vai ficar bem. – disse, segurando minha mão, mas ainda atento ao trânsito. – Não precisa chorar, aposto que não foi nada grave.
E só então percebi que havia lágrimas escorrendo pelo meu rosto, quando usei a minha mão que não estava entrelaçada a de para passá-la em minha bochecha. Lágrimas quentes, revelando o meu medo, a minha culpa. Lucy não podia morrer, não a minha única amiga. A melhor, só agora eu percebia. Porque era ela quem me defendia quando Mattew vinha com suas piadinhas sem graça, era ela que conversava comigo sobre séries de terror, quem ficava olhando de soslaio para mim nas aulas de geografia para se caso eu cochilasse, ser acordada por Matt. Não era conveniência, era amizade. Não daquelas convencionais, até porque Lucy era excêntrica demais, mas era verdadeiramente amizade.
Afundei meu rosto no peito de , sentindo a maciez do moletom que ele vestiu antes de sair de casa, para que assim talvez seu cheiro fizesse aquelas lágrimas pararem de escorrer. Estávamos à frente do hospital, mais alguns passos e estaríamos dentro do ambiente horrível que era aquele lugar, por isso resolvi parar ali, para assim poder abraçar o garoto e não só ter sua mão entrelaçava a minha.
- Vai tudo ficar bem. – e repetiu pela milésima vez para mim, agora dando beijinhos em meu pescoço. – Calma, Amor. – e então fez com que meus olhos encontrassem os deles. Percebi que seu rosto estava corado e sabia que era porque o “amor” havia saído acidentalmente, assim como às vezes eu tinha vontade de chamá-lo. Mas eu achei bonitinho, de qualquer forma, e por segundos até pude esquecer o que me esperava dentro daquele hospital.
Capítulo 17
Poderia estar completamente feliz por daqui algumas horas estar perdendo mais uma vez todas as aulas de uma segunda-feira, se não estivesse ainda naquele inferno com cor branca e cheiro de álcool. Além do mais, eu estava exausta. Precisava não só de algumas xícaras de café ou de um energético poderoso que aquela cantina vendia, mas também dormir, ou pelo menos descansar por quinze minutos que fosse, assim como meus companheiros de aventura faziam. Mas embora cansada, não conseguia fazer muito mais do que fechar as pálpebras, contudo continuar bem acordada. E na verdade aquelas sete xícaras de café ingeridas e o energético em que agora eu dava goles, estavam me deixando elétrica por dentro, mesmo não vencendo totalmente a exaustão. Aliás, foram essas bebidas e um pacote de biscoito de chocolate tudo o que eu havia consumido desde quando cheguei no hospital. E era uma da madrugada de uma segunda-feira.
Se pelo menos algum médico descesse àquela cantina (que também fedia a álcool) e me dissesse que Lucy havia reagido, toda a dor no meu estômago revoltado por tanta cafeína, valeria a pena. Mas eu estava começando a perder as esperanças a cada hora passada, esperando boas notícias que eram sempre substituídas por aquela de sempre. Ela já havia sofrido a lavagem gástrica, mas o organismo absorveu parte do medicamento, então ainda continuava internada. A única notícia que poderíamos qualificar como boa era que os remédios ingeridos foram antibióticos e segundo o médico, eles não costumavam trazer tantos riscos de morte. Mas podiam.
E quando você já esperou durante horas, é nessas probabilidades que acaba se apegando e que te deixam com os pensamentos loucos. Oitenta por cento de chance de reação. Um número bom, foi o que repetiu para mim sempre que eu achava que desabaria a chorar novamente, mas eu queria os vinte faltantes também. Porque eram eles que estavam me atormentando, ferindo-me por dentro. Por eles não conseguia fazer como e Matt, descansar a cabeça sobre aquelas mesas da cantina e cochilar um minuto que fosse. E aquela porcaria de energético havia acabado.
- . – e cutuquei o garoto, estando disposta a uma conversa para poder ao menos aliviar algum por cento do nervosismo. – ... – Só não acordava o meu amigo também, porque sabia que, para ele voltar a dormir novamente seria um sacrifício, e aquela era o primeiro cochilo dele. Já o de , era no mínimo o quarto. – Não vou dormir, preciso de mais um desse. – Chacoalhei o energético vazio assim que ele abriu os olhos e me olhou (não mais sorrindo como das duas primeiras vezes que o acordei).
Na verdade, eu não esperava que ele fosse ficar ali, esperando Lucy acordar, apegando-se também àquela porcentagem de chance que tinham nos dado. E sinceramente eu fiquei esperando a hora que ele me cutucaria e falaria baixo, só para eu ouvir, que teria que ir embora, fazer o que quer que fosse. Afinal, acho que não sou a única a odiar hospitais e nem conheço ninguém que goste de passar um tempinho por ali, além de que, se eu estivesse no lugar de , não teria coragem de esperar uma desconhecida acordar de uma overdose de medicamentos. Mas ele estava ali, perguntando por notícias quando todos já estavam cansados de fazer isso, dizendo coisas que me animariam se a situação não fosse tão trágica e até tentando animar, com conversas alheias, as outras pessoas, como Matt e os pais de Lucy.
Estava impressionada e talvez até um pouco constrangida, sobre como ele estava sendo carinhoso em público, tratando-me com se realmente fossemos algo como namorados. Era ótimo ter alguém para não só me dar esperanças com palavras, mas também distribuindo beijos pelo meu pescoço, e até nos lábios, e segurar minha mão até ela ficar suada de nervosismo. Mattew havia dito, em uma das vezes que o acabou por cochilar, que toda aquela “coisa minha e de ” o deixava enjoado. Então eu apenas ri e corei, porque na verdade, eu nunca havia pensado em beijar um garoto na frente de Matt. Para falar mesmo a verdade, eu não gostava muito de demonstrar afeto em público.
- Ela acordou? – Neguei com a cabeça e ele bufou frustrado. – Acho melhor é você comprar algo para comer e não mais um desse. Melhor mesmo, seria você ir para casa e tentar dormir em uma cama confortável. – disse, retirando algumas libras da sua carteira e as estendendo para mim. – Seu irmão está vindo, não está?
- Não vou para casa. Se você quiser ir para sua, pode ir, mas eu tenho que ficar aqui. está vindo, mas só para deixar dinheiro para mim, já que gastei todo o meu com o café ruim desse lugar. – Dei um selinho em seus lábios, antes de levantar e ir até o caixa pedir outro Red Bull.
Até achei que depois dessa minha fala, ele iria voltar sua carteira para o bolso da calça, colocar o moletom de volta ao corpo e ir embora, aproveitar aquele início de madrugada de um jeito muito melhor, dormindo. Mas eu acho que estava mesmo tentando me deixar impressionada (ou existia sim alguém que gostava de hospitais), mais uma vez ele ficou e tomou até uns goles do meu energético para não voltar a cochilar novamente. E eu tinha até vontade de abraçá-lo a cada minuto passado ali comigo (às vezes eu o abraçava, embora não do modo como eu queria, apertando bochechas ao mesmo tempo), ou a cada vez que ele me tentava fazer rir com alguma piadinha sem graça.
Todavia, agora eu queria saber porque diabos ele havia levado meu irmão para um canto da cantina, longe de mim. Tentava fazer leitura labial (Lucy sabia, eu era ótima nisso), mas meus dons não estavam funcionando, talvez por tamanha exaustão. Ok, por que diabos “precisava falar com meu irmão naquele instante”? E por que estava parecendo tão... Compreensivo, concordava sério com tudo que falava? Mas eu também não tinha forças para levantar e ver o que estava acontecendo, principalmente porque estava cheia de cafeína no estômago e sentia que poderia vomitar tudo se levantasse naquele momento.
- , tem razão. Você tem que ir dormir, ao menos tentar. – Certo, eles haviam ido até um lado afastado de mim da cantina, para discutirem se eu deveria ou não ir dormir? Um complô, eu diria. – Eu não vou fazer nada durante a manhã – Ignoremos que nunca faz nada. -, então eu fico aqui e qualquer notícia eu te ligo, prometo. Você vai com para a casa dele e tenta dormir, pelo menos um pouco.
Pensei até em continuar sendo teimosa e mais uma vez chata, bater o pé no chão e dizer que só sairia daquele hospital quando minha amiga acordasse, levasse o tempo que quisesse levar. Contudo, realmente meu estômago estava revoltado e eu tinha a impressão de estar fraca, mas ao mesmo tempo, acordada demais. E talvez se eu continuasse com minha teimosia, daqui a algumas horas, estaria acompanhando Lucy, deitada em alguma cama daquele hospital. Além de isso não me parecer convidativo, pelo menos eu tinha a certeza de que me ligaria caso qualquer notícia, fosse ela boa ou ruim, fosse dada. Então ao menos eu não precisaria me preocupar em ligar a cada uma hora para o celular de Mattew, que, aliás, ainda estava dormindo quando eu fui embora daquele hospital, com de mãos entrelaçadas comigo.
- Você deveria se considerar mais gay por isso do que por cheirar parecido com pêssego. – disse, entre risadas escandalosas, após ter me informado que Sex And The City fazia parte da sua lista de filmes favoritos. Mas realmente o garoto tinha gostos duvidosos, havia percebido isso em duas horas de uma conversa com ele, enquanto o meu sono ainda não vinha, mesmo estando deitada em uma cama tão confortável quanto a minha. – Na verdade, o fato da Disney é ainda mais gay.
- Na verdade, nós temos que parar de questionar minha sexualidade em todas conversas. – e então selou mais uma vez os meus lábios. – Ainda sem sono?
Concordei com um balaço positivo de cabeça. Mas já eram cinco da madrugada, nossa conversa já estava ficando tediosa e, após duas horas de riso, o sono deveria estar chegando, eu pensava. Ao menos tinha isso, os risos que me faziam esquecer onde eu estava horas atrás, embora meu estômago avacalhasse tudo. E pelo menos agora eu conseguia pensar menos em Lucy, talvez pelo lugar ser confortável e não cheirar a álcool. Então eu me aproximei mais do garoto, e depositei minha cabeça em seu peito, fechando assim os olhos, tentando ativar o botão que me fazia sentir sono e por mágica, dormir.
Todavia era meio idiota tentar dormir após tantas doses de drama e cafeína, sabia que o máximo que conseguiria ali era descansar as pálpebras e relaxar o corpo, nem ao menos quinze minutos com meus sonhos eu conseguiria ter direito. Mas também eu não poderia ficar puxando conversas aleatórias com o garoto, que tinha o direito de dormir, mesmo que eu não conseguisse fazer o mesmo. Então eu fingi. Fechei os olhos e fiquei daquele modo por um bom tempo, até quando parou de fazer o carinho bom no meu cabelo e, ao olhar para seu rosto (apenas com um olho para caso ele ainda estivesse acordado) notei que ele já estava dormindo perfeitamente.
Assim me deixei devanear, mas meus pensamentos não conseguiam ir muito além do garoto ali ao meu lado, respirando calmamente de olhos fechados, parecendo até meu. Ao lembrar dos instantes antes da ligação de Mattew, lembrei também de uma das coisas que havia pensado comigo mesma, quando disse que sabia onde aquilo ia parar. Mas, na real, eu nem ao menos fazia idéia. Podia saber que beijos em uma cama rendiam muito mais do que só isso e podia prever instantes como previ aquele. Contudo eu não podia prever o que aconteceria comigo e com o garoto e isso me dava um medo estranho.
Porque, na verdade, ninguém nunca sabe como as coisas acontecerão com as outras pessoas que participam de suas vidas e o certo é não se importar exatamente com isso. Mas minha amiga estava correndo risco de vida em um hospital e me sentia, então, no direto de pensar se algum dia alguma coisa pudesse impedir os meus dias com . Assim como uma porcaria de exagero de medicamentos estava me impedindo de ter minha amiga bem.
E quando o meu celular tocou, até pensei em acordar o garoto e mandar ele atender para mim, mas seu sono parecia muito profundo e minha sede por notícias estava me deixando inquieta. E ainda não havia passado das cinco e quarenta da manhã. Então, mesmo tendo medo das notícias que gostaria de me dar, atendi o aparelho e tratei logo de apressá-lo quanto ao motivo da ligação.
Que ela acordou. Que ela acordou. Diz que ela acordou. Eu fechei os olhos e fiquei repetindo essas frases na minha mente, como se isso fizesse, caso a notícia fosse ruim, as coisas se reverterem. Era o máximo que eu podia fazer, fechar os olhos, fazer figas, encolher-me naquela cama e repetir na minha mente a frase que eu gostaria que meu irmão me falasse. Eu nem ao menos sabia como se rezava e na verdade agora isso era a coisa que mais eu queria saber. Mas eu também não sabia se Deus atende pedidos de pessoas que na verdade nunca falaram com ele, a não ser em hora trágica. E com raiva de mim mesma, por não saber mesmo fazer nada para ajudar Lucy (e na verdade ter feito ela cometer aquela tentativa de suicídio), lágrimas precoces começaram a escorrer pelo meu rosto, enquanto ainda repetia para mim mesma. Que ela acordou. Que ela acordou. Diz que ela acordou.
E, então, abri os olhos, arregalei-os na verdade e meu coração pareceu perder o rumo, o modo certo de bater. Meus dedos que antes faziam figas, agora ajudavam os outros três a ferir minha própria mão. Ela ingeriu muitos remédios, . Foi o que disse. Não conseguiu reagir. Depois o resto eu não ouvi mais, como se meus ouvidos tivessem sido tapados e apenas aquelas duas frases anteriores dele estavam sendo gritadas e gritadas de novo. Não conseguiu, consumiu muitos remédios, reagir.
Se pelo menos as porcentagens não tivessem me dado tamanha esperança, o choque até seria menor. Mas eles disseram, oitenta por cento de chance de reagir. E quem estava ali era Lucy, a garota que sempre reagia, mesmo quando eu ficava com o seu platônico, ela reagia. Nem ao menos tinha raiva de mim, apenas invejinha. E por que desta vez ela não havia conseguido? E se usassem aqueles aparelhos que dão choques? E se eu pedisse para Deus?
Na verdade, o que mais eu queria era poder dizer que foi tudo uma brincadeira da minha mente, que na verdade eu havia dormido (embora parecesse impossível) e que aquilo foi só um pesadelo. Até tentei abrir e fechar os olhos, como se isso me fizesse acordar caso fosse um pesadelo. Mas não era, eu realmente estava ali, inteira, ou não. Meu estômago ainda estava revoltado e ainda podia sentir o efeito da cafeína.
Era impossível controlar as lágrimas, mesmo que eu fizesse um esforço tremendo para parar de chorar daquele modo, fazendo até um barulho irritante. Não queria acordar o garoto, na verdade, eu queria chorar sozinha a minha culpa naquela história, mas no mesmo momento que pensei, vi os olhos dele se abrirem. E quando me olhou percebi que levou um pequeno susto dentro de si. Ao menos, não precisei falar nada (não sei se conseguiria se ele precisasse de palavras naquele instante), ele sabia. Então retirou o telefone celular da minha mão, já que eu nem ao menos tinha tido a capacidade de retirar o objeto da minha orelha. Colocou-o sobre a cabeceira da cama, enquanto eu continuava ouvindo o barulho irritante do meu próprio choro.
E me abraçou, puxando meu corpo para mais perto do dele. Nenhuma palavra, nenhum consolo, porque não havia nada a ser dito, nenhuma palavra que pudesse fazer aquele choro calar e nenhum consolo suficiente. Abraçada a ele, ao menos, eu não sentia mais aquela vontade de antes, de gritar até me faltar o ar e eu ter a sensação, de que se não parar para respirar, pudesse morrer. Ao menos daquele modo eu não me sentia tão vazia, porque havia todo ele ali, tentando completar aquela sensação de estar incompleta, de ter tido parte de si mesma arrancada.
Então de repente, eu me sentia tão fraca, não fisicamente, mas por dentro, como eu sempre tive medo de me sentir. Dependente daquele abraço e de mais vários, de algum modo que refugiasse minhas dores e culpas. Algo de que eu mais precisava do que meu próprio orgulho besta, que gritava por dentro ao me escutar chorar. . Eu precisava tê-lo para mim, não só agora, não só naqueles instantes antes da ligação de Mattew, eu precisava que ele fosse meu refúgio para sempre. Meu pedaço de brilho, minha parte faltante, motivo de suspiro e daquele sorriso que quase é riso. Que ele fosse aquele cujo me deixasse como se fosse totalmente... Plena.
Capítulo 18
Segundas-feiras, que nunca foram assim tão convidativas, talvez nunca mais me pareceriam boas, mas aquela em especial estava me matando por dentro. Nela estava completando uma semana desde a morte de Lucy, e era inútil caminhar até a escola, pela primeira vez após o ocorrido, ao lado de Mattew, sem lembrar do pedaço que faltava e que faltaria ainda mais quando chegássemos ao nosso destino. Não só ao notar uma cadeira vazia ao meu lado, ou substituída por outra pessoa qualquer, e não só porque não haveria ninguém para tagarelar sobre professores no horário de intervalo, sentados sob uma árvore que ela mesma havia dito ser nossa. Na verdade, cada espaço de tempo era incompleto e até parecia, pelo menos para mim, que estávamos estopados em uma melancolia infinita.
Mattew estava mais magro, eu havia reparado, talvez fosse por culpa dos cigarros, que ele começou a fumar ainda em maior quantidade, como um louco, desde o dia que Lucy foi internada. Tão magro a ponto de parecer surgir uma curva nas suas costas e que, se algum vento batesse ali, ele fosse voar. E eu até deveria, se não estivéssemos em tal situação, contar quantos cigarros ele já havia fumado desde que nos encontramos para ir até a escola, mas naquela segunda-feira eu não me importava. Principalmente porque eu também estava com um entre meus dedos, tragando-o insistentemente, como se daquele modo, ao soltar a fumaça, pudesse soltar tudo aquilo que estava preso dentro de mim.
- Você não deveria fazer isso, . Se você viciar nessa porra, não consegue parar mais. – foi a única coisa que disse. Aliás, foi a única fala durante todo o trajeto até a London Central High School. Em resposta, apenas concordei com um aceno positivo de cabeça. E traguei mais uma vez a porra, como ele mesmo havia falado.
E eu tinha impressão de que poderia passar mais uma semana, ou até mais um ano, e nós continuaríamos daquele modo silencioso de viver, cada um carregando uma culpa dentro de si e que se tornava cada vez maior enquanto estávamos cada vez mais próximos de algo que nos lembrasse de Lucy. Como aquele colégio. Que, talvez apenas como um choque ao voltar a entrar por aqueles portões, lembrando que na última vez que estivemos ali, Lucy havia cutucado um peixe e fedia como o próprio, a sensação de melancolia infinita se impregnava também ali, em cada corredor, em cada sala. E também sentia algo estranho, pela primeira vez reparava nos rostos das pessoas e não era só porque todos nos olhavam com compaixão, mas porque eu tentava achar um que me fosse familiar. Tentava encontrar a própria Lucy, como se ver seu corpo em um caixão não fosse suficiente para me fazer crer que ela não voltaria mais àquela escola.
Algo nos meus braços me deixava inquieta e eu sabia exatamente o que era: vontade de abraço. Já havia sentido muito aquilo, quando estava por perto e eu tinha impulsos de jogar meus braços em volta de seu pescoço e cheirar seu ombro. Uma demência, talvez. Todavia, desta vez não era o garoto quem eu queria abraçar (talvez mais tarde). Queria abraçar Lucy, queria ter um minuto que fosse com ela. Um tempo que seria suficiente para lhe dizer o que não disse em quase três anos de uma amizade e, ainda, de bônus, dar um abraço. Afinal, quantas vezes eu havia abraçado a garota? Sempre ela me abraçava e, tudo o que eu fazia, era desfazer.
Entretanto, não tinha como pedir as desculpas que gostaria, dizer que ela havia sido importante a cada segundo e que eu nunca mais faria aquela coisa que a fazia sofrer. Então o que me restava, não que isso fosse tirar a culpa totalmente de mim, era concertar as coisas agora, mesmo sendo tarde demais. Como o próprio Mattew havia dito, eu não sabia o que existia após a morte, principalmente quando você próprio se mata, mas eu sabia que se Lucy tivesse a chance de voltar e estar ali, andando por aquele corredor conosco, ela iria sorrir para mim, até agradecer, quando eu fizesse o concerto das coisas.
- Lucy ficaria feliz, se ela não estivesse morta. – Mattew disse, sorrindo, antes de continuar a seguir para a sala, enquanto eu apenas o olhava ir, parada em frente à porta da sala dos professores. Sabia que aquilo não era maldade, sabia que ele estava feliz por eu finalmente ter tomado coragem, mas ele também precisava dizer algo que me fizesse refletir, para eu nunca mais deixar para depois. Ele tinha os motivos dele, tinha também a culpa dele. E talvez, o que não nos fizesse desabar, era saber que a culpa não era só de um, e sim dos dois.
Tinha até motivos para desistir, como , por exemplo, que já havia passado uma semana, e ele ainda continuava comprometido com Emma. Mais idiota ainda era eu, que mesmo sabendo disso, continuava freqüentando a casa dele, até me acostumando com o papel que antes eu tanto repugnava. Assim tinha motivos para não só desistir, mas talvez voltar a errar novamente, usando Michael como uma espécie de vingança, como eu também sabia que ele me usava. Sua namorava havia ido embora e ele então passava alguns minutos comigo de vez em quando, para aliviar a raivinha, do mesmo modo como eu gostaria de fazer com naquele momento.
Contudo, Lucy havia morrido, morrido por ele. Pior do que ter ocasionado a morte da minha amiga seria se eu continuasse com o joguinho imbecil entre uma aluna e um professor, ambos em situações parecidas, um usando o outro para aliviar frustração. Por ela eu estava disposta a esperar o tempo de Michael naquela sala, para que quando ele saísse, nós pudéssemos ter a conversa que eu passava e repassava agora na minha cabeça.
E também, ainda estava ali, na sala praticamente ao lado da dos professores, então logo após minha conversa com Michael, poderia tomar coragem e entrar ali para ter a conversa com ele. Talvez se fosse o caso, até terminar (mesmo que nós ainda nem tivéssemos algo) o que eu tinha com o garoto. Por mais que não voltar a casa dele, ou mesmo nem sequer poder abraçá-lo fosse assustador, melhor seria, porque ao menos daquele modo eu não estaria sujando minha própria imagem.
- Eu sinto muito por Lucy, sei que já te disse isso semana passada, mas eu nem consigo imaginar o quanto deve ser difícil para você. – Eu tinha apenas quinze minutos para conversar com meu professor e passar as falas que já havia preparado, após isso o sinal bateria e nós teríamos que terminar nossa conversa uma outra hora e isso não estava exatamente nos meus planos.
- Ninguém consegue ter idéia. – disse, antes de engatar a fala programada. – É por ela que te chamei para essa conversa. Não quero que se sinta culpado, você nem ao menos tem direito, nem ao menos sabia, e já tem muita gente assumindo a culpa pela morte de Lucy. Mas, para ser objetiva, Lucy gostava de você. Pode ser até idiota falar isso, deve ter mais um monte de garotas que também gostem de você, contudo, com ela era diferente. No começo até achei que ela gostava mesmo era de Joseph, o que até me causava nojo, mas o que ela tinha por ele não se passava da tara anormal dela por professores...
Michael me escutava calado, sem nem ao menos uma expressão facial que me acalmasse ou atormentasse, neutro. E era particularmente estranho ter que explicar Lucy e seu jeito para o meu professor de sociologia, porque além da vontade de chorar, tinha a parte de mim que estava inconformada. Afinal, era para ele saber daquela história, era para ele conhecer Lucy tão bem quanto Mattew e eu juntos. Talvez até devesse ser Lucy ali, no meu lugar, pedindo o término de uma aventura entre professor e aluna. Quem sabe até não fosse Lucy quem seria capaz de tirar as fotos da namorada cafajeste de Michael das molduras na casa dele. Mas eu sabia que esses devaneios de um futuro que não existiria e que nem ao menos eram meus, era só um reflexo da culpa que ainda me consumia.
- Naquele dia em que subi para a sua sala e nós começamos tudo, bem, Lucy ficou chateada e eu descobri que, na verdade, ela gostava mesmo era de você. E era por isso que Mattew ficava bravo comigo toda vez que eu escolhia você, porque ele também sabia que Lucy estava se ferindo cada dia mais, a cada vez que eu ficava até mais tarde em sua sala. – Então, emendando a história trágica, pulando e de vez em quando acrescentando partes inúteis, acabei chegando ao fim. – Eu sei que eu tenho culpa, mas eu também sei que ela morreu por você. Por isso eu quero falar o que eu deveria ter falado muito antes: quero terminar esse joguinho que nós fazemos, quando eu nem ao menos deveria ter começado. Sei que isso não trás minha amiga de volta para mim, mas pelo menos assim eu me sinto um pouco menos distante dela, porque eu estou fazendo o que ela gostaria que eu fizesse.
- Entendo. – Finalmente falou, agindo para a minha surpresa, abraçou-me e logo engatou novamente. – Não assuma a culpa, você só tem dezessete anos e não é obrigada a acertar sempre. Você errou sim, mas não por isso você é a culpada. – E quando o abraço se desfez, voltou suas mãos aos bolsos de sua calça. – Não tive a oportunidade de conhecer Lucy, a não ser como professor, mas se você fez isso por ela, se você disse todas essas coisas por ela, - e eu até sei das vezes que você a socorreu, quando ela resolvia se trancar no banheiro – se fez tudo isso, significa que ela foi uma boa pessoa. E, não sei se você se lembra, mas como eu disse em um dos dias que estivemos juntos, as escolhas sempre foram e serão suas. Não quero e nunca quis te forçar a nada.
A vontade de chorar até se multiplicou naquela horinha e eu até comecei a aliviar o peso da culpa, tudo como conseqüência da fala inesperada dele, mas eu não gostava de derramar lágrimas em lugares públicos. Até porque derramar lágrimas sem ter alguém para abraçar, dividir a dor, logo que após sorrir voltou a entrar por aquele portão do colégio, parecia incompleto. Embora parecesse que haviam faltado falas, talvez um obrigada da minha parte, ou mesmo um tchau antes de ele entrar novamente, sabia que havia feito o que deveria, sabia que enfim toda aquela nossa história havia tido um fim.
Era engraçado notar como em todo aquele tempo eu havia feito somente drama em cima de drama (como sempre), ao supor que não tinha escolhas para tal situação, que Michael não aceitaria um fim. Então, ele havia aceitado tão rapidamente, sem nem ao menos perguntar mais porquês, e talvez por isso agora eu continuava parada no mesmo lugar, tentando assimilar os fatos. E aquela fala voltava para me lembrar o quanto idiota eu conseguia ser, As escolhas sempre foram e serão minhas, e eu nem ao menos via como alcançar qualquer uma delas naquele tempo. Na verdade, no fundo eu sabia que eu era má. Muito má. Sabia que as escolhas estavam ali, mas não as fazia por simples birra, ocasionada pelo ciúme tosco que eu tinha. Queria ao menos ter alguma coisa que Lucy não poderia ter: Michael. Já que o Mattew ela dividia comigo.
Pelo menos agora eu me sentia mais... Leve, com um peso a menos na minha consciência. Minha parte por Lucy eu havia feito, embora atrasada, mas também tinha outra coisa que deveria fazer, buscar explicações, e aproveito o dia para fazer isso. Seria como um dia para colocar todas as coisas a limpo. E por isso agora eu voltava aquele corredor, mas não mais parei em frente a sala dos professores e, sim, a sala ao lado, do diretor. Ou do .
Sem nem ao menos bater (talvez como Benjamin mesmo afirmou algum dia do passado, eu devesse mesmo entrar para uma escola de bons modos), girei a maçaneta e entrei na sala de recepção, onde a recepcionista gorducha e de voz nasal escrevia em alguns papéis. E veja só, só agora eu havia notado aquele letreiro em cima da mesa, descobrindo assim que o nome da personagem coadjuvante era Alianna. Mas sem me apegar a esses detalhes de final de história, sorri para Alianna e fui a caminho da outra porta, sendo impedida logo em seguida, pela voz nasal.
- Você deve me informar antes para o que está aqui. Aliás, está agora tomando o seu café da manhã.
Mas o que eu iria falar? Que eu ia deixar de ser idiota e amante do garoto ali dentro que se deliciava com alguma comida matinal? Não. E também não poderia mentir. Então nem ao menos fiz o sacrifício de virar meu corpo para encarar Alianna, e nem mesmo a cabeça, apenas dei mais um passo e girei a maçaneta. Tudo muito rápido, abrindo a porta e encontrando sentado na poltrona verde-musgo, com os pés sobre a mesa de vidro, e (que bizarro!) uma rosquinha em mãos. Comecei a rir, ao notar o garoto corar e voltar as pernas para debaixo da mesa, mas Alianna atrapalhou novamente a cena.
- Eu disse para ela não entrar, . Mas ela nem ao menos parou para me ouvir. – Mentira! Eu havia sim parado. – Nem quis dizer por que está aqui. Se o senhor quiser...
- Tudo bem, Alianna, pode voltar à recepção. A deve ter algo importante para falar comigo. – disse, colocando o seu café da manhã de volta à caixa, e após Alianna sair da sala, sorriu para mim sem graça. – Tudo bem? – Depois de um silêncio de alguns segundo, já que eu estava tentando formar o discurso na minha cabeça, para que ele não saísse de modo confuso, ele voltou a falar. – Sabe... Eu ia mesmo te mandar chamar, estava querendo experimentar essa poltrona de verdade! – Mexeu nos braços da poltrona e gargalhou, porém logo parando, quando eu não o acompanhei no riso. – Brincadeira, eu só estava com saudades.
- . – Mas então eu desengatei de um modo ridículo a falar. – Sabe que quando nós nos conhecemos, na verdade, quando você se tornou mais que o filho do diretor, eu pensei: Vamos apenas permanecer assim. Queria ficar com você o tempo todo, rir de fatos alheios, assistir filmes e comer doritos juntos. Mas Emma apareceu na história, desarrumando tudo o que eu achava que estava se arrumando aos poucos. Achava que nós estávamos ficando, indo devagar, ou algo assim. Mas descobri que na verdade eu era sua amante. E eu nunca quis ser isso de ninguém, só para constar. Você pode ter o melhor cheiro do mundo, pode me fazer sorrir de coisinhas bobas e fazer com que eu me sinta completa. Contudo, , não é por isso que eu vou querer você em qualquer situação, representado qualquer papel. – Parei para respirar, organizar os fatos que na verdade não tinham ordem certa, e até dei um passo para frente, antes de continuar. – E quando eu achava que você ia mesmo terminar com a fotógrafa, eu pensei, de novo idiotamente, Então agora nós finalmente vamos ter algo e poderemos fazer um caminho juntos, apenas com o cuidado de olhar para onde estaremos indo. Mas não, já se passou uma semana desde a sua promessa e continuamos na mesma. Só queria mesmo saber, você é meu? Você é meu de verdade? Porque eu estou o tempo todo com você, assistindo tv, bebendo vinho, e quando você me liga, de repente, eu não me sinto tão sozinha.
Até continuaria a falar, porque parecia haver dentro de mim porções de palavras a mais querendo escapar, sem nenhuma ordem certa, mas eu continuaria com o modo rápido ativado, se o ar não estivesse me faltando. E aquela raivinha, antes pequenininha até, agora estava ajudando a me sufocar, dificultado a entrada do ar.
E o que estava pensando? Porque após todo o meu discurso dito de forma rápida, tudo que ele fazia era sorrir. Sorrir. Daquela forma que não é apenas um sorriso e sim um quase-riso, como se o que eu tivesse falado fosse uma quase-piada. Certo, sei não, mas aquilo até me lembrava o dia em que nos conhecemos, naquela mesma sala, daquele mesmo modo, e até com aquele sorriso quase-riso no rosto do garoto, mas não porque havia falado demais e sim porque havia levado um susto. Um quase-déjà vu.
Mas quando eu recuperei o ar, disposta a falar mais um bocado de coisas, ele estava na minha frente, como mágica, fazendo-me perder a vontade de falar. Queria abraçá-lo, queria beijá-lo. Todavia eu não podia, não como das outras vezes que o impulso falou mais alto, porque eu havia acabado de “brigar” com ele e seria sem lógica se eu o beijasse logo em seguida. E por que diabos ele ainda sorria?
- Bom, eu não tenho anéis. Ainda. E também acho que você não gostaria de um pedido tão formal, até vejo suas bochechas corarem. Fica bonitinho. – E riu, aproximando-se mais – Mas eu posso ajoelhar se você achar necessário para poder, assim, perdoar a minha demora com as coisas. Bom, senhorita , você aceita namorar comigo? – Então ele deu uma risadinha, talvez ao notar minha expressão de surpresa. Até quase-ajoelhou, mas sem graça eu o puxei para cima pela manga de sua camiseta.
Quando voltou a ficar na posição correta, a poucos centímetros de mim, por um instante quase esqueci tudo e deixei o impulso falar mais alto. Mas antes eu tinha que fazer uma pergunta crucial, ou então aquele peso ainda ficaria em mim e o beijo não seria o mesmo sem a resposta que eu gostaria.
- E Emma?
- Vejamos... – Colocou as mãos em minha cintura e se aproximou mais. Ok, eu não ia agüentar. – Nesse momento, ela deve estar quase chegando na Suíça, para ficar não só dois meses e sim por um bom tempo. Foi o que ela decidiu, após eu ter terminado. Bem, eu estava certo, fotografar Alpes Suíços rende mais do que qualquer coisa que possa haver em Londres. – Uniu então nossas testas, sorrindo daquele modo bonitinho que eu gostava.
- Sim. – eu disse com uma voz um pouco afetada, referindo-me a última pergunta que ele havia feito, antes de me explicar sobre o paradeiro de Emma. – Sim, eu aceito!
Então com seus lábios de volta juntos dos meus, com sua língua acariciando a minha e podendo passar minhas mãos por aquele cabelo, eu me sentia vazia de todas aquelas coisas ruins, porém cheia de todas aquelas coisas boas e gostosinhas. E agora um déjà vu estranho tomava conta de mim, mas achei que nem posso classificar aqui como o tal. me beijava contra porta, a mesma que naquele dia que nos conhecemos havia me machucado e, para falar a verdade, teve algo daquele dia que não quis assumir para mim mesma.
Fora achar o garoto bonito, eu tive um pequeno devaneio naquele espaço de tempo que não disse nada, apenas senti a dor no meu braço, encostada a porta. Queria naquele dia que ele fizesse exatamente o que estava fazendo agora, prensando-me contra aquela porta.
Mas deixando essas coincidências e quase-déjà vus de lado, devo deixar também claro, que fora os fogos de artifício que pareciam estourar, sentia como se uma vontade de gritar e rir tomasse minha garganta, em meio ao beijo. Queria gritar, explodir minha felicidade. Porque agora não havia mais perguntas, agora era o que exatamente era, e nem todos os dramas de antes. Afinal, era meu refúgio, meu brilho particular, a parte que faltava de mim mesma. Era minha vontade de rir sem ao menos ter escutado algo engraçado, era a vontade de gritar de alegria exagerada. E lembrando agora do que Mattew uma vez me disse, ao tentar explicar o que era amar, eu estava arrebatada. Parecia flutuar naquele momento, assim como tinha necessidade de cantar extasiada. Assim como ele havia dito, senti-me exatamente como se estivesse sendo delirantemente feliz.
- Eu te amo. – sussurrou em meu ouvido, com a respiração falhada, assim que o beijo terminou. – Exageradamente.
Tinha motivos, afinal, de sentir tudo o que sentia, porque agora sim poderia dizer, era meu. E eu o amava também. Exageradamente.
Epílogo
Tão estranho era voltar a entrar em um avião, depois de sete anos sem nem ao menos tocar em passagens aéreas, ou mesmo ver uma. E o fato mais cômico era que eu havia perdido o costume e estava até com um pouco de medo da decolagem, pegar uma turbulência ou fazer pouso forçado. Atravessaríamos um oceano, o que na verdade nunca me assustou muito quando de férias ia para a Califórnia com meus pais, mas agora mais velha eu temia essas coisinhas raras, mas que aconteciam. Até poderia dizer que não era motivo para pânico, nem mesmo para preocupação com a falta de conhecimento de todas as burocracias encaradas antes de viajar, no aeroporto. Além do destino e do aeroporto serem os mesmos de sempre, embora que na minha última viagem era uma criança, conhecia lugar e o passo a passo. E, todavia, mesmo sem meus pais ou meu irmão, eu tinha meu namorado para me guiar.
Seria a primeira vez de na Califórnia, o próprio me disse que nunca havia pisado no continente americano, e estava me jogando perguntinhas sobre lá desde que nossa viagem foi confirmada. Embora eu não recordasse muito dos fatos e dos costumes californianos, justamente por não ir ao local há sete anos, contava para ele algumas coisas, apenas para saciar a ansiedade. Mas também, havia passado dias infiltrado em sites de busca, pesquisando sobre a Califórnia, e eu até achava engraçado, embora não fosse surpresa, quando ele desengatava a falar sobre algo que nem mesmo eu sabia. Ou mesmo quando ele respondia a própria pergunta, se eu dissesse que não sabia, e ao ser questionado por mim sobre o porquê de ter perguntado se já sabia, respondia-me que era só para ter certeza. Demências de .
Demências que já sabia de cor, às vezes até supondo suas respostas se eu fizesse determinada pergunta. Coisas de um casal que conhece um o outro em detalhes, sabendo até o que o outro pensa com apenas um olhar. E mesmo nosso namoro não ter ainda completado um ano, nós já éramos assim. conhecia meu modo de ser, assim como eu também já conhecia o dele e, o melhor, nós amávamos até as demências um do outro. Amava o com humor nerd e sem graça e ele amava a com loucura por pisos frios e aromas de pêssego.
Então, não podíamos ser um casal de namorados melhor, assim como ele era a parte que faltava de mim, eu era a dele. Nos agüentávamos, isso é primordial e ainda tínhamos gostos iguais. Sabíamos até o melhor modo de fazer surpresas um para o outro, como aconteceu quando, em um dia de chuva, edredons e televisão, me falou que nunca havia conhecido a América. Assim, logo quando tive meu tempo sozinha em casa, fiz uma ligação que há tempos não fazia e programei minha viagem de formatura, sem colegas de classe, mas com meu namorado.
Até levaria , mamãe pediu para que eu o convidasse – A Califórnia estava ainda mais incrível, ela havia dito – mas o garoto se rejeitou a pegar o avião e rever as duas pessoas que nos deixaram aqui em Londres naquele dia nublado. Seriamos então só eu e naquele avião, rumo a um lugar com mais calor do que aquela ilha molhada e fria costumava ter.
E, assim como , ao sentar a minha poltrona ao lado dele, que ficou com a janela ao seu lado, minhas mãos suavam também de ansiedade. Seria a minha melhor viagem, eu sabia e por isso não via a hora de pousar logo, quando o avião nem havia ainda levantado voo. Estava feliz não só por isso, mas por finalmente as coisas estarem de um modo menos trágico e dramático. Não havia mais Michael do modo como antes e sim de um modo amigo, como nunca imaginei que seria. Não havia também mais Lucy, mas ao menos eu não carregava mais a culpa que antes me emplacava, guardava apenas as boas recordações. E tinha Mattew, que seria para sempre meu melhor amigo e nem tinha como eu me cansar dele, assim como do meu irmão. E quanto aos meus pais, embora eles fossem ainda um pouco desligados demais, eu amava-os e, sinceramente, estava morrendo de vontade de chegar logo a Califórnia, não só porque teria minha melhor viagem e sim, para revê-los.
- Estava pensando... Devo comprar rosas para sua mãe? Um cd para o seu pai? – o garoto me perguntou, um pouco depois do avião ter levantado voo, passando as mãos por meus cabelos, enquanto eu observava o céu pela janela, com a cabeça apoiada em seu ombro. – Para eles me acharem mais legal.
- Não se preocupe com isso, amor. – disse, em meio a risos. – Mas, se você quiser comprar algo, compre óculos de sol para minha mãe, ela tem alergia ao perfume das flores, e compre tênis para o meu pai, ele tem uma coleção disso e não de cds.
- Acho que resolvi namorar uma garota cujos pais são... Caros demais para se presentear. – disse, dando uma risadinha e me fazendo levantar a cabeça para poder analisar sua expressão e não mais o céu.
- É. Digamos que você, , entrou em uma fria. – e semicerrei os olhos, observando ele fazer o mesmo e concordar com um aceno positivo de cabeça. – E nem ao menos tem para onde fugir.
- Logo que eu sou seu. – completou, sorrindo do modo bonitinho, que me fazia sorrir também, mesmo se eu não quisesse, e sendo obrigada a logo em seguida ao sorriso, beijar-lhe os lábios, depois apoiando minha cabeça de volta em seu ombro, para assim sentir o meu cheiro favorito, o dele. De pêssego.
FIM
n.a: Eu estava terminando de escrever minha primeira fiction quando tive a idéia para a segunda, fiquei empolgadíssima e cheguei a escrever cerca de sete capítulos até descobrir que a minha ideia não tinha sido pensada apenas por mim, e que na verdade já havia uma fiction parecida com a minha no ar. Broxei total. Pior do que um bloqueio criativo é você ter milhões de coisas na sua cabeça mas não poder mais colocar no papel. Mas então uma pessoa me disse "Priscila, você é mais criativa que isso!". E ela tinha razão. Cheguei em casa e rabisquei papéis até a ideia nova surgir e a música ao fundo era Who'd have known da Lily. Resgatando da história "original" apenas alguns personagens, consegui montar por completo minha segunda fiction. Essa que vocês acabaram de ler.
Demorei muito mais pra desenvolver cada capítulo, cada cena e tudo o mais. Muitas coisas que vocês podem não ter entendido ou mesmo nem ligado, foram muito pensadas. Como se cada frase tivesse uma mortal importância. É por isso que eu gostei tanto de escrever essa fiction (ok que com o passar dos dias você percebe que poderia ter feito melhor), e por isso que eu quis que alguém mais pudesse entrar nessa história dramática/fofa/como-quiserem-qualificar. Então, tudo o que eu posso fazer é agradecer vocês todas que acompanharam a fiction, que comentaram ou mesmo que apenas gostaram em anônimo. Muito obrigada também à minha beta sempre muito eficiente e linda. Lily Allen, Radiohead, Aerosmith, McFly - em especial ao Tom - e todas as minhas demência que foram aí colocadas.
Provavelmente não escreverei mais fictions (eu juro que tentei, mas não consigo mais), no máximo coisas para eu mesma ler. E, bem, esse ano eu estou meio que de férias até dezembro, mas ano que vem pretendo começar minha faculdade. Assim, agora é tempo de estudar. Então isso é como um "tchau" para esse mundo que eu gostei muito de participar. É isso. :D
Quer falar comigo? http://meadiciona.com/prisnok
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Nota da Beta: Fics assim não podiam acabar. mimimi. ): Ok, eu vou sobreviver sem emails da Priscila com suas fics lindas e etc, no meu email. Vou sim. *drama* Enfim, algum erro? Emails para scheffer.lara@gmail.com ou tweets para @BestDoTobi. Obrigada! xx.