Espero que as palavras que aqui escrevo me tragam mais paz que as palavras escritas em seu túmulo.
Um dia finalmente vou tomar jeito e depositar essa maldita carta — e talvez até todas as outras que estão trancadas há uma considerável quantidade de tempo na última gaveta da minha escrivaninha — em seu túmulo, tentando não notar todas as rosas que seu marido te deixou. Sim, rosas. Flores muito bonitas, mas Deus sabe o quanto você é alérgica a elas. Era. Mulheres mortas sequer respiram. Obviamente não sofrem de reações alérgicas.
Sei que prefere tulipas, . Me lembro bem de quando lhe dei de aniversário aquele quadro enorme, todo cheio de tulipas. Você ficou tão feliz que encheu meu rosto de beijinhos falando que era o presente mais bonito que já tinha ganhado. Não sei o que aconteceu com ele. Você o vendeu antes de se casar ou continuou com o quadro? É bem provável que não. Penso que se ele tivesse sido pendurado em sua casa, seu marido talvez tivesse o bom senso de perceber que você gosta mesmo é de tulipas e não estaria colocando rosas em seu túmulo. Mas não é como você pudesse reclamar, nem nada. Afinal, você está morta.
Eu gostaria de ter aquele quadro. Seria mais uma das muitas coisas que me lembrariam de você, mas tenho esse medo de que algum dia eu acabe me esquecendo de alguma coisa a seu respeito. Tendo um quadro que me lembre do seu amor por tulipas, mesmo que inicialmente me faça explodir em lágrimas, não vai me fazer perder esse pequeno detalhe. Assim como também não quero me esquecer de que você adora batata frita com nutella e que tem covinhas somente na bochecha esquerda.
Mas se eu tivesse que arrumar um objeto seu para cada coisa que me lembre das coisas que você gostava, , vou acabar tendo que assaltar a sua casa e seu marido não vai ficar muito satisfeito com a situação, então eu vou ser preso novamente. Dessa vez por uma coisa que realmente fiz.
Pra ser sincero, ainda tem vezes que me pergunto se você me amava de verdade. Estou ciente, é claro, de que possuía mais sentimentos por mim do que pelo cara com quem se casou, mas será que me amava mesmo? Às vezes eu nos visualizo em algum lugar onde costumávamos brincar aos dez ou onze anos, quando éramos apenas amigos. Eu costumava inventar mentiras sobre absolutamente tudo o que você perguntava. Não por maldade nem nada, mas eu gostava que você me achasse inteligente, porque aí me abraçava e me dava um beijo na ponta do nariz. Eu me sentia o cara mais sortudo do mundo por você me amar — um amor de amigo, ainda. Então o tempo passou e você começou a perceber que era mais inteligente que eu, mas isso não te impediu de distribuir abraços e beijos nem nada. Aliás, os beijos naquela época já tinham mudado de localização para os lábios e algumas vezes o pescoço. Mais uma vez eu tinha a sensação de que você me amava, e não preciso nem comentar sobre a época em que nossos beijos evoluíram um pouco. Agora não sei mais se você era tão feliz comigo quanto parecia ser.
Respeito sua decisão de ter se casado com outro, mas isso não quer dizer que eu a entenda. Nós nos pertencíamos, mas você simplesmente resolveu jogar tudo fora por achar que eu tinha cometido um crime que não era do meu caráter. Você, mais do que ninguém — exceto talvez a minha mãe — sabia que eu não seria capaz de matar ninguém. A única explicação plausível é você ter entrado em tão profundo desespero que aceitou se casar com outro só para que um "assassino" deixasse de te amar. Foi um pouco inútil. Eu ainda te amo, , e não tenho esperança alguma de sair dessa condição.
Estive pensando muito sobre isso ultimamente. Você já se foi há tanto tempo, mas não consigo deitar a cabeça no travesseiro à noite sem pensar em você — principalmente em como você estaria se estivesse ao meu lado. Estou, inclusive, escrevendo uma carta para uma pessoa morta. Sabe, por muito tempo eu simplesmente esperei que você saísse da minha mente, mas o amor que sinto por você é como uma doença sem cura. Eu estou em estado terminal.
Tentei encontrar um pouco de felicidade depois da sua morte e descobri que gosto muito de viajar. A França é esplêndida, . Sei que sempre quis visitar Paris, mas nunca teve a chance. Nunca tive tanto dinheiro quanto seu marido, nem nada, mas eu te levaria lá sempre que quisesse. Visitei outros lugares também. A Holanda é um lugar maravilhoso e tenho certeza que você se apaixonaria pelos campos de tulipas. Só que sabe, às vezes fico com essa nostalgia. Essa vontade de voltar para casa. Voltar para você. Aí me lembro de que não vai sair de onde está. Volto assim mesmo e passo a tarde inteira chorando. Acabo de voltar de uma dessas programações.
Estou bem, só para o caso de estar se perguntando. Já houve dias piores e provavelmente ainda vai haver pior, afinal, é da minha vida de quem estamos falando. Eu percebi ultimamente que me sinto muito mal no momento que estou sofrendo, mas depois eu ainda consigo me lembrar nitidamente do quanto dói. Me lembro de esperar por você na delegacia na vez em que fui preso. Horas incontáveis que não passavam. Você não apareceu e eu comecei a me perguntar o que podia ter acontecido. Pensei o pior, mesmo estando atrás das grades e comendo refeições horríveis e sem a quantidade necessária de nutrientes para garantir o bom funcionamento do corpo. Pensei que era a pior coisa que me tinha ocorrido — e naquela época, provavelmente era — desde o meu nascimento: ficar preso em um lugar imundo sem você, e pior, sem poder sequer ligar ou te procurar. Naturalmente também imaginei que jamais passaria por situação tão horrível, mas nisso eu estava errado. Saber de sua morte transcendeu todos os momentos de tristeza da minha vida inteira.
Agora estou em um apartamento pequeno de pintura descascada e amarelada totalmente sozinho — até o gato de rua que encontrei noite passada fugiu, mesmo eu tendo alimentado o maldito. Eu sei onde você está, mas não vai sair daí por um bom tempo. Só não consigo me decidir se neste momento estou mais triste do que naquele. Meu consolo agora é estar estabelecendo algum contato com você, mesmo que você nunca seja capaz de ler isso (a não ser que vire um zumbi e que eles sejam bem mais inteligentes do que nos quadrinhos, é claro). Mas em cada pensamento meu sobre o que escrever aqui, , eu consigo ouvir sua gargalhada ecoando em minha mente e sua voz dizendo o quanto eu sou bobo por pensar tal coisa. Quando penso em dizer o quão ruim foi você me dizer que tinha aceitado se casar com outro assim que saí da delegacia, achando ainda que eu era o responsável pela morte de um homem, consigo ouvir o seu silêncio. Consigo imaginar sua boca se franzindo como se falar no assunto fosse desagradável demais. Não são memórias, até porque você me contou aquilo com muita convicção, achando que estava fazendo a coisa certa em não se casar com um homem horrível e devolvendo-lhe o anel que lhe havia sido oferecido por mim. Anel muito bonito, por sinal, que hoje já não tenho mais. Não por ter entregado a outra pessoa, como você me disse para fazer, mas sim porque o perdi. Devo ter deixado cair em algum lugar por onde andei. Espero que tenha sido na Holanda.
Mas eu não estou ressentido, . Eu sei que você teria sido muito mais feliz comigo e às vezes desejo que você tivesse se arrependido de ter se casado com outro, mas nunca quis que você ficasse infeliz por causa disso. É só algum jeito estúpido e distorcido de tentar amenizar minha infelicidade. Então sempre que isso me vem à mente, percebo que se nós tivéssemos nos casado como no plano original, você não estaria morta e eu estaria te abraçando sem a mínima intenção de te largar, ao invés de estar escrevendo uma carta para colocar em seu túmulo, tentando inutilmente trazer um pouco de paz a mim mesmo. Isso comprova minha teoria de que você tenha quebrado o frágil equilíbrio do universo ao se casar com aquele babaca, porque nós dois deveríamos ter ficado juntos. Mas aí você contrariou o curso que a vida deveria ter seguido e acabou pagando por isso. Você às vezes faz essas burradas, mas não acho que merecia morrer. Não merecia mesmo.
Antes que você pense que estou sendo frio ao falar com tanta naturalidade sobre a sua morte, deixe-me explicar: eu não estou. Só resolvi não usar nenhuma expressão de eufemismo ridícula como "passou dessa para melhor", "bateu as botas" ou "tomou o chá da meia-noite" (essa é especialmente brega). Vamos ser realistas: você morreu. Você não vai ler essa carta. Eu sou um homem esquisito. O time de hockey para o qual você torcia não vai ganhar esse ano a não ser que troquem de goleiro.
Realmente acredito que algum dia você possa ler essa carta, apesar de tudo. Não pela teoria zumbi — que, aliás, é muito boa —, mas porque acredito verdadeiramente que a vida aqui não é o fim. Acredito que algo esteja planejado e torço para que você tenha ido para o melhor lugar possível. E eu sei que não tem como saber se minhas esperanças foram comprovadas, mas se algum dia, se algum dia eu me sentir repentinamente feliz, vou saber que foi por isso. Felicidade não aparece mais com frequência na minha vida, você sabe. Sou um cara um tanto quanto solitário.
E isso, é claro, me leva ao assunto final desta carta. Por mais que eu tenha me divertido, é melhor acabar por aqui antes que eu fique mais perturbado. Você sabe muito bem que psicólogos me dão arrepios. Acho que já deu pra deduzir que as únicas pessoas com quem eu falo são o carteiro, o cara do meu cartão de crédito e, é claro, as pessoas com quem eventualmente preciso falar quando viajo. Nunca fui uma pessoa muito sociável, mas gosto de ficar em lugares cheios de gente. Quieto, em meu canto, consigo às vezes ouvir todo o tipo de conversa. Pequenos diálogos que me lembram de que os seres humanos que restam não são cybermen disfarçados. Às vezes alguma mulher vem falar comigo, mas graças aos céus percebe que não estou interessado logo de cara. Descobri que nunca vou amar ninguém além de você e se algum dia eu me contentar com a segunda melhor, vai acontecer alguma coisa idiota no mundo como o céu cair, a terra ser engolida por um buraco negro e todas as coisas que já existiram acabarem (inclusive o chocolate, o que seria péssimo).
Inicialmente eu pensei em escrever apenas uns dois parágrafos, assim como nas outras cartas. Talvez eu esteja especialmente deprimido esta tarde, por isso acabei abrangendo muito mais assuntos do que eu gostaria, mas não me arrependo. Penso que essa será a última carta que escrevo, mas ainda tenho a ligeira impressão de que não falei sobre tudo o que eu gostaria. Essa é minha vida e não acho que vá mudar muito até eu morrer. Só desejo visitar mais lugares, conhecer coisas diferentes. Eu aprecio a vida, sabe. Há tantas pessoas morrendo aos poucos e que só queriam mais um pouco de tempo. E em contra partida há também aqueles que fazem de tudo para encurtar seu próprio período de vida. Elas me enojam, sobretudo porque eu não posso dar a vida que querem tirar delas mesmas para você. Vidas não podem ser negociadas desse jeito. Infelizmente. Essa seria uma solução fácil para a minha solidão. Pena que a vida não seja fácil, mas continuo aqui.
P.S.: Se você leu até aqui, provavelmente você não é , porque ela está morta. Por favor, coloque essa carta novamente onde eu a deixei (só pra não ter engano, é o túmulo de mármore negro que fica perto da única árvore do cemitério. Não tem como errar).
P.P.S.: Se você leu até aqui e é o marido da , então você é um idiota. Espero que eu tenha deixado o assunto das rosas bem claro. Mas nem se atreva a colocar tulipas no túmulo dela de agora em diante. Somente eu posso colocar tulipas, então esqueça.
P.P.P.S.: Se você não leu porcaria nenhuma e somente pulou para os P.S.'s, então provavelmente você é a . Sei que você adora uma boa leitura, mas também sei que minha escrita pode ser totalmente maçante e nesses casos você prefere que se chegue logo ao ponto. Como um zumbi, — ou qualquer coisa que você seja, sinceramente, eu não me importo, desde que esteja lendo — a leitura também pode ficar confusa, então se pegar a primeira letra de cada parágrafo, você vai achar a mensagem de toda a carta. Precisamente.
Fim.
N/A: Me desculpe por você estar morta, ok? Eu nem sei direito o que dizer, porque essa one-shot foi um desafio. Pra esclarecer, eu sei que existem muitas cartas dessas, mas eu quis ficar não só na história que construí, mas também no diálogo e nos pensamentos que ele tem sobre a vida. Fiz também a jogada com os capítulos, que foi, sem dúvida, a parte mais difícil. Ela é meio que diferente de tudo o que eu já escrevi, principalmente pelos sentimentos abordados porque, pra ser sincera, não acho que alguém possa sentir isso nessa intensidade. Deixo aqui essa one-shot para sentir a sensação de não ser inútil mesmo, e porque gostei um pouco dela. Um beijo para quem lê e pra minha beta também, muito obrigada :3