Dias como aquele faziam o povo da grande Belo Horizonte pensar em como seria bom ter uma praia por perto. O Sol raiava no céu como diamante, tornando a presença das nuvens quase imperceptível. Até as árvores pareciam mais verdes que o normal, destoando do clima outonal que geralmente preenchia as manhãs de quarta-feira. O equilíbrio natural das coisas parecia… equilibrado demais.
E , submersa em problemas e divagações mentais, destoava de todo aquele cenário.
“Justo”, a voz murmurou em sua cabeça, açoitando uma pobre alma que já sofria demasiadamente com as lástimas da vida. “Você não combina com nada disso. Você não pertence mais a este lugar”. Ela estava sentada na beira da cama, um dos braços largados ao lado do corpo e o outro segurando com força aquela carta imbecil. Seus cabelos estavam desgrenhados, desarranjados. Não havia nada além de uma grande camisa em seu corpo. Não havia nada além de miséria em seu coração. Aquela carta era a gota d’água. Se um dia dissera que a vida estava uma droga, havia exagerado. O pedaço de papel branco, com traços de caneta azul, era o ápice de tudo. Agora, sim, a vida estava uma droga. Era o ponto máximo do caos tomando conta da vida de . A merda da carta de “despedida” (se é que ela pode chamar assim) de seu merda de ex-namorado.
Soluçou, relendo o que Alex escrevera no papel. Os olhos se encheram de água e, mal passando das primeiras linhas pintadas em uma letra garranchada (ele provavelmente estava com pressa), desabou em um choro constante. Não só por estar definitivamente sozinha no mundo, mas pela pessoa que mais amava ter sido a única que, de fato, quis apunhalá-la pelas costas.
“O ambiente da sala estava à meia-luz, recebendo iluminação apenas da comédia romântica que passava na televisão e que amava. “Juntos Pelo Acaso” era provavelmente o filme preferido da moça, que o definia como “feito para nos iludir” porque, para ela, nenhum final era tão perfeito quanto aquele filme demonstrava.
encontrava-se sentada entre as pernas de Alex, seu namorado há mais de nove meses, enquanto ambos dividiam um pote de sorvete de napolitano que já se encontrava no fim.
– Não ri. – lambuzou-se com o sorvete e fez careta para a reação dele, limpando o rosto com as costas da mão. – Eu fiquei distraída com o Messer a olhando dessa forma.
– Por que você ama tanto esse filme mesmo? – Ele perguntou, puxando a colher que ela já levava até a boca em direção à sua.
– Porque o Messer muda pela Holly, e eu amo como esses filmes hollywoodianos tentam nos fazer acreditar que um cara gato e galinha como ele tem conserto.
Alex levantou um pouco para se apoiar melhor e assim poder enxergar seu rosto, que ainda encarava a televisão encantada.
– Se você não acredita que as pessoas mudam, por que você assiste filmes desse tipo, ? – A garota o olhou, estranhando a confusão que o namorado transmitia pela expressão facial. – Não é meio masoquista querer se iludir assim?
– Então você concorda que as pessoas não têm conserto?
– Você não me respondeu.
– Pretendo, assim que você me disser onde quer chegar. – Colocou o pote de sorvete em cima da mesinha de centro, girando em seguida para ficar de frente para o Alex.
– Não, eu não acredito. Para mim, uma vez babaca, sempre babaca.
– Então, é nisso que eu não concordo. – Juntou as mãos em frente ao corpo, endireitando sua postura e adquirindo uma mais séria. – Eu acho que as pessoas mudam quando querem mudar, o problema é a falta de estimulo delas. A diferença entre a sua definição de conserto e a minha, é que eu não confio facilmente nas pessoas. Existe muita gente mal intencionada no mundo, que quer apenas se divertir. Eu mantenho a guarda para não me machucar.
– Não se machucar? Tipo, alguém partir seu coração?
– Não necessariamente. – relaxou mais, encostando-se mais ao namorado. – Acho que por culpa de tantos acontecimentos trágicos na minha vida, eu acabei me acostumando às dores. Um simples “eu não gosto de você”, “eu estou apaixonado por outra pessoa” e similares, não me afetam tanto.
– Ok, isso é estranho. – Alex franziu o cenho e a garota riu. – Explique melhor.
– Você sabe bem a facilidade que eu tenho de perder as pessoas, já te contei isso. – Ele assentiu, indicando com a cabeça que ela continuasse. – Eu tenho trauma disso. Quero dizer, tenho trauma de perder quem eu amo, que eles me deixem.
– Você confia em mim?
– Que pergunta é essa, Alex? É óbvio que eu confio em você.
– Não. – Alex puxou seu rosto, para que ela olhasse em seus olhos. – O que eu quis perguntar era se você confia em mim o suficiente para saber que eu nunca vou partir seu coração, que eu nunca vou te deixar.
suspirou, ainda indecisa sobre o que responder. Era óbvio que confiava nele, era óbvio que era tarde demais para que não o fizesse. Mas ainda tinha medo do que poderia acontecer se ela confessasse. Então, completamente hipnotizada pela forma como aquelas belas íris conseguiam confortá-la, tinha certeza do que deveria responder.
– Não existe no mundo alguém que eu confie mais que você.”
Era quase cômico.
Não só tardes de filme com palavras de ternura, dias ensolarados em chácaras, festas de família. Não só os bons momentos que tivera com o namorado passaram por sua cabeça. Os dias ruins, sombrios, complicados: eles estavam lá, vívidos em sua memória. contava com aqueles dias todas as vezes em que o medo de perder Alex passava por sua cabeça. Por que, se nas situações ruins eles estavam juntos, haveria razão para que ele fosse embora?
Ela descobriu há algumas horas que sim, havia uma razão. Uma razão loira e bonita, mais digna de ser pedida em casamento do que ela. E, inclusive, descobriu que Alex estava certo. “Uma vez babaca, sempre babaca”. As pessoas não mudam, pelo menos não a longo prazo. Alexandre continuaria sendo o idiota que ela conheceu há um ano atrás e ela mesma nunca estaria feliz por muito tempo, visto que tinha o peculiar dom de perder as pessoas que amava. O mundo continuaria a mesma porcaria, não pararia ou repararia no sofrimento de uma mulher de coração partido. Era apenas mágoa, não é? Todos passam por mágoa. , especialmente, é perseguida por insistente malignidade. Isso nunca afetou muito as pessoas ao seu redor (pelo menos, não as que lhe eram importante) e não começaria a afetar tão cedo.
“Porque nada é mutável.”, a insistente e mansa voz alertou. “Você deveria desistir de tudo”.
respirou fundo, os olhos fincados no bilhete escrito pelo seu ex-namorado. Não precisava ler aquilo mais vezes para se dar conta da realidade que a tomou: estava sozinha, em prantos, no meio de uma manhã de Sol. Aquela cena se igualava a tantas outras vezes em que sofreu por alguém. Era quase fatigante pra ela. Notar que, não importa os caminhos que tomava, sempre estagnava na mesma posição – sozinha, chorando, tão insuportavelmente deplorável. Desta vez, desistir parecia mais chamativo do que pegar os cacos de si que estão espalhados pelo cômodo. Desistir soava tão mais simples, prático e rápido. Tão mais atraente do que simplesmente “recomeçar”.
“Chega de tentar. Isso faz de você patética, sabia? Tentar e tentar para cair e cair cada vez mais.”, a voz alertou. O sussurro, antes tão calmo e controlado, tomou tom autoritário. A cabeça de latejou, fazendo-a fechar os olhos, tentando ignorar todas aquelas palavras. A voz nunca foi mais forte que ela. Toda aquela tempestade de pensamentos ruins nunca sobressaiu sua força de vontade. Mas, daquela vez, lutar para ignorá-la parecia difícil. E, num deslize em impossibilidades, a garota acabou por pensar que talvez não devesse lutar contra aquela voz. Porque talvez a voz só estivesse alertando-a do que deveria fazer. respirou fundo, abrindo os olhos vagarosamente. Lágrimas de resistência escorregavam por suas bochechas enquanto, tempestuosamente, aceitava aos conselhos da sua própria escuridão. “Isto. Pra quê sofrer, afinal? Podemos acabar com isso. Juntos. Chega de tentar.” – Chega de tentar. – Ela murmurou, tão baixo que de seus lábios não saiu som.
Ela já era perita em recomeços. Queria tentar algo novo – e definitivo – agora.
ainda apertava a carta com força entre os dedos. Com as mãos tremendo e os olhos embaçados, ela lutou contra a fechadura da porta de seu apartamento. Sentia um certo alívio ao notar que não conseguia abri-la, contudo, não se permitiria desistir, não agora. Essa sensação se esvaiu completamente quando conseguiu girar a maçaneta. E, sem olhar para trás, correu pelo corredor, passando como um flash por , seu vizinho de apartamento e antigo amigo, que não fazia ideia do motivo de tanta pressa.
Ao olhar para o chão, notou um papel largado. Apanhou-o, ainda olhando para os lados, verificando se não tinha ninguém por perto. Viu a porta do apartamento de escancarada, ficando ainda mais confuso. Levou seu olhar à carta, tentando decidir se a desamassaria para ler ou não. Afinal, aquilo seria demasiadamente invasivo, ela não lhe pertencia. Ele não sabia, porém cada minuto de sua hesitação era menos um minuto de uma oportunidade que ele não encontraria novamente, e que se arrependeria para o resto de sua vida. dependia daquilo, dependia de sua curiosidade infame, a mesma curiosidade e invasão que ela sempre detestou.
Então começou a ler.
Seus olhos se arregalaram gradativamente, sua cabeça girava de uma forma que o deixava realmente tonto. Aquele bilhete, aquelas palavras, as lágrimas que foram ali deixadas… Tudo se tornava razão para fazê-lo acreditar no pior. Dessa vez não oscilou, correu o mais rápido que pôde, seguindo o caminho que antes havia seguido. Beirando ao desespero, o garoto empurrou a porta que dava acesso ao terraço do edifício com toda força. E então a viu.
Ela estava a um passo de uma queda de dezesseis andares. A um passo de acabar com sua própria vida, ele entendeu. E não ficou feliz com a conclusão, tampouco teve qualquer reação.
sentiu seu coração apertar, sendo tomado pelo mais puro pânico.
“O barulho de saltos do outro lado da porta começou a irritá-lo, de tal forma que em segundos se viu andando apressadamente em direção a mais uma típica conversa de vizinho com sua atípica e bela vizinha, . possuía esse prazer em, independentemente do momento, atazanar com pretensiosas e humoradas palavras.
– De onde você pensa que está voltando, mocinha? – Ele perguntou ao abrir a porta, encostando-se no batente.
Era mais uma de suas muitas conversas de corredor.
parou a caminhada lenta (feita, talvez, para evitar barulhos àquela hora da madrugada) e virou lentamente o olhar para o vizinho. moveu a lateral do lábio, quase sorrindo, e arqueou uma das sobrancelhas.
– Oi, pai? – fez carranca, cruzando os braços.
Ele parou para reparar na moça. Nas curvas delicadas de seu quadril e cintura, no volume mediano dos seios, cobertos pela blusa de cetim azulada, no rosto manchado pela maquiagem da noite anterior. Ela deveria estar parecendo um caco, um caco com pré-ressaca. Mas, para , não havia paisagem mais bonita de se admirar em plenas horas da noite.
– Não, sério. – Ele balançou a cabeça, se desencostando do batente da porta. – Desde quando a gente trocou de lugar e quem chega em casa pouco antes do Sol nascer é você?
– Abalei seu mundo, não é? Mas eu causo esse efeito nas pessoas. – sorriu branda, provavelmente ainda bêbada. Ele gostou de vê-la mais solta que o normal, não o respondendo com xingamentos ou patadas que poderiam fazer gente inocente chorar. Era um lado menos afiado de uma menina que se esforçava para parecer grosseira, forte e imponente. Era quase como ver a verdadeira (com uma boa dose de álcool de bônus).
– Aonde você estava, ? – perguntou, achando graça do estado dela.
– Numa festa, . – Ela respondeu, encarando-o diretamente nos olhos. Vendo que ele ficou quieto, apenas retribuindo o olhar por muito tempo, pigarreou: – Mais alguma informação que você e sua falta do que fazer precisam? Ou eu posso ir pra casa e tomar um banho frio?
– Deus, nem bêbada você é delicada.
– É a porra das quatro da manhã e a dor de cabeça que vai começar já já me afetando. Não estou malvada por sua culpa, ao menos dessa vez. – riu brevemente, fazendo acompanhá-la. Ela virou-se de lado, abaixando o corpo para tirar os sapatos. A saia que usava era tão curta que ele quase contemplou sua calcinha, prendendo os olhos naquele novo ângulo interessante de que descobrira em sua vizinha. – E você? – A ouviu perguntar, de repente.
– O quê?
Não seria preciso estar sóbria pra sentir que ele estava secando a bunda dela.
Ele observou respirar fundo, já de pé com os saltos na mão.
– O que você está fazendo acordado à essas horas?
Então se lembrou. Lembrou-se como estava confortável em sua cama, tranquilamente olhando para o teto, com um corpo esbelto e feminino ao seu lado. Lembrou-se que estava no nirvana pós-sexo com uma amiga, hm, colorida. E que saiu correndo para fora daquele conforto apenas para irritar sua tão irreverente vizinha.
– O que você acha que eu estava fazendo? – Perguntou, sorrindo descaradamente, dando a chance de ligar os pontinhos. Bem, ele estava na frente do próprio apartamento apenas de samba canção, e o relógio marcava mais de quatro da manhã. Brincando ele não estava. Ou melhor, estava.
sorriu enviesadamente.
– Desculpe atrapalhar sua foda. – Falou, marota. riu da palavra que ela usou. Em nenhum dos mundos, o natural ou sobrenatural, preferia falar “foda” ao termo “fornicar”.
– Você pode recompensar isso de uma maneira mais legal, sabe. – Ele disse, tão malicioso quanto ela.
Hesitou um pouco quando assentiu, caminhando em passos leves até sua frente. Quando estava muito próxima dele, ao ponto de fazê-lo sentir o aroma de vinho escapando por seus lábios bonitos e manchados pelo batom da noite, quase sentiu que ela o beijaria. Quase. Porque, ainda sim, conhecia a vizinha com a palma da mão. Ela amava muito ao namoradinho pra fazer aquilo.
E, ao contrário do que pensou, roçou o lábio no dele levemente. Sorriu com os dentes à mostra, deixando um curto riso sair pela boca. Arrastou uma das mãos (geladas) pelo peitoral desnudo do homem, tocando cada parte de músculo tão bem esculpido e trabalhado. Chegando ao cós de sua samba canção, ela parou, levando a mesma mão até a bochecha dele.
– Tenha um bom resto de noite, .
E virou-se, sumindo para dentro do próprio apartamento antes mesmo que pudesse processar o fato de que seu toque o havia arrepiado mais que o comum.”
– O QUE VOCÊ PENSA QUE ESTÁ FAZENDO? – andou apressadamente na direção da moça, parando no meio do caminho quando estendeu um braço em sua direção. Ele havia tomado aquilo como um aviso. Tinha certeza que ela se jogaria se ele se aproximasse mais.
estava em cima do parapeito, literalmente na beirada do terraço. Um passo e tudo estaria perdido. Um passo e tudo estaria acabado.
– Você. – Dentre tantas palavras de dúvida e desespero que poderia soltar, o máximo que fez foi deixar a surpresa por ver , seu vizinho, amigo do que pareciam eras atrás, bem ali.
– Eu. – Respirou fundo, reafirmando para ela. Quem mais poderia ser? Era óbvio que o destino ia gozar com a cara dela e enviar logo ele. Logo o cara que a alertou tantas vezes sobre o Alex. Logo o cara que ela tanto menosprezou e fez questão de expulsar de sua vida. Logo aquele que, por ironia da vida, ela tinha abandonado e não o contrário. – Me diz que você não está prestes a fazer o que eu estou pensando.
fechou os olhos com força, a cabeça abaixada na direção do chão. Podia sentir o vento fresco passar por suas pernas desnudas, arrepiando cada centímetro de seu corpo. Como quando tocava , em algum momento de insanidade. Como quando beijava Alex.
Poderia ser Alex ali, não poderia?
Mas não. Ela não era destinada a ter finais felizes. Não seria seu ex-namorado aparecendo para tentar impedi-la, seria justamente seu carma. Seu maldito vizinho.
“Mande-o embora. Ele já não te irritou o suficiente tantas vezes?”, a voz em sua mente alertou. Ela sentiu o nariz arder. Uma vontade monstruosa de chorar cresceu em seu peito. “Isso é apenas uma prova de que você não pode ter paz em nenhum momento. Não enquanto não pular.” – Hm… – resmungou, atordoada. Abriu os olhos e algumas lágrimas caíram deles. Se iria fazer o que pretendia, precisava admitir isso para mais de uma pessoa. Precisava expulsar dali. Ele não se importava, não é mesmo? Ninguém se importava.
“Expulse-o, . É seu momento.”, sua parte sombria ressaltou.
– Vá embora, . – Disse, os lábios tremendo tanto quanto suas pernas.
– Moça, sai da sacada. Você é muito nova pra brincar de morrer. – se pronunciou, tentando fazê-la rir. Não obteve sucesso, no entanto, e quase fraquejou. Mas lembrou-se que era uma vida, a vida de em risco, então tentou de novo: – Me diz o que há, o quê que a vida aprontou dessa vez? – Era óbvio que ele sabia. Não teria corrido até ali se não soubesse todas as frustrações e decepções que rondavam . Mas ela não precisava saber disso.
girou os calcanhares para contemplar o horizonte, assustando-o por um momento. Ela não pularia ainda, no entanto. A voz aveludada de tinha um poder estranhamente calmante. Só queria desviar o olhar daquele homem, do infortúnio que ele representava. Nunca admitiria para si, mas sabia que tê-lo ali era perigoso.
– Você é surdo? – Questionou, o timbre calmo demais. O olhar caiu dos prédios de Belo Horizonte para a queda que teria se desse mais um mínimo passo. Seu interior estremeceu. Era muito, muito alto. – Eu disse pra ir embora.
– E desde quando eu obedeço as pessoas? – questionou, tão mais calmo que ela. Não sabia de onde aquela calmaria havia surgido, mas era algo muito útil ao momento. Talvez fosse o medo de perder definitivamente. Vê-la encarar o destino que pretendia seguir era muito doloroso.
Ela, esquecendo-se da situação em que estava por um segundo, soltou um riso irônico.
nunca mudava.
“Sacolas de feira. Muitas sacolas.
odiava, do fundo do coração, quando sua mãe avisava que estava indo almoçar com ele. E isso acontecia todo bendito domingo.
Comemorou mentalmente quando viu a faixada do prédio em seu campo de visão, passando rapidamente pelo saguão e se deparando com ao chegar perto do elevador. Ela o mediu de cima a baixo, do jeito sempre tão superior, e não disse uma única palavra.
Ele soltou uma respiração pesada pela boca.
– Você deveria ser uma boa dama e me ajudar com as sacolas.
virou-se para encará-lo com o cenho franzido, soltando uma risada.
– Você realmente não tem nenhuma noção de cavalheirismo, . – Disse, brincalhona. A moça estava de bom humor, o que era ótimo. Sempre seria maravilhoso vê-la rindo de coisas simples. Mas haviam duas coisas erradas naquela situação: (1) verdadeiramente precisava de ajuda com as sacolas da feira; (2) ele se lembrou do que vira na madrugada de sábado.
Foi no clube do bairro, onde estava tendo uma festa na piscina com open bar. Era o tipo de evento predileto de , mas não mais. Não mais desde que vira Alexandre O-Namorado-Almofadinha Paiva aos beijos com uma gostosa qualquer. Até mesmo no mundo de , que não era lá o exemplo de homem com etiqueta, beijar alguém que não é sua namorada é considerado traição. Ele só não sabia como contar à , à bonita e charmosa , que ela estava levando um chifre.
O elevador se abriu e os dois entraram, batendo as mãos quando foram os dois, ao mesmo tempo, apertar o botão do penúltimo andar.
– Que tal você colocar essas sacolas no chão? – perguntou, o tom de obviedade expresso na voz.
– Eu queria mesmo que você desse uma de garota dos meus sonhos e me ajudasse com isso. – levantou um pouco as sacolas, fazendo-a arquear a sobrancelha. – Tudo bem, você é uma péssima garota dos sonhos. Já me conformei.
Colocou as sacolas no chão, movimentando os pulsos várias vezes para tentar voltar a senti-los.
– Em que tipo de sonhos seus eu estou, huh? – Ela questionou, um resquício de sorriso em seus lábios o animando. – Ah, deixa que eu respondo: eróticos.
– Moça, você tem um ego maior do que eu pensei. – Ele confirmou com risadas.
– Odeio quando você me chama assim. – resmungou, cruzando os braços.
– Mas é isso que você é. – abriu um sorriso verdadeiro ao dizer. – Uma moça. – Piscou, fazendo-a rolar os olhos. No entanto, a coloração de suas bochechas a entregaram. Ela gostou do elogio, mesmo que ainda odiasse aquela forma dele chamá-la. – Ele não te merece. – Ele acrescentou, ao fim, baixo ao ponto de pensar que não ouviria.
Mas estava enganado.
A expressão da moça se tornou nublada ao mesmo tempo em que as portas do elevador se abriram. pegou suas sacolas com pressa e começou a andar apressadamente na direção de seu apartamento, na esperança de que não falasse mais nada. A garota era muito insistente, para seu azar.
– Você disse o que eu ouvi que disse? – Ela perguntou assim que parou na frente da porta. Ele a olhou de soslaio, negando com a cabeça. – , eu te ouvi bem. “Ele não te merece”.
– Sim. – decidiu responder, engolindo em seco. Colocou as sacolas da feira no chão e virou-se para encarar a face confusa de .
– Por que você insiste nesse ódio pelo Alex? Ele é um cara do bem e me faz feliz. – A moça contestou, mas o olhar estava aflito.
Se ela visse o que viu, talvez não aguentasse. Vai ver fosse a missão dele alertá-la sobre o quanto o namoradinho era um bosta.
– Ontem, na festa do clube. – começou calmamente. – Eu o vi beijando uma loira.
o encarou fixamente por alguns instantes, soltando uma gargalhada depois.
– Ah, tá. – Ela debochou. – E você estava sóbrio, sem nenhuma putinha no seu colo, e conseguiu notar, dentre tanta mulher pra você paquerar, o meu namorado.
– Ei, não precisa me ofender! – Ele exclamou, fazendo uma careta. – Eu estou falando o que vi, você acredita se quiser. E volto a repetir: ele não te merece.
– Certo, . E quem me merece, então? – o olhou com seriedade, cruzando os braços. – Você?
ficou calado, realmente ponderando em respondê-la. E o fez.
– Alexandre é um bosta, um idiota que se esconde atrás da máscara de bom moço. Mas você e eu sabemos o que ele era antes de começar a namorar você, . – Frisou, desviando o olhar das íris inquisitivas da mulher. – Eu sou o que você vê. De uma maneira descuidada, eu sempre mostro o quanto você é importante pra mim. Eu só estou te avisando de uma coisa porque eu quero o seu bem.
– O meu bem? – soltou uma risada seca, começando a irritar-se. – Você está se ouvindo? Você está falando mal do namorado, tentando compará-lo à você. O Alex podia ser muitas coisas antes, , mas agora ele me ama e não me trairia. Eu não admito que você fale esse tipo de coisa.
riu amargamente e abriu a porta do apartamento, confirmando com a cabeça.
– E eu não admito ver você sendo chifrada e não poder fazer nada.
Ele pegou as sacolas e começou a entrar, deixando uma estupefata bem na porta de seu apartamento.
– Tenho uma solução pra isso, então: você cuida da merda da sua vida e não me enche mais o saco. Que tal? – A voz embargada de soou, fazendo-o olhar para trás. Ela apertava os lábios, segurando um choro.
– … – tentou, sentindo-se mal por vê-la daquela forma. Era exatamente como ele não queria que ela ficasse por causa de Alex, mas agora ela estava assim por causa dele próprio. Ótimo.
– Vai se foder, . Espero que tenha entendido que agora nem “bom dia” eu quero ouvir de você. – avisou, passando a mal pelos cabelos num gesto de estresse, e saiu dali pisando forte.
Eles não se falaram desde então.
E não foi por falta de tentativas da parte .”
– Venha, desce daí. – soou completamente rouco, dando um passo que passara despercebido por . Ela ainda mantinha o olhar preso no horizonte, focada entre toda aquela dor que insistia em dilacerar seu coração já feito em pedaços tantas milhões de vezes atrás, e divagava em sua súbita decisão de acabar com todo aquele sofrimento de uma vez. – Deixa eu te levar pra um café. – tentou chamar sua atenção mais uma vez, tendo certeza que sua audácia fora de hora funcionaria, porém não obteve sucesso. – Pra conversar... te ouvir... e tentar te convencer… – E uma coisa era certa: o inferno congelaria antes dele deixá-la acabar com a própria vida daquela forma. Não a moça do 16A, que mesmo com tanta implicância e tormento, o fez se apegar tanto. Não aquela mesma moça que, apesar de todos os xingamentos direcionados a ele, já invadiu seu apartamento tantas e tantas vezes, atrás de comida porque decidira que estava com preguiça de fazer para si própria. Não aquela mesma moça maluca que andava pelos corredores do prédio, de pijama, completamente descabelada, e cantando músicas do The Smiths para quem quisesse ouvir. Não . Não sua moça. Não ela.
Que a vida é como mãe
Que faz o jantar e obriga os filhos a comer os vegetais
Pois sabe que faz bem
E a morte é como pai
Que bate na mãe e rouba os filhos do prazer de brincar
Como se não houvesse amanhã
– Que droga, ! – tinha os olhos arregalados, transmitindo o rebuliço que sentia se manifestar em sua cabeça através de suas íris castanhas.
Ele tinha que estar ali justo naquele momento? Como sempre dizendo o que ela devia ou não devia fazer? Se intrometendo, achando que sabe o que é melhor para ela?
E então ela estagnou, fechando os olhos, se dando conta de uma coisa.
estava certo sobre Alex – ele era um verdadeiro idiota e a traía.
Poderia seu vizinho… estar certo sobre isso?
“Você se lembra, ? De todas as lágrimas que derramou por culpa dele?”, a voz sussurrou com suavidade. começou a respirar rapidamente, sentindo-se, pela primeira vez, com medo por estar na beirada de um precipício. Um desequilíbrio e sua vida acabaria. Aquilo era simplesmente aterrorizante. “Você se lembra da dor que sentiu por causa das coisas que ele disse? é cruel e não vale o chão que pisa. Você não merece ouvir as coisas que ele diz. Vamos, pule. Esqueça-o de vez.” – Olha… – bagunçou o próprio cabelo, suspirando. O que dizer a alguém que está prestes a se matar? “Não faz isso, pense na sua família, pense naqueles que te amam”? Piada. Aquele era um caso mil vezes mais complicado e outras mil vezes mais delicado. não tinha ninguém. O que dizer a alguém que não tem ninguém? “Fique por mim”?, pensou. Mas não seria uma boa ideia. provavelmente faria questão de se virar para encará-lo e rir de sua cara com escárnio. Quem ele pensava ser? – Não faz isso. – Soprou de maneira sôfrega, sentindo-se impotente demais para tentar ajudá-la. Palavras seriam apenas palavras soltas se fizesse o que parecia que faria.
deu um passo para frente, encarando compenetradamente as costas da moça, tentando pensar em como poderia fazê-la entender que se jogar não era a solução. Passou alguns segundos absorto em questionamentos internos, tanto que só despertou quando ouviu um soluço alto. Mirou o olhar em , que balançava os ombros. Ela estava chorando. Muito.
Ela não queria dar fim à própria vida. Só sentia-se perdida e não via esperança em nada.
– Essa não é a solução para os seus problemas, . – Ele ouviu sua voz dizer, mal crendo na firmeza com a qual cada palavra saía por seus lábios. – É só um tipo de fim trágico que tira todas as expectativas que você ainda pode ter. – Deu mais um passo, aproximando-se mais um pouco da figura dela, que ainda chorava. – Eu sei que a vida às vezes pode não ser justa com você, e eu sei que é complicado demais tentar dar a volta por cima.
– O que você sabe? – retrucou, soando embargada. Ela não se atrevia a se virar e encarar nos olhos, preferindo ter como vista a paisagem ensolarada daquela manhã. – Você já perdeu uma pessoa querida, ?
– Eu…
– E que tal todas? – Ela voltou a dizer, aumentando a voz. – Que tal sempre perder alguém e sempre achar que há esperança, apenas para lá na frente perder mais alguém de novo? – Soluçou. – E sempre aguentar as perdas sozinha, no canto escuro do quarto, sentindo o peso de angústia no coração aumentar a cada dia que passa?
suspirou, abraçando ao próprio corpo em agonia. Ele não era o herói das mulheres, tampouco era um bom homem para elas. E agora tinha que lidar com o sofrimento da mais difícil delas.
– Então por que não se joga logo? – Ele perguntou subitamente.
– Eu vou. – pareceu ajeitar o tronco, realmente ameaçando se jogar. deu mais dois passos para a frente, ficando a poucos metros de distância dela.
– A Caterine! – Exclamou, de supetão. E depois retesou o próprio corpo, paralisando. A reação de não foi diferente.
– O que é que tem ela? – Ela sussurrou, parecendo perdida.
– Ela não ia querer que você acabasse com a própria vida, . Logo você, que suportou todos os meses de sofrimento dela, insistindo para que ela não desistisse… – tinha a voz mansa, cuidadosamente escolhendo que palavras dizer. – Caterine era tão alegre, disposta a lutar. E ela pediu que você seguisse, continuasse, que não desistisse por nada.
– Você não sabe de nada disso. – o cortou, assustada. – Nós…
– É. Nós já tínhamos parado de nos falar. – Ele concordou, soltando um riso pelo nariz. – Mas ela foi minha porta-voz de notícias suas até… Bem, você sabe.
“As persianas permitiam que algumas luzes solares iluminassem o quarto do hospital.
A mulher morena, com bochechas grandes, cabelos crespos, olhos cansados. Ela repousava, mas nenhum sono era suficiente para acabar com o cansaço que a perseguia há dias. Sua figura deitada sobre a cama, envolta por uma camisola branca, encarava a amiga tão carinhosamente que parecia uma criança. Caterine, com seus vinte e poucos anos, não passava de uma moleca grande. E não merecia o rumo que o destino havia escrito para ela.
– Você tá fazendo aquela cara de novo. – Ela cutucou o nariz de , sorrindo fracamente.
– Que cara? – A outra perguntou, fungando entre uma lágrima e outra. – Eu não tô fazendo cara nenhuma.
– Ei, … Eu sou sua melhor amiga. Acha que eu não te conheço? – Caterine arqueou uma sobrancelha, fazendo estampar um bico na face. – É aquela carinha de quem já está sentindo saudade. Mas eu tô aqui ainda, meu amor.
– “Ainda”. Eu odeio essa palavra. – declarou, acariciando o braço da amiga. – Eu só não vejo sentido num mundo sem você, Cat…
Caterine segurou a mão da amiga, desfazendo o sorriso leve que estampava.
– Pare. – Ela pediu, soando séria. – Pare com isso, . Não importa o que vai acontecer, nós duas sabemos o que é. Eu ainda estou aqui e isso é um fato, mas também é fato que uma hora não estarei. Eu não quero você se perdendo em dias tristes, por favor. Eu odeio te ver chorar.
– Eu não consigo parar de fazer isso ultimamente…
– Isso não me agrada, de verdade. – Caterine suspirou, brincando com a palma da mão de . – Vamos fazer um acordo?
– Acordo? – franziu o cenho.
– Você me promete que vai aproveitar a vida por nós duas. Que vai continuar sendo uma menina cheia de piadinhas sem graça e pique para festas em pleno meio de semana. Que vai fazer social com os colegas do trabalho quando puder. Que vai ser esse doce de pessoa que você é, mesmo quando eu não estiver por perto pra te forçar a ser assim.
mordeu o lábio. Só parecia difícil demais aceitar que depois de Caterine a vida ainda teria algum tipo de sentido. Quanto mais festas, piadas, sociais. Caterine era seu braço direito, a única que a via em momentos de fragilidade e lhe dava tapas quando as coisas começavam a ficar depressivas demais. Ela sempre tinha uma frase sentimental sobre amizade para alegrar . Ela era seu porto-seguro, o passe-livre para o arco-íris que vinha depois da tempestade.
– O que eu ganho com isso? – Perguntou, dando-se por vencida. Caterine já fez tanto por ela, seria egoísmo negar o último pedido de sua amiga.
– Eu sempre vou estar sorrindo. – Caterine afirmou, abrindo o maior sorriso que seu cansaço conseguia demonstrar. – Não importa onde eu esteja.
abriu um sorriso também, aproximando-se para abraçar a amiga.
– Você faz isso por mim, não é?
– Não precisava nem pedir, Cat.
ainda ficou alguns minutos conversando com a amiga, abordando os assuntos mais aleatórios possíveis. Caterine estava fraca e ela sabia que precisaria aproveitar todo e qualquer momento que tivesse com ela. Quando se tratava do câncer, o amanhã era incerto. Ela não queria acordar um dia com a notícia de que a amiga havia morrido e elas mal falaram sobre tudo, como sempre costumavam fazer.
Com mais um abraço apertado e algumas muitas lágrimas de , Caterine viu a imagem da amiga caminhar até a saída do quarto.
A morena acordou num susto, algumas horas depois. estava sentado ao lado da cama, olhando-a em expectativa.
– Tanta atenção assim me assusta. – Caterine admitiu, rindo um pouco.
– Boa noite, chata! – Ele praticamente gritou, jogando-se sobre o corpo dela para dar um abraço apertado. – Você está tão pálida, meu Deus. Cadê sua negritude de sempre?
– Eu vou pedir carinhosamente para você ir se foder, .
– Ok, vou atender ao seu pedido. Um dia. – sorriu, galanteador. – Por enquanto, ainda sou hétero.
– Hétero sofredor. – Caterine declarou, solene.
se mexeu desconfortavelmente na cadeira.
– Como ela está? – Perguntou, deixando o ar brincalhão de lado.
– Sou eu quem estou doente, tudo bem? – Ela disse, parecendo indignada. Ele arregalou os olhos, pronto para se desculpar com a falta de delicadeza, quando Caterine começou a rir. – É brincadeira, galã. Eu sei que você se preocupa comigo.
– Demais, chata. Eu me preocupo demais. – frisou, apertando a bochecha dela levemente.
Caterine sorriu, ajeitando-se de modo a ficar sentada.
– Ela está… – Mordeu o lábio, hesitando. – Eu preciso mesmo responder? Você nunca a ouviu chorando no corredor não? soluça feito elefante.
– Às vezes, eu sinto vontade de invadir o apê dela e obrigá-la e me deixar servir de ombro amigo. – resmungou. – Mas você sabe como é. Provavelmente surtaria e aí, sim, nunca teríamos chance de nos falar de novo.
– Eu ainda acho que vocês vão se acertar e virar o meu casal preferido. – Caterine retrucou, fazendo com que ele sorrisse de lado.
– Não sei qual é dessa sua sina de achar que seremos um casal.
– Me poupe, . Você a come com os olhos e ela não é cega.
– Isso significa que você me acha gato, senhorita Caterine? – Ele arqueou uma sobrancelha, soando malicioso. Caterine rolou os olhos. Nunca teve problema em reconhecer a gostosura do amigo, não seria no leito de morte que isso começaria. – Olha, é uma honra pra mim. Você é puta sexy.
– Eu sou? – A mulher arqueou uma sobrancelha, brincando com ele.
– Mas é claro. – soou polidamente verdadeiro.
– Certo. – Caterine não aguentou, começando a rir. – Vamos parar antes que você risque o “sexo no quarto de hospital” da sua listinha de lugares inusitados pra transar.
– Poxa, Cat. Achei que você me ajudaria nessa.
– Não nessa vida, meu bem. – Ela piscou.
Os dois se encararam por algum tempo, deixando seus olhos dizerem tudo aquilo que suas bocas não se permitiam fazer. Para era complicado ver uma amiga tão boa como Caterine naquela situação. Para Caterine, era terrível deixar uma pessoa cabeça de vento como sozinho no mundo. Mas eles sabiam da realidade que o futuro guardava e não tinham coragem de falar sobre coisas como doença, morte, tristeza. Então agiam como se tudo estivesse bem, como se não houvesse câncer. Como se fosse apenas um dia estranho em que Caterine foi parar no hospital por ser espevitada demais. Era a melhor maneira dos dois lidarem com a situação.
– Você vai cuidar dela, não vai?
A voz da mulher soou mais fraca que o normal, assustando . Eles estavam quietos há algum tempo, assistindo a programação da tevê aberta.
– Da ?
– É. – Caterine confirmou, fechando os olhos. – Eu acho que vou ter meu sono da beleza agora…
– Cat. – segurou o rosto dela com as duas mãos, começando a se assustar. – Cat, fala comigo. Não dorme agora não, vai. Eu tô aqui.
– Eu sei. Por isso eu tô segura. – A mulher moveu os lábios, tentando um sorriso. Aquilo só apavorou mais ainda. – Me responde, …
– Eu vou sim, Cat. Eu prometo que vou cuidar dela. – Ele falou rápido demais, começando a verificar se ela estava com febre ou parecia mais pálida. – Você vai ver, nós seremos o casal mais esquisito do universo.
– Por isso vão ser meus preferidos.
– Sim… – se permitiu sorrir, mas logo saiu de seu transe para acionar a enfermeira. – Fica aqui comigo, tudo bem? A ajuda está vindo.
– Não preciso de ajuda, não. – A voz de Caterine soou mais forte pela última vez, e seus olhos negros capturaram o rosto preocupado do amigo. – Só diz pra minha mãe que eu a amo.
E, como após um dia festivo e alegre, Caterine adormeceu com um sorriso no rosto.”
– Você só tem vinte e quatro anos, . – proferiu cautelosamente, caminhando mais uma vez. – E já teve que carregar o peso do mundo muitas vezes nas costas, eu sei. Eu nunca vou entender o tamanho da dor que você sentiu. Na verdade, eu posso entender sim. Se você se atrever a se jogar daí eu vou carregar um peso enorme nas minhas costas, no meu coração. Porque você é… – Ele se embolou, tentando não assustá-la com sentimentalismo: – Alguém querido demais. Por favor, não me faz sentir esse peso. Acredite, ainda há muito pra você viver. Eu ainda nem tive a chance de tentar fazer nós dois termos uma chance.
Ela estava ali, em cima daquele parapeito, na beirada do prédio, prestes a se jogar. Há mais de muitos minutos, mais do que o programado. Antes, apenas pensou em correr e correr e fazer logo o que queria tanto fazer. Porque não havia mais no que pensar, tudo estava acabado. Quando chegou ao terraço do edifício, ofegante e desesperada, não entendeu o que a fez parar. Tudo indicava para baixo, para um pulo que levaria ao fim. Mas não conseguiu, hesitando por um segundo.
Um segundo pode mudar tudo.
Em um segundo, a figura de seu vizinho apareceu naquele terraço. Um segundo de hesitação transformou-se em um minuto que gerou diversas dúvidas em sua cabeça.
De um lado, tentava fazê-la parar.
Do outro, a parte sombria de si insistia para que ela pulasse.
“Não ouça. São palavras vazias, .”, sua consciência dizia. “Quantas vezes já ouvimos que tudo ficaria bem? E quantas vezes tudo piorou depois dessa fala?” confirmou com a cabeça, sentindo os olhos se encherem de lágrimas mais uma vez.
– Por favor, moça… – se manifestou, soando choroso. se esforçou para não se virar e dar a entender que desistiria da ideia de pular. – Não olha pra baixo, aí é muito alto pra você se jogar. Vou te ouvir, e tentar te convencer…
Que a vida é como mãe
Que faz o jantar e obriga os filhos a comer os vegetais
Pois sabe que faz bem
E a morte é como pai
Que bate na mãe e rouba os filhos do prazer de brincar
Como se não houvesse amanhã
“Palavras vazias.”, a obscuridade persistiu, tão suave e doce quanto seu vizinho. Tão acolhedora e familiar quanto ele. “Ele diz sobre um alívio temporário, com data de validade. Sabemos bem disso.” Se havia uma similaridade nos dois lados daquela moeda, esta era: nunca havia dado atenção a nenhum deles. Não ouvira sua escuridão nas tantas vezes em que ela se apresentou, mas também não ouvira na única vez em que ele pediu para que ela lhe ouvisse.
Qualquer destino que tomasse a encaminharia para um terreno desconhecido. Em qual dos dois a tristeza constante continuaria, afinal?
virou o rosto para o lado, deparando-se com muito mais próximo do que imaginava.
– Se afasta! – Ela gritou. – Sai, ! Eu vou...
– Não! – a interrompeu, mas a voz beirava uma suavidade desconcertante. continuou o encarando, incerta sobre o que fazer. – Às vezes, precisamos ver as pessoas a um passo da morte para entender que as amamos. Eu vejo você, moça. E não me agrada.
– Você não sabe… – murmurou, sem forças. – Você não sabe como eu me sinto.
“Deixe-o, . Não adianta falar com ele. Só precisamos nos jogar e acabar com toda a dor.” – Me deixa saber, então. – pediu, com os olhos começando a se encher de água. A cena manteve paralisada por alguns segundos. Sua cabeça doía de tanto que pensou e repensou sobre pular ou não. Não aguentava mais discutir: se jogaria. Não queria continuar sofrendo. Mas algo nos olhos lacrimosos, chorosos de … algo ali capturava sua atenção. – Me dá a chance de ouvir e tentar compreender tudo o que se passa na sua cabeça porque, honestamente, , eu posso suportar não poder te tocar, não poder te ver, não poder falar contigo... Mas não existe a remota possibilidade de eu ficar bem em te perder. Eu não sou o cara mais certo do mundo, eu sei que não. Você já jogou isso na minha cara várias vezes. Eu sou aquele vizinho debochado que a única coisa que soube fazer da vida foi arruiná-la com sonhos sem fundamento e me apaixonar pela última pessoa no mundo que poderia querê-lo.
Não haviam mais lágrimas para chorar, mas tudo aquilo a estava deixando mais atordoada ainda. Seus olhos ardiam, mantendo-se fixamente abaixados na direção do rosto de .
– Comparado a tudo que aconteceu com você a minha vida é um mar de rosas, eu admito. Mas eu não posso permitir que você desista, moça. Tragédia e maldade existem aos montes no mundo, não é só com você. Eu entendo que isso não diminui a sua dor, eu entendo que eu não sei pelo que você está passando, mas eu sinto. E como eu sinto.
“E você acredita em tudo isso?”, a voz em sua mente perguntou. “Nós sabemos em como ele é ótimo com as palavras, . Não deixe que mais um homem te engane. Retalie.” – Sente? – riu debochada. – Não venha com sua pena, , ninguém precisa dela aqui. Como você mesmo disse, você não sabe como é estar na minha pele. Você não sabe o que é ter vivido a vida inteira num orfanato sem nem lembrar quem eram seus pais porque eles morrem antes mesmo de você entender o que isso significava. Você não sabe o que é passar anos e anos vendo seus amigos irem embora com seus novos pais e você ficando pra trás porque ninguém te escolheu. Você não sabe o que é ter uma única pessoa como família e vê-la sendo levada por um maldito câncer que dentre tantas pessoas no mundo, escolheu logo ela pra se abrigar. Você não sabe o que é entregar seu coração a alguém para depois vê-lo chutar para longe como se isso não fosse nada.
– Eu sei…
– PARA! Para de achar que o que você sente por mim é amor! Não é, , não é. Eu sou apenas a vizinha difícil de se conseguir que nunca te deu bola, eu sou apenas aquela conquista barata que você nunca conseguiu ganhar!
– Mas eu sinto, porra! - Então ela notou que ele já estava perigosamente próximo e aquilo fez seu corpo receber descargas elétricas surreais e o sangue correr a todo vapor em seu rosto.
– Fique longe de mim.
– Não fico. Você não pode mais dizer como isso aqui… – apontou para os dois. – Vai funcionar. Agora desce daí, por favor. Você não tem noção do quanto eu estou assustado em te ver nessa beirada. Se você se jogar, moça, e-eu... e-eu não sei o que vou fazer. Eu estou tentando manter essa expressão tranquila porque não quero te amedrontar mais. – Deu um sorriso angustiado, que fez a garganta de trancar. – Eu nunca me apaixonei antes, . – Confessou, assustando-se consigo mesmo. Ao ver a reação atônita de , decidiu que era hora de continuar, era hora de falar toda a verdade. Aquela poderia ser sua única chance. – Não é à toa que nunca namorei. Eu nunca soube como era me sentir tão vulnerável dessa forma, a ponto de abrir mão de tudo que me faz feliz só pra ver quem eu amo tendo essa oportunidade. Nunca soube o que era estar nervoso só por ver a outra pessoa passar por mim. Nunca soube como era me sentir indeciso sobre que próximo passo dar para que não parecesse um babaca ou desesperado demais. Nunca soube como era me sentir miserável pelo sofrimento de outra pessoa. Eu nunca soube o que era amar, moça. Nunca, até conhecer você.
– …
– Irônico, não é? – Ele riu pelo nariz, sem achar graça alguma. – Eu devo ter quebrado mais corações do que posso contar, isso é um fato. Mas também é um fato saber que o carma nunca falha. Parti mil corações e por castigo a primeira pessoa por quem me apaixonei partiu o meu em mil. Eu fui um idiota por toda minha vida, eu cometi erros irreparáveis, mas eu nunca, nunca iludi ou enganei ninguém. E esse é o problema… Ser sincero, eu digo. Uma verdade dói mais que cem mentiras.
– Eu não sou esse seu tão clamado primeiro amor, . Eu não sou. – balançou sua cabeça em negação, com os olhos fechados. ficou mais incomodado com essa reação. Era perigoso manter os olhos fechados na posição em que ela se encontrava. poderia acabar perdendo o equilíbrio e… cair.
– Abre os olhos! – Gritou quando a viu tombar para o lado, se desestabilizando. – ABRE OS OLHOS AGORA! – Segurou em sua mão, indicando que iria puxá-la, o que fez obedecê-lo.
– Me deixa em paz! Por que você não pode me deixar morrer em paz?! – A moça se exasperou, deixando as lágrimas rolarem livremente sobre seu rosto de novo.
– Porque eu amo você! – respondeu quase em cima da sua pergunta, impressionando-se consigo mesmo. Uma coisa era sentir, saber, explicar… Outra coisa era falar em voz alta, tornando tudo real. – Mas que inferno! Eu sou completamente louco por você, . Isso é tão devastador que dói só de pensar! Meu coração se reduz a pó só de imaginar em viver em um mundo sem você.
“Ele está mentindo, . Ele é igual aos outros, igual ao Alex, só querem te fazer sofrer”. sentiu sua cabeça latejar pelo barulho de seus pensamentos desorganizados. Começou, literalmente, a estapear a própria cabeça em busca de qualquer alívio. Nem que tivesse que encontrá-lo na dor. “Se joga logo, querida. Nós já fomos enganadas antes, quer ser feita de tola mais uma vez?” – NÃO! SAI DA MINHA CABEÇA. – Curvou-se, espremendo seus olhos com força. Aquilo tinha que parar, aquela dor tinha que sumir, ela não aguentava mais.
– ? – aproximou-se mais, tentando enxergar seu rosto. Um de seus braços cobria os olhos, impossibilitando-o de vê-la por completo.
– … – Ela choramingou, arrastando o tecido da manga de casaco sobre suas lágrimas.
– Oi, eu tô aqui. – Respondeu dócil, segurando os antebraços dela, esperando que ela se acalmasse.
– Eu não podia.
– O que você não podia, moça?
– Eu tinha um namorado, e-eu… eu o amava. Eu tinha certeza disso! Eu não podia estar me apaixonando por você.
suspirou, conformado. Mas é claro que não podia. Quem trocaria um namorado perfeitinho pela bagunça que ele era? Ninguém em sã consciência tomaria uma atitude idiota daquela.
– Eu nunca teria abandonado você. – Confessou baixo, porém desejando que ela realmente tivesse o ouvido em alto e bom som. riu sem graça, aquela história era velha, não era novidade.
– Eu já ouvi essa promessa antes.
– Não da pessoa certa. – Aquilo acendeu uma pequena chama em seu peito. podia sentir nitidamente. Mas não era o suficiente, nada seria o suficiente para iluminar a escuridão em que ela tinha se afundado. Seria impossível.
Ainda sem saber o que responder, decidiu agir. Aquela provavelmente seria seu último bom gesto, tanto para ela quanto para ele. Era assim que ela gostava de acreditar. Se abaixou lentamente, ainda permanecendo no parapeito do prédio, e puxou vagarosamente pela nuca. Hipnotizado pelas íris apagadas da garota, que ele tanto queria que voltassem a brilhar, não hesitou e deixou se levar. depositou um beijo em seus lábios, sentindo os poros dele se eriçarem nas pontas de seus dedos. Reação totalmente coerente com a decisão inesperada dela.
Quando ela se afastou, sorriu sem mostrar os dentes, apenas demonstrando seu contentamento pela atitude corajosa que acabara de ter tido. mesmo já se martirizou antes por já não ter feito isso.
– Você é uma ótima pessoa e um ótimo amigo, me perdoe.
– Você não tem que se desc…
– Sinto muito, . Sinto muito por toda a dor que você vai sentir, mas você irá superar, eu sei que sim. Você se apaixonará outra vez e eu tenho certeza que será recíproco. Você formará uma família um dia e será mais feliz do que imagina.
– Por que voc…
– Eu queria ter sido essa pessoa pra você, a paixão da sua vida. Mas isso não é pra mim, não dá mais. Eu estou sentindo cada pedaço meu se destruir de dentro para fora e é tão doloroso… – mordeu seu lábio inferior, apreensiva. – Eu acho que te amei, . Mas eu não consigo ter certeza, pois meus sentimentos sempre foram tão bagunçados como seu quarto: trabalhoso demais de se organizar. – Ele riu, mas estava com medo do possível fim que aquela conversa poderia levar. dessa vez direcionou os lábios para as bochechas dele, porém se afastou mais rápido que da última vez.
Vendo que tinha seus olhos fechados, decidira que estava na hora. Não tinha mais porque prolongar tamanho sofrimento. Estava decidida a finalmente por um fim em sua miséria. Virou seu rosto para trás, vislumbrando todo o caminho que sua queda iria percorrer. Ele ainda segurava seus antebraços, então ela precisaria ser rápida.
E foi aí que seus planos falharam.
abriu os olhos bem na hora em que impulsionou seu corpo para trás, se jogando no abismo que levaria sua vida a um fim. Uma aterrorizante queda de mais de dezesseis andares. Ele pôde sentir seu coração bater no ouvido quando, no último segundo, conseguiu agarrar um dos braços da garota.
– Me solta! Por favor, me solta.
– NÃO! – gritou, aflito. A adrenalina do momento corria em suas veias, ele estava desesperado, realmente desesperado. Como podia fazer aquilo com ele? Depois de tudo que ele se sentiu na obrigação de confessar? Depois de passar por toda aquela lamúria com ela?
Quando conseguiu puxá-la de volta, mesmo que por um só braço, finalmente sentiu a atenuação de sua angústia. Caiu ajoelhado no chão do terraço, com ainda em estado de choque sobre seu colo. Como era possível? Como ele tinha sido ágil o suficiente para tê-la segurado no último segundo?
– Por que você fez isso, ? Por quê? – a abraçou forte, sentindo novamente o tormento e a dor de quase tê-la perdido se espalharem em seu peito. – Depois de tudo que eu te disse, depois de tudo que você confessou…
o afastou devagar, vendo que o rosto dele estava banhado em lágrimas. Finalmente notando a burrada que tinha cometido. Não só em ter se jogado, mas em tudo, em todas as decisões que já tomou e o envolveu. Inteiramente comovida pela desolação de , enxugou suas lágrimas com cautela, antes de finalmente respondê-lo.
Mas tudo bem, nem sempre estamos na melhor
– Moço, ninguém é de ferro. Somos programados pra cair.
Qualquer erro nessa atualização são apenas meus, portanto para avisos e reclamações somente no e-mail.
Para saber quando essa linda fic vai atualizar, acompanhe aqui.
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