Ela se sentava em uma cadeira de frente para a grande janela atrás de seus adversários. Olhava-os nos olhos, obrigando-se a não perder o foco com as luzes da cidade que lhe convidavam a largar tudo.
Mais duas cartas lhe foram dadas. Olhou-as. Um três de ouros e um um de espadas. Nada lhe seria mais inútil. Manteve sua expressão controlada. Deveria tentar blefar? Suas chances não eram tão boas. O jogo só estava começando. Esperou sua vez. Passou a rodada. Observou os outros jogadores terminarem suas apostas. Sim, tinha feito o movimento certo. A primeira carta revelada em nada ajudaria, tão menos a segunda ou a terceira. Conteve um sorriso.
O homem à sua frente, o qual ela não sabia o nome, baixinho e usando óculos, que deveria já estar nos seus sessenta anos, ganhara a rodada. Não era muito dinheiro.
Distribuíram de novo as cartas. Um rei e uma dama de copas estavam em sua mão. Sentiu-se confiante. Dobrou as apostas da mesa.
Sentiu sua mente vagar enquanto jogava as fichas no centro do campo de batalha peculiar deles. O jogador ao seu lado, um homem magro, jovem e com cara de ingênuo estava demorando a jogar. Varreu o apartamento posicionado no alto do prédio com os olhos.
Um luxo quase cafona tomava cada centímetro do set. Carpete vermelho, grandes candelabros verdes neon pendendo do teto, móveis de madeira maciça tomados por esculturas de mármore branco deixados nos cantos. Sem falar das câmeras que tentavam sem sucesso se esconder por detrás de quadros ou cortinas.
O jogo estava sendo transmitido por alguma emissora da qual não lembrava o nome. Não era o jogo mais importante, mas se fosse um campeonato de futebol, seria um das oitavas de final. Todos à sua frente eram importantes jogadores de Pôquer. E ela, bom, ela era também. Não sabia nem como havia chegado ali. Seu empresário – que ela novamente não sabia nem como havia conseguido – arranjara para ela jogar o campeonato, e ela estava indo bem.
Mas havia milhões na mesa, e ela não podia jogar simplesmente “bem”. Ela precisava deste dinheiro. Aquele dinheiro era o preço de sua liberdade.
A mulher à sua direita havia aumentando mais ainda as apostas com um sorriso nos lábios. O batom vermelho contra a pele muito branca e o cabelo loiro que cascateava por seus ombros lhe davam uma aparência de boneca. Falsa. Apavorante. teve que se controlar para não rir. A principal regra do jogo era não demonstrar emoção. Se fosse de propósito, a mulher deveria ter é um bom blefe na manga. Se não, ela era simplesmente burra. Não importava.
tinha outra mão boa. Decidiu continuar. Só havia mais uma carta a ser revelada, de qualquer jeito. Ela tinha uma boa chance de ganhar. O baixinho de óculos era o dealer da rodada. Ele estendeu a mão para virar a última carta. E então nada. O apartamento tinha sido inundado pela escuridão.
Alguns jogadores praguejaram entredentes, outros ficaram imóveis na espera que as luzes voltassem e eles pudessem continuar o jogo. Eles esperaram pelo que pareceu uma eternidade, mas nada aconteceu. Alguns agora ela podia ouvir se levantando, gritando com a produção, tentando fazer as luzes voltarem a funcionar.
E então um som de gelar as veias percorreu o ambiente. Um grito. Todos congelaram em suas posições no escuro. Ela ouviu um grito semelhante ecoar em suas memórias e o estalo, o estalo que queimava sua pele... Uma forte luz cegou a todos eles. Um grande letreiro neon pendia do teto. Em letras grandes e claras, a frase “Gostosuras ou travessuras?” enchia a sala com uma luz vermelha.
Eles se encararam por um segundo.
Mas foi então que outro grito, ainda mais apavorante, pois inesperado, preencheu o silêncio. O jogador que estava ao lado da loira a encarava. Sua face recoberta por uma espessa barba estava retorcida de nojo e horror. seguiu a direção dos olhos do homem. A loira estava no chão, um machado atravessava seu crânio. O sangue se misturava ao carpete escarlate e escorria por sua face. Agora o batom vermelho não contrastava tanto com o conjunto da obra.
O ar antes de impaciência e tédio havia se tornado mais denso. O medo, antes fútil quanto a boa parte da sala, se tornava tangível e perigoso.
Todos pararam de respirar por um segundo. A outra mulher da mesa, já nos seus cinquenta anos, com o cabelo escuro cortado Chanel e saltos, começou a correr pela sala. O pânico estava instaurado. O barbado espancava a porta, que eles agora percebiam que estava trancada. A mulher gritava. O magrelo parecia que ia desmaiar a qualquer instante. O baixinho percorreu lentamente o ambiente. Abriu a porta branca do outro lado da sala, mal escondida por detrás de uma cortina, que deveria dar à sala de produção. A cena que continha o emudeceu.
O quarto só era iluminado pelos computadores, as lâmpadas exalando o cheiro de queimadas. Só havia uma pessoa ocupando o grande ambiente. O editor estava deitado sobre os teclados dos vários computadores, os fios enrolados em seus braços e pescoço, o corpo em uma posição nada anatômica. Os aparelhos ligados e congelados na última cena transmitida: a carta perto de ser virada. Ninguém ousou aproximar-se do corpo, assim como não o fizeram com o da loira.
Ela engoliu em seco. Quebrou a imobilidade que tomara a sala andando até a janela. Os carros passavam normalmente na avenida, as pessoas viviam suas vidas nos altos prédios ao lado sem consciência do pesadelo que se formava. Ela tentou socar a janela. Tentou gritar. O pânico percorria seu corpo como uma grande dose de álcool. Ela não tinha mais foco. Foi até a grande jarra na qual havia depositado seu celular antes da partida começar. Sem sinal. Ela não esperava que o conseguisse de qualquer maneira. Colocou-o no bolso e voltou à janela. Olhar para fora, era quase esperançoso, ainda que estúpido. Tão quanto esperar poder ligar para alguém... ela pensou. Mas para quem poderia ligar, de qualquer maneira? Bom, qualquer um serviria, ela disse a si mesma como forma de consolo. Mas o que poderia dizer? E quantos acreditariam em sua história? Em qualquer parte dela? Suspirou e recomeçou a bater no vidro.
Alguns outros a observavam em silêncio. A mulher agora soluçava. O homem de óculos tremia enquanto tentava abrir a porta da frente.
Suas mãos doíam. Por mais que batesse, o vidro permanecia frio como gelo. Ela continuava tentando, sem sucesso algum, chamar a atenção de alguém fora da bolha de terror. Fechou os olhos. Ouviu um crack alto. O barbudo havia quebrado um abajur contra a parede, e continuava a quebrar coisas na expectativa que a sala cedesse aos seus esforços.
Ela pôs as mãos nas têmporas, tentando se acalmar. Ele jogou um quadro na direção da janela, que em nada cedeu.
- PARE! – gritou – PARE.
Sua cabeça estava prestes a explodir. Todos a encaravam, o barbudo inclusive, em uma mistura de medo e surpresa. Ela sentiu o silêncio pairar de modo estranho no ar, mas não o preencheu. Mal encarou os homens ao seu lado. Já havia conseguido o que queria. Apoiou sua mão novamente no vidro. Gritou. Retirou-a rapidamente. Olhou-a perplexa.
Estava em carne viva. Um pedaço de pele queimada pendia em seu dedo de forma estranha e nojenta. Ela tremia. Mover os dedos era doloroso. O vidro estava gelado há tão pouco tempo... pensou – Como...?
O magrelo se aproximou dela. Tomou sua mão com cuidado. Fez uma careta. Ela o encarou, sem palavras, as lágrimas correndo lentamente por seu rosto por conta da dor.
- Eu sou médico. – ele disse.
Ela assentiu. Não precisava perguntar para saber que seu estado não era dos melhores. Ele largou a mão dela delicadamente e se afastou do vidro, sugerindo em voz baixa que todos fizessem o mesmo.
andou até uma grande poltrona, mas não se sentou. Ela encarou um dos horrendos quadros nas paredes. Quando chegara à sala, tinha decidido que um ou outro não era de tanto mau gosto, mas agora, realmente, odiava-os. Os olhos das figuras pintadas em preto e branco pareciam segui-la ferozmente pela sala, como uma presa a ser caçada.
Houve um clique alto e um novo grito. Todos olharam na direção da porta. Não era um grito como o da loira. O homem de óculos havia aberto a porta, e agora comemorava. Todos se dirigiram, cuidadosamente, naquela direção.
O de barba foi o primeiro a se apressar pela porta, empurrando o homem que a havia aberto para o lado. Ele gritou a todos para segui-lo, mas sua frase foi interrompida. Todos viram a flecha escarlate atravessar sua cabeça. O sangue jorrou nas roupas brancas do médico e no homem de óculos. Todos permaneciam em silêncio, chocados.
Nenhum ousou atravessar a porta novamente. Também não tocaram em nada por um longo tempo. Os homens continuavam a praguejar. A mulher ainda chorava. estava entre os dois.
- Ficaremos aqui para sempre... Para sempre... – repetia a do corte Chanel.
O homem de óculos estalou a língua.
- Não! Não. Pare com isso. – disse-lhe depois de algum tempo, já irritado. – Temos que achar um jeito de sair. – não houve reação. – TEMOS QUE ACHAR UM JEITO DE SAIR! – berrou para ninguém.
O magrelo sacudiu a cabeça.
- Não podemos cruzar a porta, não podemos quebrar a janela. Não há outra saída. Estamos presos.
- E você parece ter pensado um bocado sobre isso, não? – disse o outro homem.
Houve um momento de silêncio desagradável. O mais alto lutava visivelmente com as palavras.
- Mas é claro! Caso o senhor não tenha percebido, estamos presos em uma sala com cadáveres! Eu gostaria de sair daqui vivo.
passou a ignorar a discussão dos dois. Uma sala cheia de cadáveres. O ingênuo talvez não fosse assim tão ingênuo, afinal de contas. Ele estava certo.
- Poderíamos tentar sair. Pela porta. – sua voz quebrou a discussão de modo tão súbito que a sala foi preenchida com o silêncio novamente. A raiva que pairava da discussão se dissolveu. Ambos a encararam como se tivesse enlouquecido.
- Mas, senhorita...? – começou o homem de óculos, como se falasse com uma criança ou um doente mental.
- . – e ela ouvia sua própria voz ressoar na sala como se dita por outra pessoa.
- Senhorita , todos nós vimos o que aconteceu quando um de nós tentou cruzá-la...
- Exato. Todos nós vimos. Todos nós já sabemos. – ela engoliu em seco, os homens continuavam a encará-la – Já podemos nos defender. – seus olhos vagaram sem controle até o chão e se afastaram rapidamente do local onde o cadáver da loira deveria estar. Sentiu um arrepio percorrer seu corpo.
- Como a senhorita... - começou o magrelo, e então a compreensão cruzou seu rosto. – Está sugerindo que usemos escudos humanos?
Ela não respondeu.
- Eu não usarei dos pobres cadáveres para sair daqui! – disse-lhe, exaltado.
- Prefere que nos utilizemos de você, portanto? – falou o baixinho, uma expressão sarcástica lhe tomando o rosto.
O outro permaneceu calado, encarando-o perplexo.
- Você mesmo mencionou seu desejo de sair daqui. – continuou.
Os olhos do magrelo percorreram a sala como se quisessem se certificar de que ninguém os observava. Assentiu. Concluíram que não poderiam mais usar o cadáver do barbudo, pois para pegá-lo teriam que se arriscar a ir para fora, nem o do técnico, pois o risco de se eletrocutarem era muito grande. Os dois homens andaram até a parte detrás da mesa, onde o cadáver da loira fora deixado intocado.
- Mas o que...?
se dirigiu até a eles. O chão tinha uma grande mancha vermelha, mas nenhum cadáver. Olharam em volta, poderiam ter se enganado. Nada. Nem sinal do corpo da loira. Com seu estômago se revirando desconfortavelmente, ela andou até a sala de controle. O corpo do técnico também não estava mais lá, os monitores estavam agora desligados. Eles não precisavam olhar para a porta para saber que o corpo do barbudo não mais se encontraria ali.
As vozes dos homens continuavam a se elevar novamente, irritando-a.
- Parem. – a voz ressoou pela sala de modo tão inesperado que todos tiveram que procurar para achar sua fonte. A mulher com o corte de cabelo Chanel estava de costas para eles, encarando a janela, o vidro fumegante, o mundo lá fora. Todos haviam se esquecido de sua presença. Ela se virou. Sua voz era clara, ela não mais chorava, mas seu rosto era recoberto por lágrimas. – Parem. Todos nós sabemos como isso acaba. Devemos simplesmente passar por aquela porta.
Todos a encararam do mesmo jeito que haviam encarado .
- Ora, vamos. É óbvio que não há um padrão. Estão sendo criativos nas mortes. Como a senhorita – ela apontou para . – fez questão de ressaltar, todos nós já sabemos o que aconteceu com quem passou pela porta. Eles não usarão essa técnica de novo. Isso não é simplesmente por matar. Não, isso é o que chamamos de tortura psicológica.
- Chamamos...? – indagou o baixinho.
Ela suspirou.
- Prazer, Elizabeth Brent, ex-FBI. – seus olhos baixaram ao chão ao pronunciar o ex.
Todos a encararam, mudos.
- Além do quê – ela continuou – se passarmos por aquela porta e flechas nos atingirem, não teremos um destino muito diferente do que teremos se continuarmos aqui.
O magrelo protestou.
- Ela está certa. – disse , interrompendo-o. – Fizemos bastante barulho. Se houvesse alguém no prédio, já teria nos ouvido.
- Alguém no prédio que, obviamente, não fizesse parte desta trama. – corrigiu-a Elizabeth.
Todos se encararam em suspeita. Ninguém queria se mover. Ela suspirou e tomou o primeiro passo em direção à porta. O grupo a seguiu. Ela parou, hesitando por um momento, olhando para o corredor. Não ousou tocar em nada. Os batentes da porta estavam manchados com o sangue que agora secava de maneira nojenta. Ela respirou fundo e deu o primeiro passo para fora, olhando imediatamente para o lado, de onde as flechas teriam vindo. O mundo parecia ter começado a girar mais devagar, seu coração em um nível muito mais rápido do que tudo à sua volta. Ela esperou por um segundo, que pareceu uma eternidade, qualquer movimentação ocorrer. Os outros ainda estavam parados na segurança da jaula.
Nada. Ela respirou de novo. Ainda não sentia o alívio preencher seu corpo, mas era bom saber que tinha pelo menos mais alguns segundos de vida. Os outros saíram lentamente. O corredor era tão branco que seus olhos doíam. Ao passar por ele mais cedo não tinha notado, imersa em suas esperanças, mas não havia um sequer sinal de cor ou detalhe naquelas paredes.
- E agora? – perguntou o baixinho.
Era uma boa pergunta. Eles não tinham planejado tão adiante. Ela deu de ombros e começou a tentar abrir as portas à sua frente. Os outros fizeram o mesmo. Eles poderiam ter percorrido quilômetros de medo e portas trancadas quando acharam uma que cedeu a seus impulsos.
Se havia esperança naquela pequena fresta, também havia medo. Entrariam então em outra sala de torturas ou poderiam dar um fim a tudo aquilo? Eles se entreolharam, alguns com pequenos esboços do que poderia vir a ser um sorriso em condições normais, outros com os olhos arregalados em puro choque, ansiedade e medo. O medo mais primitivo que existia. O instinto de sobrevivência falava mais alto em cada um daqueles corações. Todos sabiam que sua única outra alternativa era permanecer vagando no corredor sem fim. O magrelo estava com a mão na maçaneta. Ele encarou cada deles. Um por um, todos assentiram. Ele empurrou a porta, deixando com que ela abrisse sozinha.
O quarto era mal iluminado por uma única lâmpada quase queimada, e muito pequeno. Os quatro entraram e o espaço já estava praticamente lotado. A porta teve de ser encostada para que eles coubessem. As paredes, o piso e até o teto eram cobertos em madeira avermelhada. Um pedaço de papel rasgado pendia preso à parede por um pedaço de fita adesiva prateada. Todos o encaravam. O magrelo, à frente, ainda hesitante, estendeu o braço e o pegou. Ele parecia feliz que o papel não havia queimado sua mão ao tocá-lo. Trouxe-o mais perto de seu rosto, tentando lê-lo na escuridão. Ele deu um passo para trás para tentar pegar a pouca luz que vinha da fresta. Elizabeth tropeçou. O baixinho ao seu lado ergueu a mão para ajudá-la a se levantar. Ela havia encostado na porta ao cair, e esta se fechara. Ele suspirou, não havia mais luz suficiente para ler. tirou seu celular do bolso, tirando o papel das mãos do homem, impaciente, e iluminou-o.
Havia somente uma seta desenhada em vermelho, que apontava para o chão. Ela passou o papel e o celular adiante, para que todos pudessem ler. A dúvida pairava nas mentes de todos.
- Uma alça! – disse o baixinho, um tanto alto demais. Todos o encararam, confusos. Ele apontou para o chão. – Tem uma alça no chão, foi nisso que a senhorita Elizabeth deve ter tropeçado!
Todos encararam o chão, hesitantes.
- Um alçapão? – a voz do baixinho quebrou o silêncio.
- Talvez. Só nos resta saber onde vai dar.
- Eu não vou descer por isso! – protestou o magrelo.
- E preferes o quê? Voltar a vagar no corredor tentando abrir portas?
- Devo lhe dizer que realmente a alternativa me parece melhor.
- É perda de tempo! Quando acharmos outra porta aberta, se acharmos, ela nos levará ao mesmo lugar, seu idiota.
- Ora, e como o senhor tem tanta certeza dos fatos?
- Silêncio. – era a voz de Elizabeth quebrando a discussão novamente. – Se há alguma dúvida de que estamos sendo manipulados, ela deve acabar agora. – ela engoliu em seco. – É óbvio que quem quer que tenha arquitetado esse esquema, pensou em tudo. Ou voltamos para onde estávamos ou seguimos em frente. Não há rota de fuga. Nossa melhor saída é enfrentar. Vamos jogar no jogo deles, por enquanto.
- Jogar no jogo deles? Jogar no jogo deles? – repetiu o alto. – É de nossas vidas que estamos falando, senhorita! Caso não se lembre, jogar o jogo deles provavelmente significa morrer lentamente. Ou observar outros morrerem!
- Não estou dizendo para jogarmos para sempre...
- Parem. – disse . – Todos nós sabemos como isso termina. Ninguém vai vir em resgate, nós não encontraremos nenhuma saída milagrosa. – sua voz era pesada. – Se há alguma esperança é a de enfrentarmos o que quer que isso seja. E não ajuda em nada estarmos no trigésimo segundo andar.
- Se descermos, estaremos fazendo o que eles querem! – clamou o magrelo.
- Se fizermos qualquer coisa estaremos fazendo o que eles querem. – corrigiu-o Elizabeth, friamente.
- Eu não vou descer!
- Então ficarás sozinho, preferes assim?
- Bom, talvez seja melhor de fato me distanciar de vocês. – disse, seus olhos encarando em acusação cruel cada um da sala no escuro.
- O que disse? – indagou o baixinho.
- Quem quer que seja que está jogando este jogo está nesse prédio. Quem quer que seja, moveu os corpos, desligou os monitores, trancou as portas... Quem quer que seja não deixou uma sequer pista à frente de nossos narizes que indique sua presença. E a melhor maneira de fazer isso...
- É deixando-as exatamente embaixo de nossos narizes. – completou Elizabeth, ainda fria. – Sim, devemos encarar essa possibilidade também. E talvez fosse exatamente por isso que devêssemos permanecer todos juntos agora.
- Assim poderíamos nos vigiar, certamente. – disse .
A moça assentiu. O magrelo bufou.
- Vigia, vocês dizem? Todos juntos somos ainda mais vulneráveis! Com todos nós aqui não é difícil que nos distraiamos e... - ele se interrompeu no meio da frase. - Eu não vou.
Ele se moveu em direção à porta.
- Se abrir esta porta... – começou o baixinho.
- Se abrir esta porta o quê?! Vai me declarar assassino? É minha palavra contra sua, e eu sei o que fiz, ou melhor, o que não fiz. Você não pode me parar! – a raiva queimava por detrás de seus olhos, perceptível mesmo no espaço mal iluminado.
O homem posicionou sua mão na maçaneta, girou-a. A porta não abriu. Tentou empurrá-la. Tentou puxá-la. Não havia espaço para pegar impulso para um chute. Os outros o encaravam em um quase divertimento. Ele se virou, os braços para cima em sinal de redenção.
- Imagino que isto não me deixe com muitas alternativas.
- Ah, sim, agora queres descer conosco, não?! – começou o mais baixo novamente.
- Pare. – disse Elizabeth. – É melhor assim.
Houve mais um momento estranho de hesitação, quebrado por :
- Eu me abaixaria para abrir, mas... – ela levantou a mão queimada. Todos pareceram sair de seus transes. O baixinho abriu o alçapão.
Uma escada metálica se estendia em um tubo igualmente cromado pelo que pareciam ser quilômetros. Alguns engoliram em seco, outros sentiram o suor brotar de suas testas. Mas quem mais sentiu o pânico foi . Era uma escada muito longa e sua mão mal poderia ser movida sem que a dor lhe corroesse. Sua respiração se acelerou.
- Eu diria “as Damas primeiro”, mas...
- Sim, seria uma piada de muito mau gosto, de fato. – completou a mulher com o corte Chanel.
O baixinho respirou fundo e começou a descer as escadas. A mulher esperou alguns segundos, olhou longamente para e o seguiu. Ela fez um sinal para que o magrelo fosse antes dela, não confiava nele e precisava de mais alguns segundos para se preparar. Sua vez chegou, e ela mal conseguia se manter em pé. Cogitou o que fazer com seus saltos. Não seria fácil descer a escada de qualquer modo, mas com saltos... Tirou-os. Olhou para baixo. Mirou e jogou-os. Eles estariam lá por ela. Imaginou se não teria sido estupidez: e se o metal da escada fosse tão quente quanto o vidro fora? Bom, não havia mais o que fazer. Agora ela ouvia o barulho de seus sapatos batendo contra o solo tantos metros abaixo. Seria uma longa descida.
Temerosa, posicionou seus pés lentamente em um degrau. Segurou-se na borda do buraco e não achou que jamais poderia sentir tanta dor de novo. Os outros já estavam vários metros abaixo. Mas ela queria deixar aquele lugar escuro rápido. Pelo menos o longo túnel vertical era iluminado. A escuridão do cubículo lhe trazia más memórias e tudo que tomava seus ouvidos era o som de seu coração protestando e o estalo, ah, o estalo. Um arrepio ruim percorreu suas veias. Começou a descer, a se distanciar, mais rápido. Suas mãos imploravam que parasse.
Mas ela não podia. Pensou em se jogar. Faria do trabalho tão mais fácil... Afinal, as chances de que vivesse de qualquer maneira ali não pareciam ser das melhores. Mas algo primitivo dentro dela se negou a aceitar a sentença posta sobre sua cabeça. Então ela continuou descendo, sua mão queimando, seu cérebro em um mantra permanente: tenho que continuar, tenho que continuar. Aos poucos, ela conseguiu avistar o chão. Um por um, seus companheiros de cárcere, porque era isso que eles eram no momento, desceram da escada mortal. Ela ouviu os pés deles tocando o chão, mas não ousou olhar para baixo. Não ousara em nenhum momento, sabendo da tontura que a tomaria por certo. A escada espiralaria em alguma forma não natural, as barras de ferro frio não pareceriam tão firmes sob seus pés descalços, o equilíbrio de seu corpo se encontraria mais para trás até que não houvesse nenhum e ela se deixaria levar, ela cairia, espiralando como a escada... Quantas vezes impedira este pensamento tentador durante sua jornada ao inferno não mais sabia.
Por fim, ela pôs seus pés em solo firme. Calçou a contragosto seus saltos. Não queria machucar seus pés em terrenos futuros: nunca se sabe o que está à frente. Eles ainda estavam presos no tubo, mas havia uma porta. Uma porta que refletia suas imagens como um grande espelho.
Elizabeth deu um passo à frente. Havia um grande botão vermelho ao lado da porta. Ela o apertou e a porta correu para o lado. Ela passou. O magrelo fez uma tentativa de ir também, depois de empurrado pelo baixinho, mas a porta se fechou rapidamente. Ele apertou o botão vermelho novamente e a porta se abriu. Passou. A porta se fechou. O homem gesticulou para que ela fosse à frente. Ela apertou o botão. A porta se abriu de novo e ela deu um passo à frente, cruzando a barreira.
Ela então se encontrava em um grande galpão iluminado artificialmente. Os outros também encaravam o ambiente. O chão era de concreto, barras de ferro pendiam do teto escuro que deveria estar a mais de quinze metros de altura.
De repente, seus olhos se ajustaram à claridade e ela viu por fim o que mais pendia do teto. Teve que piscar várias vezes. Muito acima de sua cabeça, os corpos desaparecidos pendiam pendurados por seus membros. Sentiu seu estômago embrulhar, e teve que se conter para não gritar. Foi então que ela ouviu um barulho atrás de si. Uma pancada, duas, três... Constantemente contra uma superfície fina, talvez... Ela se virou. O baixinho agora espancava a porta, o terror tomando seus olhos, sua face esverdeada. Eles não tinham notado que a porta era na verdade vidro, e eles podiam observar o que se passava dentro. Uma fumaça esbranquiçada subia rodando pelo ambiente. O homem bateu mais e mais na porta.
O magrelo, depois de um segundo, quebrou a imobilidade e tentou empurrar a porta, mas não obteve sucesso. Em pouco tempo, o corpo do homem jazia no chão, contorcido pela falta de espaço, e eles... Bem, eles somente encaravam a cena em choque. Não havia mais o que fazer.
Eles se viraram lentamente. O galpão silencioso diante deles era macabro.
- Olhem! Uma janela! – disse o magrelo. A abertura estava no outro extremo do grande ambiente. Eles se olharam e começaram a correr. Mas foi no primeiro passo que seus planos começaram a desandar. O chão começou a ceder sob seus pés, caindo enquanto eles corriam, revelando um grande vazio negro. As lâmpadas no teto estouravam uma a uma, deixando o ambiente escuro. Seus corações martelavam em seus peitos quando, enfim, chegaram perto da janela e o chão se manteve sólido. Eles tiraram um segundo para recuperar o fôlego. A janela estava alta, mas não seria difícil escalá-la.
Um grito longo cruzou a sala, vindo exatamente do lado de . O chão sob os pés de Elizabeth cedera cuidadosamente à sua volta, e ela caíra, caíra como havia pensando em cair das escadas, caíra em uma escuridão sem fim. Ela olhou para o magrelo, assustada. Só um pensamento cruzou sua cabeça: é ele. Tinha que ser ele. A repulsa a tomou. Ele deveria estar por detrás de tudo aquilo.
Olhou à sua volta, não havia escolha, não havia salvação. Com toda a força que tinha, socou a janela de vidro perto de si. Sua mão já queimada protestou, mas o vidro era fraco em comparação a súbita força que surgira sob a ameaça de morte e a dor, ah, ela já não mais se incomodava, tão inflamada pelo medo que estava. Os cacos voaram ao chão e cortaram sua pele, mas seu foco todo estava nos olhos ferozes, mas, ao mesmo tempo, assustados, do magrelo que ela nem sabia o nome. Ela pegou um grande pedaço de vidro do chão.
O mundo parecia ter, pela segunda vez naquela noite, passado a rodar mais devagar. Mas seu cérebro calculava tudo milimetricamente. Ela poderia prever exatamente o que faria. Ergueu seu braço em um ato mais instintivo, mais primitivo – e ao mesmo tempo mais calculado - do que tudo que já fizera. E então ela viu o vidro cortar a pele dele, e viu o sangue jorrar de seu pescoço, e sentiu o líquido viscoso escorrendo por suas roupas e então o corpo dele caiu aos seus pés.
Ela arfava. O silêncio era mortal. Ela piscou. O que havia feito? Sobrevivido, novamente, sobrevivido... Era o que repetia a si mesma. O espaço vazio e despencado à sua frente nunca parecera tão... Tão o quê? Vazio, de fato, mas não menos assustador. Ela ainda não saíra de seu pesadelo, ela ainda estava presa. Vamos, , mova-se. Mova-se. MOVA-SE.
Mas ela não conseguia. Suas pernas estavam congeladas com o medo, com o choque. Sua respiração era pesada e várias partes de seu corpo protestavam. Ela não havia notado o quão cansada estava.
E então as luzes acima de si acenderam. O ambiente foi tomado por mais luz artificial. Ela olhou para cima. Homens, vivos, respirando, pendiam do teto por cordas, encarando-a perplexos. Ela notou, então, as câmeras, antes escondidas pela escuridão.
- Co... Corta. – conseguiu dizer o homem que pendia em uma plataforma acima de todos. Ao seu lado, a loira, o barbado, o baixinho, o técnico e a mulher do corte Chanel a observavam, as bocas abertas em choque. Mas não o magrelo.
Ela tremia incontrolavelmente. Não sabia se era por causa do frio cortante da cela ou do medo que lhe tomava lentamente o corpo. Talvez os dois. Ela tentou uma vez mais controlar o ritmo de sua respiração.
As paredes cinza, as grades pretas à sua frente, o vazio. Ela preferiu fechar os olhos. Mas o escuro era uma maldição tão grande quanto o nada, e assim seu corpo continuou a tremer. Tremer temendo as chamas, tremer temendo... temendo ele.
As imagens de seu passado se misturavam com as daquela noite em um pesadelo particular. As cartas, ele, as cartas, o fogo, as cartas, o cigarro, a agulha, as cartas. Ele. O estalo da longa tira de couro. A dor. As cicatrizes que ela escondia com tanto cuidado. As cartas.
Ah, pôquer, a maldição de sua vida.
Sua única saída e a razão de seu cárcere. O preço de sua liberdade, mas o peso sobre sua cabeça. Ela apoiou o rosto nas mãos, sua cabeça latejando.
Um arquejo foi ouvido do outro lado da sala. Ela congelou. Não, não, não...
- Querida!
Ela ouviu a porta da cela ser deslizada para o lado e passos invadirem seu espaço. Ela queria gritar para que não deixassem ninguém entrar, mas era tarde demais. A voz ressoou em sua cabeça, aumentando seu pânico. Ela olhou para cima.
O homem, já velho, mas com o cabelo ainda preto e cortado curto, vestia um blazer e jeans. Mas a camisa surrada por debaixo de seu disfarce o entregava. E ele nunca seria capaz de esconder o olhar de pervertido dela. Não, não dela.
E havia raiva em seu olhar quando se levantou para encará-lo nos olhos. Nojo. Ele fingiu não notar.
- Ah, , está tudo bem, está tudo bem... – ele repetia. Ela o encarou longamente.
- É tudo culpa sua. – disse, quebrando o mantra falso dele.
- Como? – ele perguntou, um olhar pateticamente falso que tentava mostrar surpresa cruzando seu rosto.
Ela respirou fundo. Não mais tremia.
- É tudo culpa sua. – repetiu. – Tudo.
- Filha...
- Como ousa? – havia rancor em sua voz ao falar. – Como ousa ainda se intitular meu pai? Como ousa vir aqui e me dizer que tudo vai ficar bem quando estou aqui por sua causa?
Ele pôs a mão em seu ombro, tentando acalmá-la. Ela deu um tapa em seu braço, afastando-se ao máximo que podia. O guarda olhava de forma impaciente atrás das barras.
- COMO OUSA ME TOCAR?
- Ora, mas não sei do que estás falando, ...
- Nojento. Desgraçado. Como ousa fingir que não sabe o que fez?
Um traço de incômodo e raiva cruzou o rosto do homem. Ele se aproximou. Ela recuou mais, indo para o lado, andando em círculos na sala para se manter longe dele.
- Torturador. Assassino. Estuprador de criancinhas. Você tem alguma ideia do quão nojento é? - sua voz era fria e cruel.
- O tempo acabou. – disse o guarda, friamente.
- Tem alguma noção de quanto mal causou?
O rosto dele era agora uma máscara de ódio. Ele se aproximou dela lentamente. Ela não recuou dessa vez. Encararia-o de uma vez por todas, e pela última.
- Criança inútil, imbecil...
- O tempo acabou.
Eles o ignoraram.
- Se sou tão inútil, por que me mantiveste viva?
Ele sorriu.
- Sempre se achando importante, não? – ele estava a centímetros de seu rosto. - Pois vou lhe contar uma coisa, criança: assim como a sua mãe, você só não é um completo desperdício de espaço e material genético porque tem um belo traseiro. Deve ser de família.
Ela sentiu seu sangue ferver. Ele sorriu. Piscou. Sem pensar, cuspiu nele.
- Vá se foder. – disse.
Ele ergueu a mão e a esbofeteou. Ela o empurrou. O guarda já tinha pedido ajuda no rádio e entrado na cela. Ela tentou socar uma vez mais o homem à sua frente, gritando, mas o policial já a havia segurado. Ela lutou. Do mesmo modo que tinha dado um fim ao magrelo, queria dar um fim ao velho. Não se arrependeria. A raiva lhe tirou o foco. O homem que a segurava a arrastou. Ela conseguiu soltar seus braços, mas ele a segurou pela cintura. Ela levantou a manga de sua camiseta.
- Vê? Aqui? FOI TUDO VOCÊ! TUDO VOCÊ!
Ela não ousou olhar para o braço tomado por marcas de queimadura de cigarro e cortes. Agora sua mão combinava com o conjunto. Mais uma marca feita por ele. Mais uma eternidade de sofrimento que ela enfrentaria sozinha.
Outro guarda abriu os portões novamente e arrastou o homem para fora da cela. O que a segurava a algemou, abaixou sua manga e a fez sentar.
- Seu nome é Elizabeth Brent?
- Sim.
- Nascida em três de agosto de 1968?
- Sim.
Um investigador baixinho, jovem e meio calvo, se sentava à frente dela. A polícia mal podia entender o que havia se passado naquele prédio. A mulher ainda tremia.
- Muito bem, Srta. Brent, vamos começar a tomar seu depoimento, então. Para início de conversa, por que você estava no prédio?
- Eu fui paga para estar lá.
- Sob que exigências?
Ela engoliu em seco.
- Tinha que jogar uma partida. Uma partida de pôquer. Ia ser transmitido para algum canal...
- E foi. A senhorita tem algum histórico com o jogo?
Ela hesitou.
- Bem... Sim. – o detetive esperou. – Sim. Eu comecei a jogar profissionalmente há algum tempo.
- Quanto tempo?
- Menos de um ano.
- E não ficou surpresa de ser convidada para um torneio aparentemente de grande magnitude?
- Não. Claro que achei estranho, mas não me contrataram para ganhar. Me contrataram para ir lá, jogar a partida e atuar.
- Atuar?
- Sim. Sei o que pensa. Não, eu não sabia de nada do que iria acontecer. Só haviam me passado um grande cheque sob as especificações de jogar o jogo conforme ele se transformasse. Eu não entendi na hora. Mas ficou óbvio quando as pessoas começaram a desaparecer.
- Defina óbvio.
- Bom, eu... Não sei, ok? Disseram-me que era uma partida especial de Halloween, então eu achei que alguém fosse aparecer e gritar e...
Ela parou de falar. Depois de um minuto, o detetive voltou a falar.
- Eu vejo que a senhorita foi agente... FBI?
Ela balançou a cabeça afirmativamente.
- Por que saiu?
- Fui demitida.
Ele assentiu.
- Eu sei. Se importaria de me explicar por quê?
Ela deu de ombros.
- Problemas com bebida.
- Então a senhorita é demitida, entra no mundo dos jogos, te oferecem um emprego...
Ela continuou quieta.
- Pois bem. A que horas chegou ao prédio, Srta. Brent?
Era a vez do baixinho ser interrogado.
- Como contataram o senhor a respeito do campeonato, senhor...?
- Robert. Robert Cooper.
- Senhor Cooper?
- Eu sou ator, você vê? Então eles me ligaram dizendo que precisavam de alguém que soubesse jogar pôquer bem, para preencher uma vaga em um campeonato que não tinha dado tanta audiência quanto eles precisavam. Era bastante dinheiro e um trabalho fácil. Eu aceitei.
A loira estava sentada na mesma cadeira metálica onde os outros haviam sido interrogados. E contara a mesma história. Muito dinheiro, pouco trabalho. O mesmo fizera o barbudo. Chegou a vez de o editor dar sua versão.
- Era tudo planejado, sim.
- E qual era o plano?
- Bom... Era um jogo de Halloween, amigo. Queríamos audiência, queríamos impacto. Achamos que se tornássemos um jogo em terror as coisas ficariam mais divertidas. Mas como eu disse, era tudo planejado. Cada centímetro. Eu participei disso. Ninguém deveria se machucar seriamente.
- Devo lembrá-lo de que nem mesmo os contratados sabiam do esquema, como tudo pôde ser planejado?
- Bom, mas é claro que não sabiam! Se soubessem, onde estaria a graça? O terror tem que ser real para que seja crível. Se o telespectador não acreditar, ele não assiste. Ponto.
- Mas se não sabiam e estão aqui, todos muito vivos, como fingiram suas mortes?
O homem riu.
- Olhe, eu não deveria lhe contar, não sou o chefe dali, entende? Mas é bem simples, de fato. Com a loira um pouco de sedativo na bebida bastou. Depois, as luzes estavam apagadas, tudo que precisamos foi usar uma bomba de sangue falso. Ninguém chegaria perto dos corpos, tínhamos certeza. Comigo, bem, eu só fiquei lá, entende? Eles nem entraram no quarto direito. Com o outro homem, o da barba, também foi fácil. Um pouco de explosivos, um pouco de sedativos fortes por contato... Percebe como eles não chegaram perto de nenhum dos supostos corpos? Era tudo efeito especial, amigo. Quando se trabalha na TV fica bem fácil arranjar esse tipo de coisa.
- O senhor só descreveu como dois cadáveres foram... – o detetive não sabia como colocar as palavras. – feitos.
- Ah, sim. Bom, como eu disse, não foi nada demais. Para o outro homem, um pouco de gás fedido e algumas drogas bastaram. Elas foram liberadas no ar depois que a porta se fechou pela última vez, de modo que qualquer um pudesse ser a “vitima” da vez. E com a mulher, bem, ela ficou no lugar errado na hora errada. Tínhamos várias plataformas que caíam. Havia um colchão embaixo, vê? Quando ela ficou ali, de pé... – o homem deu de ombros.
- O senhor bem sabe que para ter posse destas drogas e gases há de haver uma licença, sim?
O homem levantou os braços em sinal de redenção.
- Hey, hey, agora, amigo. Eu sou só um assistente de produção, ok? Um estagiário. Vá entrevistar os chefões sobre isso. A ideia não foi minha ali.
O detetive suspirou. Fez mais algumas perguntas sobre a cena para todos eles e os deixou ir. Chamou os diretores do programa. Eles responderiam pelas substâncias, mas haveria na certa uma briga quanto à morte. Não era culpa deles, eles alegavam. Mas ele não conseguia deixar de pensar que a mulher havia sido conduzida.
- Não sei, Marc. Não se pode isentar a empresa dessa responsabilidade, ainda que eles não tenham colocado a mão naquele caco. – falou a seu parceiro.
- Eu sei. É complicado. Os promotores ficarão com um pé atrás na hora de acusar a emissora, o processo pode sair caro, você sabe. Mas sim, também acho que é uma decisão errada acusá-la somente.
- O medo – começou. – faz as pessoas fazerem coisas insanas. Poderia ser qualquer um naquela sala. Qualquer um concluiria o óbvio, qualquer um se defenderia, certo?
- Imagino que sim. Já falaste com ela?
- Eu tentei. Ela se recusou a falar qualquer coisa.
- Imagino então que a defesa possa vir a usar insanidade como defesa.
- É bem provável. Não tivemos um psicólogo para avaliá-la até agora.
Marc pensou por um segundo.
- Eu posso? Falar com ela, digo.
O homem deu de ombros.
- É toda sua. Não custa tentar.
se sentava em outro quarto cinza. Olhava para as próprias mãos, a mente e a expressão em branco. Os guardas a haviam tirado de sua não exatamente confortável cela para tentar arrancar novamente um depoimento.
Será que eles não entendiam? Ela não queria falar. Não entendia o motivo.
Um homem loiro e alto, os olhos azuis que pareciam encarar sua alma lhe observando, entrou na sala e sentou-se à sua frente. Ele parecia honesto.
- Srta. ... Muito bem, vamos conversar um pouco sobre você, sim?
Ela não lhe deu resposta.
- Não tem passagem policial, não tem registro em nenhuma escola... Não sabemos onde está sua certidão de nascimento.
Ela continuava quieta.
- Não sabemos o que fez em sua infância, nada. Sabe, seu pai nos disse que nos arranjaria a certidão, mas...
Ela o interrompeu bruscamente.
- Ele não é meu pai.
O homem a encarou. Estava surpreso de ter conseguido qualquer resposta, qualquer reação. Ele queria dizer algo, mas o choque o percorreu, selando-lhe os lábios.
Ela pôs seu braço em cima da mesa de metal bruscamente. O barulho ressoou de modo macabro pela sala, subitamente tomada pelo silêncio. Ela levantou a manga de sua blusa.
Encararam ambos desta vez as inúmeras cicatrizes.
- E isto é o que eu fiz durante minha infância. Ou o que fizeram a mim.
Ele estava perplexo. Gaguejou ao tentar falar. Ela permaneceu quieta. Por fim, ele se recuperou do baque.
- Seu pai... Aquele homem – corrigiu-se rapidamente. – fez isto a ti?
Ela o encarou. Era óbvio, não era? Ele viu o rancor mal disfarçado nos olhos dela. Ela começou a achar que ele fosse burro.
- Sabes que pode, deve, prestar queixas o mais rápido possível, não? – continuou.
Ela continuou o encarando. Sim, sabia. Mas quem acreditaria nela? Nela, a criança estranha que não tinha amigos. Nela, a jogadora subitamente famosa de pôquer. Nela, a assassina.
- Por que não me conta um pouco mais do que ele fazia?
Ela estava quieta.
- ? Vai ser melhor. Ele não pode te atingir. Ele nunca mais poderá te atingir. Eu prometo, ok? Olhe para mim, vamos.
Ela pensou por um longo tempo. Respirou fundo.
- Quando eu nasci, ele nos fez ficar. Eu e minha mãe. Ficar com ele. Ele a convencia a ficar com presentes, tratava-a bem... E no outro dia a espancava. Depois voltava, dizia que havia se arrependido, implorava para que ela não fosse embora. Ela parou de reclamar com o passar dos anos. Eu tinha sete anos. Nunca soube direito o que aconteceu, estava em meu quarto. Mas um dia ela não o agradou e a coisa foi longe demais. Lembro-me de ter ouvido uma explosão. Eu corri. E quando eu cheguei lá, minha mãe estava lá, deitada na cama...
Ela parou, não havia necessidade de descrever a cena.
- E, obviamente, quando ele não tinha mais sua escrava, passou a me usar. Me batia com um cinto quando eu não o servia direito. Ele era viciado em jogo, além do álcool. Fazia-me jogar com ele. – ela riu com amargura – Pôquer. Quando eu jogava mal... Bem, pode imaginar. Ele não gostava de perder, então eu tinha que perder, mas tinha que ser um desafio à altura. Isso me fez melhor, vê? Eu pensava em como ganhar para jogar bem, e depois em qual movimento fazer para me entregar. Para perder.
Marc a encarava com os grandes olhos azuis compreensivos.
- Uma noite eu fugi. E, por ironia do destino, acabei em um bar. Um bar de pôquer. Era uma grana que eu nunca tinha visto na mesa. Eu resolvi jogar, apesar de meus medos. Todos zombaram de mim. Uma garota magrela, feia, aparentemente sem nenhum tostão jogando pôquer? Aceitaram-me na roda mesmo assim. Joguei com apostas muito baixas nas primeiras rodadas, mais baseadas em favores do que em dinheiro. Presa fácil, pensaram. Mas eu ganhei. Ganhei todos os jogos. Quando vi, tinha dinheiro o suficiente para alugar um quarto em algum hotel de quinta categoria. Eu pensei em voltar pra casa, sim. Mas não valia à pena. Não foi uma conclusão tão difícil. Se por um lado eu tinha comida e um lugar para deitar... – ela deixou a frase no ar. – Eu já tinha resolvido, quando entrei no jogo, que seria melhor dormir na rua. E quando ganhei um pouco de dinheiro, foi fácil.
Ela fez uma longa pausa antes de continuar.
- Eu estava saindo do bar. Estava escuro e eu estava cansada, com frio e meio bêbada. Queria procurar um motel ou algum lugar barato para dormir. Um dos homens da mesa de pôquer me agarrou. Ele não estava feliz por ter perdido. Disse que eu lhe devia algo. – ela riu sem humor algum novamente. – Me arrastou até um beco. Disse que era piedoso. Eu poderia ficar com ele, eu poderia ter algo para comer, algum lugar para ficar... Imagino que ele tenha deduzido pelo meu estado que minha situação não era das melhores de qualquer maneira... Mas em troca, eu deveria trabalhar para ele. E eu me vi na mesma situação de minha mãe tantos anos antes. Presa a um homem. Servi-o de todas as maneiras por algum tempo, até que um dia ele me perguntou como eu ganhara aquela partida. Eu contei, não havia muito a perder, eu já estava há meses ali. Ele resolveu jogar comigo. Eu ganhei. Ganhei de novo. E mais uma vez. E outra. Ele viu a possibilidade ali, acho. Me arranjou jogos. Era como um cafetão, mas de pôquer. Eu fui ficando melhor, fui vencendo alguns grandes da rua. Então ele me arranjou um empresário qualquer. O dinheiro ia para ele. Eu ainda não havia pagado minha dívida, que aumentava a cada dia, pois ele me sustentava, de acordo com ele. Até que surgiu esse jogo, essa oportunidade. Se eu ganhasse, estaria livre. Poderia enfim pagá-lo. Não ficaria com muito do prêmio, mas nem ligava. Nem me importava em como seria o jogo. Compraram-me roupas e me levaram a um salão, os dois, antes da partida. E então me deixaram lá.
Eles se encararam. Ela nunca havia contado sua história a ninguém. Ele levou algum tempo para se recuperar.
Marc falou mais algumas coisas e saiu da sala. Ela não ligava, não respondeu.
Aquela noite os detetives passaram em claro. Ela se recusava veementemente a responder perguntas sobre a noite, sobre o assassinato. Isso não fazia a situação dela mais fácil. Havia uma série de atenuantes, mas se ela não lhes desse um depoimento material sobre aquela noite...
- Talvez possamos fazê-la contar sua história de novo. – sugeriu. – Talvez isso sirva? Sabia que devia ter gravado aquela conversa, sabia que devia...
Mas ela não falou novamente. Negou quando Marc disse que ela lhe havia contado sua história. Negou tudo. O homem um dia veio à sua cela.
Ele falou por vários minutos do outro lado das grades sobre como ela seria acusada, como aqueles homens ficariam livres se ela não mais falasse, sobre como a justiça devia ser feita, não só para ela, mas para todos os outros que poderiam ter sofrido, como a mãe dela. Falou todos os clichês que podiam ser falados. Mas ele não entendia. Ela não se importava. Não dava a mínima. Pensou cruelmente que quase já havia se acostumado com o cinza da cela, com as barras. Talvez ela devesse mesmo ser trancada em um hospício.
Negara um advogado semanas atrás, mesmo sob o alerta dos detetives de que seria uma má escolha. Não se arrependia. A cena do caco de vidro brilhando em suas mãos se juntara a tantas outras no seu pequeno filme mental em replay permanente. Cartas, ele, o caco de vidro, a agulha, o cigarro, cartas, o caco de vidro, ele. O corpo. O sangue.
Ele parou de falar e a encarou longamente, aparentemente irritado com o fato de ela não parecer estar ouvindo.
- ?
Ela riu. Riu alto, depois baixo, depois cruelmente. A tragédia dela chegava a ser cômica.
Ele tinha um olhar assustado no rosto. Ela o encarou, agora séria.
- Eu não me arrependo. – foi tudo o que disse, e então voltou a encarar o chão.
Ele desistiu. Por alguns, havia concluído em seus anos de trabalho, não havia o que fazer.
O filme começou a passar novamente em sua mente.
Uma vez ouvira de alguém que se você olhasse por tempo demais para dentro de um abismo, ele passaria a olhar dentro de você. E ela havia há muito caído nele.
Fiction betada por Taaci