Em Fogo
História por Andrea Cristina | Revisão por That

Era mais que óbvio. Eu sabia que o tão falado “fim do mundo” não seria no dia 21 de dezembro de 2012. Eu mesma fiz um trabalho escolar, no qual perdi horas preciosas das minhas noites, procurando em sites, enciclopédias e tudo mais sobre a cultura Maia. Com isso ficou claro que o dia 21 é só o fim de um ciclo – talvez o sexto ciclo. No calendário Maia consta doze ciclos – ou mais, porque eu esqueci completamente o que pesquisei nesse trabalho.
O importante aqui é que amanhã NÃO vai ser o fim do mundo. O mundo não vai acabar. Quem vai acabar somos nós! O mundo vai congelar de novo e depois começar de novo. De novo. De novo. Tudo de novo. Eu e o resto da população mundial ainda temos muitos e muitos anos de vida pela frente.
Tudo bem que eu respeito os Maias, afinal os caras foram a tribo mais inteligente do mundo, quiçá. Naquela época, sem nenhuma tecnologia, eles fizeram feitos incríveis! Contas matemáticas, templos maravilhosos, inventaram a astrologia – que hoje nos rende aqueles horóscopos que eu também não acredito muito... Mas o fato é que eles foram mal interpretados por nós. Fim do mundo só no fim do décimo segundo ciclo!
Só que as pessoas sempre tendem a usar essas coisas como desculpas para fazer tudo o que sempre sonharam e não tiveram coragem. Tudo mesmo. Do mais banal ao mais exótico. Mas vamos afunilar mais ainda essa minha teoria.
Adolescentes.
O fim do mundo para adolescentes se resume em uma só palavra.
Putaria.
Por que diabos eles tem que usar o pretexto de fim do mundo para poder sair copulando e bebendo por aí com desconhecidos? Já fazem isso no dia-a-dia mesmo, não é? Não entendo essa hipocrisia adolescente. Juro que não entendo. E olha que eu sou uma adolescente, heim!
Por exemplo, essa era a primeira aula do dia. Uma linda quinta-feira com aula de Francês e adivinhe? Não tinha ninguém na sala! Parece que todos eles combinaram de faltar para “aproveitar o fim do mundo”. Mas é claro que ninguém me avisou. Ninguém nunca me avisa.
A minha sorte foi que eu consegui sair da aula antes da professora chegar à sala, porque senão eu ficaria sozinha lá. E por mais que eu goste de ir à escola, assistir aula sozinha deve ser uma merda.
Assim que eu coloquei o pé na rua de casa, avistei o meu vizinho . Não que eu não vá com a cara dele, até porque a gente é um pouco amigo. Mas ele era sempre meio imbecil e eu já estava nervosa por ter sido abandonada naquela escola maldita... Ele tinha culpa em partes. Afinal ele tinha algumas aulas comigo e sabia dessa babaquice toda. Poderia ter me avisado.
Então ele vinha na minha direção com um sorriso enorme no rosto.
- !
- ! – eu respondi sorrindo, sem mostrar meus lindos dentes brancos.
- Tá de uniforme por quê? Foi pra escola?
- É, eu fui. Ninguém me avisou que não teria aula hoje...
- Ah... – ele disse – Ninguém te... Avisou?
- Não. Ninguém me avisou. – falei cruzando os braços.
- Ah, foi mal . A gente decidiu em cima da hora.
- Tudo bem, agora já foi, né? E, aliás, onde você tava indo?
- Tava indo lá com a galera.
- Lá onde? – perguntei curiosa.
- Parece que combinaram algum lugar para passar o dia fazendo tudo o que sempre quiseram antes do fim do mundo.
Eu dei uma leve risada. Era mais fácil se ele tivesse dito que todos estavam em um quarto, transando, fazendo swing, se drogando, bebendo, batendo em pessoas que são odiadas e essas coisas.
- Interessante...
- Tá a fim de ir com a gente?
- Eu? Eu não, valeu, . Vou é pra casa dormir. Descansar pra pelo menos morrer bonita amanhã.
Era uma ironia. Se tinha uma pessoa que estava mais certa de que que o fim do mundo não era no dia seguinte, essa pessoa era eu.
- , para com isso. Vamos lá... Você nunca faz muita coisa com o pessoal da escola. Só seu seleto grupo de amigos da outra escola...
- Eu não sou muito a favor das coisas que rolam nas festas da nossa escola.
- Você nunca foi pra saber o que rola ou não. – ele disse sério. Nem parecia o . Acho que ele se ofendeu.
- Ah, nem preciso ir pra imaginar, não é?
- Sei lá, acho que você poderia se libertar um pouquinho. Não custa nada ir lá pra conhecer. Se você não gostar, pode ir embora. Ninguém vai te obrigar a ficar. Poxa, o mundo acaba amanhã. Você não tem vontade de fazer algo que sempre quis antes do mundo acabar?
- Não. Eu não preciso da desculpa do fim do mundo para fazer alguma coisa...
Ele suspirou e balançou a cabeça afirmando. Com um aceno, me deixou pra trás e seguiu seu caminho. Eu segui o meu também. Garanto que metade daquela escola ia sair com sífilis do lugar que tinham combinado para ir. Bando de idiotas.
Assim que cheguei a minha casa, encontrei minha mãe em estado de choque, sentada a mesa e falando sozinha. Outra que estava desesperada com o fim do mundo. Como essas pessoas conseguem acreditar nessa babaquice toda?
Claro que ela nem ligou por eu não ter ido à escola, penso que ela até achou bom, porque antes de sair, eu ouvi a frase “você pode faltar se quiser” inúmeras vezes. Já meu pai... Ele foi para o trabalho normalmente, voltaria para casa na hora do almoço, como sempre, e às seis e meia da tarde chegaria a nossa casa, jantaria e se jogaria no sofá para ver o noticiário e as especulações sobre as milhões de maneiras do fim do mundo começar. Minha mãe não faria companhia a ele essa noite. Provavelmente ficaria presa no quarto, olhando a janela até ver uma explosão no céu e morrer de infarto antes mesmo da palhaçada toda começar. Mães.
E eu estaria no meu quarto à tarde e a noite toda, provavelmente comendo, ouvindo Blink-182 e lendo Jogos Vorazes ou qualquer outro livro que eu tenha tara. Mas isso não seria anormal, porque era isso que eu fazia todos os dias. E hoje não seria diferente. De jeito nenhum.
Amanhã eu ainda iria rir da cara de todo mundo.

Lembro-me de ter deitado na cama onze e vinte em ponto. Demorei dez minutos pra dormir porque fiquei remoendo a raiva dentro do meu peito por ter sido esquecida pela sala para a tal festinha deles. Eu digo que não me importo por não ser muito amiga deles, mas o que eu sinto é outra história. Sabe aquela coisa de faça o que eu falo e não faça o que eu faço? Bem assim. Pois é.
Só que inesperadamente eu acordei com um grito vindo do quarto dos meus pais. Demorei um pouco pra me situar, saber onde eu estava e que horas eram. Meu sono é bem pesado. A gritaria não parava e eu não conseguia achar o relógio. Resolvi sair da cama e ir até o quarto deles. Com passadas largas, passei ao lado de um velho relógio e constatei que eram quase três da manhã.
Assim que abri a porta, minha mãe estava na janela gritando desesperada e chorando, enquanto meu pai estava sentado no meio da cama olhando para o nada e uma lágrima escorrendo dos olhos dele. Aquilo me deixou desesperada. Que putaria era aquela? Todo mundo chorando e gritando a toa?
- O que está acontecendo aqui? – eu perguntei indo até minha mãe.
Mas ela diminuiu a distancia entre nós quando veio correndo na minha direção me abraçar e dizer que me amava muito. Eu não estava entendendo nada.
- Que isso mãe? – eu perguntei, saindo ao abraço e olhando nos olhos dela.
Eu fiquei com vontade de chorar só por vê-la chorando. Esse é o ponto fraco de todo filho.
Ela não me respondeu, apenas apontou para a janela. Eu segui até lá e só consegui dizer uma coisa.
- Puta merda!
A cena que eu vi não foi nada agradável. O céu estava completamente laranja e vermelho por causa de umas bolas de fogo que voavam na nossa direção. Ao longe eu vi uns prédios caindo e minha casa começou a tremer.
Olhei para baixo e a rua estava um caos! Todo mundo correndo para todos os lados, mas tinha uma pessoa parada olhando pra mim. Era o . O desespero dos meus olhos estava refletido nos olhos dele.
- Mãe, pai. Vamos descer e seguir a multidão. Talvez eles saibam algum tipo de abrigo.
- Já está tudo acabado, nós vamos morrer!
Minha mãe, que já estava em choque, deu mais um grito assim que ouviu uma explosão muito perto da nossa casa e depois uma parte do forro do quarto cair. Para fazer ela e meu pai saírem de casa foi um pouco difícil.
Mas assim que chegamos ao chão, meu pai e minha mãe correram atrás das pessoas e eu fui correndo até que estava tão em choque que tinha até paralisado. Com um aceno, indiquei para meus pais seguirem sem mim. Estávamos todos fodidos mesmo.
- , vamos correr!
Eu disse e ao fim disso, a minha casa caiu por conta do tremor da terra. É claro que com o grito que eu dei, acordou do seu transe e começou a me puxar para longe.
Toda a minha casa, toda a minha história, todos os meus CDs, meus livros, meu violão e o meu lagarto tinham explodido. Nunca mais eu entraria na minha casa de novo. Nunca mais veria meu lagarto devorar os ratinhos com tanta habilidade. Nunca mais.
E foi então que eu comecei a correr, de mãos dados com pra gente não se perder. O que era uma coisa idiota, porque nós morreríamos de qualquer jeito. E quando chegamos a um lugar onde ninguém mais corria para canto algum, eu fui até a frente da multidão com para ver que havia uma rachadura enorme na rua, onde eu podia ver até o magma da terra. O calor era insuportável e meu medo estava me fazendo morrer por antecipação.
- Merda, merda, merda! – eu disse chorando e abraçando .
- A Savanah é lésbica e tem uma tara por você. – ele falou e eu me assustei – O Maurice disse que o sonho dele era te comer. A Anne disse que sempre quis ser sua amiga...
Ele ia dizendo coisas sem nexo, e só então eu entendi que ele estava me contando tudo o que aconteceu, relacionado a mim, na festinha deles hoje mais cedo.
- E você? – eu perguntei – Quero saber o que você falou de mim.
- Que eu gosto de você. – ele disse me abraçando mais forte.
Mesmo com toda aquela movimentação, eu pude sentir um fio de esperança no meu coração. gostava de mim...
Mas a felicidade durou pouco. Com a enorme quantidade de gente chegando, todo mundo estava sendo espremido naquele pedaço de terra, e eu vi alguns dos meus vizinhos caindo no vão formado na rua. Os gritos eram agonizantes, e depois de uns segundos, não se ouvia mais nada. Só algumas lavas de magma espirrando em grande velocidade para fora, caindo em cima de mais pessoas que queimaram logo ali, na minha frente.
E então alguém me empurrou. E eu caí.





Eu caí tão fundo, mas tão fundo que eu não conseguia mais enxergar nada. Tudo estava escuro. Acho que o magma queimou meus olhos. Eu me remexia de um lado para o outro, naquela queda-livre infinita. Eu não desejava isso para ninguém! Aquilo devia ser o inferno, se é que o inferno existe.
- ! – eu ouvi gritos – !
Era a minha mãe! Ela também estava caindo.
- ! ACORDA! Sai dessa cama! O ta te chamando lá em baixo.
Que porra é essa?
Com um pouco de preguiça, abri um olho e, ofegante, olhei ao meu redor. Eu estava segura, no meu quarto. Pude ouvir o fim da música “Fuck a dog” do Blink tocando, o que significava que mais alguns segundos e o CD acabaria. Ao meu lado, aberto, estava um livro que eu não lembro qual era. E, claro, um pacote de Kit Kat vazio em minhas mãos. Eu tinha dormido!
- Que é, mãe? – perguntei tentando não parecer tão assustada.
Afinal, pra quem não acreditava em fim do mundo, acordar quase fazendo xixi na cama de medo por conta de um pesadelo, é uma enorme vergonha...
- Já disse, o está lá em baixo te esperando. Anda logo!
Ela estava tão mal-humorada... O medo do fim do mundo ainda não tinha acabado, ela ainda devia estar em choque. Ai, mães! Ficam loucas, botam todos loucos em casa. Falou tanto desse fim do mundo que eu até sonhei...
Levantei da cama, olhei a hora no celular, fui ao banheiro arrumar meu cabelo, escovar os dentes e tirar aquele maldito uniforme do meu corpo. Ew. Dormi de uniforme, que ridícula.
Eu estava razoavelmente apresentável quando desci as escadas e abri a porta da sala, dando de cara com sentado na sarjeta de casa. Acho que eu o fiz esperar muito... Desci os dois degraus que saiam da porta de casa e fui até ele.
- E aí! – eu disse e me sentei ao lado dele
- E aí. – ele respondeu sorrindo – Tava dormindo, né?
- Ah… Eu tava. Tive uns sonhos muito loucos.
Ele deu uma risadinha bonitinha.
- Ué, não era pra você estar na putaria toda lá da escola?
- Ah, tá chato aquilo. Eles estão todos na praça, brincando de verdade ou desafio. E, como todo mundo só escolhe verdade, estamos sabendo de vários podres de muita gente lá...
- Mas nem com o fim do mundo esse povo fica corajoso.
- Foi o que eu pensei. Aí eu vim pra cá. Pelo menos se o mundo acabar, eu estarei conversando com alguém confiável e legal.
Eu sorri e olhei para o celular. Seis e meia.
- Bom, falta pelo menos cinco horas e meia pro começo do fim do mundo.
- É, acho que dá pra gente conversar bastante – ele falou e levantou, me levantando junto.
Ficamos andando pelo bairro até pararmos na pista de skate, que, ineditamente estava vazia! VAZIA! Ficamos bem na subida, onde dava para deitar confortavelmente. Era aconchegante! Se fosse verão, o sol ainda estaria brilhando e seria lindo ver a noite cair, lá pelas nove horas. Mas era inverno. Já tinha escurecido há bastante tempo, e estava frio. Muito frio! Talvez nevasse em algumas horas. Pelo menos em fogo a gente não ia morrer.
Como eu sou idiota, né? Fico me gabando por aí da certeza de que o mundo não vai acabar, mas me pego pensando que queimada eu não vou morrer. Maldito sonho. Maldito sonho! Aquele magma todo amarelado, meio laranja me queimando... Fogo.
- ... E se o mundo acabar em fogo?
Ele ficou uns minutos em silencio, e eu ponderei que ele talvez não tivesse escutado minha pergunta. Mas ele deu um longo suspiro e me respondeu.
- Uma vez eu li que fogo é a fonte da vida. Luz, calor, amor, renovação... Seria muito místico se o mundo acabasse em fogo. Porque seria como renascer para uma nova vida, onde a gente poderia fazer tudo diferente... Não... Na verdade, acho que o ponto não é fazer tudo diferente, é aceitar as escolhas uma vez feitas e saber lidar com elas... Eu... Eu não sei . É tudo muito enigmático pra mim. Os Maias estão acima do meu nível intelectual. E acho que de todo mundo dessa terra.
Eu não imaginava que me daria uma resposta dessas. Não que eu duvidasse da capacidade dele, mas é que ninguém teria pensado assim, em um lado positivo de tudo acabar em fogo. E talvez ele estivesse certo.
- Sabe , essa história de fim do mundo é mesmo uma idiotice.
- Uau... Explique-me.
- , nós somos o fim. O fim está dentro da gente.
- Como assim, ?
- Existe uma escritora Ucraniana que diz assim “Ela acreditava em anjos e, porque acreditava, eles existiam”. A partir do momento que eu paro de acreditar em alguma coisa, essa coisa passa a não existir, entende? Nós somos o fim. Quem acaba é a gente, não o mundo. O mundo é feito de gente, por isso dizem o fim do mundo. Mas não, . O fim somos nós.
Sabe quando você se sente feliz? Eu estava me sentindo assim. Ouvir dizer aquelas coisas me fizeram a pessoa mais feliz do mundo. Não tinha motivo algum, eu sei. Se alguém de fora ouvisse nossa conversa, diria que estávamos, no mínimo, sobre efeito de chá de cogumelo. Mas entre nós, no nosso mundo idiota de adolescentes fadados a uma mesma rotina, aquilo era quase tão bom como ouvir Sócrates e seu poder da retórica.
- Posso te abraçar? – eu perguntei, tentando dar voz a minha felicidade.
Ele sorriu e me puxou, e eu me encaixei ao lado dele. Ficamos assim por algum tempo. Ambos pensando em coisas aleatórias. Eu estava feliz, porque se o mundo acabasse mesmo, eu teria tido a conversa mais interessante da minha vida antes.
Foi quando eu percebi que faltava apenas quinze minutos para a meia noite. Quinze minutos para o fim do mundo. E parece que nós dois estávamos conectados, porque nos movemos no mesmo instante para fazer a mesma coisa. Nós nos beijamos. Fogo!
Fogo, o nascer de uma nova paixão.
Eu tinha certeza que depois da meia noite o mundo acabaria. Eu não seria mais a mesma, nem . Nem meus pais, nem a escola e nem o jeito deu ver a vida.
Fogo, nascer de novo.
E que eu tenha a possibilidade de acabar em fogo todo fim de noite.
Fogo, a renovação.


N/A: E aí bonita! Fanfic curtinha pro especial, espero que não tenha desapontado você... Eu particularmente não acreditava no fim do mundo antes dessa fic, mas depois o Niemayer morreu e tudo mudou haha Brincadeirinha! Tomara que tenham gostado! Mil bitoquinhas e até a próxima!


Qualquer erro nessa atualização é meu, só meu. Reclamações por e-mail ou pelo twitter.

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