"Heather passou anos internada em uma clínica psiquiátrica. Não se lembra de praticamente nada.
Pelo menos não das respostas para as perguntas mais óbvias. Como ela foi parar em um lugar como aquele? Por quê? Onde está sua família? Amigos?
Tudo o que ela sabe é que, a todo o momento, dia e noite, ela tem lembranças da vida de outra garota.
Disposta a procurar respostas, Heather sai em busca da verdadeira dona dessas lembranças.
Mas, aparentemente, todos que conhecem essa história farão de tudo para que ela não descubra o que realmente aconteceu."
“Atiramos o passado ao abismo, mas não nos inclinamos para ver se está bem morto.” (William Shakespeare).
Middletown, Connecticut. 15 anos atrás.
Emma abriu os olhos assim que o estridente som do despertador penetrou em seus ouvidos. Virou-se na cama e encarou o aparelho que apitava e piscava em vermelho: 06h00min. Desejava poder ficar ali, debaixo dos quentes e confortáveis cobertores por, pelo menos, mais 5 minutos. Mas não podia. Sabia que seria difícil encarar as pessoas naquela manhã. Principalmente depois do ocorrido na noite anterior. Não podia fugir como quem foge quando comete um crime. Pôs-se em pé e começou a se preparar.
Seus pensamentos estavam carregados enquanto penteava os longos e macios cabelos escuros e fitava sua imagem no espelho preso à parede. Não se sentia muito satisfeita com o que via. Magra demais. Pálida demais. Baixa demais. Aos seus próprios olhos, Emma não se enxergava como uma garota bonita. Mas aos olhos dos outros, estava perto da perfeição. Perdida em meio às lembranças da noite passada, Emma voltou à realidade ao ouvir leves batidas na porta de seu quarto.
– Pode entrar. – declarou ela de prontidão.
Um homem idoso com olhos castanhos muito brilhantes entrou no quarto com uma xícara nas mãos.
– Bom dia, querida. – depositou a xícara no criado-mudo ao lado da cama. Emma virou-se para ele e sorriu.
– Bom dia, vovô.
– Não pense que deixei de ver o estado em que você chegou ontem à noite. – Arthur Connors disse severamente. Emma já havia previsto as milhões de perguntas que o avô lhe faria pela manhã. Não queria perturbá-lo com seus problemas. Nunca quis. Mas o velho Sr. Connors era tão teimoso e persistente quanto a neta. Emma não fez qualquer comentário sequer. Permaneceu calada.
– Não quer me contar o que houve?
– Estou bem. – disse ela tentando não deixar transparecer qualquer tipo de emoção. Pegou a xícara de cima do criado-mudo e tomou um gole. – Não se preocupe, vovô.
– Mas, Emma...
– Preciso ir. Estou atrasada. – ela o interrompeu, devolveu a xícara para ele e depositou um beijo em sua bochecha direita.
Arthur não respondeu. Estava claro que Emma não queria conversar sobre o assunto. Ela pegou a bolsa pendurada na cadeira perto da porta e seguiu seu caminho.
Se seus cálculos estivessem certos, chegaria à escola com alguns minutos de atraso. Acelerou os passos. As ruas estavam vazias. Nenhuma alma viva ao redor. Enquanto corria, Emma sentiu o vento gelado batendo em sua face. Instintivamente abotoou seu casaco de lã e continuou a correr. Mal deu as caras no portão de entrada e já avistou um conhecido rosto que parecia estar esperando por ela.
– Nossa! – a garota alta de cabelos negros, parada à sua frente disse em tom de admiração. – Você veio mesmo.
– Bom dia para você também, Jodie. – Emma sorriu irônica. – Posso saber o motivo dessa sua cara de espanto?
– É que... Bem, todo mundo já está sabendo e... Pensei que não fosse aparecer depois do que houve. – Jodie tentou argumentar, sem jeito. – Aliás, eu sinto muito.
– Tudo bem. – respondeu Emma.
– Emma! – ela ouviu seu nome e virou-se para trás. – Não acredito que você veio.
Uma conhecida de cabelos castanhos e olhos a condizer correu na direção de Emma e Jodie.
– Por quê? – indagou Emma.
– Porque você...
– Estão agindo como se eu tivesse assassinado alguém. – interrompeu.
– Bom, sim. Mas ninguém esperava que você fosse aparecer por aqui nos próximos vinte anos depois do escândalo de ontem.
– Ora, Amanda, por Deus! – esbravejou Emma. Eram raros os momentos em que ela perdia completamente a paciência e alterava seu tom de voz. – Desde quando romper com o namorado se tornou algo tão grave assim?
– Desde que seu namorado espalhou pelos quatro cantos do mundo que você é uma vadia. – Amanda respondeu.
– O quê? – a resposta pegou Emma de surpresa.
– Frank está dizendo a todos que terminou com você porque você estava saindo com outros caras. – completou Jodie com muita calma.
Emma arregalou os olhos e encarou as amigas com a boca escancarada.
– O que você disse?
– Todos acham que você é uma vadia, Emma. – Amanda disse de forma clara e direta. Emma não pôde acreditar no que acabara de ouvir. Olhou ao redor e era como se todos a olhassem. Alguns com olhares de deboche, outros apenas curiosos. Um boato na Harrison Brown Academy se espalhava mais rápido que um câncer.
– Eu... Eu não acredito. – murmurou Emma. – Não foi ele quem terminou comigo. Todos deviam saber que as coisas entre nós não iam nada bem porque ele estava...
– Agindo feito um idiota. – interveio Amanda. – É, nós sabemos. Mas as pessoas... – ela revirou os olhos. – As pessoas adoram um drama.
– É só uma questão de tempo até surgiu alguma outra fofoca. Eles vão esquecer isso logo. – completou Jodie. – Estamos com você.
– Eu agradeço. – uma campainha soou interrompendo a conversa. Emma respirou fundo e entrou no corredor principal, seguindo até sua sala. Ignorou os olhares de seus colegas de classe e ocupou seu lugar em uma das nada confortáveis carteiras. As pessoas cochichavam e viravam-se para fitá-la de cima a baixo, fazendo comentários.
Emma virou o rosto e encarou a janela ao seu lado. Quem diria que terminar um relacionamento fosse lhe causar tantos transtornos? Ela sabia que havia tomado a mais certa das decisões. Amanda tinha razão. Frank Palmer era um idiota. Emma se perguntou como pôde ter se deixado enganar por tanto tempo ao lado dele.
Conheceram-se no primeiro ano do colégio, quando a família de Frank havia acabado de se mudar para Middletown, em Connecticut. O garoto alto, de cabelos castanhos ondulados e intensos olhos verdes logo chamou a atenção de Emma. E ela a dele. Aproximaram-se pela primeira vez quando tiveram que fazer uma pesquisa juntos para um trabalho de Ciências. Desde então, tornaram-se amigos.
Foi em uma festa em um fim de semana como qualquer outro que Frank perguntou a Emma se ela gostaria de ser sua namorada. Aceitou de imediato e nunca se sentiu tão feliz como naquela noite. No dia do décimo sexto aniversário de Emma, Frank sugeriu:
– Vamos para cima.
Feliz por estar dando o famoso “avanço” na relação, Emma se deixou levar pela mão que a guiava para um dos quartos da casa dele. Esperava que, assim chegassem ao quarto, as coisas aconteceriam de forma natural e espontânea. Ao contrário disso, porém, Frank mal se deu ao trabalho de trancar a porta. Levou-a até seu quarto e puxou-a para si, bruscamente. Em seguida pressionou seus lábios contra os dela com tal brutalidade que deixou Emma assustada. Não conseguia corresponder. Não daquele jeito. Algo estava errado. Ela percebeu isso quando Frank fez menção de desabotoar sua blusa branca. Não queria que as coisas acontecessem daquela forma. Pelo menos por enquanto.
Libertou-se rapidamente dos braços que a apertavam pela cintura e se afastou, dando um passo atrás e limpando os lábios umedecidos.
– O que houve? – Frank perguntou confuso. – Você não quer?
– Não... Não sei... Seus pais podem aparecer a qualquer momento e eu... – não completou a frase. Ainda estava assustada e, talvez, tão confusa quanto ele.
– Está com medo?
Emma assentiu com a cabeça.
– Mas você me ama... Não ama?
– Amo você, sim. E é exatamente por isso.
– Não entendo.
– Preciso que você espere. – respondeu ela. – Não me sinto... Preparada pra esse passo.
– Claro. Está tudo bem. – ele se aproximou e a acolheu em seus braços de forma gentil.
Frank não parecia desapontado ou bravo com ela. Emma agradeceu a Deus por isso. Mas suas tentativas de levá-la para a cama voltaram a surgir. Ele sempre encontrava um pretexto para chegar a esse ponto. E isso se repetiu por diversas vezes, até que Emma se cansou de dizer “não” e decidiu acabar com tudo aquilo de uma vez por todas.
Estavam em uma festa com alguns amigos. Frank a arrastou para um canto qualquer e a beijou. Emma correspondeu da melhor forma que conseguia, mas, de repente, ficou petrificada ao sentir uma das mãos dele subindo sua saia.
– Não. – ela o repreendeu, livrando-se da mão dele com rapidez.
– Qual o seu problema, afinal? – ele começou a gesticular. Parecia indignado.
– Acho que precisamos conversar.
– Conversar?
Emma lançou a ele um sério olhar. Frank bufou e disse:
– Tudo bem, tudo bem.
Ele a seguiu até o lado de fora da festa, onde a música terrivelmente alta não seria um problema.
– E então? – Frank cruzou os braços e esperou que ela começasse a falar.
– Não entendo o que se passa nessa sua cabeça, Frank.
– O que está querendo dizer?
– Você disse que ia esperar até que eu estivesse pronta, e, no entanto... – ela fez uma pausa e balançou a cabeça. – Está me forçando a tomar uma decisão, um passo que eu não estou pronta para dar.
– Mas você me ama. – o velho argumento de sempre. Emma não se deixaria enganar tão fácil dessa vez. Aquele jogo de manipulação barato não funcionaria novamente.
– Entretanto, não parece que você retribui, não é mesmo?
– Aonde quer chegar, Emma?
– Estou rompendo com você. – ela foi direta.
– O quê?! – arregalando os olhos, Frank a encarou surpreso.
– Disse que quero terminar tudo. Não consigo seguir adiante num relacionamento no qual não sou respeitada.
– Não pode estar falando sério.
– Nunca falei tão sério em toda a minha vida. – Emma deu de ombros.
– Pois não vai me dispensar como se dispensa qualquer um! – ele alterou seu tom de voz. Puxou-a pelo braço com certa violência e agarrou-lhe pelos cabelos. Ela se debateu freneticamente.
– Me larga! – protestou, afastando-o de si.
Ele lhe deu uma forte bofetada, tão forte que Emma quase foi ao chão. Frank sorriu insano. Sentiu alguém tocar-lhe o ombro, obrigando-o a virar-se para trás.
Também sentiu quando um punho o acertava fortemente em cheio. Sangue jorrava de seu nariz. Estava mais surpreso do que furioso.
Passou a mão pelo nariz recentemente quebrado e fitou o sujeito à sua frente. Encararam-se por segundos.
– Você está morto, cara! – Frank declarou com raiva, apontando o dedo indicador para ele em um gesto de ameaça.
Mas sabia que não era adversário para ele. Não naquele momento. Hesitou em reagir e saiu de perto, ainda surpreso.
– Você está bem?
Emma, encolhida no canto da parede, levantou os olhos, amedrontada. O desconhecido era um sujeito de cabelos escuros e olhos intensamente negros. Foi tudo o que conseguira notar, pois a escuridão da noite favorecia para que Emma não reconhecesse a pessoa que a encarava seriamente enquanto esperava que ela respondesse. Emma cobria com as mãos um dos lados do rosto, ainda queimando devido à bofetada.
Pôs-se em pé, atordoada, e correu. Correu sem olhar para trás. Queria chegar em casa, jogar-se em sua cama e pensar que tudo aquilo havia sido um terrível pesadelo. A droga de um pesadelo.
Encontrou seu avô dormindo no sofá da sala quando finalmente chegou em sua casa. Ele, provavelmente, caíra no sono enquanto a esperava. Silenciosamente, Emma caminhou até seu quarto e deixou-se cair sobre sua cama. Ali ficou. Até a manhã seguinte.
Esperava que o ocorrido não chegasse aos ouvidos de mais ninguém. Estava sendo boba por pensar na existência dessa possibilidade. Era mais do que óbvio que as pessoas fariam comentários no dia seguinte. Isso era previsível. Mas Emma não esperava que Frank fosse distorcer a história com mentiras sujas. Agora sabia que estava completamente enganada a respeito dele. Não era quem ela pensava que ele fosse. Jamais tinha sido.
Com certeza ela o perdoaria se ele dissesse que sentia muito pela forte bofetada que lhe dera na noite passada. Mas não reataria com ele. Seria estúpido depois do que ele lhe fizera. E isso, provavelmente, não era nada perto do que ele poderia ter feito se aquele desconhecido não o tivesse interrompido. Emma nem sequer havia lhe agradecido. Estava desesperadamente amedrontada. Mas não se censurou por não ter trocado qualquer palavra com o sujeito. Mal sabia de quem se tratava. Com certeza não se tratava de ninguém que estava na festa. Todos gostavam de Frank. Pelo menos, pareciam gostar.
Por um momento Emma se perguntou quem poderia ter acertado Frank Palmer em cheio sem se importar com os comentários alheios. Na verdade, isto lhe era indiferente, mas era nisso que estava pensando enquanto encarava o nada pela janela de sua sala de aula. Mais tarde, enquanto voltava para casa, percebeu, no entanto, que Frank não havia aparecido no colégio naquela manhã. Obviamente, não queria que ninguém o visse com o rosto inchado. Não queria enfrentar as consequências. Era covarde. Essa era a palavra.
Emma seguiu em seu ritmo, com lentos passos a caminho de casa. Parou ao sentir uma mão pesar em seu ombro. Virou-se instintivamente para trás. Deparou-se com um rosto que podia jurar ter visto antes, mas não o reconheceu de imediato. Seus olhares se cruzaram.
– Desculpe se eu te assustei. – o desconhecido esboçou um sorriso.
Emma franziu a testa. Havia confusão em seus olhos.
– Fico feliz em te reencontrar em circunstâncias melhores do que as de ontem à noite.
Ela o reconheceu. Ele continuava sorrindo, mas ela não. Fitou-o com seus grandes e vivos olhos castanho-claro, curiosa, e, em seguida, disse:
– Foi você quem...?
– De nada. – ele disse antes que ela completasse a pergunta. – A julgar pelo seu aspecto inteligente, duvido muito que aquele covarde seja seu namorado.
– Não mais. – respondeu ela. – Eu agradeço muito pelo que você fez por mim, mas não creio que tenha sido realmente necessário.
– Mesmo? – ele sorriu com uma ponta de ironia. – Você pretendia contornar a situação o convidando para um chá com bolachas?
– Não se resolve violência com mais violência. – Emma declarou com convicção.
– Não vou te contrariar. – ele sorriu mais uma vez e virou-se de costas, se afastando, fazendo menção de ir embora.
– Espere. – disse Emma. Ele parou e virou-se para encará-la. – Não vai me dizer quem é você?
– Se está interessada em saber, descubra sozinha. – respondeu, por fim.
Ele se afastou em rápidos passos até que Emma não pôde mais enxergá-lo. Olhou ao redor e notou que as pessoas continuavam encarando-a com olhares de deboche. Jodie não estava enganada quando disse que era apenas questão de que outro boato surgisse. Mas quanto tempo levaria até que se esquecessem daquilo e deixassem Emma em paz? Seguiu seu trajeto de volta para casa. Seu avô cuidava de algumas flores quando ela chegou.
– Como foi o seu dia, querida? – Arthur Connors perguntou radiante.
– Foi ótimo, vovô. – Emma esforçou um sorriso e entrou em casa. Tomou um rápido banho com os pensamentos ainda desorientados em sua mente. Lembrou-se de seu compromisso. Havia combinado com suas amigas que as encontraria mais tarde para conversar. À tardezinha, vestiu um vestido verde-pálido, escovou os cabelos e pegou sua bolsa. Acenou para seu avô que continuava a lidar com as plantas em frente à casa e saiu ao encontro de suas amigas.
Passaria uma agradável tarde ao lado de Amanda e Jodie e depois voltaria para casa. Tomaria um café com seu querido avô e depois dormiria tranquilamente. A “agradável” tarde, porém, foi terrivelmente constrangedora. Encontrou-se com suas amigas em uma lanchonete da cidade.
Estava tudo ocorrendo de forma tranquila. Amanda fazia comentários sarcásticos e Jodie completava com suas coerentes explicações. Emma finalmente estava começando a relaxar quando um garoto se aproximou da mesa delas.
– Com licença. – disse ele olhando Emma diretamente nos olhos. – Gostaria de saber quanto você cobra pelos seus serviços.
De início ela arqueou uma sobrancelha sem entender coisa alguma. Jodie e Amanda arregalaram os olhos. Emma levou alguns segundos para registrar a insinuação daquelas palavras.
– Serviços? – ela disse.
E as pessoas que estavam sentadas em outras mesas começaram a rir. Ela reconheceu todos eles. Via aqueles mesmos rostos todos os dias no colégio.
Sua cabeça começou a latejar violentamente.
Atordoada devido às fortes dores, Emma se levantou e caminhou até a porta da lanchonete. Tomou ar e saiu. Do lado de fora ainda ouvia-se os risos de deboche. Jodie balançou a cabeça negativamente e Amanda também permaneceu em silêncio.
Emma seguiu pelas ruas, ainda atônita pelo constrangimento que havia enfrentado na lanchonete. A noite caíra rápido. As ruas estavam parcialmente escuras. Postes piscando iluminavam o caminho de Emma. Manteve seus lentos e hesitantes passos até que parou. Ouviu algo. Levantou os olhos.
Encostado a um muro, a poucos metros de onde ela estava, Emma avistou alguém já não tão desconhecido quanto antes. Dedilhava uma melodia com um violão em mãos. Olhar distante. Parecia extremamente distraído.
Emma avançou alguns passos e ele sequer pareceu notar sua presença. Emma pigarreou e ele interrompeu a melodia, assustado, virando o rosto para encará-la. Lançou para ela um olhar frio. Sério.
– Desculpe. – ela disse hesitante. – Não queria atrapalhar.
– Você não é a primeira e nem vai ser a última pessoa a me interromper. – respondeu ele, indiferente, deixando o instrumento de lado e desviando seu olhar do dela.
– Eu realmente... – desistiu de se explicar. Sempre que tentava se explicar acabava não encontrando as palavras certas. – Você não é daqui, não é?
– Por que diz isso?
– Bom, eu nunca te vi antes. – ela deu de ombros. A resposta era óbvia.
– Eu sou de Chicago.
– Que... Legal. – foi tudo o que conseguiu dizer a respeito. – E o que te trouxe pra cá? Digo... Por que trocar tudo aquilo por um lugar como esse?
– Não tive outra escolha. – ele respondeu, metendo as mãos nos bolsos da jaqueta preta. Emma decidiu quebrar a tensão do ambiente.
– Sou Emma. – estendeu uma das mãos e tratou de estampar seu rosto com seu melhor sorriso. – Emma Connors.
– Emma Connors? – disse em tom inquisitivo. Voltou a encará-la, dessa vez com curiosidade. – Que nome mais britânico!
– Não necessariamente. – ela sorriu e ele também. Apertou-lhe a mão com firmeza.
– Alex Montini. – ele falou e ela o fitou diretamente nos olhos com seriedade por um instante. – Algum problema?
– Não. – respondeu. – É que... Os olhos podem dizer muito sobre uma pessoa.
– Bom, até onde eu sei – ele a encarou de tal forma que ela começou a se sentir incomodada. – Quando se olha para alguém dessa forma é porque está interessada.
– As coisas não funcionam dessa forma por aqui.
– Desculpe. – ele sorriu de canto e não disse mais nada, voltando a colocar as mãos nos bolsos.
– Montini é um sobrenome italiano. – observou ela.
– Ora, mas vejam só! – exclamou ele, admirado. – Você não é só um rostinho bonito. – Emma corou, mesmo não entendendo se aquilo se tratava realmente de um elogio ou mera ironia.
– Sobrenome italiano. Claro. – ela disse. – Gente civilizada.
– É... – ele respirou fundo. A expressão de seriedade voltou a estampar seu rosto. – Olha, por que não continua andando?
– Como disse? – indagou Emma.
– Eu perguntei por que não vai embora. Garotas como você não podem ser vistas com caras como eu. Não é assim que funciona?
– O que você quer dizer com “garotas como eu”? – indagou Emma. – Eu não sou como as outras garotas. – disse com convicção.
Ele emitiu um riso abafado e disse:
– Claro que não.
– Gostaria muito que não me confundisse com as pessoas com que está habituado a conviver.
– Eu não costumo dar rótulos a ninguém. – respondeu rapidamente. – Garotas bonitas como você não deviam conversar com caras feios como eu. Foi o que eu quis dizer.
Emma ficou em silêncio mais uma vez, tentando interpretar a frase que acabara de ouvir.
– Olha, você não é feio. – afirmou ela.
– Mas também não sou exatamente um galã de Hollywood. – ele falou. – Aliás, você só está dizendo isso para ser gentil.
– Não.
– Tanto faz. – Alex deu de ombros.
– Você é sempre calado desse jeito? – ela arriscou perguntar.
– Depende. – disse rapidamente.
– Bom, eu... Acho que estou tomando muito do seu tempo. – declarou ela. – Desculpe mais uma vez.
Virou-se de costas e deu alguns passos.
– Pode falar, Emma. – ela o ouviu dizer. Virou-se e arqueou uma sobrancelha, confusa.
– Falar o quê?
– O que quiser. Qualquer coisa que nunca diria a um estranho. – ele respondeu. – Não sei, às vezes é melhor desabafar com qualquer um do que com um conhecido.
– Não acho que queira ouvir meus problemas.
– Nunca vai saber se não tentar.
Primeiro, Emma abominou a ideia de contar sobre seus problemas para alguém que acabara de conhecer. Seria imprudente. Mas diante da situação em que se encontrava, julgou não ter nada a perder. Ela avançou alguns passos e aproximou-se dele novamente.
– Fui encontrar algumas amigas. – ela começou a falar. – Mas... Bom... Por causa do que houve ontem... – não encontrava as palavras certas para explicar.
– Pode falar. – ele disse, pela primeira vez em tom amável.
– Meu ex-namorado está inventando coisas a meu respeito. Coisas absurdas.
– E as pessoas acreditam no que ele está dizendo?
– E por que não acreditariam? Todos o adoram.
– Desculpe. – Alex a interrompeu. – Mas acho que você vive cercada por idiotas.
– Não sei. – ela balançou a cabeça negativamente. – As pessoas me olham como se eu tivesse me tornado uma criminosa. Eu me sinto péssima toda vez que dou um passo fora de casa. E eu sinto que isso pode piorar.
– Há quanto tempo estavam juntos?
– Dois anos.
Ele soltou outro riso, dessa vez de admiração.
– O que foi? – indagou ela.
– Aguentou aquele cara por dois anos?
– Eu...
– Não entendo o que alguém como você fazia com ele. – parecia realmente surpreso.
– Frank não é má pessoa. Ele só... Se deixa levar por influências.
– Coisa típica de alguém ser personalidade alguma.
– Não creio que seja isso.
– Cada um pensa o que quer. Só acho que você merece coisa melhor.
– Você mal me conhece! – ela riu.
– De fato. – ele concordou. – Mas tenho observado seus olhos nos últimos vinte minutos e, você sabe, os olhos podem dizer muito sobre uma pessoa.
Emma não hesitou em abrir um sorriso. Nunca imaginou que ao conversar com um estranho fosse se sentir confortável.
– Aliás – Alex acrescentou. – Seu namorado parece um sapo.
Ela riu instantaneamente. Uma gargalhada alta. Verdadeira. Sincera. Há muito tempo Alex não ouvia o som do riso de alguém. Há muito tempo ele não fazia alguém rir.
– Acho que devo concordar com você. – Emma disse, ainda rindo.
– Você devia fazer isso mais vezes.
– Isso o quê?
– Rir. Ser você mesma. – ele respondeu. – Agir naturalmente te cai bem. Não sei.
– Obrigada. Eu acho. – ela disse, timidamente. – Preciso ir. Meu avô deve estar terrivelmente preocupado.
– Claro. Principalmente pelo fato de você estar conversando com um estranho à noite, em uma rua totalmente deserta.
– Foi realmente... Agradável... Conversar com você.
– O prazer foi meu.
Ela não disse mais nada. Abriu um sorriso e começou a andar. Havia sido uma agradável conversa. Emma se esquecera do ocorrido com suas amigas na lanchonete e das fortes dores que cabeça que pareciam ter finalmente desaparecido. Uma sensação de bem-estar tomou conta dela enquanto caminhava de volta para casa. Encontrou seu avô assistindo TV na sala assim que chegou.
– Boa noite, vovô.
– Pensei que fosse dormir na casa dos Thornton. – comentou Arthur Connors.
– Amanda tem outros compromissos. – ela respondeu. – Jodie ficou fazendo companhia a ela na lanchonete.
– Compreendo. – ele a observou por momentos. – Parece que algumas horas com as amigas fizeram você se sentir bem melhor.
Emma sorriu e assentiu com a cabeça, dizendo:
– Eu já vou me deitar.
– Boa noite, querida.
Ela aproximou-se do avô, deu-lhe um beijo no rosto e seguiu para seu quarto.
Sentia-se leve, como se tivesse tirado o peso de três carros de cima das costas. A necessidade de expor seus sentimentos em relação ao que estava enfrentando já não estava mais lá. Apenas um imenso alívio. Fazia tempo que não se sentia assim.
Emma dormiu com a mente totalmente vazia naquela noite. Dormiu como há muito tempo não dormia: tranquila.
Hartford, Connecticut. 15 anos depois.
– Heather! Heather! - uma voz soou ecoando longe, quase inaudível. - Heather, acorde! - duas mãos a sacudiam. Heather abriu os olhos, acordando de seu transe.
Ela agora estava com os olhos bem abertos, sem dizer palavra alguma. Suas mãos suavam e suas pernas tremiam.
– Você viu de novo, não é?
Ela assentiu com a cabeça.
– Respire fundo. - Heather voltou à realidade. O médico a segurava pelos ombros e falava suavemente, tentando acalmá-la. - Vamos, fale comigo. Diga algo, Heather.
– Eu... - sentiu sua cabeça latejar. - Eu não... Ela não fez nada...
– Quem? - ele indagou. - Quem não fez nada?
Ela manteve-se calada.
– Heather, preciso que converse comigo. Preciso saber o que se passa. Só assim poderemos ajudá-la.
Heather sorriu de canto, irônica:
– Não podem me ajudar... - fez uma pausa. - Não podem me ajudar até que eu a ajude.
– De quem está falando? - ele insistiu.
– Desista. - outro médico entrou na sala, aparentemente bem mais velho. - Ela não vai dizer nada a respeito disso.
– Como assim?!
Este segundo deu-lhe um sinal. Os dois saíram, deixando Heather sozinha novamente.
– Heather é uma paciente complicada.
– Sim, claro. Como todos os outros...
– Não. Ela está aqui há muito tempo. Não conseguimos diagnosticar o que... O que se passa na cabeça dela.
– Por que não?
– Foi internada por causa destas alucinações.
– Mas... Doutor, muitos dos outros pacientes também estão aqui porque ouvem e veem coisas que...
– Heather tem lembranças da vida de outra pessoa.
– Como?! - o médico pareceu surpreso com tal afirmação.
Heather ainda estava na sala, sentada no chão com os braços ao redor dos joelhos, cabisbaixa.
Era a milésima vez que enviavam um médico diferente para examiná-la, conversar com ela.
Aquelas conversas, no entanto, não chegavam a lugar algum. Nenhum deles ajudaria a fazer com que aquelas imagens parassem de rodar em sua cabeça, como um filme. Nada faria com que aquele pesadelo acabasse. Pelo menos nada que outras pessoas tentassem fazer.
Mas Heather sabia o que fazer. Teria de fazê-lo sozinha. Somente ela e mais ninguém.
૪
O dia seguinte no colégio foi exatamente igual para Emma. Os boatos inventados por Frank Palmer ainda eram comentados por todos ao seu redor.
Até mesmo quando o próprio Frank apareceu naquela manhã. Com um curativo ridículo no nariz, ele caminhou pelos corredores da Harrison Brown Academy como se nada tivesse acontecido. Parecia tranquilo. Isento de culpa. Percorreu o caminho do corredor principal e parou para conversar com alguns amigos. Emma instintivamente parou de observá-lo quando ele a encarou e lançou para ela um olhar carregado de ódio.
– Isso passa. – comentou Jodie Adams. Parecia estar certa disso. – Está chateado por você ter dispensado ele. Quem dera fosse só isso. Pensou Emma.
– Você tá legal, Emma? – Amanda perguntou.
– Sim.
– Estava péssima ontem, quando foi embora.
– Com todas as razões do mundo. – interveio Jodie. – Eu faria o mesmo se tentassem me humilhar em público daquela forma.
Todas as manhãs seguiram da mesma maneira. Emma já não se incomodava com os olhares de deboche lançados para ela. Nem com os maldosos comentários feitos toda vez que ela passava por um corredor. Mas o que realmente a deixou abalada foi quando voltou para casa e encontrou seu avô esperando por ela na sala. Um severo e sério olhar estampava o rosto dele, quando disse:
– Por que não me disse que Frank Palmer havia rompido com você?
– O quê? – arregalou os olhos, incrédula. – Vovô, eu não...
– Eu passei pela mais constrangedora situação de toda a minha vida. – Arthur Connors parecia extremamente decepcionado. – Ouvir pessoas falando coisas desprezíveis sobre você. Minha própria neta!
– Vovô...
– Por que, Emma? Por que estão dizendo essas coisas ao seu respeito?
– Frank mentiu! – ela entrou em desespero, surpresa por ele não estar a apoiando ao invés de estar lhe fazendo acusações. – Pelo amor de Deus, vovô! Estão dizendo mentiras! Acredite em mim!
Seu avô não respondeu. Não disse mais nada. Um silêncio terrivelmente perturbador tomou conta do ambiente. Emma sentiu um aperto no estômago e a cabeça voltou a latejar.
– Frank mentiu. – repetiu ela, dessa vez em tom muito baixo. Sua voz não passava de um sussurro. – E quem rompeu com ele fui eu.
Arthur não disse nada. Emma prosseguiu:
– Tive meus motivos, mas não fiz nada do que estão dizendo. E estou surpresa pelo fato do senhor não acreditar em mim. – ela virou-se de costas, abriu a porta e saiu. Passou a mão pelos cabelos e respirou fundo. Sentiu-se completamente sozinha. As pessoas acreditavam cegamente nas palavras de Frank Palmer. Isso não a surpreendia em nada. Mas as palavras ditas por seu avô a feriram mais do que a bofetada dada por Frank.
Desde a morte dos pais em um trágico acidente de carro, quando ela tinha apenas cinco anos, Arthur tornara-se a única família de Emma. E muito cedo ela decidiu que não o perderia por nada nessa vida. Tentava sempre ser o motivo de orgulho do avô. Não queria jamais decepcioná-lo. E, no entanto...
As primeiras lágrimas começaram a cair, antes que pudesse controlá-las. Sentou-se em um dos três degraus em frente à sua casa e desatou a chorar.
– Não abaixe a cabeça para os seus problemas, garota. – uma voz familiar soou. Emma virou o rosto na direção da voz.
– O que faz aqui? – ela perguntou, enxugando o rosto rapidamente. – Como me encontrou?
– Não tinha a intenção de te encontrar. – Alex Montini avançou para ela e sentou-se ao seu lado. – O que houve?
Emma não respondeu.
– O que há de errado? – ele insistiu em perguntar.
– Tudo. – respondeu de imediato, em tom rude.
– Você parece terrivelmente frustrada.
Ele estava começando a se tornar inconveniente. Mas Emma era educada demais para lhe dizer isso diretamente. Mesmo estando no estado em que estava. Recomeçou a chorar involuntariamente.
– Desculpe... – ela tentou recuperar o autocontrole. – Deve estar me achando ridícula.
– Pelo fato de você estar chorando? – balançou a cabeça em sinal negativo. – Pelo contrário. Muitos não têm coragem de chorar. E não precisa se desculpar por isso, pelo amor de Deus!
Emma engoliu os soluços e o encarou.
– Conte-me o que houve. – disse Alex em tom muito calmo.
– Meu ex-namorado anda dizendo coisas horríveis ao meu respeito.
– Eu sei. Você me disse isso ontem.
– Mas nunca pensei que essas coisas fossem chegar aos ouvidos do meu avô. – lágrimas voltaram a correr pela face de Emma.
– Ele ficou contra você?
Ela assentiu. Instintivamente, Alex colocou o braço sobre os ombros dela. Estava trêmula. Ela o encarou, assustada. E então ele se afastou, dizendo:
– Desculpe. – fez uma breve pausa. Ele mesmo estava surpreso por ter tomado tal atitude. – Vai ficar tudo bem, Emma.
– É fácil falar. – disse ela. – Eu nunca pensei que meu avô fosse sentir vergonha de mim. Ainda mais por coisas que eu não fiz.
– Agora sabe por que eu me isolo das pessoas que você conhece. – ele sorriu de canto. – Gente artificial demais. Dão-lhe as costas quando você mais precisa deles.
– Eu... Me sinto sozinha...
– Claro que se sente. – concordou. – Mas seu avô não abandonou você. Aposto que ele está tão confuso quanto você. Leva um tempo até que as pessoas esqueçam essa coisa toda. – explicou ele. A voz dele soou reconfortante aos ouvidos de Emma. – Não dê importância às coisas que os outros falam. Você se conhece melhor do que qualquer pessoa nesse mundo. Sabe bem o que você é e o que você não é. Certo?
Novamente ela assentiu com a cabeça.
– Ótimo. Na verdade, você precisa perdoar essas pessoas.
– Vai ser um pouco difícil.
– Claro que vai. Mas é necessário. Guardar rancor vai prejudicar a você mesma.
– Tem razão. – concordou ela. Olhou para ele e esforçou um sorriso. – Obrigada.
– Não me agradeça. – ele colocou-se em pé. – Isso não é nada.
– De qualquer forma...
Alex deu um sorriso meio sem jeito e se afastou. Deu longos passos até que não pôde mais ser visto aos olhos de Emma, que continuou sentada nos degraus em frente à sua casa. Tentou ordenar seus pensamentos, se acalmar e esquecer os motivos que estavam a deixando profundamente magoada.
Levantou-se e começou a caminhar.
Resolveu dar uma caminhada para clarear a mente e o espírito. Perdida em meio a esses pensamentos, Emma não percebeu quando alguém vinha em sua direção e lhe deu um empurrão proposital. Ela quase caiu. Voltou à realidade imediatamente, assustada.
– Olhe por onde anda! – disse alguém em tom debochado.
Emma reconheceu ser Frank. Não usava mais um curativo no nariz, mas o hematoma arroxado ainda estava lá. Ela julgou que ele não se esqueceria daquilo tão rápido quanto ela imaginava. Fez menção de ignorá-lo e saiu de perto, mas ele a deteve, puxando-a pelo braço.
– Me solta. – ela disse em tom calmo. Não estava disposta a inicia outra briga.
– Não adianta você bancar a boazinha, Emma. – ele a fitava diretamente nos olhos enquanto sua boca proferia palavras em tom rude e frio. – Todos sabem que você é uma vadia.
– Não me importa o que você tenha inventado sobre mim, Frank. – declarou ela, seriamente. Tentava manter o controle com todas as suas forças.
Não era hora de perder a cabeça com aquelas provocações. – Eu sei o que eu sou e o que eu não sou.
– Então assume que é uma vadia? – ele riu, fingindo surpresa.
– Eu realmente acho que você precisa de ajuda. Está completamente louco. A quantidade de absurdos que você diz equivale a cada gota de água no oceano. – bruscamente, ela se soltou da mão que a segurava. – Pode falar o que quiser de mim, mas quero deixar bem claro uma coisa: – levantou o queixo com ar de superioridade. – Não se meta com minha família.
– Família?! – Frank Palmer arqueou uma sobrancelha. – Que família? Você está sozinha nesse limbo, Emma.
– Não tanto quanto você. – respondeu. – Porque essas pessoas que te cercam hoje podem te apunhalar pelas costas amanhã.
– Ora, ora... – ele matinha um sádico sorriso nos lábios. – Parece que já está começando a mostrar as suas garras. Também quero deixar algumas coisas bem claras por aqui. – fez uma pausa e apontou um dedo. – Seu amiguinho delinquente está ferrado.
– Já disse. – advertiu ela. – Diga o que quiser, isso não me afeta em nada. Mas não ouse se meter com minha família. – ela olhou para ele uma última vez, séria, e depois seguiu caminhando. Pôde ouvir a voz dele soando atrás:
– Você não tem ideia do problema em que se meteu, Emma!
Ela o ignorou. Por mais que tivesse se demonstrado forte e imune às provocações de Frank, Emma tinha medo. Medo de que sua vida se transformasse num verdadeiro pesadelo. E isso poderia acontecer num estalar de dedos se Frank Palmer quisesse. De alguma forma ele sabia como persuadir as pessoas de modo que elas acreditassem nele cegamente.
Emma voltou para casa e não encontrou seu avô na sala. Provavelmente já estava em seu quarto, dormindo. Ela decidiu fazer o mesmo.
Dessa vez, porém, foi se deitar com a mente atormentada pelos acontecimentos daquele dia. Emma não soube dizer se aguentaria a pressão daquela situação por mais tempo. Era como se um buraco se abrisse debaixo de seus pés e ela tentasse não cair nele, se segurando em uma corda frágil que arrebentaria a qualquer momento. Fechava os olhos e a visão de seu avô a culpando surgia. Não sabia o que doía mais: vê-lo desapontado ou saber que ele não acreditava nela. Pensou nos pais.
Talvez eles também não fossem acreditar nela. Talvez ela mesma não devesse acreditar. De quê adiantava a honestidade, então, se ninguém acreditava em sua existência?
Deixou que as lágrimas voltassem a brotar em seus olhos. Virou-se na cama mais uma vez até que caiu no sono.
O dia seguinte foi, talvez, ainda pior do que o anterior. Arthur Connors se recusou a dirigir qualquer palavra sequer à neta. No colégio as pessoas pareciam evitá-la. Confusa, Emma seguiu pelo corredor principal até que se deparou com suas amigas.
– O que está havendo? – ela perguntou.
Amanda e Jodie não responderam. Lançaram para ela um olhar que Emma não soube interpretar. As pessoas pareciam a encarar com mais intensidade.
– Sabemos que está andando com más companhias, Emma. – declarou Jodie.
– O quê?
– Está andando com aquele garoto estranho. – Amanda foi direta, como de costume. – Se quer reconquistar o respeito das pessoas, Emma, saiba que está agindo de forma errada. Você...
– Chega! – protestou Emma. – Não preciso de ninguém me dizendo o que eu devo ou não fazer, por favor. Não fiz nada de errado.
– Aquele cara não é boa companhia, Emma. – Jodie tentou explicar da forma mais calma possível. – Ouvi dizer que...
– Claro que você ouviu dizer! – Emma a interrompeu. – Todo mundo ouve dizer nessa cidade! Todo mundo quer cuidar da vida de todo mundo! Já estou farta disso.
– Estamos falando isso para o seu bem. – interveio Amanda. – Se acalme.
Emma respirou fundo, duas vezes. Jodie prosseguiu:
– Como eu dizia – encarou Emma com seriedade. – A família de Alexander Montini está metida em coisas ilegais.
– São da máfia. – completou Amanda.
Emma permaneceu séria por um instante, até que soltou uma gargalhada.
– Mas que diabos estão dizendo? – riu alto. – É só um garoto que não se sente à vontade com as pessoas daqui. E com razão.
– Foi transferido de várias escolas por comportamento inaceitável. Talvez não tenha nem terminado os estudos por causa disso. A família dele se mudou para cá porque já não era bem vista em Chicago. – Jodie começou a discursar. – Esse pessoal é encrenca na certa, Emma.
– O que é isso? – ela ainda ria. – Fizeram uma investigação sobre a vida toda dele? Me poupem!
– Você é quem sabe, Emma. – disse Amanda. – Se livrar de um namorado meio possessivo não foi tão difícil. Espero que tenha a mesma sorte com um meliante.
Emma franziu a testa num olhar irônico e sorriu de canto.
– Sério? – ela disse, ironicamente, olhando para as duas garotas paradas à sua frente, sérias. – Amanda, você nem sabe o significado da palavra meliante.
– Nós não estamos brincando. Não inventamos isso.
– Não duvido de vocês. – Emma deu de ombros. – Tenho que ir. Estou atrasada pra aula. – deu as costas para as amigas e se afastou rapidamente.
Amanda e Jodie se entreolharam. Queriam desesperadamente fazer Emma acreditar nelas, mas sabiam que seria em vão. Era teimosa, persistente.
Não acreditaria em nada que não quisesse acreditar. Mesmo que se parecesse não se importar, Emma se importava. Ela se importava porque todas aquelas fofocas espalhadas chegavam direto aos ouvidos do avô.
Ver o avô decepcionado era pior do que qualquer coisa no mundo.
Enquanto voltava para casa, naquele início de tarde, Emma resolveu-se. Não suportaria mais o silêncio do avô por um minuto sequer. Chegou em casa e o encontrou na sala, lendo um jornal.
– Vovô, – ela começou a falar em tom muito sério. – Não suporto mais esse terrível clima entre nós. Eu não fiz nada que possa lhe envergonhar. Jamais faria. Me surpreende muito que o senhor não tenha certeza disso.
Um longo silêncio. Emma prosseguiu:
– Terminei meu namoro com Frank porque ele estava... – pensou um pouco para não dizer nada que pudesse causar mais problemas. – Não estava sendo um bom namorado. Ele está chateado com esse fim e decidiu se vingar, digamos assim, inventando coisas ao meu respeito.
– Não quero ver o nome da nossa família na lama, Emma. – declarou Arthur Connors, severamente.
– E não verá, vovô. – respondeu ela. – Não verá. Pessoas falam de pessoas. Isso é da origem humana.
Ele encarou a neta com um olhar que não esboçava qualquer tipo de reação. Em seguida abriu um breve sorriso e disse-lhe:
– Estou orgulhoso por você não ter perdido a cabeça. Acho que tenho muito que aprender com você.
– Será que pode me perdoar, vovô? – Emma arriscou perguntando.
– Não há o que perdoar, minha filha. Agi de modo completamente errado. Quem lhe deve desculpas aqui sou eu. – abriu os braços e abraçou com ternura.
Emma finalmente sentiu que não estava sozinha.
– Obrigada, vovô. – disse.
– Minha pobre garotinha... – ele falou em tom compreensivo enquanto lhe afagava os cabelos. – O que essas pessoas estão fazendo com você?
– Vou ficar bem. – declarou ela com convicção.
Esperava ter razão. Esperava que tudo ficasse bem. Logo. Mas estava enganada. Os dias seguintes foram terrivelmente piores do que os anteriores.
As pessoas passaram a ignorá-la, fingindo que não a conheciam, que não podiam vê-la. Suas amigas não lhe dirigiam palavra alguma. Emma passou a sentir o amargo gosto da rejeição todas as manhãs no colégio.
Em seu caminho de volta para casa, distante avistava Alex Montini encostado a um muro, mas ela não ousava se aproximar. Não depois do modo como as pessoas a estavam tratando por ter se aproximado dele. Emma julgava estar agindo de forma errada. Tentava não se importar, mas se importava. Não queria ser como aquelas pessoas, mas estava agindo como eles. Evitava tomar certas atitudes com medo da reação alheia.
A opinião dos outros parecia valer mais para ela do que a sua própria. Em uma tarde, enquanto fazia seu trajeto rotineiro, Emma sentiu uma mão pousando em seu ombro. Virou-se, instintivamente e lá estava ele.
Hesitava em sorrir ou esboçar qualquer tipo de emoção, mas parecia estranhamente feliz em vê-la. Emma o encarou com os olhos muito abertos.
– Oi. – ela disse, muito hesitante. O olhar frio dirigido a ela lhe causava arrepios.
– Não tenho te visto por aí. – Alex comentou. – Aconteceu alguma coisa?
– Não.
– Tem certeza?
– Sim.
– É só isso o que vai dizer? Nossas longas conversas se resumiram a isso agora?
– Eu preciso ir...
– Te fiz alguma coisa, Emma?
Emma fez que não com a cabeça.
– Pensei que fôssemos... Não sei... Amigos. – ele disse. Parecia confuso.
– Não nos conhecemos.
– Ainda.
– Por que de repente esse interesse em minha amizade? – perguntou ela.
– Eu... – Alex fez uma rápida pausa e respirou fundo. – Não sei, eu... Tenho te sentido mais triste ultimamente. Talvez seja minha culpa por que...
– Sua culpa?! – interrompeu ela. – E por que seria sua culpa?
– Não tenho te deixado se aproximar para conversar comigo.
– Isso não faz sentido. – respondeu Emma.
– Então por que não me procurou mais?
– Tenho estado ocupada.
– Você está bem, Emma?
Repentinamente, o frio olhar que estava estampado no rosto dele deu lugar a um olhar de preocupação.
– Estou. – disse ela, desviando o olhar.
– Emma, eu vou te perguntar uma coisa e quero que me responda a mais pura verdade, certo?
Ela hesitou. Ficou em silêncio, mas acabou concordando com a cabeça.
– Muito bem. – ele disse. – Aquela foi a primeira vez que seu namorado te agrediu?
Emma ficou petrificada. O sangue fugiu-lhe do rosto e ela começou a suar frio. Não era a pergunta que ela esperava ouvir. Deveria responder?
– Meus problemas são meus. – Emma disse. Tentou parecer indiferente quanto à pergunta. – Cabe a mim resolvê-los sozinha.
– Não respondeu a minha pergunta ainda. – Alex insistiu.
Emma olhou ao redor. Não havia mais ninguém ali. Apenas os dois e a pergunta que pairava no ar.
– Por que quer saber? – ela indagou.
– Não vai parar de fugir da minha pergunta?
Ela respirou fundo. Mais uma vez. E outra. Tentou se manter natural, sem esboçar qualquer tipo de reação, quando disse:
– Não. – fez uma pausa. – Não foi a primeira vez.
– Filho da mãe... – ele murmurou.
– Eu não... Não deveria ter... – de um súbito, Emma pareceu se desesperar. – Isso não pode sair daqui, por favor.
– Se acalme. – suas mãos seguraram as mãos geladas dela e ele sentiu Emma estremecer com esse contato. – Por que acha que vou sair por aí aos quatro cantos do mundo contando o que você acaba de me dizer?
– Se Frank souber que eu...
– Ele não pode fazer mais nada contra você, Emma.
– Você não sabe.
– Ele não vai fazer nada dessa vez.
– Ele já está fazendo! – ela elevou o tom de voz e soltou suas mãos das dele. – A minha vida está um verdadeiro inferno! As pessoas me odeiam!
– Obviamente elas te odeiam. – ele respondeu com naturalidade.
– O que tá querendo dizer?
– Essas pessoas têm o ódio consumindo suas almas. É tudo o que elas sentem. Por isso é tudo o que elas sabem demonstrar. É o único sentimento que elas verdadeiramente conhecem.
Ela se manteve calada. Acalmou-se e esperou sua respiração se normalizar.
– Me desculpe. – ela disse. Sua voz soou baixa. – Eu tenho evitado te procurar.
– Por quê? – ele deu um sorriso de canto, sem entender.
– Porque... Tenho medo.
Ele abriu outro sorriso.
– Medo?!
– As pessoas estão dizendo coisas sobre você.
– Você tem medo de mim?
– Tenho medo de que essas coisas sejam verdades.
– Então você acredita no que os outros dizem ao meu respeito?
– Eu...
– Não estou repreendendo você, Emma, mas julgo que você seja inteligente demais para acreditar nas mesmas pessoas que estão dizendo mentiras sobre você.
– Você não entendeu o que eu quis dizer.
– Então me explique. – ele cruzou os braços e esperou que ela começasse a falar de forma mais específica.
– Não. – ela balançou a cabeça negativamente. – Sou péssima para explicar. Eu me expresso muito mal.
– Claro que não.
– De qualquer forma, você não entenderia.
– Emma, eu gostaria muito de te ajudar. De alguma forma eu me sinto na obrigação de fazer isso. Pode parecer a maior besteira que você já ouviu, mas eu sinto uma necessidade inexplicável de... Proteger você.
Ela ergueu as sobrancelhas e arregalou os olhos. Descobriu-se com o coração batendo descompassado. Por medo, certamente. Emma foi incapaz de dizer algo que pudesse quebrar o silêncio que tomara conta daquele momento.
– A maior besteira que você já ouviu, não é? – ele perguntou.
– N-não. Eu... Não. Está tudo bem.
– As coisas vão melhorar. Fique tranquila.
– Preciso ir. – disse ela, por fim.
– Claro. – concordou. – Desculpe por tomar seu tempo desse jeito, mas será que eu posso te ver de novo?
Emma apenas encarou-o mais uma vez e se afastou em passos hesitantes. Estava ainda mais confusa. Era a primeira vez em muito tempo que não ouvia alguém lhe tratar com ternura. No fundo, secretamente, Emma sentia necessidade de se sentir segura, de proteção.
Proteção que ela apenas sentia quando tinha os pais por perto. Queria voltar àquela época, onde fora feliz como nunca. Mas não podia voltar. Tinha que encarar o presente.
E o presente era aquilo. Pessoas a julgando o tempo todo, situações confusas e perturbadoras. Emma se lembrou das palavras de Alex. As coisas vão melhorar. Fique tranquila.
Ela não ficaria tranquila nem se quisesse. Não se tranquilizaria enquanto as pessoas não parassem de falar sobre ela e de encará-la o tempo todo.
Não ficaria tranquila enquanto não deixassem que ela cuidasse da própria vida sozinha. Ela se perguntou quando finalmente teria um pouco de paz.
Era disso que ela mais precisava no momento. Paz.
Emma soube que algo estava errado quando saiu para ir à Harrison Brown Academy de manhã e se deparou com Alex Montini na porta de sua casa.
– O que faz aqui? – indagou. Estava bastante surpresa.
Ele abriu um sorriso de orelha a orelha e Emma podia jurar que os olhos dele brilhavam, esbanjando satisfação em vê-la. Ficou ainda mais confusa.
– Pensei em te acompanhar até a escola.
– Péssima ideia.
– Por quê? – ele perguntou. Desmanchou o sorriso no rosto rapidamente.
Emma não lhe deu uma resposta. Não soube a forma certa de responder sem causar uma impressão contrária do que ela realmente queria dizer. Mas não sabia nem mesmo o que queria dizer. Estava confusa. Ainda.
– Está com medo que nos vejam juntos, não é? – o tom de voz dele soou familiar. Era o mesmo tom que Emma ouvira quando eles se conheceram. Frio. Severo. Rude. – Por mais que você diga o contrário, Emma, você realmente se importa com o que eles pensam ao seu respeito. A opinião deles importa pra você.
– Não! – ela protestou.
– Não negue o que está claramente óbvio.
Ficaram ambos em silêncio. Ela ainda não sabia como explicar e ele estava certo de que se enganara ao achar que ela era diferente.
– Por que você veio? – Emma perguntou.
– Já disse. Pensei em te acompanhar no caminho.
– Quero dizer... Por quê? Eu não esperava ver você na porta da minha casa disposto a me acompanhar. Não é o seu tipo.
Alex deu de ombros.
– Achei que fôssemos... Não sei. Amigos. – ele disse. – Mas banquei um idiota, claro. E você tem razão. Não é o meu tipo. Não devo confiar nas pessoas desse jeito. Confiar cegamente nunca é bom.
Emma o encarou surpresa e falou:
– Não imaginava que você cultivasse consideração por mim.
– E por que não? Você é uma excelente ouvinte. Mesmo quando eu não falo muito.
Ela abriu um sorriso espontâneo.
– Essa sou realmente eu.
– Gosto de você.
– Claro. – disse com uma ponta de ironia.
– Falo sério.
– Por favor! Quem sou eu?
– O que te faz agir dessa forma agora?
– Os últimos acontecimentos, talvez. Não sei.
– Coisas ruins acontecem às boas pessoas.
Emma não disse mais nada por um curto intervalo de tempo. O fitou nos olhos e respirou fundo, dizendo:
– Você quer mesmo me acompanhar?
– Claro. Não vim até aqui para nada, Emma.
– Certo, certo. – ela abanou a cabeça. – Podemos ir.
Ele sorriu e a acompanhou.
Obviamente os comentários apenas cresceram, tornando-se cada vez mais absurdos. Emma, porém, não parecia se importar tanto quanto antes. Os boatos maldosos a seu respeito já não faziam tanta diferença.
Alex passou a acompanhá-la todas as manhãs para o colégio – o que, obviamente, fez com que os comentários se tornassem cada vez piores -, mas Emma não se sentia mais sozinha no meio daquela situação. Passaram a conversar todos os dias, por longas horas, compartilhando experiências e planos. Emma descobriu-se completamente apaixonada. Mas decidiu manter segredo. Ainda era cedo para recomeçar, dar início à um novo relacionamento. Precisava de algum tempo para pensar.
Prometeu a si mesma que contaria a ele a respeito disso assim que se sentisse confiante o bastante para isso.
૪
Heather passou grande parte de sua vida internada na Jones & Johnson – uma renomada clínica psiquiátrica localizada na cidade de Hartford, Connecticut -. A Jones & Johnson era um complexo que ocupava um quarteirão inteiro, com dois pequenos prédios acinzentados, pouco atrativos.
A entrada era cercada por um jardim com poucas flores e o interior de seus dois únicos prédios possuíam grossas camadas de tinta branca. Robert Jones – diretor administrativo da clínica – quase nunca dava as caras pelos corredores da Jones & Johnson. Encontrava-se sempre trancado em seu escritório, no terceiro andar do prédio principal.
As histórias sobre seu sócio – e supostamente amigo – Matthew Johnson estar usando o dinheiro da clínica em viagens eram infinitas. O sujeito fora visto duas ou três vezes, depois disso não compareceu a ocasião alguma.
De qualquer maneira, Heather jamais dera ouvidos a qualquer coisa ou a qualquer um naquele lugar.
Muitos médicos tentaram diagnosticar o que havia de errado com ela. Muitos tentaram ‘’desvendá-la’’, mas todas as tentativas foram em vão. Não se lembrava de como tinha ido parar ali, em um lugar como aquele. Ou sobre sua vida fora da Jones & Johnson.
Nada se sabia sobre sua família, amigos, conhecidos... Era apenas ela. Ali. Sozinha. Não sabia nada sobre si mesma. Definitivamente, este não era um caso como muitos do quais já haviam marcado o passado da Jones & Johnson.
Os médicos que estavam na clínica desde a época em que Heather fora internada a conheciam muito bem. Calada – falava apenas consigo mesma –. Fria. Evitava tudo e todos. Por mais que tentassem fazer com que ela falasse, poucas palavras eram ditas por ela.
No início fora difícil aceitá-la. Era uma paciente difícil, agressiva, bastante incontrolável. Nos primeiros dias e noites Heather gritava muito. Por horas e horas. Tinham de sedá-la a todo o momento. Entretanto, com o passar dos anos, Heather tornou-se mais calma.
Mais calma, porém não menos perturbada.
As pessoas se acostumaram a vê-la isolada em seu quarto, andando de um lado para o outro. Repetia sempre as mesmas falas. Era como se falasse com alguém. Alguém que só ela podia ver e ouvir. Mas algo mudou desde a última vez em que um médico tentou ajudá-la.
Heather já não andava de um lado para o outro, falando sozinha. Agora estava sempre ajoelhada no chão, em um canto do quarto. Tinha os braços ao redor dos joelhos. Cabisbaixa. Pensativa. Havia algo em sua mente. Algo sendo planejado. Algo que ela planejava cuidadosamente.
– Heather. – uma enfermeira abriu a porta, colocando a cabeça para dentro do quarto. – Está na hora.
Ela não se moveu.
– Vamos, Heather. – a enfermeira insistiu e Heather levantou a cabeça, sem olhar a mulher nos olhos.
Esta mesma enfermeira a ajudou a colocar-se em pé, segurando Heather por um dos braços e a guiando lentamente por entre os corredores da Jones & Johnson.
As paredes eram úmidas, de um branco pálido e melancólico. Todas eram iguais. Era como um labirinto. Heather julgava que qualquer um que visitasse aquele lugar se perderia com muita facilidade.
Qualquer um menos ela.
Apesar da unanimidade da decoração de todas as salas, Heather já havia estudado todos os cantos da Jones & Johnson. Conhecia cada centímetro de concreto daquelas paredes. Cada passo a ser dado para se chegar ao destino desejado.
A enfermeira seguiu guiando Heather pelos corredores até que chegaram a uma sala nada diferente das outras. Heather foi obrigada a se sentar em uma cadeira com uma mesa logo à sua frente, ambas pintadas de cinza.
Ela começou a fitar a mesa fixamente até que ouviu alguém se aproximar, entrando na sala. Pôde também ouvir a enfermeira se afastando em passos rápidos.
– Bom dia, Heather. – ela reconheceu aquela voz, mas não se deu ao trabalho de olhar para a pessoa e se certificar de que era mesmo quem era julgava ser. Não faria diferença. – Espero que esteja se sentindo confortável.
De qualquer modo, Heather não saberia responder aquela pergunta. Nunca soube o que realmente era sentir-se confortável. O chão gelado e úmido de seu quarto, onde ela sempre se encontrava sentada, não era confortável. E apesar do macio colchão da cama, tão macio quanto suas cobertas, Heather jamais se sentira confortável naquele lugar.
– Podemos conversar? – não houve resposta. Ele deu um suspiro e prosseguiu, falando suavemente: – Heather, por favor.
Ela ergueu os olhos e o doutor Williams teve a impressão de que ela fosse finalmente proferir qualquer palavra. Estava enganado. Ela manteve-se calada como antes.
Trevor Williams havia sido transferido para a Jones & Johnson com o objetivo de ajudar no tratamento de alguns pacientes mais complexos. Havia sido muito bem recomendado por outras clínicas.
Anteriormente, passara um ano afastado da psiquiatria devido a problemas familiares dos quais jamais falara a respeito com outras pessoas, mas estava preparado para exercer seu papel novamente. Estava ali há uma semana. Logo de início o caso de Heather, em particular, chamou muito a sua atenção.
Quando ouviu a situação dela pela boca de outros médicos que já estavam ali há muito mais tempo, não pôde acreditar que fosse tão difícil fazer Heather falar. De fato, não fora muito difícil fazê-la falar. Ela falava. Dava respostas rápidas, curtas e em tom rude. Às vezes irônica, arrogante, fria.
Quando as perguntas eram a respeito de seu ‘’problema’’, porém, Heather negava-se a fazer qualquer tipo de manifestação. Não falava.
Os primeiros dias com Heather foram perturbadores. Ela evitava contato visual o tempo todo e mantinha sempre a mesma expressão. Uma expressão de amargura. Os cabelos dourados estavam sempre opacos e desalinhados. Sempre trazia consigo um aspecto frio por trás de intensos olhos castanhos.
Quando o Dr. Williams decidiu tratá-la, muitos de seus colegas de trabalho haviam lhe avisado de imediato que a paciente seria um problema. Para ele não se tratava de problema algum, mas sim de um enigma. Desde que a viu pela primeira vez em seu primeiro dia naquela clínica, passando por um dos corredores da Jones & Johnson, ele soube que aquela seria uma paciente diferente de todos os outros que já havia tratado desde que começou a exercer sua carreira. Um desafio. E ele aceitara o desafio.
Heather era um mistério. Um quebra-cabeça com peças espalhadas por toda parte.
Uma semana havia se passado. Nenhum progresso – não aos olhos dos outros médicos -. Aos olhos do Dr. Williams as coisas estavam indo bem. Heather já lhe respondia algumas perguntas, se manifestava. Era um bom sinal.
Agora estavam ambos sentados frente a frente. Heather permaneceu cabisbaixa, fitando suas próprias mãos por baixo da mesa. Vestia uma camisola de algodão branca como as paredes de todos os quartos e salas daquela clínica. Com os cabelos despenteados e olhos fundos, com enormes olheiras ao redor, Heather se manteve calada, como já ele previa.
– Quero que fale quando se sentir mais confortável, como costumamos fazer. – o médico ainda estava falando. – Mas preciso que converse comigo, Heather. Quero tentar te entender.
– Para quê? – a voz dela soou como um sussurro distante. Sentiu a garganta seca, pois se mantinha calada durante a maior parte do tempo.
– Porque quero lhe ajudar.
Heather emitiu um breve e irônico sorriso que se desmanchou em seu rosto em questão de poucos segundos.
– Desista.
– Não, Heather. – ele insistiu. – Não vou desistir. Quero saber o que está acontecendo com você.
– Já sabe. – aquela era a primeira vez que ela não se limitava a poucas palavras. – Eles já lhe disseram.
– Heather...
– Você não acredita, não é, doutor? – ela ainda mantinha a cabeça baixa, sem sequer olhar para ele. – É sempre assim. Eles mandam outro médico que, de início, não acredita na minha verdadeira situação. Até que eles desistem de mim e vão embora. Acredite: ninguém pode me ajudar.
– Bem, - Trevor Williams alterou seu tom de voz, começando a falar severamente. – Eu não vou desistir de você.
Novamente ela sorriu irônica, como se estivesse zombando de tal afirmação, mas se manteve calada.
– Tudo bem, Heather. – ele deu mais um suspiro, recostando-se na cadeira. – Eu quero ouvir a sua versão. Quero que me diga o que se passa com você.
– Não acreditaria. – ela disse, rapidamente.
– De fato creio que estão um pouco equivocados a seu respeito. Sua situação pode parecer diferente, talvez requeira um pouco mais de paciência, mas tenho a certeza de que encontraremos uma solução. Não estamos falando de algo de outro mundo.
Ela levantou seus olhos, fitando diretamente os dele. Estudou-o por alguns segundos. Ele parecia realmente interessado em entender o que estava acontecendo, mas não convenceria Heather.
– Não sabe de nada, doutor. – disse em tom de desprezo, desviando seu olhar.
– Não há como eu saber de coisa alguma, Heather. – respondeu. – É por isso que estou aqui. Para que você mesma me conte. – sua voz continuava a soar firme. – Se você sofreu algum trauma na infância, algo que fez com que viesse a ter essas... Visões. Não sei... – ele falava e a observava atentamente ao mesmo tempo, uma expressão cautelosa em seus olhos azuis. – Só saberemos do que se trata quando você falar.
– Não há trauma. – apesar de seu tom rude, a voz dela ainda soava distante, quase inaudível.
– Bem, só há um modo de saber. – ele ainda insistia. – O que está em sua mente neste momento?
Durante vários dias apenas uma coisa estava ocupando os pensamentos de Heather. Algo que ela precisava analisar cuidadosamente. Estudar. Planejar.
Sua única saída.
Seus planos, porém, não poderiam ser executados apenas por ela. Precisaria de ajuda. Não seria capaz de colocar tudo aquilo em ação sozinha.
Então Heather percebeu que estava na hora de falar.
O primeiro passo a ser dado estava bem ali. Ela encarou o sujeito que se encontrava em sua frente. Ele lhe parecia um bom homem. Decente. Possuía uma fisionomia confiável.
Heather ligou alguns pontos, colocando seus pensamentos em ordem rapidamente. Conversar com ele seria um tiro no escuro, mas ela não via qualquer outra saída.
– Façamos uma troca de favores, então. – declarou bastante confiante.
– Sim? – ele inclinou-se para frente e fitou-a, esperando por sua resposta.
– Estou disposta a lhe contar tudo.
A proposta o pegou de surpresa. Entretanto, estava curioso a respeito do preço que teria de pagar.
– E o que quer em troca? – o Dr. Williams perguntou hesitante.
– Quero que me ajude a sair daqui.
Os olhos sombrios da interlocutora, de repente, irradiavam ansiedade.
Foi quando ele teve a certeza de que ela falava sério.
Trevor Williams virou-se na cama pela milésima vez.
Ligou o abajur posicionado em cima de um criado-mudo, ao lado esquerdo da cama, e consultou o relógio de pulso que havia deixado no mesmo lugar. Eram três horas da madrugada. Tornou a colocar o relógio sobre o criado-mudo e endireitou-se na cama.
Não havia dormido por um segundo sequer. Estava no quarto do hotel que havia reservado dias antes de se mudar para Hartford. Virou-se novamente, encarando o teto. Não conseguiria dormir. Mesmo estando mentalmente exausto, estava certo de que não pegaria no sono.
A proposta feita por Heather naquela manhã não abandonara seus pensamentos pelo resto do dia. Nem pela noite.
Obviamente muitos ou até mesmo todos os internos da Jones & Johnson almejavam deixar a clínica. Apesar de seus estados mentais, de modo geral, nenhum deles tencionava passar o restante de suas vidas naquele lugar. Não que aquele fosse um lugar detestável.
Pelo contrário. O grupo de prestigiados médicos que tratavam dos pacientes na clínica eram dedicados e prestativos. As enfermeiras eram amáveis com todos, sempre carregando um efusivo sorriso no rosto.
Foram estes pontos positivos a favor da Jones & Johnson que fizeram o doutor Williams questionar o porquê de Heather querer fugir. Fugir, ela dissera. E dissera com tal determinação que não deixou sombra de dúvidas de que ela tinha algo planejado em mente. Claramente ela não poderia fazê-lo sozinha. Talvez este fora o motivo de ela ter compartilhado com ele sua ideia de fuga.
Mas o que a fizera pensar que ele a ajudaria? Que lhe daria qualquer suporte?
Trevor a julgava sensata demais para achar que ele a ajudaria. Possivelmente ela estava desesperada. Ele havia notado quão ansiosa ela estava. Não porque ela deixara isso transparecer, mas sim porque sua ansiedade estava muito presente, apesar de disfarçada por trás de um amargurado par de grandes olhos castanho-claro. Qualquer outra pessoa não perceberia.
Qualquer um, menos Trevor Williams.
Conhecia muito bem as pessoas. Conseguia enxergá-las além do que estava evidente. Podia ver além de expressões e olhares. Era este o motivo pelo qual ainda não havia desistido de sua mais nova e complicada paciente. Estava determinado a descobrir qual era o grande mistério da vida de Heather. Heather...
Dentre todos os pacientes que já tratara no decorrer de seus anos desempenhando o papel de um brilhante psiquiatra, ele estava seguro de que Heather McLean fora a primeira a lhe intrigar de tal forma que ele passou a se dedicar inteiramente ao caso dela.
Heather não estava louca. Disso ele tinha absoluta certeza. Seu problema era outro. Algo completamente diferente de qualquer outro caso que ele enfrentara antes.
Disseram-lhe que ela conservava consigo lembranças de outra pessoa. O médico logo descartou aquela fantasiosa hipótese. Não soube entender como os outros terapeutas haviam levado em consideração uma teoria tão estúpida quanto àquela.
Logicamente Heather sofria de distúrbios mentais – diferentes de quaisquer outros que Trevor estudara antes –. De qualquer maneira, tudo isso se resumia a um transtorno mental. Bastante incomum, porém ainda se tratava de uma perturbação psicológica.
Apesar de tal adversidade, Heather sempre se demonstrara consciente e perspicaz aos olhos dele.
Por outro lado, ele presenciara alguns dos momentos em que ela entrava em transe, com os olhos muito abertos, petrificados, congelados no tempo. Permanecia assim, calada e sem mover um músculo sequer. Por longos minutos.
Minutos nos quais ela dizia ter visões. Memórias. Eram como flashbacks. Um filme rodando em sua cabeça, muito nítido, pois, segundo ela, estas visões eram minuciosas e claras como o dia.
Trevor não tivera a oportunidade de ouvir isso da própria Heather. Ela ainda não lhe havia dito nada a respeito de suas visões. Tudo o que ele sabia referente a isto era o que havia lido nas fichas médicas dela.
Juntando todos os seus pensamentos para tirar uma conclusão plausível disso tudo, Trevor percebeu que duas coisas não se associavam de forma conciliadora.
De fato, Heather estava ciente de sua situação. Era inteligente e raciocinava tão bem quanto qualquer outra pessoa considerada sã. As razões de estar internada na Jones & Johnson eram suas alucinações. Entretanto, estava claro que ela não queria falar sobre elas. Nem com ele, nem com ninguém. Pelo menos não até sua última sessão com o doutor Williams.
Ela parecia estar completamente disposta a falar a respeito de seu problema quando propôs a ele aquele acordo. Pela primeira vez ela contaria o que estava há muitos anos trancado em seu consciente. Em troca, pedira a ajuda dele para fugir daquele lugar.
Mas seria isso tão importante para ela ao ponto de fazer com que ela finalmente se abrisse, deixando-o a possibilidade de entender sua conturbada mente? Por que ela desejava com tanta ansiedade sair daquele hospital? Heather, o que está planejando?
Heather também estava com insônia. Mas isso já vinha acontecendo havia alguns dias, desde que ela chegara à conclusão de que era hora de agir.
Propor um acordo ao médico havia sido um ato de grande risco. Um passo que, apesar de arriscado, tinha de ser dado. Já estava feito. Ela havia compartilhado de sua ideia com alguém. O que viria a seguir era imprevisível. Ou não. Heather presumia que o doutor Williams não a levaria a sério. Provavelmente ignoraria sua proposta e não tocaria mais no assunto.
Para sua grande surpresa, na manhã seguinte, aquela fora a primeira coisa da qual ele falara com ela.
Estavam mais uma vez na mesma sala. Cercados por paredes brancas, desabitadas de vida. A mesa cinza estava no mesmo lugar à sua frente, enquanto ela se encontrava sentada em uma cadeira da mesma cor. Contemplando suas próprias mãos por debaixo da mesa, Heather ouvia o terapeuta falar:
– Confesso que pensei muito a respeito do que conversamos ontem.
Heather não esperava que ele fosse mencionar sua proposta. Ele prosseguiu:
– Creio que tenho direito a algumas respostas.
Ela manteve-se cabisbaixa, mas não estabeleceria limites às suas palavras. Não desta vez.
– O que quer saber?
Sua voz soava rouca e baixa. Ele mal conseguia ouvi-la.
– Bem, primeiramente – ele se inclinou para frente, apoiando ambos os cotovelos sobre a mesa e entrelaçando os dedos das mãos entre si. – Quero saber o que pretende fazer uma vez que esteja fora dessa clínica. Você não acreditaria se eu dissesse. Pensou ela.
Mas suas palavras foram outras:
– Eu também preciso de respostas, doutor. – ela levantou seu rosto, um olhar determinado em seus olhos. – Estou em busca de algo que vai me guiar a todas as respostas que preciso.
– Respostas para quais perguntas? – ele indagou.
– Durante esses dias em que acompanhou meu caso, doutor, o senhor nunca se perguntou o porquê de eu estar aqui? Nós dois sabemos muito bem que eu não estou louca.
Ela falava de forma tão severa e decidida que Trevor se perguntou se estivera errado em subestimá-la anteriormente.
– Jamais usei esse termo. Nem com você, nem com qualquer outro paciente. – ele explicou, seriamente. – Mas sei que seu problema é psicológico, Heather. E é para isso que estou aqui. Pra ajudá-la a superar isso.
Heather balançou a cabeça de forma negativa.
– Não está entendendo. – disse. – Eu não sou uma lunática, doutor. Ninguém diagnosticou minha doença até agora simplesmente porque não há doença alguma. Estou em meu perfeito estado mental.
De fato, ela aparentava estar completamente sã. Escolhia muito bem suas palavras, articulando-as com muita determinação e firmeza.
– Realmente. – o médico voltara a falar. – Por algumas vezes me perguntei o motivo de você estar aqui.
– Essa é uma das respostas que procuro encontrar. Mas enquanto eu estiver trancafiada neste maldito... – fez uma rápida pausa. – Neste lugar... Não terei a chance de descobrir nada.
– E o que a faz pensar que, estando do lado de fora, descobrirá algo?
– Sei bem onde procurar. E não é aqui, neste hospital, que vou encontrar o que procuro.
Ele suspirou, percebendo que todas as respostas de Heather não estavam levando-os a lugar algum. Ele decidiu ir direto ao ponto:
– Para onde pretende ir?
– Talvez eu lhe diga, se concordar em me ajudar.
Sua resposta fora rápida e precisa.
– Preciso saber exatamente do que se trata este acordo, Heather.
– Sua parte no acordo, doutor, é apenas me ajudar a sair daqui. O que eu tenciono fazer do lado de fora desta clínica não lhe diz respeito.
Trevor arqueou as sobrancelhas, surpreso.
Ainda que já estivesse familiarizado com a frieza de Heather, ela jamais lhe falara de forma tão grosseira antes.
– Não está certo me propor algo e não me dar detalhes a respeito.
– Ora, por favor, doutor. – Heather tinha um irônico sorriso no canto da boca. – Não aja como se importasse. O que eu pretendo ou não fazer fora deste lugar é problema meu.
– Heather, você me disse que estava disposta a falar...
– E eu falarei. – ela o interrompeu. – Quando eu lhe disse que contaria tudo, eu me referia a tudo o que diz respeito ao meu... Problema.
– Tudo bem. – suspirou derrotado, recostando-se na cadeira. – Sou todo ouvidos.
Heather o estudou por poucos segundos. Estaria ele mesmo interessado? Não. Falar com ela, tentar fazê-la contar sobre seus problemas e ajudá-la a resolvê-los era apenas seu trabalho. Ele era pago para isso. Não se importava. Não deveria se importar.
Porém ela arriscara contar-lhe sobre seus planos. Agora era tarde para voltar atrás. Tinha que cumprir sua parte no trato. Tinha de falar. Mas antes, uma pergunta de maior importância era necessária. Ela continuou a fitá-lo e, muito confiante, perguntou-lhe:
– Vai aceitar o acordo?
Dr. Williams estava preparado para aquela pergunta. Passara toda a noite pensando se deveria ou não entrar no jogo de Heather. Estava totalmente interessado em saber o que estava escondido por trás de toda aquela apatia e frieza.
Apesar de tudo, Heather demonstrara-se muito determinada. Ela ainda o fitava, e ainda que tentasse esconder qualquer tipo de emoção, os olhos dela transbordavam ansiedade. Era como se uma decisão muito importante a ser tomada por ela dependesse da resposta dele.
Estava com os olhos fixados nele, à espera. Este fora um dos pontos que ele havia notado nela.
Apesar de não falar muito, Heather tinha sua própria forma de deixar suas emoções transparecerem. Escolhera uma válvula de escape que ninguém notaria. Eram seus olhos que falavam por ela. Diziam mais do que quaisquer palavras que ela havia dito até então. Que história se esconde por trás desses olhos?
– Preciso de uma resposta. – ela insistiu.
Suas palavras quebraram o silêncio que estava no ambiente.
– Se me disser quais são seus objetivos, talvez então eu possa lhe ajudar.
Aquela não era a resposta da qual ela precisava. Merda!
Heather culpou-se mentalmente por ter sido tão estúpida ao ponto de acreditar que ele a ajudaria a fugir daquele hospital.
– Não vou repetir o que já disse. – ela voltou a abaixar a cabeça.
– Heather, eu... Eu realmente quero te ajudar. De verdade.
– Então o faça. Aceite o acordo e me ajudará.
Sua última frase soara como um misto de raiva e desespero. O tom rude ainda estava presente, mas era claramente óbvio que ela estava desesperada para abandonar a Jones & Johnson.
Toda aquela conversa não havia levado nenhum dos dois a uma conclusão. Heather soube que era hora de se dar por vencida e voltar para seu quarto. Lançou para ele um olhar inexpressivo e começou a levantar-se.
Deu dois passos. Sentiu sua cabeça latejar. O latejar era tão violento que Heather precisou apoiar uma mão na parede para não perder o próprio equilíbrio. Ao ver o estado em que ela se encontrava, Trevor colocou-se em pé e, rapidamente, correu para ela. Heather tinha os olhos muito abertos. Nenhum som saía de sua boca. Um peso em sua cabeça martelava fortemente. Era insuportável.
De repente, era como se sua audição falhasse. Todos os sons ao seu redor cessaram. Várias imagens começaram a ser enviadas para seu cérebro. A quantidade de informações a serem processadas era gigantesca. Um caleidoscópio de cores em sua mente, formando então, um cenário.
Era como estar correndo em incrível velocidade dentro de um túnel. Escuro e sem saída.
Até que seus olhos encontraram a luz.
૪
Emma escolhera muito bem o que usaria naquela noite.
O vestido mais bonito que encontrara em seu armário. Era de um verde-claro muito gracioso, com detalhes em branco. Nos pés sapatos baixos, simples, porém complementavam muito bem o restante de sua figura.
Estava feliz como nunca estivera antes. Há vários dias sua vida se resumia em sorrisos, bons momentos. Momentos que passara ao lado de Alex Montini.
Tanto Amanda quanto Jodie passaram a evitá-la – algo que Emma jamais imaginara que pudesse acontecer –, por outro lado, isso nada mudara em sua vida.
Na realidade, algo mudara.
Emma, pela primeira vez em muitos anos, sentia-se livre. Livre de qualquer corrente que a prendia às pessoas do colégio ou do restante da cidade. Os maldosos comentários não podiam mais abalar sua estrutura. Estava firme e forte, preparada para qualquer coisa que viesse a acontecer. Confiante como nunca, Emma terminou de se preparar para, provavelmente, a noite mais especial de sua vida.
Pelo contrário. Aquela estava longe de ser uma noite especial...
Naquela noite seus gritos não foram ouvidos. Seus desesperados pedidos de socorro não foram atendidos. Os debochados risos que ouvia enquanto mãos a sufocavam, a forma selvagem com a qual tentava se livrar de quem a imobilizava, o sangue que esguichava de seu nariz...
Mergulhada em profundo terror, Emma lutava como uma louca para se libertar, mas todo o seu esforço era inútil. Ela não conseguia se desvencilhar. Desistindo de lutar, ela viu a escuridão a cercando, se fechando ao redor de seus olhos como cortinas. Fechavam-se cada vez mais.
Até sua alma esvair-se de seu corpo.
૪
– Pare, por favor! – Heather começou a se debater e a gritar com desespero. – Pare! Pare!
– Heather, me escute!
Ela encontrava-se encolhida no chão da sala onde conversara com o Dr. Williams.
Este estava agachado ao seu lado, tentando a todo custo fazê-la voltar à realidade.
– Heather! – pousou suas mãos sobre os ombros dela, impedindo-a de continuar a se debater. – Acorde!
Repentinamente ela parou de se agitar. Sua viagem de volta à sua sã consciência era como um soco no estômago, que a fez recuar para trás.
– Fale comigo. – ele pediu.
Heather virou o rosto lentamente para encará-lo. Havia pânico em seus olhos.
– Está tudo bem. Você vai ficar bem.
Ela desviou seu olhar, ainda aterrorizada. Aquela fora a mais nítida visão que tivera até então.
– O que foi que você viu? – Trevor arriscou perguntar.
Silêncio.
– Heather, esses ataques, essas visões... Elas são frutos de sua...
– São lembranças. – ela o interrompeu bruscamente. – Lembranças que não me pertencem.
– É por este motivo que precisa aceitar a minha ajuda. Se não se abrir comigo não poderei ajudá-la, e então essas... Lembranças... Elas se tornarão cada vez mais frequentes.
Heather percebeu então, que se continuasse naquele lugar aquelas visões a levariam à loucura – o que seria a mais irônica peça que o destino poderia lhe pregar –.
Precisava sair daquele hospital.
O médico ainda estava tentando acalmá-la, falando-lhe suavemente, em tom amistoso.
– Eu creio que...
– Preciso de sua ajuda. – ela declarou. Olhou para ele novamente e dessa vez lágrimas de desespero começaram a brotar dos olhos dela. – Vocêtem que me tirar desse lugar.
Ele a fitou, perplexo. Jamais a tinha visto em tal estado. Ela se encontrava em total desespero.
Decidiu-se rapidamente.
Precisava ajudá-la.
– Ela era uma garota incrivelmente bonita. Cheia de vida.
Heather estava cara a cara com o Dr. Williams, em mais uma sessão.
– Você tem absoluta certeza de que jamais a vira antes? – ele perguntou curioso.
– Sim. Absoluta. – respondeu. – Não nos conhecemos.
Ele ajeitou-se na cadeira, hesitante. O que ouvira dela desde que ela começara a lhe contar sobre suas visões naquela sessão era totalmente ilusório. Ele não conseguia compreender a situação. Heather dizia com total certeza que aquelas lembranças não pertenciam à vida dela, mas sim à vida de outra pessoa.
– Por que você acha que tem essas alucina... Lembranças da vida dela? Por que você?
– Porque tinha de ser assim. Porque ela me escolheu.
Depois de sua última visão, de um súbito, algo havia mudado. Ela estava falando de forma clara e objetiva. Havia lhe contado pelo menos metade de suas visões. Como eram, onde se passavam, com quem... Trevor Williams analisou com cautela cada palavra que ouvira.
– Isso não faz o menor sentido, Heather. – disse. E Heather abaixou a cabeça, se preparando para mais uma conversa da qual não tiraria conclusão alguma. Mas o médico continuou a falar: - E é exatamente por isso que estou disposto a ajudá-la.
Surpresa, ela voltou a fitá-lo nos olhos.
– Vai me tirar daqui?
– Eu... – ele fez uma pausa, escolhendo bem suas palavras. – Sair daqui não é uma tarefa fácil, Heather. Precisaremos de mais algumas sessões, então poderei considerar seu estado mental restabelecido. Assim você poderá sair da clínica.
– Não! – ela protestou, severamente. – Não tenho tempo. Preciso sair daqui. Agora.
– Ainda não me disse o que pretende fazer lá fora.
– Disse, sim. Vou procurar por respostas.
– Para onde planeja ir?
Ela não respondeu. Não de imediato. Pensou um pouco antes de voltar a falar.
– Não posso lhe dizer. – ela murmurou. – Sinto muito.
O doutor decidiu não insistir.
– Bem, então você quer se encontrar com essa garota? A dona destas lembranças.
Heather negou-se a se manifestar a respeito das conclusões que ele estava tirando de toda aquela conversa. Ele continuou:
– Pelo visto sabe onde encontrá-la. E suponho que seja este o lugar à qual se refere quando diz que sabe onde conseguir as respostas que precisa.
– Muito esperto doutor. – comentou irônica.
– Heather, preciso que seja mais específica.
– Já lhe disse o suficiente para que decida se vai ou não me tirar deste inferno.
– E eu já lhe informei quais são meus meios de te ajudar a sair daqui. A única maneira é seguir com estas sessões até que você seja considerada mentalmente capaz.
– Quantas vezes terei de deixar claro que não estou louca?
– Não há nada para me provar, Heather. – ele disse em tom amigável. – Acredito em você quando diz que está em seu mais perfeito estado mental. Mas precisamos de provas concretas. Ou seja, precisamos seguir com nossas conversas. Farei anotações e tudo o que for necessário para que o diretor a considere sã.
– Não tenho tempo.
– Por que diz que não tem tempo?
– Porque eu vou acabar enlouquecendo de verdade se continuar presa aqui. – ela estava em um desespero evidente. – Ela não vai me deixar em paz até que eu coloque um fim nisso.
– Um fim? – ele questionou confuso. – Do que está falando exatamente?
– Eu não vou me encontrar com Emma. – inclinou-se para frente, fitando-o diretamente nos olhos. – Emma está morta.
O Dr. Williams não pôde deixar de esboçar sua expressão de surpresa. Fez menção de falar, mas Heather fora mais rápida:
– Tenho que descobrir quem a matou.
૪
Emma passara longos meses ouvindo seu nome aos quatro cantos da Harrison Brown Academy. Novos rumores eram inventados ao seu respeito todos os dias. Emma tem tendências suicidas. Emma está depressiva. Quer se matar porque não tem ninguém. Ninguém a suporta, pois ela adora chamar a atenção com seu drama barato. Emma dormiu com todos os garotos do colégio. Está doente, você não notou como ela mudou de uns dias pra cá?
Por mais cruéis que aquelas mentiras fossem, Emma aprendera a lidar muito bem com isto. Era como se vestisse uma armadura. Estava à prova de balas. Nada poderia atingi-la. Era seu orgulho falando mais alto. Algo que aprendera durante os três meses nos quais vivera ao lado de Alex Montini. Havia lhe confessado seus sentimentos em relação a ele e ficou surpresa ao saber que era correspondida. Ele lhe prometera que a levaria para conhecer sua família muito em breve. Emma irradiava alegria e emoção. Combinaram uma data. Oficializariam seu relacionamento uma noite após um importante acontecimento do qual Alex fez questão de convidá-la. Desejava muito que ela estivesse presente. O convite fora feito em uma noite qualquer, enquanto conversavam e Alex a guiava em segurança de volta para casa.
– Tenho uma apresentação amanhã à noite nesse novo... Estabelecimento que abriram na cidade.
– Apresentação? – indagou confusa.
– Sim. – ele respondeu sorrindo. – É importante que esteja lá por mim. Esse pode ser o início de algo, Emma.
– Do que está falando?
– Se eu começar a juntar dinheiro desde já poderei lhe proporcionar um futuro primoroso.
Ela estreitou os olhos e retribuiu o sorriso, ainda confusa.
– Já estamos falando em casamento?
– Bom, nunca se é cedo demais. – a puxou pelas mãos gentilmente depositando um beijo na testa dela. – Não quando se tem uma garota como você.
Emma sentiu as bochechas começarem a queimar e sorriu timidamente mais uma vez.
– Prometa que vai estar lá amanhã. Preciso de você.
– Estarei lá. – ela respondeu.
૪
Heather estava certa de que o Dr. Williams não a ajudaria a escapar da Jones & Johnson. Não da forma que ela esperava. Obviamente ela não esperaria a ‘’boa’’ vontade do diretor da clínica para considerá-la mentalmente capaz, deixando-a ir. Não haveria tempo. Ela precisava agir rápido.
Passara mais uma noite acordada, arquitetando seus planos de fuga. Não poderia contar com ninguém. Havia perdido seu tempo, achando que o médico lhe daria qualquer apoio.
Sua mente, transtornada e cheia de pensamentos e planos com finais imprevisíveis, estava cansada, mas ela não dormiria. Não poderia dormir. Calculou cada passo a ser dado, cada palavra a ser dita. Ela terminou de analisar cada detalhe de seus planos e, por fim, decidiu-se. Era hora de agir. E ela já havia decidido quando. Amanhã...
Heather assistira o pôr do sol preencher seu quarto com seus fortes raios logo pela manhã.
O familiar latejar não cessara em sua cabeça desde a noite anterior. Alguém bateu na porta. Uma enfermeira surgiu no quarto, abrindo a porta e trazendo uma bandeja com omeletes, pão, manteiga e um copo de leite. Posicionou a bandeja sobre uma mesa que se encontrava encostada na parede, ao lado da porta, e saiu do quarto sem dizer coisa alguma.
Heather deu duas ou três dentadas no pão e tomou um gole de seu leite. Não tinha apetite. Estava quase na hora de mais uma sessão com seu terapeuta. Ela estava preparada. Havia algo importante a ser feito. Algo que ela colocaria em prática durante esta sessão.
Minutos mais tarde a mesma enfermeira que lhe trouxera o café da manhã voltou para buscar a bandeja. Esta lhe informou:
– O doutor está a sua espera.
Heather assentiu e colocou-se em pé, deixando-se ser guiada pela enfermeira até chegarem à sala onde Trevor esperava por ela. Ele estava sentado na mesma cadeira, virou-se para ela assim que ela entrou na sala.
– Bom dia, Heather. – disse ele com um sorriso simpático. Heather, por sua vez, não respondeu. – Espero que possamos entrar em um acordo a respeito de sua ideia de fuga.
– Não. – ela disse.
– Por que não?
– Porque tomei uma decisão.
Ele pareceu curioso.
– Que decisão?
– Quero continuar com essas sessões, doutor. – o tom de voz dela mudara tão repentinamente que Trevor ficou ainda mais intrigado. – Quero sair daqui e se esse é o preço que eu tenho que pagar, então eu o farei.
Ele a observava com um olhar repleto de curiosidade e desconfiança. Não soube interpretar aquela súbita mudança da parte dela. Não dissera nada, esperando que ela desse continuidade àquela explicação.
– Eu passei muitos anos trancada aqui. Posso esperar mais algum tempo. Preciso ser paciente.
– O que a fez mudar de opinião tão rapidamente? – ele perguntou. Havia uma expressão inquisitiva em seus ansiosos olhos azuis.
– Preciso ser realista, doutor. Como o senhor mesmo me disse.
Ele respirou fundo, rapidamente.
– Fico feliz. – disse-lhe. – Continuaremos com as sessões. Entretanto, preciso que se manifeste com mais frequência. Você deve falar mais.
– Estou tentando. – ela esforçou um sorriso. – Quero começar mudando alguns hábitos. Acho que me faria bem. Faria com que o tratamento terminasse mais rápido.
– Mudar alguns hábitos?
– Sim. Quero aproveitar meus horários de lazer, dar passeios no jardim, comer no refeitório... Sinto falta da convivência com pessoas que não sejam médicos e enfermeiras.
Trevor Williams estava completamente perplexo. Quem é você e o que fez com minha mais complicada paciente?
Ainda que estivesse feliz pelo grande – e repentino – progresso de Heather, ele estava bastante confuso. Ninguém muda de opinião da noite para o dia.
– Não nego que essa sua atitude me surpreende.
– Essa é a intenção. – respondeu, sorrindo.
Ele ainda não estava convencido. Decidiu fazer rodeios até chegar ao ponto principal. Começou por assuntos aleatórios. Ou nem tanto.
– Tem tido mais alguma... Lembrança?
– Não desde nosso último encontro nesta sala.
– Sei que não dormiu noite passada. – afirmou ele, seriamente. – Há sombras ao redor de seus olhos. Parece-me muito cansada. O que foi que te manteve acordada durante toda a noite, Heather?
Ela não esperava todo aquele interrogatório. Teve a sensação de que não conseguia enganá-lo, por mais astutas que fossem suas jogadas no decorrer daquela conversa.
– Levei algum tempo para me decidir. – calmamente ela respondeu. – Foi hoje de manhã que tomei a decisão de esperar até que o tratamento esteja concluído.
– Entendo.
Ele ainda estava desconfiado. Heather começou a se angustiar. Precisava que ele acreditasse nela. Somente assim seria possível dar seu primeiro passo.
– Eu estou realmente me esforçando, doutor.
– Estou vendo. – comentou. – Bem, creio que o diretor ficará satisfeito em saber que você quer participar de todas as atividades oferecidas aos internos. Soube que você jamais fez parte de qualquer uma delas antes.
– De fato – ela usava um tom de voz amistoso que fez com que o médico ficasse ainda mais perplexo. – Mas, como lhe disse, quero fazer a coisa certa. Julgo essa forma a melhor de todas para começar, não?
Ela estava sorrindo. Um sorriso forçado, mas ainda assim era um sinal. Sinal de que ela escondia algo. Trevor tinha receio do que se tratava. Por mais que utilizasse toda a sua experiência como médico para desvendar o que se passava na mente de Heather, ela não deixava de ser enigma. Um segredo fechado a sete chaves. A mente dela era blindada por uma grossa camada de impenetrabilidade. Era praticamente impossível compreendê-la. Qualquer outro teria desistido. Não o resoluto Dr. Williams.
Às 18h00min daquela tarde, Heather se preparou para jantar no refeitório do hospital, com outros internos. O refeitório da Jones & Johnson era dez vezes maior que qualquer um dos quartos ou salas. Havia infinitas mesas e cadeiras de madeira. Heather observou os outros pacientes devorarem a comida ferozmente. São como animais. Pensou, com uma ponta de lamentação. Presos em suas jaulas por tempo indeterminado.
Mas Heather não era como eles. Não ficaria ali por mais tempo.
Ela se aproximou de uma fila que avançava para os balcões e esperou a sua vez. Pegou um prato de plástico e segurou-o por baixo da concha que despejava um jantar nem um pouco requintado. Procurou com os olhos por uma mesa disponível, mas todas estavam ocupadas. Por fim, sentou-se em uma mesa com mais cinco internos.
Heather fitou seu prato e dispensou a comida. A sopa tinha um aspecto nauseante.
Esperou até que todos terminassem sua refeição. Uma enfermeira anunciou que estava na hora de voltar para seus respectivos quartos. Heather consultou o relógio pendurado na parede, logo acima do balcão onde os internos eram servidos. 18h40min. Ela viu seus companheiros levantarem-se, seguindo a enfermeira para um corredor que os levaria de volta para seus aposentos. Manteve-se sentada à mesa. Não havia sequer tocado na comida. Esta mesma enfermeira voltou minutos mais tarde e aproximou-se da mesa dela.
– Heather, vamos. – disse gentilmente. – Estamos felizes por você estar presente durante as refeições, mas agora tem de voltar para seu quarto.
– Será que eu poderia ajudar com a louça? – perguntou em tom ingênuo, olhando para a enfermeira.
Havia uma expressão de perplexidade no rosto da enfermeira. Ela levou alguns segundos para responder.
– Eu não sei, Heather. O diretor pode...
– Pensei que o Dr. Williams já havia o informado a respeito da decisão que tomei.
– Mas de que decisão está falando? – a mulher estava confusa.
– Além de participar das atividades deste hospital, também quero ser útil em algo. Quero ajudar em tudo o que eu puder.
Heather falava com tanta ansiedade que a enfermeira se deixou convencer.
– Tudo bem. – ela falou. – Pode ajudar com a louça. Mas voltarei para buscá-la e levá-la para seu quarto em vinte minutos. Sabe onde fica a cozinha.
Heather comemorou mentalmente. Viu a enfermeira se afastar em largos passos até sumir, virando o corredor.
Rapidamente, Heather colocou-se em pé, com seu prato em mãos, e caminhou até a cozinha do refeitório. As duas mulheres que antes estavam atrás do balcão segurando conchas e servido os pacientes da clínica, agora estavam na cozinha compartilhando boatos a respeito de outros funcionários da Jones & Johnson. Heather sentiu seu estômago embrulhar. Não soube dizer se era pelo aspecto do jantar que lhe fora servido ou pela conversa fútil entre as cozinheiras.
– O que está fazendo aqui? – uma delas indagou. Era gorda, com os cabelos tingidos de vermelho. – Internos não podem ficar aqui depois do jantar. Volte para seu quarto.
– Não. – ela disse, rapidamente. – O diretor permitiu que eu as ajudasse.
As duas riram amargamente.
– Ajudar? – indagou a outra. Tinha os olhos estreitos e cabelos negros muito curtos. – Não sabia que o diretor permitia que seus bichinhos de estimação ajudassem...
As duas riram novamente, em tom de deboche. Heather não se manifestou.
– Bem, então pode começar lavando aqueles pratos ali, doçura. – a gorda apontou para uma pilha de pratos que se encontravam sobre a pia de mármore amarelado.
As duas se retiraram da cozinha aos risos. Heather se manteve calada até que os risos cessaram. Concluiu que elas estavam longe o bastante para não observá-la.
Heather encarou a pilha de pratos. Não perderia seu tempo com aquilo. Começou a colocar seu plano em prática.
Apressadamente ela depositou seu prato sobre a pia e começou a fechar todas as janelas da cozinha, deixando apenas uma entreaberta. Trancou a única porta por dentro. Fitou o relógio que encontrou na parede. 6h55min.
Está na hora.
Ela aproximou-se do fogão. Ao lado se encontrava um tanque de gás de porte médio, cujo qual abastecia o fogão da cozinha. Heather não tinha muito tempo. Apertou a pequena alavanca que trancava a saída do gás. Ouvia-se um fraco shhh vindo do tanque. Heather sentiu um misto de várias emoções lhe percorrendo o corpo. A adrenalina correndo nas veias. Correu para a janela que deixara aberta e passou uma perna para o lado de fora. Depois a outra. Deixou-se cair do outro lado, sobre um pequeno monte de grama que se encontrava ali. Levantou-se e correu. Correu o mais rápido que pôde. Seus pés pareciam voar. O coração batendo forte como nunca. Parou assim que seus olhos encontraram o estacionamento do hospital. Uma cerca alta feita de arame a separava dos carros estacionados do outro lado da cerca. Olhou ao redor. Não havia ninguém por perto. Perfeito. Pensou.
Começou a escalar a cerca. Passo por passo. Seus pés se encaixando por entre os buracos do arame. Até que ela chegou ao topo. Deixou-se cair do outro lado mais uma vez. Pôs-se em pé e correu para a fila de automóveis. Com muita pressa, Heather tentou verificar se alguma boa alma deixara, por acidente, a porta de um dos carros aberta. Como se o destino estivesse a favor dela, Heather encontrou um automóvel cuja porta do motorista se encontrava destrancada. Pulou para dentro do carro e colocou-se atrás do banco, encolhida. Ficou à espera. Não tinha certeza, mas pelos seus cálculos quinze minutos já haviam se passado. Ouviu uma voz se aproximando. Passos. Alguém abriu a porta do automóvel. Vão me descobrir.
A pessoa se sentou no banco do motorista, depositando uma maleta de couro preta no banco de trás, quase acertando o rosto de Heather. Ela espiou pelo canto do olho. Um homem vestido de branco falava ao telefone enquanto encaixava sua chave na ignição. Heather o reconheceu. Jason Newman. Um dos médicos da clínica. Calvo, na casa dos 50 anos. Heather sempre fora indiferente em relação a ele. Provavelmente estava voltando para sua casa após mais um dia de trabalho.
– Sim, sim. – ele ainda estava falando. – Estarei aí em alguns minutos. Tentarei me apressar. – desligou o telefone, colocando-o no banco do passageiro.
Ele nem sequer notara a presença de Heather no carro. Girou a chave na ignição e Heather ouviu o motor arrancar. O carro estava se movendo. Consegui!
Decidiu manter-se calada, sem fazer qualquer movimento, até que o carro parasse. Tinha funcionado. Ela estava fora da Jones & Johnson. Conseguira fugir. Certamente as pessoas não viriam atrás dela. Não depois do que estava prestes a acontecer. Heather colocou sua cabeça por cima do banco e viu o relógio de pulso do motorista. 19h30min.
A enfermeira que deixara Heather no refeitório da clínica voltara minutos mais tarde, como havia prometido. Não a encontrou.
– Heather? – sua voz ecoou pelos quatro cantos do refeitório vazio. – Heather?
Nenhuma resposta.
– Heather, está aí?
Ela se dirigiu para a porta da cozinha. Girou a maçaneta. Trancada.
– Abra a porta! Heather! – ela esmurrou a porta, impaciente. – Vamos! Abra!
Outro curto silêncio. Sentiu um aroma anormal vindo do lado de dentro da cozinha.
Enfiou a mão no bolso e arrancou um molho de chaves. Encontrou a chave com uma pequena etiqueta que dizia ‘’cozinha’’ e colocou-a na fechadura, virando-a em seguida. A cozinha se encontrava escura, e aparentemente vazia. O estranho odor tornou-se insuportável.
– Heather...? – ela arriscou chamá-la mais uma vez. Maldita maluca!
Irritada, a enfermeira passou sua mão pela parede ao lado da porta até seus dedos encontrarem o interruptor. Pressionou o botão.
Jason Newman sentiu uma estranha sensação percorrer seu corpo. Instintivamente, olhou para trás pelo retrovisor de seu carro e seus olhos assistiam à explosão do prédio que acabara de deixar.
Heather sentia suas mãos trêmulas e frias.
Com os cabelos molhados escorrendo até seus ombros, ela segurava uma xícara de café fumegante, encolhida no sofá. Era difícil sentir-se confortável, pois o ambiente em que se encontrava era totalmente desconhecido.
Um homem se aproximou, sentando-se no outro sofá, logo ao seu lado.
– Acredito que não tenha sido a única a conseguir escapar daquele lugar. – sua voz quebrou o silêncio. – Entretanto, creio que a polícia estará mais preocupada em descobrir o que provocou aquela explosão do que procurar por você. Exatamente como eu havia planejado. Ela concluiu.
Ele estudou Heather por alguns segundos. Notou que suas mãos tremiam violentamente.
– Acho melhor que você tome um banho quente. Há um quarto de hóspedes logo depois da cozinha. Irei lhe deixar roupas limpas para que as vista. Assim, então, poderemos conversar com mais calma.
Ele falava em tom suave e preocupado. Heather assentiu.
Passou a hora seguinte debaixo do chuveiro, sentindo a água quente cair sobre sua cabeça.
Depois de presenciar a explosão do hospital psiquiátrico Jones & Johnson, Jason Newman parara seu carro. Saltou para fora do veículo, correndo de volta na direção do hospital, com a boca escancarada e os olhos esbugalhados. A explosão sacudira todo o bairro. Uma fumaça negra saía do fogo que consumia parte do hospital.
Às pressas, Heather saíra detrás do banco do motorista, posicionando-se atrás do volante. Girou a chave na ignição e, ao mudar o câmbio de lugar, sentiu o carro se movimentar. Pisou com toda a sua força no acelerador e guiou para longe. Para o mais longe que pôde.
O carro parou de funcionar poucos minutos depois, em meio a uma estrada deserta. Heather bateu com as mãos no volante, completamente furiosa ao concluir que faltava combustível no veículo. Desceu do automóvel e seus pés tocaram o asfalto. Usava sapatos fechados, com solas finas. Já era noite, estava frio. Heather não encontrou outra saída. Seguiu andando.
Andou por mais de uma hora até que se encontrou em outra cidade: New Haven.
Cansada – tanto fisicamente como mentalmente – Heather sentou-se na calçada de uma rua no centro da cidade. Uma tempestade desabou dos céus de New Haven. Heather sentiu a chuva caindo fortemente acima de sua cabeça. Levantou os olhos para o nublado céu escuro e pesadas gotas de chuva começaram a escorrer por seu rosto. Colocou-se em pé.
De repente, as gotas se tornaram maiores, mais pesadas, caindo com mais força sobre ela. Sentiu como se o forte vento lhe desse um soco em cheio no estômago. Fechou os olhos, receosa.
૪
Estava chovendo fortemente. Um raio caíra há poucos quilômetros dali. Vozes soavam ao redor de uma frágil silhueta deitada sobre a grama, ao lado do Rio Connecticut.
Era apenas um corpo. Vazio e ausente de qualquer emoção ou vestígio de vida.
O rosto estava chamuscado, os braços e pernas cobertos por feridas.
– Não era para acabar assim! Isso não devia ter acontecido! – uma voz se lamentava, em grande desespero. – O que vamos fazer? Vão encontrá-la! Vão descobrir que...
– Cale essa maldita boca! – outra voz interveio, furiosamente. – Preciso pensar.
– Não há o que pensar, tá legal? Estamos ferrados. Completamente ferrados! A polícia vai encontrar o corpo! Nós vamos acab...
– Já mandei calar a boca! – a segunda voz soava ainda mais alta. – Sei o que fazer. Venha. Ajude-me.
O corpo coberto por ferimentos que transformavam aquela pobre alma em algo irreconhecível começou a ser empurrado em direção ao rio. Empurraram até a beira do Rio Connecticut.
– Pronto? – a voz que antes falara com ira, agora sussurrava. – Um, dois...
Empurraram mais um pouco. Ouviu-se um splash que ecoou, e gotas de água saltaram no ar.
Ambos se aproximaram da beira do rio, olhando para baixo.
– Fomos longe demais. Isso não tinha de acabar assim. – uma das pessoas ainda se lamentava.
Continuaram olhando para baixo, observando o rio em movimento.
O corpo afundara.
૪
Heather sentiu novamente algo lhe acertar o estômago em cheio. Deu um passo para trás e percebeu que esbarrara em algo. Ou melhor, alguém.
Abriu os olhos e virou-se para trás, com os olhos arregalados, muito assustados.
– D-desculpe... – balbuciou.
Parada no meio da calçada, iluminada pelas luzes dos postes localizados por toda a parte, Heather se deparou com um homem de traços aristocráticos, com discreta elegância. Possuía cabelos grisalhos e olhos escuros. Ele emitiu um sorriso sincero.
– Não se desculpe.
Ela não respondeu. A chuva havia parado, mas suas roupas estavam completamente encharcadas. O indivíduo pareceu perplexo diante da pobre figura que se encontrava diante dele.
– Está tudo bem com você?
Heather assentiu com a cabeça, hesitante.
– Está apavorada. O que houve? Alguém lhe atacou?
– Não, eu... – suas poucas palavras pairaram no ar. Não havia o que explicar. Muito menos a um desconhecido.
– Você tem um lugar para ficar? Está ensopada.
Não houve qualquer resposta. Heather não tinha um lugar para ficar. Não tinha com quem contar.
Julgou sua situação bastante irônica.
Acabara de fugir da Jones & Johnson e guiara até outra cidade, e agora, depois de tudo, não havia qualquer lugar para onde pudesse ir. Sentiu-se completamente agoniada.
– Está perdida?
A pergunta fez com que os olhos de Heather se enchessem de lágrimas. Lágrimas que escorreram por suas bochechas pálidas. Não demorou muito para que ela desabasse em lágrimas. Colocou as mãos sobre o rosto, destroçada em soluços. Sim, estou perdida! E sozinha, angustiada, assustada. E não tenho ninguém além de mim mesma!
O sujeito colocou uma de suas mãos sobre o ombro direito dela e lhe falou calmamente:
– Por favor, não chore.
E Heather manteve-se calada enquanto lágrimas rolavam por suas faces. Tentou levantar os olhos para fitá-lo. Fora incapaz de concluir tal ato. Perdeu seus sentidos e desmaiou.
A seguir, ela acordou na sala de uma casa desconhecida, deitada em um confortável sofá de veludo. A sala, com as paredes cor de creme e a mobília em estilo rústico muito elegante, agradou os olhos de Heather.
O homem estava sentado ao seu lado. Dera-lhe uma toalha para que se secasse e dissera-lhe para se acomodar no sofá. Ela sentou-se.
– Julgo que esteja mais calma.
– Sim. – ela respondeu, em tom baixo.
– Sou Charles Stevens. – estendeu-lhe a mão, fazendo menção de trocar um cumprimento com ela.
Heather hesitou por alguns segundos. Ele permaneceu com a mão estendida, esperando. Ela se inclinou para frente e apertou-lhe a mão.
– Heather.
– Bem, Heather... Eu gostaria de saber o que houve. Encontrei-a em estado de choque no meio da rua. Acabou perdendo os sentidos.
Ela olhou para ele, perplexa.
– Mas o senhor não me levou para o hospital. – disse confusa. – Trouxe-me para... Este lugar.
Ele sorriu calorosamente.
– Sei que fugiu de um hospital.
Heather ergueu os olhos, bastante surpresa.
– Como sabe disso?
– Pelas roupas que está vestindo. – ele respondeu. – Não lhe entregaria de volta para eles sem antes saber o que aconteceu.
Havia confusão e desconfiança nos olhos de Heather. Charles Stevens prosseguiu:
– Se quiser começar a me contar, temos todo o tempo do mundo.
Heather abanou a cabeça e emitiu um riso abafado e irônico.
– Não lhe conheço, senhor. – disse-lhe. – E não consigo entender o motivo de ter me trazido para cá.
– Entendo que esteja desconfiada. – Stevens falava de forma gentil. – Esta é minha casa.
– Não há mais ninguém aqui? – ela indagou.
– Não.
– Esposa ou filhos?
– Minha esposa e eu nos divorciamos há muitos anos atrás. – ele explicou. Heather censurou-se por ter perguntado. – Nunca mais me casei. E, não, não tenho filhos.
Ela permaneceu calada. Ele voltou a falar:
– Obviamente você está confusa. Mas deixe-me lhe dizer isso: – um olhar determinado estampava o rosto de Charles Stevens. – As coisas jamais acontecem por acaso. Por isso tenho a mais plena certeza de que Deus lhe colocou em meu caminho por alguma razão.
Heather encarou, perplexa, o sujeito que lhe falava de Deus em tom de persuasão.
– Preciso de um lugar para ficar. – ela confessou.
– Sei disso. E estou disposto a ajudá-la.
– E por quê? – perguntou, por fim.
– Durante esses minutos em que conversamos, fiz uma breve análise. – ele constatou. – Você está em seu mais perfeito estado mental, Heather. Não sei por qual motivo colocaram-na naquele hospital, mas saiba que estou aqui para lhe ouvir e, quem sabe, ajudá-la a resolver seus problemas.
Ela foi pega de surpresa. Aquele desconhecido notara algo que todos os médicos da Jones & Johnson ignoraram durante anos. Heather não estava louca.
Ela se perguntou se Charles Stevens também era médico. Ele claramente falava como eles. Não. Não como todos eles. Falava-lhe em tom calmo e suave, porém, ao mesmo tempo determinado e persistente. Fez com que Heather se lembrasse de alguém. Dr. Williams.
– Como está se sentindo? – a voz de Stevens trouxe Heather de volta à sala de estar, às paredes cor de creme e ao sofá em que estava sentada.
– Estou... Sinto-me bem. – disse com a voz estremecida.
– Bom, eu não lhe farei perguntas. Quero apenas que me conte o que lhe aconteceu.
Heather levou minutos para colocar seus pensamentos em ordem. Realmente ela não tinha onde ficar. Não conhecia ninguém. O homem que acabara de ajudá-la lhe parecia honesto.
Mas Heather estava certa de que as aparências não significavam nada. Apesar de tamanha desconfiança, ela sabia que mais cedo ou mais tarde viria a precisar de alguém. Precisava de alguém que a ajudasse a chegar ao seu destino, a cumprir seus planos.
Começou a falar. Contou-lhe sobre os quinze penosos anos que passara internada na Jones & Johnson. Isolada, sozinha, sem qualquer lembrança. Pelo menos não tinha lembranças de sua própria vida. Charles Stevens permaneceu quieto, sem esboçar qualquer tipo de reação enquanto Heather falava-lhe sobre as visões que tivera ao longo de todos aqueles anos. Lembranças da vida de outra pessoa. Alguém que ela jamais vira em pessoa. Alguém que ela não poderia ver pessoalmente, mesmo que desejasse.
Contou sobre como fugira da clínica psiquiátrica, omitindo apenas o fato de que era ela a autora da explosão da Jones & Johnson.
Ela passou longas duas horas explicando-lhe sua situação. Quando terminou de narrar sua história, esperava que ele ficasse surpreso, confuso, talvez até mesmo aterrorizado. Mas foi Stevens quem a surpreendeu ao dizer que ele a ajudaria.
Após um quente e deleitável banho, Heather saiu do banheiro com uma toalha em volta de seu corpo reluzente. Entrou no quatro de hóspedes e se deparou com roupas deixadas sobre a cama. Rapidamente ela começou a vestir-se.
O quarto lhe pareceu acolhedor. A cama estava coberta por uma colcha cor-de-rosa, com cortinas a condizer. O chão, com pisos de madeira, deixava o ambiente ainda mais aconchegante. Vestindo um jeans desbotado e um suéter de cashmere verde-escuro, Heather deixou o quarto, seguindo para a sala onde estivera antes.
Charles Stevens parecia estar esperando por ela desde o momento em que deixara a sala de estar. Recebeu-a com um sorriso amigável assim que a viu.
– Vejo que as roupas lhe serviram.
Ela se sentou em frente a ele, no sofá de veludo marrom.
– De quem são? – ela indagou em tom de curiosidade.
– Da última enfermeira que vivera aqui, nesta casa.
A resposta fez com que a curiosidade de Heather aumentasse. Fitou-o, confusa.
– Como assim?
Ele soltou um riso abafado.
– Eu estou doente, Heather.
Stevens notara a confusão nos olhos castanhos de Heather. Ela não disse nada, esperando por uma explicação.
– Há anos estive lutando contra minha doença. – ele começara a falar novamente. Heather manteve-se atenta em cada palavra. – Não houve resultados até então. Sugeriram-me que contratasse alguém para me observar e ajudar com os medicamentos. – ele deu outro sorriso, desta vez, amargurado. – Perda de tempo.
– Eu... Sinto muito. – a voz de Heather soou baixa.
– Está tudo bem. – ele afirmou. – Aceitar a morte não é desistir da vida.
Heather abaixou a cabeça, se lamentando por ele mentalmente.
– Então – Stevens prosseguiu. – Está atrás de uma explicação. Quer saber o motivo de estar carregando lembranças de outra pessoa.
– Sim. – respondeu rapidamente.
– Você me disse que sabe onde encontrar uma resposta. Você viu este lugar em suas visões?
– Por diversas vezes. O cenário é o mesmo. A mesma cidade. Sempre.
– Como se chama a tal garota de quem me falou?
– Emma. – ouvir sua própria voz dizendo o nome de Emma lhe causava arrepios. Ficaram ambos em silêncio por um longo tempo.
– Sabe, Heather, – ele disse seguido de um suspiro. – Existe uma intervenção dos espíritos no mundo corporal.
Heather franziu a testa, arqueando uma sobrancelha.
– Quero dizer, alguns espíritos se afeiçoam a certas pessoas. Os espíritos que precisam de ajuda, os que não conseguem descansar em paz... Eles buscam em alguém uma forma de encontrar essa paz.
Ela se manteve totalmente calada. Stevens ainda falava-lhe:
– Eu acredito, Heather, que suas visões lhe parecem nítidas e bastante reais porque Emma te guia de volta no tempo, para onde e quando estas coisas aconteceram. – Charles Stevens falava com tal convicção que Heather ficava atônita a cada palavra que ele proferia. – Isso se chama projeção astral. Sua alma deixa seu corpo e viaja, vai a outro lugar. Seu caso, porém, pareceu-me um pouco diferente.
– Uma vez – ela finalmente começou a falar. – ouvi alguém dizer que as almas reencarnam. Por que isto não aconteceu com ela?
– Porque ela está presa a algo neste plano. – disse ele. – Porque sente como se sua missão não fora concluída. Porque interromperam seu tempo de vida.
– Porque a mataram. – Heather disse. Sua voz soou dura e rancorosa.
– Heather, por mais difícil que seja toda esta situação, eu creio que você não deva planejar vingança.
Ela levantou os olhos, incrédula.
– Como não?! O que a fizeram sofrer foi monstruoso!
– Sei disso. – manteve seu tom de voz calmo. – Mas desta maneira você não estará a ajudando. Pelo contrário. Não creio que seja isso o que ela almejava quando lhe escolheu para ajudá-la.
Independente do que Emma visava quando a escolhera, Heather soube que tinha de se vingar do assassino da garota. Passara quinze anos ouvindo sua voz implorando por ajuda. Assistindo à mesma cena, repetidas vezes.
Ela, de certa forma, culpava o assassino de Emma por ela estar presa naquele hospital. Por todos os anos que desperdiçara isolada naquele lugar. Com toda a certeza ela o faria pagar.
– Não seja rancorosa, Heather.
– O senhor não entende. Não sabe o quanto ela sofreu. Não sabe! – novamente ela deixou-se cair em lágrimas. Cobriu o rosto com as mãos enquanto soluçava incontrolavelmente.
– Por favor, se acalme. – pediu gentilmente. – Encontraremos uma solução.
Heather o encarou. Ele falava de modo muito amável, quase paternal. Estava mesmo disposto a ajudá-la. Mas mesmo Heather sabia que se houvesse uma solução, esta não seria fácil de ser encontrada. Ela ainda tinha muito que entender e descobrir. Estava ainda mais confusa do que costumava estar, nos dias e noites que passara na Jones & Johnson.
A explosão na clínica psiquiátrica fora notícia em boa parte do país. A perícia já estava presente, analisando o que restara da cozinha e do refeitório. Muitos dos quartos e salas também haviam sido afetados pela explosão. Alguns dos internos aproveitaram-se do momento para fugir.
Mas, como Heather havia previsto, a polícia se importava mais em encontrar o culpado pela explosão. Não se importavam com quem escapara.
Trevor Williams entrou em pânico quando soube do acidente através de um noticiário na televisão. Ninguém o avisara. Incrédulo, ele dirigiu-se até o hospital psiquiátrico e se deparou com metade do prédio arruinada.
Robert Jones – o diretor da clínica – falava com um policial. Parecia bastante alterado. Aproximando-se dele, Trevor interrompeu a conversa:
– O que houve? Por que não me comunicaram a respeito disso? – estava completamente apavorado.
– Como?! – o diretor o fitou surpreso. – Acha que temos tempo para espalhar fofocas aos quatro cantos do mundo?
– Eu tenho todo o direito de estar a par desta situação.
– Dr. Williams, peço que se retire.
– Não! – protestou. – Preciso saber como estão meus pacientes.
– Ora, pelo amor de Deus! – Robert Jones exclamou. – Acabaram de explodir o meu hospital! Será que não entende?
O médico o encarou, tentando manter-se calmo. Correu para uma das enfermeiras que parecia estar de saída depois de uma longa conversa com um oficial.
– Ei, você! – ele gritou assim que a viu. A enfermeira virou-se para ele.
– Sim?
– Há algum ferido?
– Cinco, doutor. – respondeu. – Uma em especial. Está internada em estado muito grave.
Trevor sentiu uma onda de angústia lhe percorrer todo o corpo. Apenas um nome lhe passou pela cabeça. Heather.
A enfermeira continuou:
– É uma de minhas colegas. Mary Ann. Pobrezinha... – lamentou-se.
A angústia fora rapidamente substituída por um breve alívio.
– Eu... Espero que ela se recupere logo.
– Obrigada, doutor.
– Bem, eu ainda não entendo o que houve. Você sabe de detalhes a respeito do acidente?
– Não se sabe se foi mesmo um acidente. – ela explicou. – A polícia pensa que, talvez, tenha sido algo planejado.
Um breve flashback veio à mente de Trevor. Estava sentado à mesa, Heather lhe falava seriamente a respeito de algo. Algo que ela planejara. Algo que precisava ser feito. Façamos uma troca de favores, então... Estou disposta a lhe contar tudo... Quero que me ajude a sair daqui...
Então era isso. Ele se negara a apoiá-la em sua fuga, portanto ela decidira agir por conta própria. Não se importara com o fato de que seu plano poderia afetar ou ferir outras pessoas. Heather certamente não estava louca. Mas desorientada. E muito.
Trevor Williams precisava urgentemente encontrá-la. Olhou para a enfermeira parada à sua frente.
– Onde está Heather? – perguntou.
Ela arqueou as sobrancelhas e deu de ombros.
– Não sei, doutor.
– Como assim não sabe?! – seu tom de voz mudara subitamente. Estava começando a sentir as primeiras pontadas de desespero. – Não a viu?
– Não. – ela respondeu, com receio. – Não vi Heather desde o acidente.
– E como não estão procurando por ela?
– Estão procurando por muitos internos que escaparam, doutor. Heather não será um caso à parte.
– Precisam encontrá-la.
– Sim, estaremos procurando por ela e...
– Não, você não entendeu. – Trevor a interrompeu. – Precisam encontrá-la o mais rápido possível! Heather está planejando algo. É uma paciente bastante transtornada, precisa de ajuda médica ou acabará cometendo alguma atrocidade.
A jovem enfermeira arregalou os olhos, assustada com tal afirmação.
Charles Stevens oferecera à Heather um confortável quarto de hóspedes em sua casa. Era uma antiga construção com um jardim na frente, com flores de todas as cores, portões feitos em estilo clássico e muros altos que cercavam toda a casa.
Ela aceitara se hospedar naquela casa até decidir o que faria a seguir. Ainda havia muito que planejar antes de agir novamente.
Heather passou as três seguintes semanas na residência de Stevens. Ajudava-o com seus medicamentos, horários e refeições. Passavam longas horas na sala de estar, conversando entre um gole e outro de chá.
Charles Stevens era ex-presidente de uma bem-sucedida empresa de arquitetura e construção que herdara de seu pai. Por muitos anos dirigira o patrimônio de sua família, aposentando-se assim que fora diagnosticado com uma doença terminal.
Inicialmente, Stevens sentia-se completamente comovido pelo sofrimento de Heather. Depois este sentimento transformara-se em admiração. Algo próximo de amor paternal. Queria ajudá-la a resgatar todo o tempo perdido, todo o tempo que passara trancafiada naquele hospital.
Estava ciente de que ela não teria paz para viver uma vida normal até que cumprisse o que planejara.
De fato, Heather tinha muita coisa planejada. Sua mente estava sobrecarregada quando chegou à casa de Charles Stevens. Com o passar dos dias, porém, ela começou a se sentir mais calma. Aliviada. Estava finalmente se orientando a respeito de seus planos. Entretanto, ainda estava assustada e confusa. O pesadelo não terminaria. Não ainda.
Vendo-a afundada em amargura, o distinto Sr. Stevens tomara uma decisão. Certamente aquilo causaria uma grande alteração nos planos de Heather. Ele encarou sua decisão como a melhor forma de ajudá-la, ou talvez, de ajudar a si mesmo.
Uma noite, depois do jantar, Charles resolvera dar a notícia a Heather. Estavam sentados à mesa de jantar, Heather ainda dava suas últimas garfadas na vitela em seu prato, quando Stevens começou a falar:
– Heather, precisamos conversar a respeito de algo muito sério.
Ela parou de comer. Abandonou os talheres sobre a mesa, levantando os olhos para ele.
– Estou ouvindo.
– Nós dois sabemos muito bem que não poderei lhe ajudar para sempre. Não em vida. – ele falava seriamente. Em um tom que Heather jamais o ouvira usar antes. – Mas eu prometi que lhe ajudaria a dar um fim nesta situação. Prometi que a ajudaria.
Heather assentiu com a cabeça. Era o sinal que ele precisava para prosseguir:
– Minha última visita ao médico foi extremamente lastimável.
– O que quer dizer? – indagou. Estava hesitante, com receio da resposta que viria a seguir.
– Não tenho muito tempo, Heather. – disse em resposta. – Tomei uma decisão. Algo que, talvez, possa acelerar seus planos. Fazer com que você os coloque em prática mais rápido do que pensa.
– Como assim...?
– Heather, – Charles Stevens a fitou nos olhos, vendo-os preocupados e apreensivos. – Quero que se case comigo.
Heather julgou ter ouvido mal. Seus pensamentos ficaram tumultuados. Casar? Quais eram as intenções do homem que se encontrava à sua frente? Ela permaneceu imóvel, silenciosa.
Os olhos escuros de Charles Stevens transbordavam ansiedade, aguardando uma resposta, porém Heather não dissera nada. Ele decidiu dar continuidade à sua explicação.
– Você não irá muito longe usando seu próprio sobrenome. Também precisará de estabilidade financeira e um lugar para ficar permanentemente, caso seus planos não sejam concluídos com êxito.
Ele tinha toda a razão. Heather se repreendeu em silêncio por ter duvidado das intenções do sujeito que tanto lhe ajudara durante aqueles dias.
Ele depositara diante dela a melhor forma de colocar suas estratégias em ação. Era uma oportunidade única, e Heather certamente não a deixaria escapar.
Voltou a fitá-lo, dessa vez com um olhar severo e decidido.
– Está certo, Sr. Stevens. – declarou com convicção. – Aceitarei seu pedido.
Há sempre uma época do ano em que as pessoas aparentam um aspecto melhor, fazem planos com mais facilidade, sentem-se mais alegres, prontas para agir e ser.
Era início de Abril. Primavera. Middletown estava repleta de flores de várias cores diferentes. As folhas das árvores estavam mais verdes do que nunca. Uma brisa fresca vinha da direção do Rio Connecticut, batendo no rosto das pessoas, causando-lhes uma incrível sensação de aconchego.
Um carro preto com vidros escuros estava causando comentários ao passar pelas ruas de Middletown. Afinal, ninguém jamais o vira na cidade antes. Todos se perguntavam quem seria a pessoa por trás daqueles vidros negros como o céu da noite. O automóvel seguiu para mais uma rua, deslizando com graça pelos asfaltos até parar em frente a uma residência há muitos anos abandonada.
O som do motor cessou. A porta do motorista se abriu e uma figura de estatura mediana, com roupas alinhadas, cabelos dourados que caíam graciosamente sobre seus ombros, e um ar de superioridade, saiu de dentro do veículo. Seus pés tocaram a terra firme.
Um homem idoso, bem vestido, com papéis em mãos, veio em sua direção sem hesitar.
– É um prazer recebê-la, Sra. Stevens.
A mulher que acabara de deixar o automóvel retirou os óculos escuros que cobriam seus olhos esfumados com maquiagem, tão escuros quanto os vidros de seu carro.
Emitiu um sorriso franco.
– O prazer é todo meu. – disse.
O sujeito a conduziu para a entrada da casa. Ela parou, petrificada. Observou a fachada. O local estava velho, esquecido, completamente abandonado. As paredes externas, pintadas de branco há muito tempo atrás, estavam todas manchadas. As portas e janelas quebradas.
– Sra. Stevens? – o homem esperava que ela o seguisse para dentro da casa.
Sua voz fez com que ela parasse de estudar o imóvel e olhasse para ele. Novamente ela sorriu.
– Sem formalidades, por favor. – ela pediu, gentilmente. – Pode me chamar de Heather.
Ele a guiou até a sala. Era o primeiro cômodo da casa. Assim como as paredes que Heather vira antes, por fora, estas também estavam todas manchadas. Ela julgou que antes elas eram brancas, num tom pálido e gracioso. Por um momento, Heather sentiu como se as paredes ao seu redor começassem a se fechar, deixando-a encurralada. Fechou os olhos com força. Ouviu uma voz distante, entretanto não pôde distinguir o que a voz dizia.
Ela abriu os olhos, querendo que toda aquela confusão que havia em sua cabeça tivesse um fim. Mas aquilo não teria um fim. Não até que ela mesma colocasse um fim naquela situação.
– A senhora se sente bem? – o sujeito perguntou, parado à sua frente.
– Sim. – respondeu. – Estou bem. Poderia me mostrar os aposentos?
– Há apenas dois. O imóvel pertencia a um homem que morava com sua neta.
Heather sentiu uma terrível pontada na alma.
– Os quartos... Quero vê-los. – ela disse com voz trêmula.
– Oh, sim. Claro. – ele fez um sinal com a mão para que ela o seguisse até o corredor que os levaria para os dois únicos quartos da casa.
O primeiro quarto tinha as paredes amareladas, uma cama de madeira em estado deplorável e um velho guarda-roupa. Heather se perguntou quanto teria de gastar para transformar aquele lugar em algo decente para se morar. Voltou com seus pensamentos para os quartos.
O outro quarto era ainda menor. As paredes pintadas de azul-claro estavam desbotadas, a cama – também de madeira – parecia ter sido atacada por cupins. E o guarda-roupa tinha uma de suas portas arrancadas.
Uma estranha sensação transitou pelo corpo de Heather. De um súbito, sentiu que os olhos lhe ardiam, forçando-a a fechá-los novamente.
૪
– Por favor, vovô! O senhor tem de entender que eu...
– Basta, Emma! – Arthur Connors estava totalmente transtornado. – Jamais aceitarei este relacionamento. Você sabe muito bem o que dizem a respeito deste sujeito e da família dele.
– As pessoas mentem! – protestou Emma. O rosto estava banhado em lágrimas. Não conseguia acreditar que estava novamente discutindo com seu avô. – Não acredite nelas!
– E como não acreditarei? Aquela família está cercada por problemas, Emma! Mas pelo amor de Deus, como foi que você foi se meter com essa gente?
– Vovô... Por favor... – suplicou.
– Não aceitarei este relacionamento! – o velho Sr. Connors se encontrava em um estado que Emma jamais vira antes. – Por que terminou seu relacionamento com Frank? Ele era tão bom para você, querida. Eu não...
– Frank tentou abusar de mim! – ela declarou. Soluçava descontroladamente. – Me bateu! Tentou abusar de mim! Acha mesmo que ele era bom para mim, vovô?
Ele a fitou espantado. Os olhos dela, agora inchados de tanto chorar, como um apelo de socorro, causaram nele um terrível sentimento de culpa. Sua vontade agora era de matar Frank Palmer com suas próprias mãos. Olhou para a neta com imensa ternura e disse-lhe:
– Emma... Não posso crer que... Meu deus, como pude ser tão cego?
Ela ainda chorava interminavelmente.
– Quando foi que isto aconteceu?
– Na noite em que nos separamos. – respondeu com muita dificuldade. – Alex me salvou, vovô. Salvou-me de Frank. Será que o senhor não vê que ele é uma boa pessoa e que só deseja o meu bem?
Ele ajoelhou-se diante dela, que se encontrava sentada na beira de sua cama. Ela mal podia falar, sentindo as lágrimas frias escorrerem pelo seu rosto.
– Me perdoe, querida. – e então ele também começara a chorar. – Me perdoe...
૪
– Sra. Stevens, a senhora está bem?
Heather abriu os olhos, assustada. Tentou conter sua emoção. A presença de Emma naquele ambiente era inevitável. As visões estavam mais nítidas do que antes. Heather respirou fundo – duas vezes – antes de responder o agente imobiliário.
– Estou bem. – respondeu, por fim. – Por favor, não há necessidade de formalidades.
– Desculpe. – censurou-se ele. – Ainda há uma cozinha, dois banheiros...
– É o suficiente. – Heather o interrompeu subitamente. – Ficarei com a casa.
Uma pequena multidão estava amontoada no início da rua onde se encontrava a casa que Heather decidira comprar. Os comentários eram inevitáveis. As pessoas falavam em tom baixo, com olhares curiosos estampando seus rostos. Alguém que passava por aquele percurso notou a multidão aglomerada na esquina da rua, juntou-se a eles com curiosidade.
– Mas o que está havendo? – inquiriu.
– Todos estão curiosos a respeito da nova garota. – uma mulher de meia-idade respondeu.
Alex Montini arqueou as sobrancelhas em uma expressão inquisitiva.
Um automóvel passou por esta mesma rua, excedendo o limite de velocidade, fazendo com que a pequena multidão se espalhasse, correndo para as calçadas como formigas quando alguém pisa em seu formigueiro.
– Mas que idiota! – exclamou a mulher com quem Alex falara segundos antes.
Frank Palmer pisou no acelerador com mais força, mexendo nos botões do rádio de seu carro. Soltou uma gargalhada alta e virou-se para a passageira:
– Você viu só a cara daqueles imbecis?
– O que será que estavam fazendo no meio da rua daquele jeito? – Jodie Adams parecia mais confusa do que curiosa.
– Estavam fofocando, obviamente. É só isso o que sabem fazer. – respondeu com um sorriso debochado nos lábios.
Ela também sorriu enquanto ele aumentava o volume do rádio, guiando para longe.
Frank parou o carro minutos mais tarde, em meio a lugar algum, longe do centro da cidade. Virou-se para Jodie assim que desligou o automóvel, e, sem sequer dirigir-lhe uma palavra, puxou-a para si. Se esfregava nela, lhe mordendo o lábio inferior.
Depois a afastou, passando o braço por cima dela para abrir a porta do lado do passageiro de seu carro.
Sorriu e disse:
– Cai fora.
– O quê?! – Jodie arregalou os olhos, incrédula.
– Quero que vá embora. Tenho coisas para fazer.
– Está me mandando embora? É isso mesmo? – ela estava perplexa, e seu tom de voz era histérico.
Ele soltou um suspiro.
– Se manda, Jodie. Te ligo depois.
Furiosa, ela pegou sua bolsa sobre o painel do automóvel e saiu, batendo a porta. Viu-o girar a chave na ignição, acelerando, se afastando rapidamente. Mas que filho da mãe!
Frank guiou até sua casa – uma bela residência em estilo vitoriano, pintada inteiramente de branco –. Estacionou seu carro em frente à casa e, desligando o rádio, saltou para fora.
Caminhando na direção de sua casa, enfiou uma de suas mãos no bolso de seu jeans, procurando por suas chaves. Sem sucesso, percebeu que as esquecera no carro.
Ao virar-se para trás, notou que alguém o observava. Pelo canto de seus olhos avistou a magra silhueta da figura pálida que o fitava intensamente. Frank não ousou encarar a pessoa, mas sabia que seus olhos estavam fixados nele. Isto lhe causou uma sensação de desconforto.
Virou-se para olhar a pessoa. Não estava mais lá. Ouviu um riso. Alegre e estridente. Seguiu o som com os olhos. Viu-a correr na direção das árvores, do outro lado da rua. Duvidoso, ele decidiu segui-la.
Correu para as árvores, cortando caminho por entre as mesmas, procurando-a. O riso pôde ser ouvido novamente. Frank olhou ao redor. Nem sinal dela. Olhou para seu lado esquerdo. Viu-a correndo ainda mais depressa.
Continuou seguindo-a até que a perdeu de vista novamente. Ouvia-se outro som. Não eram risos desta vez. Eram gritos. Gritos que ficavam mais altos conforme Frank caminhava na direção do som.
– Você não a salvou... – um sussurro passou por ele. Rápido e gélido.
Olhou para trás e não viu ninguém. Ele estava certo de que alguém passara por ele. Havia sentido a presença de alguém.
– Quem está aí? – arriscou perguntar. Não houve qualquer resposta. Sua voz ecoou.
Os choros transformaram-se em risos. Novamente os risos. Eram penetrantes e, ao mesmo tempo, aterradores. Ouviu passos. Olhando para o outro lado, Frank avistou uma garota correr. Usava um vestido verde-claro. Corria para a saída do parque cercado por enormes árvores. Ele correu logo atrás dela, o mais rápido que pôde, até que se encontrou fora daquele lugar que mais parecia um labirinto.
Olhou em volta.
Estava em outra rua. Logo à sua frente, encontrava-se uma igreja. Viu a garota subir as escadas com muita pressa, entrando pelas portas principais da igreja. Correu até ela.
Ele parou assim que alcançara a entrada da igreja, agora fechada. Soltou um longo suspiro e empurrou as grandes portas de madeira que rangeram assim que ele o fez.
Deu um passo adiante. Não viu ninguém. A igreja se encontrava completamente vazia. O cenário aparentava um aspecto que não agradara os olhos de Frank.
Caminhou pelo corredor, cercado por filas de assentos que pareciam estar ali há muitos anos. Ele se dirigiu até o fim do corredor da igreja. Levantou os olhos, encarando a imagem de Jesus Cristo pendurada diante dele.
Soltou um riso irônico.
Censurou-se por ter sido tão estúpido. Percebeu a situação boba em que se encontrava. Devo ter bebido demais.
Virando-se para voltar para casa, Frank se deparou com alguém. Prendeu a respiração, espantado. Seus olhos verdes se abriram totalmente.
– Não era minha intenção lhe assustar, meu filho. – um padre muito idoso colocou uma mão sobre o ombro de Frank. – Está procurando por alguém?
Frank pigarreou, se recompondo. O padre afastou sua mão do ombro de Frank. Ele encarou o homem com um olhar indiferente e respondeu:
– Uma garota... Ela correu para cá.
– Garota? – o padre indagou. – Não vi ninguém, filho. Estou sozinho.
– Não a viu entrar aqui?
– Ninguém entrou aqui o dia todo. Exceto você. Vi quando você entrou, mas... Ninguém mais apareceu por aqui, lhe asseguro com convicção.
Frank tentou, com dificuldade, disfarçar sua surpresa.
Trevor Williams passara os três meses seguintes – depois da explosão da Jones & Johnson – fazendo uma investigação particular, em segredo.
Ainda não tivera notícias de Heather. Não fazia ideia de onde ela poderia estar. Por diversas vezes, tentara entrar em contato com o diretor do hospital, em busca de respostas, mas este se negara a falar com ele.
O mesmo ocorreu com os outros médicos que estiveram com ele naquele hospital meses atrás. Ninguém sabia de Heather. Ninguém queria saber dela. Era como se, de alguma forma, ela tivesse sido esquecida por Deus e o mundo.
Em uma noite, meditando em um quarto de hotel em Hartford, Trevor pensou em uma forma – talvez a única – de descobrir onde Heather se encontrava.
Lembrou-se de uma das sessões nas quais Heather tentara, a muito custo, convencê-lo a ajudá-la em sua fuga. Durante aquela mesma sessão, ele concluíra que ela sabia para onde ir assim que fugisse da Jones & Johnson.
Claramente, Heather planejava ir à um lugar onde Emma estivera antes, em vida. Ela estava atrás de respostas e julgava esta a melhor forma de encontrá-las. Naquela noite, assim que se lembrara daquela sessão, Trevor Williams guiou com seu automóvel até o que restara do hospital psiquiátrico.
Dois meses após o desastre que ocorrera na Jones & Johnson, Robert Jones decidira afastar-se do trabalho por algum tempo. Partiu para o exterior, abandonando o prédio. Consequentemente, o local agora se encontrava em estado vergonhoso.
Três meses haviam se passado no total. Assim que chegou ao antigo prédio da Jones & Johnson, Trevor desceu de seu carro com uma lanterna em mãos. As cercas – que antes serviam para impedir invasões ou possíveis fugas da parte dos internos – agora se encontravam destruídas.
Ele não encontrara dificuldade em entrar no prédio principal. As portas demonstravam sinais de arrombamentos. As janelas estavam completamente quebradas, com pedaços de vidro espalhados por toda a parte.
Segurando a lanterna com firmeza, Trevor caminhou pelo corredor que o levaria para os quartos onde os pacientes costumavam passar a maior parte de seu tempo. O corredor estava silencioso, gelado, envolto em escuridão. Ele seguiu caminhando por entre as portas dos quartos. Todo aquele silêncio no ambiente estava começando a deixar Trevor incomodado.
Depois de passar por muitas e muitas portas, ele parou em frente à última delas, no final do corredor. Encarou a porta. Era a única que se encontrava fechada. Pôs a mão na maçaneta e girou-a. Estava trancada por dentro. Trevor pressionou seu próprio corpo contra a porta, com muita força, fazendo-a se abrir por completo.
Agarrou a lanterna e passou seus olhos por todos os cantos do quarto. A cama ainda estava lá. Assim como a mesa encostada na parede, ao lado da porta. Ambas estavam quebradas, em péssimo estado.
Com uma mão, apressado, Trevor começou a abrir as gavetas da mesa, enquanto, com a outra, ele segurava a lanterna. Não havia nada na primeira gaveta. Nem na segunda. Observou o chão, procurando, desesperadamente, por qualquer coisa que o levasse até alguma resposta.
Agachou-se em frente à cama, e olhou por debaixo dela. Não encontrou nada. Havia muita sujeira espalhada por todo o chão. Pedaços de vidro, madeira e papel. Num suspiro de derrota, Trevor Williams desistiu. Fez menção de passar pela porta, tencionando ir embora.
Ao fazer isto, porém, notou algo em cima da mesa cujas gavetas ele já havia verificado. Um pedaço de papel sobre a tal mesa lhe chamou a atenção.
Passou a luz da lanterna pelo papel rasgado.
Havia algo escrito nele, mas aquilo não fez sentido algum para ele. Eram apenas duas ou três letras aleatórias. De repente, algo lhe veio à mente. Passou a luz pelo chão, por entre os cacos de vidro e pedaços de madeira.
Em meio a outros pedaços de papel espalhados por todo o chão do quarto, ele avistou um pedaço no qual alguém havia escrito algo. Recolheu o papel rapidamente. Conseguiu ler mais algumas letras.
Com uma ponta de desespero, Trevor voltou a passar a luz pelo chão. Depois, pela parede. E, por fim, por debaixo da cama mais uma vez.
Encontrou outro pedaço de papel. Algo também estava escrito nele. Em um gesto de ansiedade, Trevor Williams ajoelhou-se no chão, depositando a lanterna ao seu lado. Pegou os três pedaços de papel e distribuiu-os pelo chão.
De início, aquilo não parecia fazer sentido. Ele misturou os papéis – três vezes no total – até que, finalmente, eles pareciam se encaixar perfeitamente, como se tivessem sido arrancados uns do outros.
Ele encarou os três pedaços de papel colocados no chão. Percebeu que juntos eles formavam uma única palavra.
A resposta que ele vinha buscando durante aqueles três meses.
Bem ali.
Dançando debaixo de seu nariz. Middletown.
A primeira noite de Heather na casa que pertencera à Emma e seu avô fora tranquilamente normal. Ela decidiu que começaria com a limpeza no dia seguinte.
Durante sua primeira noite na casa, deixara uma chaleira com água fervendo no fogão da cozinha enquanto sentava-se no sofá da sala. Não era o tipo de móvel com o que se habituara durante os três meses que vivera como a Sra. Stevens.
Charles Stevens morrera dois meses depois que eles assinaram os papéis, deixando para trás, não somente toda a sua fortuna, como também um grande vazio na vida de Heather.
Sendo oficialmente a única herdeira de Stevens, Heather estava ciente de que era isso o que ele planejara quando decidira pedi-la em casamento. Sabia que ela viria a precisar de dinheiro e segurança para executar todos os planos guardados em sua mente. Usando o sobrenome de seu falecido marido, e, com uma invejável conta bancária, Heather mudou-se para Middletown dias depois do funeral – como Charles Stevens lhe pedira –.
Ela estava agora sentada no sofá da sala, relembrando o último dia em que se falaram.
O último dia de vida dele.
Ele já se encontrava em estado crítico. Pedira aos médicos que o deixasse viver seus últimos dias em sua própria casa, deitado em seu leito. Heather se encontrava ao seu lado, sentada em uma poltrona.
– Aproxime-se. – ele pediu, esforçando um sorriso.
Heather inclinou-se para contemplá-lo, com uma expressão de preocupação em seu rosto. Tomou-lhe a mão com ternura.
– Por favor, não fale.
– Heather... – fez uma pausa para respirar fundo. – Eu quero que termine sua missão. Quero que faça o que tem de fazer.
Ela o olhava sem esconder sua tristeza. Charles segurou-a pelo braço, fitando-a nos olhos.
– Precisa ir até o fim... Precisa... Acabar com este pesadelo. – as palavras custavam a sair, a respiração estava entrecortada. – Entenderá o que aconteceu, Heather... Descobrirá toda a verdade...
Heather fez um imenso esforço para conter suas lágrimas.
Charles Stevens falecera minutos mais tarde.
A pedido do mesmo, um advogado procurara Heather para a leitura do testamento no dia seguinte. Stevens lhe deixara absolutamente tudo.
Heather preparara tudo para partir para Middletown em poucos dias. Decidida a comprar a residência que um dia pertencera à família de Emma, ela contatou um agente imobiliário da cidade. Combinaram uma data. A data em que Heather conheceria tanto a cidade quanto o imóvel.
Durante estes três meses ela aprendera muito. Com a vida e com Charles Stevens. Via-o como um pai. O pai do qual não se lembrava. O pai que, talvez, ela jamais realmente chegara a conhecer.
Heather McLean – agora Heather Stevens – causara uma sensação gigantesca desde a sua chegada à pequena cidade de Middletown. Seu luxuoso carro negro chamara a atenção de, pelo menos, metade dos simples habitantes.
Ouviu a chaleira apitando, fazendo-a se lembrar de que ela deixara água fervendo na cozinha. Levantou-se do sofá e seguiu para o fogão, com intenção de terminar seu chá.
Jodie Adams saiu do banheiro depois de uma relaxante hora debaixo do chuveiro. Com o corpo envolto em uma toalha azul, ela entrou em seu quarto e checou seu celular. Nenhuma ligação ou mensagem. Soltou um suspiro, zangada. Assim como ela previra, Frank não entrara em contato com ela. Já estava começando a sentir-se incomodada com aquele tipo de relação que ocorria entre eles. Jodie queria um relacionamento sério. Afinal, já estavam juntos há um bom tempo. Mas, claramente, Frank Palmer não estava disposto a dar seriedade àquele relacionamento. Viam-se regularmente e, em todas as festas em que se encontravam, ela sempre acordava ao lado dele na cama. Mas aquilo já estava se tornando uma rotina. Uma rotina da qual Jodie não gostava nem um pouco.
Ela queria uma mudança e queria isso o mais breve possível. Já não eram mais adolescentes que tinham sua idade como desculpa para adiar suas responsabilidades.
Perdida em meio aos seus pensamentos, Jodie vestiu-se e enfiou-se debaixo das confortáveis cobertas de sua cama. Fechou os olhos, tencionando dormir. Entretanto, assim que cerrou seus olhos, ouviu um estranho ruído vindo de sua cozinha.
Imaginou que, talvez, fosse algum de seus eletrodomésticos, mas o som tornara a surgir no ambiente, deixando Jodie em dúvida. O som soou novamente. Mais uma vez. E outra. Jodie levantou-se de sua cama, vestindo seus chinelos.
Caminhou na direção do corredor e, ao olhar para o chão à sua frente, se deparou com uma pequena poça d’água.
Com ar de perplexidade, ela olhou mais adiante. Não se tratava apenas de uma poça, mas sim de um rastro de água que seguia para a cozinha.
Jodie dirigiu-se para a cozinha, seguindo o rastro de água que se estendia por todo o corredor.
Com as pernas trêmulas devido ao nervosismo, Jodie parou no final do corredor e levou a mão ao coração, tentando comprimir as batidas. Estava hesitante, receosa do que poderia encontrar. À custa de um esforço imenso, saiu do terror que a prendia no lugar.
Estava ali. Logo à sua frente. Com um vestido verde-claro completamente encharcado e sua pele pálida como cera. As gotas de água pingavam de seu vestido, despencando ao chão. Jodie sentiu como se sua audição estivesse mais aguçada.
Ela ouvia cada gota de água cair ao som de um glorioso splash. O tempo cessara. Ambas frente à frente. Seus olhos fixados nos de Jodie, causando nela uma onda de repulsão. O tempo retornou ao corpo de Jodie.
Ofegante, ela encheu seus pulmões famintos por oxigênio, voltando de seu transe. Fechou os olhos até que sua respiração voltasse ao normal. Ao abri-los, percebeu que estava sozinha. Não havia mais ninguém.
Somente ela.
Ouvindo o som de gotas d’água, Jodie instintivamente virou-se para o lado, se deparando com a torneira da pia gotejando. Aproximou-se, fechando a torneira. Soltou um suspiro num misto de alívio e pavor.
O que acontecera ali fora como um pesadelo e haveria de acabar depois de uma longa noite de sono. Jodie seguiu de volta para sua aconchegante cama, deixando seus pensamentos de lado.
No dia seguinte, à tarde, após passar a manhã inteira limpando sua nova casa, Heather partiu rumo ao centro da cidade. Com uma bolsa de couro preta e alguns papéis em mãos, vestindo calças compridas e um belo suéter, ela seguiu caminhando pelas imperturbadas ruas de Middletown. Foi a um estabelecimento, onde não ficara por mais de cinco minutos.
Em seguida, voltava para sua casa com mais um pequeno monte de papéis em mãos.
Estava distraída e, por isto, não seu deu conta do que realmente acontecera ao sentir que algo – ou alguém – a derrubava no chão. A colisão de sua cabeça contra o concreto da calçada fora leve, mas causara-lhe uma forte vertigem assim que abrira os olhos.
– Perdão. – uma voz ecoou estridente nos ouvidos de Heather, causando-lhe uma breve dor de cabeça. Ela levantou os olhos. Quando conseguiu finalmente coordenar suas ideias, Heather encarou o sujeito que a tinha derrubado.
Ali, parado à sua frente, lhe estendendo uma das mãos. Tinha uma expressão demasiadamente severa em seu rosto, um olhar carregado e obscuro que fez com que Heather levasse segundos a mais para fitá-lo. Por fim, sem dizer nada, ela agarrou-lhe a mão e colocou-se em pé, limpando seu jeans de caimento perfeito.
– Tudo bem? Espero que não chame a polícia. – ironizou o indivíduo. Deu um sorriso sem jeito e parecia esperar que ela respondesse.
– E-eu... Sim, estou bem. Está tudo bem. – ela afirmou. Olhou para suas mãos e percebeu que ainda segurava seus papéis com firmeza. Porém, os papéis agora se encontravam encharcados. Ela não notara a pequena poça d’água ao lado da calçada onde caíra.
– Eu sinto muito. – o indivíduo voltara a falar. – Eram importantes?
Ela soltou um curto e abafado riso de lamentação.
– Apenas cópias. Acabei de tirá-las.
– Pois me deixe resolver isto agora mesmo. – tirou os papéis molhados das mãos dela com gentileza. – Vou ver se ainda posso recuperá-las para você.
– Olha só – ela o interrompeu. – Isto não vai ser necessário. Eu posso tirar novas cópias. Não há problemas.
– De forma alguma. Eu insisto.
– Não creio que consiga recuperá-las. – disse ela com fé, olhando para os papéis nas mãos dele.
– Bem, não há desafio que eu não aceite. – declarou confiante. – Não a tinha visto antes.
– Acabo de me mudar.
– Então é você a pessoa de quem todos estão falando...
– Como?! – de repente, seu tom de voz mudara. – As pessoas estão falando de mim?
Heather parecia surpresa.
– Obviamente. – ele respondeu. – Você é a nova atração da cidade.
Ela levantou as sobrancelhas em uma expressão irônica e não disse nada.
– Se me permite, vou levar seus papéis comigo. Prometo trazê-los em perfeito estado, como estavam antes do nosso pequeno incidente.
Heather passou a mão pelos cabelos dourados, tocando sua nuca, que agora latejava fortemente.
– Tudo bem. – ela concordou. – Faça como bem entender.
– Desculpe. Não creio que esta tenha sido a forma mais adequada de se receber uma nova habitante na cidade. – Inesperadamente, ele estendeu-lhe uma de suas mãos. – Sou Alex. E, se quer um conselho, compre uma aspirina. A dor de cabeça que está por vir depois daquela pancada vai ser insuportável. Experiência própria.
– Ah – ela lançou para ele um olhar sarcástico, ignorando seu gesto. – Então não sou a primeira pessoa que você ataca no meio da rua.
– Eu realmente peço desculpas. Não era minha intenção. Estou... – fez uma pausa e tirou a mão estendida da frente dela. – Estava atrasado para uma entrevista de emprego.
– Pois é, parece que o universo realmente conspira. – ela comentou. – Perdi meus papéis e você, o emprego. – ela verificou se os objetos dentro de sua bolsa ainda estavam intactos mesmo depois da queda, e fez menção de se afastar em passos rápidos.
– Ei, espere. – Alex a chamou de volta. Ela virou-se para ele. – Como faço para lhe devolver os papéis depois?
– Saberá onde me encontrar. – respondeu. – Afinal, eu sou a nova atração da cidade.
Afastando-se rapidamente, Heather o deixou para trás sem sequer dizer o seu nome. Estava certa de que ele jamais recuperaria aqueles papéis. Por este motivo, não hesitou em permitir que ele os levasse consigo. De fato, aqueles papéis eram de grande importância.
Heather juntara tópicos de fragmentos de antigos jornais publicados em Middletown, em datas próximas da noite em que Emma fora assassinada. Encontrara tudo na internet. Porém, ficara surpresa ao saber que apenas uma ou duas pequenas matérias haviam sido publicadas a respeito do caso.
Evidentemente a polícia desistira da investigação muito antes de fazer qualquer esforço para realmente entender o que ocorrera naquela noite. Ninguém se importava. Assim como ninguém se importara com Heather enquanto ela estivera trancafiada por intermináveis anos na Jones & Johnson.
Talvez fosse este o motivo pelo qual Emma a escolhera. De um súbito, lembrou-se das palavras de Charles Stevens: Alguns espíritos se afeiçoam a certas pessoas.
Emma afeiçoara-se à Heather porque, de alguma forma, havia uma similitude entre suas almas. Ambas haviam sido esquecidas, deixadas para trás...
Heather seguiu caminhando na direção de sua mais nova moradia quando parou bruscamente, colando suas costas ao tronco de uma árvore. Ela não esperava encontrá-lo tão repentinamente. Não naquela cidade.
Desencostando sua cabeça da árvore, Heather espiou pelo canto de seus olhos e concluiu que era mesmo quem ela julgava ser. No banco do motorista de um automóvel cinza escuro, Trevor Williams esperava atentamente o semáforo à sua frente esverdear um de seus sinais.
Heather o observava à distância, atônita. Sua primeira reação foi pensar na Jones & Johnson. Os solitários dias e noites que passara naquele lugar. O tormento de viver enjaulada e a terrível sensação de que aquele pesadelo infernal jamais teria um fim. Heather não voltaria para aquele lugar. Não deixaria que a levassem de volta.
O sinal abriu. Ela viu-o guiando para longe e sentiu um alívio imediato. Mas logo voltou a sentir-se angustiada. Algo estava errado. Havia um motivo para ele estar naquela cidade. Estão atrás de mim.
Sem pensar duas vezes, Heather correu na direção de sua casa.
Alex Montini seguiu para uma copiadora no centro da cidade. Informou o atendente sobre o que acontecera minutos atrás. O sujeito dissera-lhe que não havia nada que se pudesse fazer para recuperar os documentos.
Persistente, ele decidira levar os papéis consigo para sua casa, até se decidir o que faria com eles. Seguiu até uma pequena residência do outro lado da cidade. Entrando na casa, passou pela sala vazia e escura. Estava certo de que todos estavam dormindo. Subiu para seu quarto e depositou os papéis sobre sua escrivaninha, acendendo a luminária.
Tirou o telefone do bolso de sua calça e verificou se havia alguma chamada. Virou-se para a escrivaninha novamente. Encarou os papéis e emitiu um riso breve ao lembrar-se do que lhe ocorrera naquele dia. Abanou a cabeça e fez menção de dirigir-se para sua cama, onde dormiria por, pelo menos, até à tarde do dia seguinte.
Mas algo fez com que voltasse sua atenção para os papéis, agora secos.
Iluminadas pela luz da luminária na mesa, as páginas refletiam pequenas letras impressas. Alex aproximou seus olhos. As letras estavam borradas, mas ainda se encontravam legíveis. Seus olhos transitaram pela primeira folha de papel que se encontrava sobre as outras. Pararam de se mover assim que reconheceram um nome familiar.
Um nome que, assim que fora reconhecido pelos olhos de Alex, causou-lhe um terrível aperto no peito. Emma Connors.
Um sentimento de amargura tomou conta dele. Depois, a suspeita.
Ele perguntou-se o que aquela mulher fazia com aqueles papéis, se ela teria algum interesse em Emma. Desejava que fosse apenas um mal entendido.
Decidiu que resolveria isto o mais breve possível.
Antes que ela começasse a causar problemas.
Heather foi obrigada a acordar assim que ouvira o penetrante som de alguém batendo à sua porta. Levantou-se do desconfortável sofá amarelado de sua sala e, vestindo um robe de seda branco, caminhou na direção da porta. Abriu-a, se deparando com um rosto nada familiar.
A mulher parada à sua frente tinha volumosos cabelos escuros, olhos a condizer e um enorme sorriso nos lábios. Heather arqueou uma sobrancelha, esperando que ela se apresentasse.
– Bom dia. – disse a desconhecida, finalmente. Seu tom de voz era cordial e melodioso. – Sou Amanda, sua vizinha.
Ela manteve o sorriso no rosto e Heather fez esforço para não parecer antissocial.
– Heather. – estendeu-lhe uma mão.
Elas trocaram um cumprimento. A mulher possuía um aperto de mão frouxo, fraco.
– Vim lhe dar as boas vindas. Sei que é nova na cidade.
– Agradeço. – Heather respondeu.
– Bem, eu moro no final da rua. – ela apontou para a ponta de uma esquina, fazendo com que Heather seguisse seu dedo com os olhos. – Se precisar de qualquer coisa, conte comigo.
– Ahn... Tudo bem. Obrigada mais uma vez. – esforçou um sorriso.
– Sem problemas. – Amanda afastou-se rapidamente. Heather balançou a cabeça, ainda sonolenta, e voltou para dentro, fechando sua porta.
Olhou para a sala de estar de sua nova casa. Os raios de sol invadiam o ambiente por completo. Heather concluiu que eram seis da manhã ao verificar o relógio que colocara sobre a mesa de centro, em frente ao sofá. Também concluiu que as pessoas daquela cidade estavam habituadas a acordar cedo, ao julgar pela disposição de Amanda tão cedo, assim que batera à sua porta. Inesperadamente, ao refletir sobre o assunto, Heather percebera algo. Sou Amanda, sua vizinha.
Seu nome não soara tão familiar no início, mas Heather teve a súbita sensação de que ouvira aquele nome antes. Por diversas vezes. Sentiu que algo lhe subia pela garganta. Sufocada, ela já sabia o que estava por vir. Uma onda de desespero tomou conta dela seguida de um forte impacto que colidiu contra seu estômago, fazendo-a recuar repentinamente. Suas pálpebras, subitamente pesadas, começaram a se fechar.
૪
Amanda Thornton engolira seu orgulho, convidando Emma para encontrá-la em uma lanchonete da cidade naquela tarde. Emma chegara ao local marcado cinco minutos antes.
– Seja breve, por favor. – declarou, perante a mesa onde Amanda se encontrava.
– Sente-se. – apontou para a cadeira à sua frente.
Emma acomodou-se na cadeira, fitando a amiga com seus grandes e ansiosos olhos castanhos.
– Diga o que quer. – sua voz era a mesma, mas seu tom de voz mudara. Soava mais determinada do que nunca.
– Emma... – Amanda soltou um suspiro antes de prosseguir. – Estou preocupada com você.
– Preocupada comigo? – indignou-se a garota.
– Sim. – respondeu a outra. – Jodie descobriu coisas a respeito de seu novo namorado e...
– Oh, não! – exclamou Emma, interrompendo. – Não vamos entrar em mais uma discussão, pelo amor do bom Deus. Isto é ridículo, Amanda!
– Você não sabe no que está se metendo. – ela estava mesmo desesperada para convencê-la. – Você sabe por que a família dele se mudou para esta cidade?
Emma fez que não com a cabeça.
– Porque ele tentou assassinar um colega de classe em Chicago, com uma faca.
Houve um longo e desconfortável silêncio antes que Emma soltasse uma gargalhada.
– Mas olhe só para você! – disse. – Está sendo completamente irracional. Amanda pare com essas fantasias. A família dele não tem problemas com a justiça e ele não é nenhum criminoso.
– Como pode ter tanta certeza? Você não o conhece. E nem ele a você.
– Alex me conhece melhor do que você e Jodie jamais puderam conhecer. – dizendo isso com completa convicção, Emma pôs-se em pé. – Se algum dia chegar a encontrar alguém assim, me entenderá. E então, talvez, possamos voltar a conversar. – virou-se, deixando o estabelecimento com um ar triunfal. Aturdida, Amanda assistiu-a indo embora.
૪
Heather abriu os olhos ao sentir que voltava à realidade. Respirou fundo, colocando seus pensamentos em ordem rapidamente. Emma lhe dera a oportunidade de ver aquela cena por um motivo. Instintivamente, Heather ligou sua última visão aos recentes acontecimentos que lhe ocorreram desde sua chegada à Middletown. O incidente com o sujeito na calçada.
Sou Alex. E, se quer um conselho, compre uma aspirina. A dor de cabeça que está por vir depois daquela pancada vai ser insuportável.
Heather fez uma breve análise. Estava ali. Preto no branco. Ela censurou-se por não ter notado logo de início.
Em seguida, a mulher com quem acabara de conversar naquela mesma manhã.
Sou Amanda, sua vizinha.
Aqueles nomes já não soavam desconhecidos para Heather. Estava certa de que já os tinha ouvido, antes mesmo de chegar à cidade. Imediatamente entendeu o motivo pelo qual Emma lhe enviara aquela visão na lanchonete. Ainda que aquela realmente fosse a sua intenção, de forma involuntária ela estava começando a se aproximar das pessoas com as quais Emma convivera.
Os suspeitos de seu assassinato.
Frank Palmer encontrava-se encostado em seu conversível, logo em frente à principal praça de Middletown. Tinha rebeldes cabelos castanhos e penetrantes olhos verdes nos quais muitas garotas da cidade já haviam se perdido.
Com uma garrafa de cerveja em mãos, Frank parecia esperar por alguém. Consultava seu relógio a cada cinco minutos, impacientemente.
Emitiu um sorriso debochado ao perceber que alguém atravessava a rua, caminhando na direção da calçada ao seu lado.
– Montini. – sua voz transbordava falsa simpatia. – Vejo que anda ocupado como sempre. Aposto que está atrás de algum emprego novamente.
Alex o encarou sem deixar transparecer qualquer tipo de reação ao ataque sarcástico de Frank.
– Pois é... – murmurou. – Alguém tem que trabalhar, não é mesmo?
Frank Palmer soltou um riso.
– Sabe que posso lhe oferecer um emprego, se precisar.
– Eu prefiro passar fome a ter que trabalhar para você. – declarou, passando ao lado de Frank e afastando-se apressadamente com papéis em mãos. Frank consultou o relógio em seu pulso mais uma vez. Fez menção de entrar em seu carro, quando ouviu uma voz chamar por seu nome. Olhou para trás. Jodie vinha correndo o mais depressa que podia, acenando para ele.
– Desculpe. – disse ela assim que o alcançara. – Tive que fechar a loja.
– Sem problemas. – ele indicou o lado do passageiro de seu carro com a cabeça. – Vamos.
Com os olhos cheios de admiração, Jodie sorriu e obedeceu, entrando no carro e posicionando-se no banco. Frank sentou-se atrás do volante, girando a chave. O carro arrancou bruscamente.
Alex Montini seguiu o rumo planejado, segurando papéis em uma das mãos. Papéis que ele prometera entregar à Heather o mais breve possível. De fato, ele os entregaria de volta para ela. Partira de sua casa rumo à rua aonde, por muitas vezes, surgira no meio da noite para se encontrar com Emma.
Chegou ao seu destino, parando em frente à casa que um dia pertencera ao avô da garota. Respirou fundo e deu dois passos adiante, batendo à porta.
Não demorou muito para que ele se deparasse com o mesmo rosto que vira na tarde anterior. Com uma expressão indiferente, Heather abriu a porta de sua casa. Ao se dar conta de quem era, ela indagou:
– O que quer aqui?
– Vim lhe entregar seus papéis. – estendeu os mesmos para ela. Heather encarou os papéis e, com pressa, arrancou-os das mãos de Alex de forma ríspida.
– Obrigada.
– Por nada. – respondeu em tom frio. Tão frio que Heather sentiu-se incomodada. Decidiu não dizer mais nada. Heather fez menção de fechar a porta, quando sentiu que algo a impedia. Alex a interrompeu, segurando a porta com um de seus pés.
– Me diga o que está fazendo nesta cidade. – disse de forma clara e direta. A frieza com a qual ele falava causou a surpresa de Heather. Com os olhos confusos, ela o fitou calada. Mas as palavras tornaram a soar: – O que está procurando?
Heather levantou o rosto num gesto desafiador e seus olhos brilharam.
– Meus interesses não lhe dizem respeito. – declarou severamente.
– Li seus papéis. Está atrás de algo em relação a uma garota. Emma Connors.
Ela não esperava que ele estivesse tão a par de suas intenções. Repreendeu-se mentalmente por ter permitido que ele levasse os papéis.
– Estou atrás de respostas. – revelou ela. Alex não esboçou surpresa ou curiosidade. Seu olhar era tão frio quanto o tom de sua voz.
– Emma está morta. – asseverou de forma áspera.
– Sei disso.
– Não quero que se meta nisso. – ele declarou. Em uma expressão ameaçadora, ele a fitava com seus profundos olhos negros. – Essa história está morta. Assim como Emma.
– Não estou habituada a receber ordens de ninguém. Muito menos ordens vindas de desconhecidos que vêm até minha casa para me ameaçar. – tentou fechar a porta, mas novamente ele a impediu.
– O que você quer exatamente? Uma matéria? É algum tipo de repórter?
– E você? É da polícia? – perguntou em tom irônico e impaciente. – Não tem o direito de me interrogar dessa maneira.
– Não quero ver ninguém revirando o passado. Emma merece paz.
– Se realmente desejasse a paz dela, teria feito algo para descobrir quem a matou! – ela perdera totalmente a paciência. – Você não fez absolutamente nada para ajudá-la.
Os olhos dele estavam mais abertos, surpresos com aquela afirmação.
– Mas de que diabos está falando?
Heather mais uma vez tentava, a muito custo, fechar a porta. Sem muito esforço, ele a manteve aberta, aproximando-se dela.
– Emma morreu! – agarrou-a por ambos os pulsos, obrigando-a a lhe escutar. – Não há nada mais que se possa fazer. Nada a trará de volta. Está morta! Morta!
– Me solta! – Heather lutava para livrar-se dele, mas mesmo todo o seu esforço parecia inútil.
– Ouça bem. Não permitirei que ninguém atormente a paz de Emma com investigações que não trarão resultados. Ela merece descansar.
– Me solte agora! – protestou ela, furiosa.
– Por acaso você é surdo? – uma terceira voz soou ao fundo. Alex virou-se em sua direção. Um desconhecido aproximou-se dele, e, puxando-o pelos ombros, separou-o de Heather bruscamente. – Saia daqui antes que eu chame a polícia! – assegurou autoritário.
Alex o fitou, abismado. Depois olhou para Heather. Ela não parecia apavorada, mas sim surpresa. Surpresa com a atitude que ele havia tomado. Sem dizer mais nada, Alex tomou seu rumo de volta para casa em apressados passos. Heather consecutivamente reconhecera o indivíduo que, agora, encontrava-se ao seu lado. Com os mesmos cabelos louros penteados com cuidado e olhos azuis questionadores, ele encarou-a dizendo:
– Até quando eu terei de me preocupar com você, Heather?
Virou-se para ele com indiferença.
– Não preciso de babá, Dr. Williams.
– Pois não foi essa a ideia que me deu, segundos atrás.
– O que pensa que está fazendo aqui? – decidiu perguntar diretamente.
– Pergunto-lhe a mesma coisa.
Num suspiro derrotado, Heather franziu os lábios e desistiu de iniciar mais uma discussão. Estava cansada demais para argumentar. Olhou para ele e disse-lhe calmamente:
– Creio que temos muito que conversar.
– Também eu. – concordou ele.
Ela abriu espaço, empurrando a porta de sua casa para que ele pudesse passar.
– Entre.
Amanda Thornton falava ao celular enquanto esperava o sinal verde do semáforo à sua frente. Era uma tarde agradavelmente fria. A leve brisa vinda da direção do rio batia em seus abundantes cabelos escuros, causando nela uma afável sensação de frescor.
– Entrarei em contato assim que possível. Obrigada. – desligou o telefone, depositando-o no porta-luvas de seu automóvel. Mais um cliente. Pensou, satisfeita.
Amanda passara a tomar conta dos pequenos negócios de seus pais assim que eles decidiram mudar-se para Nova York. Com esta atitude, esperavam que Amanda fosse se tornar mais responsável. E foi exatamente isto o que acontecera. Ela tornara-se mais madura e responsável assim que fora escolhida para gerenciar a pequena loja de confecção de sua família.
O sinal se esverdeou. Amanda pisou no acelerador com suavidade e sentiu o carro deslizar em velocidade controlada pelo asfalto. Estava voltando para casa, quando, inesperadamente o rádio de seu carro foi ligado. Perplexa, Amanda inclinou-se para desligá-lo, mas os botões pareciam não funcionar. O estrídulo som vindo do aparelho fez arder os ouvidos de Amanda, que, de maneira instintiva, cobriu suas orelhas com ambas as mãos. Olhou para frente. Deparou-se com alguém parado logo à sua frente. Apavorada, Amanda tomou posse do volante novamente, girando-o para seu lado esquerdo, tentando desviar da figura pálida e soturna que se encontrava parada no meio da rua.
O rosto umbroso, de olhar melancólico, fora a última coisa que Amanda vira antes de perder o controle do veículo e colidir violentamente contra um poste.
Trevor Williams observou o ambiente em que se encontrava. Uma pequena sala de estar com paredes manchadas e um sofá velho. Uma mesa de centro logo à sua frente. Certamente já estivera em locais melhores.
– Como foi que me encontrou? – Heather entregou-lhe uma xícara de chá e sentou-se ao seu lado, no sofá da sala.
– Você tem que aprender a não deixar rastros por onde passa. – respondeu em tom zombeteiro.
– O que quer dizer?
– Vasculhei seu quarto na Jones & Johnson. – aquela afirmação causou em Heather um intenso e súbito calafrio. Trevor notara a mudança de expressão no rosto dela. – Digo... Eu procurei por você desde a explosão, Heather.
– Por quê? – inquiriu confusa.
– Isso a incomoda?
– Não. Eu apenas gostaria muito de saber por que você parece se importar tanto assim.
Ele levou certo tempo para responder. Bebericou seu chá e soltou um profundo suspiro.
– Bem, não sei. Às vezes, as escolhas erradas podem nos levar às coisas certas. – levantou os olhos e fitou-a com seriedade. – Você foi uma das poucas coisas certas que apareceram na minha vida até agora.
Um curto, porém intenso silêncio tomara conta do ambiente. Heather desviou seu olhar rapidamente, incomodada com o que ouvira. Ele prosseguiu:
– É evidente que você está em perfeito estado mental. Ainda assim, você passou quinze anos de sua vida naquele hospital, Heather. – ele explicava calmamente. – Durante nossas primeiras sessões eu pude ver nos seus olhos o terror que você estava vivendo. Aquilo não fazia o menor sentido.
– Não sei como fui parar naquele lugar.
– Vou ajudá-la a descobrir. É por isso que estou aqui. Não vou deixar que enfrente sozinha o que pode estar por vir.
Heather abaixou a cabeça, olhando para o chão. Declarou em tom baixo, porém firme:
– Não pretendo voltar para aquela clínica.
– E não voltará. – ele afirmou confiante.
– Posso cuidar de meus próprios problemas, sozinha.
– Claro. Da mesma forma que cuidou daquele sujeito, minutos atrás, não é mesmo?
– Ora, por favor. – Heather estava começando a sentir-se impaciente. – Não sou nenhuma garotinha. Sei bem o que faço e digo.
– Não discordo. Mas peço que aceite meu apoio. Ofereço-lhe de coração.
– E o que ganha com isto?
– Não é essa a questão.
– Ainda não me disse como me encontrou.
– Encontrei uma anotação com o nome da cidade...
Heather voltou a olhar para ele. Desta vez, com perplexidade. Mas do que ele estava falando agora?
– Anotação? – indagou ela.
– Sim. Estava em seu quarto. Um pequeno papel. Na verdade, eram pedaços rasgados. Mas, ao juntá-los, pude ler o nome da cidade. Imediatamente, me passou pela cabeça que talvez você estivesse aqui.
– Eu nunca escrevi o nome dessa cidade em lugar algum. – assegurou Heather, confusa. Consequentemente, Trevor parecia ainda mais confuso do que ela.
– Não fez anotações sobre suas visões? Não escreveu o nome da cidade em um pedaço de papel?
– Não. – ela parecia segura do que estava falando.
– Tem certeza disso, Heather?
Ela assentiu.
A polícia e os paramédicos chegaram ao local do acidente poucos minutos depois. Somente quando a colocaram sentada em uma maca, dentro da ambulância, Amanda se deu conta de que havia sangue escorrendo por sua testa. Ouviu um dos paramédicos dizendo que, milagrosamente, ela não sofrera nenhum ferimento grave. Havia um profundo corte em sua testa e ela não conseguia movimentar seu braço direito.
De longe, notou duas sombras caminhando rapidamente em sua direção, mas não arriscou ver de quem se tratava.
– Amanda! Meu Deus! – Jodie Adams exclamou, aterrorizada ao ver o estado em que o automóvel da amiga se encontrava. Depois olhou para a mesma e deu-lhe um abraço.
Frank Palmer vinha logo atrás dela.
– Como foi que isso aconteceu? – ele perguntou. – Estava bêbada?
– Não! – Amanda respondeu impaciente. – Jodie, eu vi. Eu a vi.
Jodie franziu a testa, confusa.
– Do que está falando?
– Eu a vi! Estava bem ali, no meio da rua! Foi ela quem fez com que eu batesse o carro! Estava ali! – Amanda parecia completamente perturbada. – Eu a vi!
– Quem? Quem foi que você viu? – Jodie a segurou pelos ombros, fazendo-a olhar para ela. Com os olhos amedrontados e lágrimas escorrendo por seu rosto, Amanda a fitou e disse-lhe lentamente:
– Emma.
Jodie soltou os ombros da amiga, boquiaberta. Tentou conter sua surpresa, mas não obteve sucesso. Horrorizada, Jodie virou-se para Frank enquanto os paramédicos fechavam as portas da ambulância, levando Amanda para o hospital.
– O que foi que ela disse? – Frank perguntou. Jodie olhava para ele com os olhos muito abertos, assustados.
– Disse que alguém apareceu no meio da rua, fazendo-a bater o carro. – respondeu com a voz trêmula. Fez uma curta pausa. – Ela disse que esse alguém era Emma.
Frank levantou as sobrancelhas e em seguida soltou um riso irônico.
– Por favor! Ela provavelmente estava bêbada. Não viu o modo como repetia a mesma frase, várias vezes?
– Eu acredito nela, Frank. – Jodie o interrompeu. Frank parou de falar e arqueou as sobrancelhas novamente. Sua voz demonstrava o quão confuso estava ao perguntar:
– Por quê?
– Porque eu também a vi.
Sem esboçar reações, Frank Palmer encarou a figura assustada à sua frente. Não proferiu qualquer palavra, mantendo-se calado.
Lembrou-se do que lhe acontecera dias atrás. Logo se deu conta de que Amanda e Jodie não eram as únicas a terem visto Emma. Jodie o abraçou espontaneamente, mas ele não disse nada.
Ainda que também estivesse apavorado em seu interior, Frank permanecera calado.
Descendo de um veículo negro como carvão, Heather caminhou até a entrada de um restaurante da cidade. Usava os cabelos presos para o alto e um belo vestido azul-claro. Seu ritmo era gracioso e elegante.
De dentro do restaurante, através de janelas de vidro, Alex Montini assistia atentamente, quase contra a sua vontade, cada movimento que ela fazia até entrar no estabelecimento.
Assim que colocara seus pés no restaurante, Heather teve de fazer um grande esforço para ignorar o modo como todos ao seu redor viravam-se para observá-la. Sorriu e caminhou na direção de uma das mesas. Sentou-se, esperando que alguém viesse até ela para atendê-la.
Depois de dois minutos, Heather concluíra que ninguém viria até sua mesa. Quando ameaçou se levantar, porém, sentiu que uma mão pousava sobre seu ombro, empurrando-a de volta para a cadeira.
–Fique, por favor. – Alex sentou-se na cadeira à sua frente. Ela o encarou bastante hesitante.
– Não ouse tocar em mim novamente. – advertiu impacientemente.
– Não se preocupe. – ele disse em tom calmo. Muito diferente do tom que usara na última vez em que ela o tinha visto. – Precisamos conversar.
– Mesmo?
– Sim.
Heather soltou um suspiro. Olhou ao redor e depois o encarou, dizendo:
– O que quer?
– Antes de qualquer coisa, quero saber quem é você.
– Isso não é da sua conta. – ela respondeu em tom ríspido, virando o rosto para o lado.
– Tudo o que diz respeito à Emma é de minha conta. – arrancou do bolso um maço de cigarros ingleses. Heather voltou a olhar para ele.
– Sei bem quem você é. – ela afirmou, estreitando os olhos para fitá-lo.
Com muita calma, Alex acendeu um cigarro usando um isqueiro vermelho, e a analisou por alguns minutos.
– Bem, então me diga quem você é.
– Heather Stevens. – ela apresentou-se, finalmente.
– Muito bem, Srta. Stevens. Eu creio que...
– Sra. Stevens. – corrigiu-o imediatamente.
Fitou-a com uma expressão de surpresa no rosto.
– É casada?
– Viúva.
– Eu sinto muito.
– É claro que sente. – concordou irônica. – Seja breve. O que quer?
– Ontem você disse algo como... “Você não fez nada para descobrir quem a matou.”
Heather assentiu com a cabeça.
– Como foi que chegou a esta conclusão?
– Eu sei muito sobre as pessoas dessa cidade. E isso inclui você.
– Logo vi. – fez uma pausa e depois voltou a fitá-la. – Eu quero me desculpar. Agi de forma totalmente errada. Eu lhe devo as mais sinceras desculpas.
– Está tudo bem. – Heather decidiu que não daria início a mais uma discussão. Não desta vez.
– Você trabalha para a polícia? Está investigando o caso? – ele parecia tentar escolher cautelosamente suas palavras.
– Não. – respondeu ela.
– Então, por que está tão interessada no assunto?
– Porque Emma precisa de paz. – ela afirmou de forma severa. Estava certa do que dizia. – E ela jamais a terá enquanto seu assassino estiver em liberdade.
– Fala de Emma como se a tivesse conhecido antes.
– De certa forma, eu a conheci.
Ficaram ambos em silêncio por um longo tempo. Alex a fitava nos olhos, com muita atenção.
– Vejo que não me dirá nada sobre si mesma.
– Está certo. – Heather confirmou. – Mas eu tenho perguntas para lhe fazer.
– Fique à vontade. – ele recostou-se na cadeira.
Heather olhou para ele com curiosidade e suspeita. Julgou aquela atitude demasiada estranha. Ainda mais depois do dia anterior, no qual ele a tratara de forma agressiva. Quaisquer que fossem as intenções da parte dele, ela não perderia aquela oportunidade. Inclinou-se para frente e fitou-o fixamente nos olhos.
– Por que repentinamente mudou de atitude?
– Porque assim como você, quero descobrir o que aconteceu com Emma.
Parecia sincero. Heather teria acreditado nele se já não estivesse habituada a conviver com falsa simpatia. Ela manteve-se calada e logo ele prosseguiu:
– Sabe... – desviou seu olhar do dela. – Emma dizia que me amava mais do que tudo no mundo.
Heather não disse nada, esperando que ele continuasse.
– Nós conversávamos a respeito de nomes que daríamos aos nossos filhos... Nós éramos próximos até esse ponto.
– Eu realmente lamento. – foi tudo o que ela conseguiu dizer. Escutava atentamente cada palavra que ele dizia.
– Me esqueci do rosto dela. – havia uma expressão indiferente nos olhos dele. – E eu me odeio por isso.
Heather fez um breve aceno com a cabeça, assentindo.
– Deve estar ciente de que ela morava na mesma casa que você acabou de comprar.
– Sim. Obviamente.
– Quando Emma desapareceu... Bem, antes de confirmarem sua morte... Mil pensamentos vieram à minha cabeça.
– Como assim? – ela indagou.
– Tínhamos um compromisso. Ela não compareceu. Nunca mais a vi. Então eu... Eu pensei que talvez ela não gostasse mais de mim. Que talvez ela tivesse se mudado para outra cidade. Não sei.
– E por que não procurou saber o que havia acontecido?
– Foi o que eu fiz. – disse naturalmente. – Mas o avô dela se negou a me dar qualquer explicação. Expulsava-me toda vez que eu batia à sua porta. As amigas dela... Creio que nem preciso explicar...
– Amigas?
– Amanda e Jodie. Eram as melhores amigas de Emma.
– Amanda... Tive a oportunidade de conhecê-la.
– Sei. – ele balançou a cabeça. – Emma teve alguns problemas com essas pessoas.
Subitamente, os olhos de Heather pareciam surpresos. Ela o encarou, indignada. Agora a conversa estava começando a fazer sentido.
– Que tipo de problemas?
– Eu a amava. E muito. – Alex explicou. – Mas ela era fraca. Foi maltratada no colégio e seu avô parecia... Não sei. Cego. Ele parecia não enxergar o sofrimento da neta.
Heather o encarava, atenta.
– Foi quando eu a convenci a deixá-lo a par de toda a verdade. E ela contou para ele tudo o que estava havendo. – ele agora falava com emoção. Havia um brilho em seus olhos ao falar daquelas lembranças. – Ela estava tão feliz. O avô dela finalmente estava começando a me aceitar. Estávamos em nosso momento mais feliz... E então... – fez uma pausa, cabisbaixo. – E então ela se foi.
Heather não soube interpretar a expressão melancólica no rosto do indivíduo sentado à sua frente. Não soube dizer se ele agora estava sendo realmente sincero ou não.
– Tentarei fazer o possível e impossível para descobrir quem a matou.
– Obrigado. – levantou os olhos para fitá-la mais uma vez. – Olha, você parece ser uma boa pessoa. Sinto que suas intenções também são boas, por isso quero me desculpar novamente.
– Não se preocupe.
– Você acha que Emma está bem? Quero dizer... Onde quer que ela esteja...?
Heather soltou um profundo e longo suspiro.
– Emma encontrará a paz.
– Olha só... Mesmo depois do terrível mal entendido que eu cometi ontem, aqui estamos conversando normalmente. – observou ele. – Fico feliz.
– Pois é.
– Heather, eu... – ele parou de falar. Censurou-se mentalmente e depois prosseguiu: – Posso te chamar pelo nome, não é?
– Faça como quiser.
– Bem, eu gostaria de... Quero que saiba que estou disposto a ajudar.
– Ajudar? – ela levantou as sobrancelhas de maneira inquisitiva, olhando para ele.
– Eu não a conheço e não sei de onde veio. – havia agora um olhar sério em seus olhos. – Mas você quer descobrir quem assassinou Emma e isto é o suficiente para que eu lhe confie meu total apoio.
– Mas...
– Você tinha razão. – ele a interrompeu. Heather parecia ainda mais confusa. Alex olhou para baixo e depois voltou a fitá-la. – Eu não fiz absolutamente nada para descobrir quem a matou. Fui covarde.
– Compreendo que você teve medo.
– Sim, de fato. Mas agora você apareceu. Você é a minha oportunidade de me redimir e descobrir quem a assassinou.
Heather permaneceu em silêncio. Quando finalmente fez menção de dizer algo, notou que uma silhueta feminina e nada familiar estava parada em frente à mesa.
Uma desconhecida com intensos olhos cor de esmeralda e cabelos castanhos ondulados sorria como se estivesse esperando algo. Ou alguém.
Alex pôs-se em pé de prontidão assim que notara sua presença. Colocou-se ao lado dela.
– Esta é Rose. Minha noiva.
Rose esboçou um sorriso tímido. Heather não se deu ao trabalho de parar para analisá-la. Fez um breve aceno com a cabeça. Alex deu continuidade às apresentações:
– Rose, essa é Heather. Ela é nova na cidade.
– Ah, sim. – Rose abriu outro sorriso. Ela falava docemente. – É um prazer conhecê-la.
– Igualmente. – Heather forçou um sorriso em resposta.
– Bem, Heather. – Alex voltou a tomar a palavra. – Creio que voltaremos a nos ver muito em breve. A cidade é pequena e... Sabe como é.
– Claro. Claro.
Pousando uma das mãos nas costas da noiva, Alex Montini caminhou para fora do estabelecimento lentamente, deixando Heather com certo ar de perplexidade.
– Heather? – ouviu seu nome e virou-se rapidamente para o lado. Ao levantar os olhos, Heather percebera a presença de outra figura. Desta vez, já conhecida.
– Olá, Amanda. – respondeu em tom amistoso.
Sem questionar, Amanda sentou-se com ela à mesa, lhe presenteando com um amigável sorriso. Heather a fitou rapidamente e seus olhos irradiaram curiosidade ao notar o braço enfaixado e o curativo na testa de Amanda.
– Mas o que houve? – indagou.
– Sofri um... Um acidente de carro ontem à noite. – Amanda suspirou. – Foi horrível. Mas felizmente não me feri gravemente.
– Estou vendo. Como foi que isto lhe aconteceu? – Heather estava curiosa, não preocupada. Deixara isso bem claro.
– Eu... Bem, eu não sei exatamente... – Havia confusão nas palavras dela. – Eu estava voltando para casa e... – suas palavras ficaram pairando no ar ao lembrar-se do que vira na noite anterior.
– O que houve?
– E... Eu... Eu vi algo... Não sei. Acho que... – o agudo som de um aparelho celular soou a interrompendo. Amanda colocou uma de suas mãos na bolsa que levava consigo, tirando um telefone de dentro. – Sim? Ah, claro. Estou a caminho. Sim, sim. – desligou e olhou para Heather com ansiedade. – Negócios.
– Entendo. – Heather sorriu de canto.
– Devo ir. Desculpe-me.
– Sem problemas.
Amanda se levantou e sorriu. Em seguida afastou-se de Heather em passos rápidos e largos, deixando o restaurante.
Heather também foi embora da mesma forma que havia chegado. Sem sequer fazer um pedido aos garçons, ela pegou sua bolsa e caminhou na direção de seu automóvel, do lado de fora do estabelecimento lotado. Ao posicionar-se no banco do motorista do veículo, Heather sentiu sua cabeça latejar violentamente.
Algo começou a sufocá-la, colidindo fortemente contra seu estômago. Com imenso esforço, Heather tentou manter-se lúcida, mas sua tentativa fora em vão.
Cerrou os olhos com muita força.
૪
Emma sentava-se em uma carteira ao lado da janela de sua sala, na Harrison Brown Academy. Observando o exterior do colégio através desta mesma janela, ela se deu conta de que já era hora de entregar seu teste.
Havia terminado minutos antes do previsto.
Voltando à realidade, Emma pegou suas folhas e levantou-se. Fitava seu teste atentamente, verificando se havia feito tudo conforme o que lhe fora pedido. Distraída, olhando para suas folhas de papel completamente preenchidas, Emma caminhava na direção da mesa do professor.
Estava tão concentrada em seu teste, olhando fixamente para os papéis, que não percebeu que Frank Palmer vinha em sua direção, esbarrando nela de forma brusca. Ela sentiu-o a empurrando para o lado com força.
Emma só notara o acontecido quando olhou para baixo e o encontrou caído no chão, com uma das mãos ensanguentada.
Horrorizada, Emma cobriu a boca com ambas as mãos, dando um passo para trás, hesitante. De repente, todos os seus colegas de classe aproximaram-se da cena, olhando com curiosidade e pavor. Ela ouviu suas vozes. Todas se perguntando como aquilo havia acontecido.
O professor – um sujeito na casa dos sessenta anos, com cabelos brancos e olhos cansados – aproximou-se, abrindo espaço, até chegar próximo de onde Emma estava parada, com seus pés fincados no chão.
– Mas o que houve aqui? – inquiriu, apavorado.
– Emma! – Frank apontou um dedo na direção dela. – Fez com que eu caísse! Viu que eu estava com uma tesoura na mão e colocou um pé no meu caminho para que eu caísse! Está desapontada e quer vingança porque rompi com ela! E tudo porque descobri que ela dormiu com mais da metade dos alunos deste colégio! – cada mentira que ele proferia era como uma lâmina perfurando Emma até chegar alcançar sua alma.
– E-eu... Eu não... – olhou ao redor e deparou-se com inúmeros olhos fixados nelas. Vozes soaram, acusando-a. As acusações pareciam penetrar em seus ouvidos e ecoar em sua mente, deixando-a afogada em puro terror.
Sentindo-se totalmente perdida, Emma correu para fora da sala. Com lágrimas banhando seu rosto por completo, ela deixou-se cair no meio do corredor principal da Harrison Brown Academy.
A vida estava agindo injustamente com ela.
Durante meses tentara se manter forte e determinada, mas teve a impressão de que por mais que ela tentasse enfrentar seus problemas, eles sempre acabariam derrotando-a. Tentou colocar seus pensamentos em ordem. Ainda precisaria voltar àquela sala. Precisaria enfrentar todos aqueles olhares, jogando sobre ela a culpa por algo que ela jamais tencionara fazer.
Algo que ela jamais havia feito.
Frank Palmer era um mentiroso, de fato. Mas as pessoas jamais levariam a sério a palavra de Emma contra a dele. Perdida entre pensamentos e lágrimas de desespero, Emma permaneceu ali.
Sozinha.
૪
Heather sentiu a pressão contra seu estômago se afrouxar. Abriu os olhos e buscou por ar desesperadamente. Levou certo tempo para voltar à sua respiração normal.
Perguntou-se o motivo pelo qual Emma lhe permitira ver aquela cena. O motivo pelo qual ela lhe transferira aquela lembrança.
Com o passar dos últimos meses – e com a orientação de Charles Stevens – Heather percebera que, cada vez que Emma lhe permitia ver uma de suas lembranças em vida, ela queria lhe dizer algo. Ela queria que Heather tomasse uma atitude relacionada àquela lembrança.
Entretanto, Heather não entendera o que tinha de fazer depois desta sua última visão. Pensativa e calada, ela encarava o volante à sua frente.
Foi então que alguém bateu no vidro de seu carro, fazendo-a estremecer no banco do motorista, assustada.
Olhando para o lado, ela viu um rosto desconhecido através do vidro negro de seu veículo. Sem entender, desceu o vidro e encarou o sujeito.
– O que deseja? – perguntou.
– Seu pneu traseiro. – ele indicou com a cabeça. Seus cabelos flutuavam devido à brisa vinda da direção do rio da cidade. Fitou-a com insolentes olhos verdes que, subitamente, causaram em Heather a sensação de que ela já os tinha visto antes. – Está murcho.
– Oh, eu não... Não vi.
Ele soltou um riso abafado.
– Olha, acho melhor resolver isso antes que anoiteça.
– Claro. – ela concordou. Abriu a porta, saindo de seu carro e observou o pneu murcho. Percebeu que o desconhecido tinha fitado-a da cabeça aos pés, indiscretamente. – Obrigada por me avisar.
– Não por isso. – respondeu, sorrindo. – É você quem acaba de se mudar para cá?
– Sim, sou eu.
– Agora entendo por que todos estão falando a seu respeito. – voltou a fitá-la. Ela sentiu-se desconfortável. – A propósito, sou Frank Palmer.
Heather sentiu que o sangue fugia-lhe do corpo. Reconhecera-o de imediato. Foi quando ela entendeu o motivo pelo qual Emma lhe tinha mostrado aquela lembrança. Para alertá-la. Hesitante, Heather tentou manter-se séria e formal. Olhou para ele e, com esforço, emitiu um sorriso.
– Heather. – disse em tom firme. – Heather Stevens.
Frank se manteve calado, observando-a com ar sonhador. Incomodada com aquilo, Heather voltou a se posicionar atrás do volante de seu carro, fechando a porta logo em seguida.
– Levarei o carro para onde eles possam resolver este problema com o pneu agora mesmo. Mais uma vez, obrigada pelo aviso.
Ele exibiu um sorriso entusiasmado.
– Espero ter a oportunidade de vê-la novamente.
– Sem dúvidas você voltará a me ver. – respondeu com muita convicção, girando a chave na ignição e acelerando. Frank afastou-se do automóvel, vendo-a guiar para longe. Soltou um riso irônico e balançou a cabeça, tomando seu rumo novamente.
Já era noite quando Alex voltara para sua casa. Havia enfrentado mais um dia, na tentativa de conseguir um novo emprego. Há semanas havia sido demitido de uma loja de eletrodomésticos, passando assim vários dias sem dormir ou comer, tomado por um grande sentimento de preocupação.
Dependia daquele dinheiro e agora já não poderia contar mais com isso. Havia tentado a sorte em provavelmente metade dos estabelecimentos da cidade. Ninguém entrara em contato. Estava começando a desistir. Não apenas de conseguir um emprego, mas de todo o resto.
Ainda morava com os pais e a irmã. Precisava desesperadamente de uma independente estabilidade financeira antes de seu casamento com Rose. Estava aflito, com medo de decepcioná-la. Já havia decepcionado alguém que lhe era muito importante antes. Não estava disposto a sentir o amargo gosto da culpa mais uma vez. Sentado à beira de sua cama, ele decidiu telefonar à noiva para verificar se ela estava bem.
Agarrou o auscultador e discou alguns números com pressa. Esperou com atenção que alguém lhe atendesse do outro lado da linha. Logo a terna e harmoniosa voz de Rose soou, arrancando dele um breve sorriso.
– Alô? – era a terceira vez que ela falava, esperando que alguém lhe respondesse. Alex voltou à realidade.
– Desculpe querida.
– Oh, Alex, mas é você! – exclamou aliviada. – Pensei que alguém estivesse brincando comigo. O que houve?
– Eu... Eu só queria saber se está tudo bem.
– Sim. Está tudo bem. Eu já estava pronta para me deitar.
– Certo.
– E o que se passa consigo? Está tudo bem? Me parece preocupado...
– Não se preocupe. – disse ele, calmamente. – Tudo ficará bem. Estou resolvendo alguns problemas para que possamos ter paz quando nos mudarmos para nossa casa.
– Fico feliz em ouvir isso, mas... Não se martirize, por favor. Ainda há muito tempo. Não coloque pressão sobre si mesmo. – pediu de forma doce e sincera.
– Vou fazer tudo dar certo. Prometo.
– Sei disso.
Alex calou-se por alguns segundos, pensando em como cumpriria aquela promessa. De uma forma ou de outra, tinha de fazer com que tudo funcionasse corretamente. Tinha de conseguir um emprego. Um lugar para morar com sua futura esposa. Tinha de resolver tudo. E tinha de fazê-lo o mais rápido possível. Não desistira. Não novamente.
Soltou a respiração, deixando transparecer sua frustração da forma mais discreta que conseguia. Não tencionava preocupar Rose. Voltou a lhe falar:
– Rose, eu... Eu prometo não decepcioná-la.
– Eu tenho cert... – a voz dela fora interrompida. Um grave e estridente som vindo do auscultador causou espanto em Alex.
– Rose? Está me ouvindo?
O som continuava soando, cada vez mais penetrante.
– Rose, responda. Eu não consigo ouvi-la. Rose?
– Não... – misturada com o terrível som vindo do telefone, uma voz soou ao fundo. Suave e fraca. – Não a decepcione como me decepcionou...
Com os olhos arregalados, Alex encarou o auscultador. O som tornara-se mais alto, como se o volume estivesse alcançando seu nível máximo.
De repente, parou.
Um pesado silêncio tomou conta do ambiente. Alex não soube como reagir. Manteve-se calado. Parado. Sentado em sua cama. Um estrondoso som soou do lado de fora de sua casa. Inesperadamente, todas as luzes de seu quarto se apagaram. Alex soltou o auscultador sobre sua cama e caminhou na direção que julgava levá-lo para a janela.
Não pôde ver nada.
Toda a cidade parecia estar mergulhada em completa escuridão. O coração dele havia disparado. Reconhecera aquela voz. Soara-lhe tão familiar. Um vento frio fustigou seu rosto. Sentiu que algo passava por ele apressadamente, deixando um rastro de vaga tristeza. Ele respirou fundo, tentando se controlar.
Parado no meio de seu quarto, cercado por todo o breu que invadira a cidade, Alex imediatamente entendeu de quem se tratava.
– Emma... – murmurou afundado em plena angústia.
Manteve-se parado. Os pés presos no chão. Não arriscou fazer qualquer movimento. Ficou apenas ali. Como se estivesse à espera de algo.
Algo que ele não soube distinguir.
Abrigada pelas trevas, completamente escura e silenciosa, a cidade de Middletown sofrera um inesperado desligamento de energia elétrica. As pessoas estavam apavoradas, correndo de um lado para o outro com suas lanternas e fósforos acesos.
Heather não parecia surpresa com o inesperado acontecido na cidade. Encolhida no sofá de sua casa, com uma lanterna acesa posta na mesa de centro à sua frente, ela esperava que a energia elétrica voltasse o mais breve possível. Detestava a escuridão. Causava-lhe um imenso sentimento de agonia. Fazia-a se lembrar das solitárias noites que passara em seu pequeno quarto na Jones & Johnson.
Esperando a volta da eletricidade, Heather ficou totalmente desperta ao ouvir que alguém batia à porta de sua casa. Levantou-se de prontidão e agarrou sua lanterna, caminhando lentamente na direção do som. Girando a chave para destrancar a porta, Heather pousou uma de suas mãos sobre a maçaneta e empurrou-a para baixo.
Assim que abriu a porta, deparou-se com uma presença familiar. Com uma lanterna em mãos, assim como Heather, Trevor Williams emitiu um sorriso afetuoso, iluminado pela luz vinda da lanterna que ela segurava.
– Desculpe. Sei que é tarde, mas eu...
– Não se desculpe. – ela abriu espaço para que ele passasse pela porta.
Sem dizer nada, ele caminhou para dentro da casa. Heather voltou a fechar a porta, trancando-a por dentro. Virou-se para ele e perguntou:
– O que está fazendo aqui?
– Bem, eu... Eu fui pego de surpresa por este incidente com a eletricidade. E como sei que você não se sente bem com o escuro, decidir verificar se...
– Como sabe que não gosto do escuro? – indagou, interrompendo-o.
– Li em sua ficha médica.
– Ah... – ela abaixou a cabeça, pensativa. – Espero que a eletricidade volte logo.
– Parece que afetou toda a cidade. – comentou ele. – Você está bem, Heather? Parece um pouco... Confusa.
– Sente-se. – Heather apontou para o sofá que se encontrava logo atrás dele. Trevor sentou-se e ela se ajeitou no sofá ao seu lado. Respirou fundo antes de começar a explicar. – Estive com pessoas. Pessoas que fizeram parte da vida de Emma.
– De que pessoas está falando?
– A melhor amiga, o ex-namorado, o sujeito que supostamente a amava...
– Tem certeza de que essas pessoas são as mesmas com as quais Emma convivera?
– Certeza absoluta. Ela mesma fez questão de me alertar a respeito deles.
– Não estou entendendo. – ele arqueou as sobrancelhas, confuso.
– Todas as vezes que tenho uma lembrança da vida dela... É porque ela quer me enviar um aviso. Ou quer que eu faça algo a respeito.
– Heather, eu ainda acho que... Bem, eu... Eu não quero ser grosseiro com você. Mas já considerou a possibilidade de tudo isso ser mera coincidência? Talvez estas alucinações sejam apenas fruto de sua imaginação. Talvez, antes de sofrer essa perda de memória, você tenha conhecido Emma e... Não sei. Sua mente pode ter tomado conta de todo o resto, criando ilusões, coisas que possivelmente jamais chegaram a acontecer.
Ela o encarou com seriedade e disse com firmeza em cada palavra:
– Emma foi assassinada da forma mais cruel que se possa imaginar. A minha missão aqui é descobrir quem foi o autor disso tudo.
Ela parecia tão forte e decidida. Trevor a observava com imensa admiração.
– Eu não quis ofendê-la.
– Precisaria se esforçar mais do que isso para conseguir me ofender, doutor. – abriu um sorriso sarcástico.
Trevor correu com os olhos por todos os cantos da sala iluminada apenas pela luz das lanternas.
– Me parece um bom lugar para se viver.
– Não ficarei aqui para sempre.
– Mesmo assim. – insistiu. – É esta a casa em que Emma vivia com o avô?
– Sim. Exatamente aqui.
– Heather, sabe que estou do seu lado, não é?
Hesitante, ela assentiu ao fazer um aceno positivo com a cabeça.
– Contudo, quero saber o que fez e por onde esteve durante os três meses em que não nos vimos.
Heather respirou fundo. E mais uma vez. Olhou para ele e teve a certeza de que não conseguiria evitar que ele voltasse a insistir no assunto. Depois de um curto e breve suspiro, ela começou a falar. Contou-lhe sobre seus feitos durante os últimos três meses, desde a explosão na Jones & Johnson. Ela se perguntou se ele desconfiava dela.
Certamente sim.
Mas era exatamente isso o que a deixava perplexa. Por que ele não a denunciara? Prometeu-lhe total apoio assim que se reencontraram em circunstâncias não muito agradáveis. Heather sentia-se incomodada toda vez que ele lhe dizia que queria ajudá-la. Havia algo de errado em suas intenções.
Ela estava segura de que ninguém a ajudaria sem pedir nada em troca. Ficou o encarando assim que terminara de contar a ele sobre o que havia feito recentemente. Fitando-a com uma expressão inquisitiva, Trevor disse-lhe com admiração:
– Jamais imaginei que você pudesse ser capaz de mudar sua vida de forma tão radical.
– Pois bem, minha intenção é essa. Surpreender. – respondeu ela.
– Heather, eu não sei se foi você quem provocou a explosão no hospital. – ele falava com muita calma, escolhendo bem suas palavras. – O que eu sei é que não pode seguir adiante sozinha. Por isso peço que confie em mim.
Ela assentiu brevemente.
– Você confia em mim?
A pergunta soou boba. Heather exibiu um sorriso no canto dos lábios.
– Me dê um bom motivo para confiar em você.
– Sou o único em quem você pode confiar no momento. Não deve negar.
Ele tinha razão. Heather jamais confiaria em qualquer um daquela cidade. Todos eram suspeitos. Todos. Não havia exceções. Todos eram pessoas com as quais Emma convivera. Todos a tinha conhecido. E ela a eles.
Heather ordenou seus pensamentos em questão de segundos. Havia se encontrado com as pessoas mais próximas de Emma. Mas ainda faltava alguém. Lembrou-se das palavras de Alex. Amanda e Jodie. Eram as melhores amigas de Emma. Ela teve alguns problemas com essas pessoas.
– O que me diz a respeito das pessoas que você conheceu aqui? – a voz do Dr. Williams fez com que ela voltasse à realidade.
– Bem... Eu tenho algumas anotações. – ela inclinou-se para frente, pegando da mesa de centro um papel preenchido pela metade. – Amanda Thornton, Alex Montini e Frank Palmer. Essas eram as pessoas mais próximas de Emma. Com exceção de mais uma garota. Uma de suas melhores amigas.
– Ainda não a encontrou?
Heather balançou a cabeça em um gesto negativo.
– E você ao menos sabe como ela se chama?
– Jodie. – disse rapidamente. – Não me lembro bem de seu sobrenome.
– Sairei à procura dela pela manhã. – advertiu ele. – Assim poderei te informar onde encontrá-la.
Heather o encarou com suspeita.
– Por que raios está fazendo isso por mim?
Trevor olhou para baixo e depois voltou a pousar os olhos nela, seriamente.
– Não faço por você. Faço por mim.
– Não faço ideia do que está querendo dizer.
– Tudo bem. – emitiu um sorriso. – Ainda é cedo para que entenda.
Ela desistiu de tentar tirar qualquer conclusão daquela resposta subliminar.
Jodie estava na cozinha de sua casa, preparando uma refeição antes de deitar-se para dormir. Com velas espalhadas por todo canto, ela cantarolava distraidamente.
Ouviu alguém bater à sua porta. Deixou de fazer o que estava fazendo e seguiu para a sala, abrindo a porta.
– Se importa se eu passar a noite aqui, com você? – Frank Palmer abriu um sorriso e Jodie sentiu-se incapaz de negar tal pedido.
– Claro que não. – disse com infinita adoração.
Frank passou por ela, entrando na casa e fazendo comentários a respeito da falta de energia elétrica.
– Não sei bem o que houve. De certo, a energia estava sobrecarregada.
– Creio que sim. – Jodie sorriu.
– Vou pegar uma bebida. – ele fez menção de seguir rumo à cozinha, mas Jodie o deteve, segurando-o pela mão.
– Espera.
– O que foi?
Os lábios dela foram de encontro com os dele, deslizando devagar, com suavidade. Ela soltou um gemido fraco enquanto ele beijava com brutalidade toda a extensão do pescoço dela.
– Pro quarto, vem... – ele murmurou.
Era um pedido que Jodie jamais negaria. Nunca se tinha negado a ele. Já estava bastante habituada com a maneira como ele dizia isso, e o modo brutal com o qual fazia amor com ela já não a chocava nem surpreendia mais.
Eles continuaram se beijando durante todo o caminho iluminado por velas que os levaria para o quarto. A parte de trás dos joelhos de Frank encontrou a borda da cama e ele se deixou cair, puxando Jodie pra vir com ele, fazendo seu corpo colidir sobre o dele. Em seguida, invertendo as posições, foi ele quem jogou seu corpo sobre o dela.
Deu um sorriso e a encarou. Jodie também sorria. Seu rosto estava corado e feliz. Frank inclinou-se lentamente para beijá-la mais uma vez.
Foi então que, repentinamente, ele sentiu que algo passava ao seu lado com pressa, em alta velocidade, causando-lhe um arrepio. Olhou ao redor, atônito. A escuridão do ambiente desfavorecia sua visão.
Ele não soube dizer se realmente não havia nada ali. Por fim, concluiu que estava agindo de forma estúpida. Eram apenas ele e Jodie. Não havia mais nada. Nem ninguém.
Com o corpo inclinado sobre o de Jodie, ele voltou a encará-la. Entretanto, a figura que agora se encontrava ali, deitada sobre a cama, não era Jodie. Não mais.
De um súbito, Frank saltou para fora da cama, levando uma mão sobre a boca devido ao susto. Com a pele pálida como papel e roupas encharcadas de água, a garota levantou-se da cama, caminhando na direção de Frank.
Seu rosto possuía uma expressão fechada e ameaçadora. Os olhos estavam fundos, sombrios. Gotas de água pingavam de seu vestido verde-claro conforme seus passos avançavam na direção dele. Frank permaneceu imóvel. Calado. Incrédulo. Parado no meio do quarto, envolto em completa escuridão. Não conseguia crer no que seus olhos presenciavam naquele momento. Era impossível.
Apesar de seu aspecto apagado, Frank a reconhecia muito bem. Seus olhos estavam fixos nos dele. Ela aproximou-se cada vez mais. Ao alcançá-lo, parou à sua frente. Ela esticou uma de suas mãos, tocando-o no ombro. Seu toque era frio como o gelo. Ela chegou ainda mais perto.
– Jamais o perdoarei… – sussurrou ela contra seu ouvido. Sua voz soava como uma melancólica e ao mesmo tempo apática melodia que fez com que Frank estremecesse.
Afastou-se dele, olhando-o diretamente nos olhos. Ele não foi capaz de emitir qualquer tipo de reação. Fechou os olhos e voltou a abri-los rapidamente assim que ouvira seu nome.
– Frank? – Jodie o chacoalhava, segurando-o pelos ombros. – Você está bem?
– Merda! – exclamou assim voltou a si.
– O que houve? – ela estava completamente confusa. – Fiz algo errado?
Olhou para ela com seus olhos esbugalhados, transbordando pânico.
– Agora tenho certeza... – murmurou.
– Do que está falando?
– Jodie, eu a vi. De novo. – fitou-a com um ar sério. – Ela estava bem aqui. Quer me enlouquecer.
Jodie o encarou, assustada. Sabia perfeitamente do que ele estava falando agora. Apavorada, lançou-se para os braços dele, se aninhando contra ele com força.
– O que ela quer de nós? – ela perguntou. Estava pelo menos tão assustada quanto Frank.
– Não sei. – respondeu. Fechou seus braços ao redor dela e respirou fundo.
Mas ele sabia. Sabia melhor do que qualquer outra pessoa.
Emma queria vingança.
Heather sentiu-se profundamente aliviada assim que a energia elétrica retornara à cidade. A sensação de estar em meio à escuridão fazia com que ela se sentisse vulnerável.
– Então você se casou e herdou toda essa fortuna em apenas três meses... – Trevor fez um comentário aleatório. Descobrir que ela havia, de fato, se casado com alguém causou nele um sentimento incógnito e até então inexplorado.
Ainda que ela tivesse deixado claro que não tivera qualquer ligação amorosa com seu falecido marido – além de respeito e carinho –, ele não pôde deixar de pensar na possibilidade de Heather estar lhe ocultado fatos a respeito do assunto.
– Sim. – ela confirmou. – O destino tem sido justo comigo. Pelo menos agora.
Ele passou os olhos por toda a sala – agora iluminada – até pousá-los na mesa de centro, onde havia um livro cuja capa era negra. Pegou o livro com uma de suas mãos.
– O Médico e o Monstro?
Heather emitiu um riso fraco.
– Foi um presente de Charles, meu falecido marido. – respondeu. – Disse-me que isto faria algum sentido para mim uma vez que eu coloque um fim em todos esses problemas.
– É... Talvez ele estivesse certo. – concluiu, dando um sorriso sem jeito.
Ela ouviu batidas contra a sua porta. Levantou-se e caminhou para a mesma, abrindo-a com hesitação. Com a mesma expressão indiferente carregada em olhos negros e frios, Alex Montini estava parado à porta, esperando que ela emitisse alguma reação ao vê-lo. Mas não. Heather não dissera nada. Ele sentiu-se obrigado a quebrar o silêncio.
– Eu a vi. – asseverou ele, diretamente. – Ela esteve em meu quarto.
Heather franziu a testa, confusa.
– Não entendo...
– Emma esteve em meu quarto esta noite. – ele disse em tom ríspido, porém seguro.
Surpresa, ela arregalou os olhos.
– Como assim?! – indagou.
– Eu... – a expressão fria desapareceu subitamente de seu rosto, dando lugar a um ar de preocupação e dúvida. – Eu não a vi exatamente, mas... Eu senti a presença dela. Ela... Ela estava lá. Sei que estava. – fitou-a nos olhos como num apelo mudo. – E-eu posso entrar?
– Não sei se seria uma boa ideia. – ela respondeu, duvidosa.
Trevor surgiu por detrás dela, lançando para Alex um olhar de desaprovação. Heather olhou para trás e depois voltou a encará-lo.
– Desculpe. – disse Alex. – Eu não... Não queria incomodar.
– Tudo bem.
– É que... Você é a única pessoa que está totalmente a par do assunto. Pensei que... Talvez... – houve uma pausa em suas palavras. Depois um suspiro. – Deixa pra lá.
– Falaremos a esse respeito amanhã de manhã.
– Certo. – concordou ele. – Ahn... Até mais. – virou-se e, descendo os poucos degraus da entrada da casa, afastou-se às pressas.
Heather voltou a fechar sua porta, ainda surpresa com aquela inesperada visita.
– O que aquele sujeito queria? – Trevor perguntou. Sua voz tinha o som de profunda animosidade.
Ela olhou para ele sem saber como interpretar aquela atitude. Cruzou os braços em frente ao peito e emitiu uma expressão de indiferença.
– Acho que já está na hora de você ir, doutor. – disse ela. – A eletricidade voltou e já é tarde. Preciso descansar.
– Entendo. – ele pareceu instantaneamente desapontado. – Bem, de qualquer forma, passarei aqui amanhã para ver como está.
– Já disse que não preciso de babá. – Heather assegurou em tom rude.
– Não vai se livrar de mim assim tão fácil. – sorriu ironicamente para ela.
Ela o conduziu até a porta, abrindo-a e esperando que ele passasse por ela. Antes de ir, porém, ele virou-se para ela mais uma vez e disse:
– Vai ficar bem?
– Vou sim, senhor. – Heather disse com sarcasmo. – Sei cuidar muito bem de mim mesma.
– Faço questão de sempre me certificar disso.
Ele sorriu novamente e virou-se, caminhando na direção de seu automóvel. Heather assistiu-o entrar no veículo. O carro arrancou e seguiu para longe, até que os olhos dela não puderam mais acompanhá-lo. Fechou a porta, dirigindo-se para a sala e deixando-se cair sobre o sofá. Heather abriu um sorriso espontâneo contra a sua vontade.
Depois seus pensamentos alcançaram outro assunto. Ela se perguntou como Alex afirmara com tanta certeza que Emma estivera em seu quarto. Não soube dizer se deveria passar a confiar nele ou mantê-lo na lista de suspeitos.
Com a mente carregada e cheia destes pensamentos, ela acabou caindo no sono.
A última coisa que pensara a respeito era no dia de amanhã.
Estava determinada a descobrir se Alex falara a verdade.
Se Emma realmente estivera no quarto dele.
Jodie Adams saiu de sua casa pela manhã, rumo ao seu local de trabalho – uma loja de calçados localizada no centro da cidade –.
Ao virar-se, após trancar a porta por fora com uma chave, ela se deparou com um veículo cinza escuro estacionado logo em frente à sua residência.
Com um olhar de dúvida estampando seu rosto, Jodie fez menção de se afastar para seguir seu caminho ao trabalho. Ela passou pelo automóvel exatamente quando um sujeito de boa aparência e fisionomia inteligente saiu de dentro do veículo, indo ao seu encontro.
– Bom dia. – disse educadamente. – Você é Jodie Adams?
Ela levantou ambas as sobrancelhas, surpresa.
Trevor Williams passara boa parte da madrugada anterior procurando por todas as pessoas de nome “Jodie” em Middletown. Pesquisa após pesquisa, acabou encontrando algo relacionado à Harrison Brown Academy. Ao ler o nome dos alunos que frequentavam aquele mesmo colégio há quinze anos, ele encontrou o nome de Emma. Não somente o nome dela, como também o de Amanda Thornton e Jodie Adams. Todas na mesma lista. No mesmo colégio. Era coincidência demais. Por fim, concluíra que era aquela a pessoa pela qual Heather estava procurando.
– Sim, sou eu. – Jodie respondeu.
– Sou Trevor Williams. – estendeu-lhe uma mão. Trocaram um breve cumprimento e Jodie o encarou, curiosa.
– Em que posso lhe ajudar? – ela lhe exibiu um sorriso amigável.
– Bem, Srta. Adams... Eu... Eu estou procurando por uma pessoa. Alguém que conheci há muito tempo atrás. – ele começou a explicar uma absurda desculpa que havia acabado de inventar. – Creio que a tenha conhecido. Chama-se Emma. Emma Connors.
De um súbito, Jodie deu um passo para trás, bastante surpresa. Tentou se conter, mantendo-se firme e séria, mas era tarde demais. Ele certamente já havia notado sua reação. Olhou para ele e se perguntou como ele poderia ter conhecido Emma. Se ele era mesmo alguém com quem Emma convivera, Jodie estava certa de que se lembraria dele. Mas ela não se lembrava. Algo não estava fazendo sentido.
– Emma está morta. – disse ela. Pronunciara aquelas palavras em tom áspero.
Trevor fingiu surpresa. Arqueou as sobrancelhas em uma falsa expressão de perplexidade.
– Oh, eu lamento muito. – abaixou a cabeça como se estivesse profundamente frustrado com o que acabara de ouvir. – Como foi que isto aconteceu? Emma era tão cheia de vida, tão... Jovem.
Jodie custava a acreditar que ele realmente conhecera Emma. Tudo aquilo lhe parecia demasiadamente confuso. Estudou-o rapidamente na esperança de reconhecer aquele rosto, mas sua tentativa fora inútil. Não conseguia se lembrar daquele sujeito. Obviamente ele estava mentindo. E Jodie queria muito saber porquê.
– De onde a conhece?
A pergunta pegou Trevor de surpresa. Entretanto, ele levou poucos segundos para encontrar uma explicação plausível para apresentar diante daquela situação.
– Tudo bem, olha... Você me pegou. – soltou um suspiro de derrota. – Eu li a respeito do desaparecimento seguido da morte de Emma em um jornal.
– E o que você tem a ver com isso? – o tom simpático de Jodie já havia desaparecido desde que Trevor mencionara o nome de Emma.
– Sou um jornalista autônomo. Interessei-me pelo caso. E gostaria muito de descobrir o que realmente aconteceu. – explicou da forma mais convincente que pôde. – Sei que a polícia abandonou o caso há anos.
– Não sei. – Jodie deu de ombros. – Não sei nada a este respeito. Tudo o que sei é que Emma morreu. Ela se foi muito jovem, eu sei. Mas essa é a vida, não?
Jodie havia dito isso com indiferença. Trevor começou a duvidar da relação de amizade que ela supostamente tivera com Emma no passado.
– Certo. – ele abanou a cabeça. – Me desculpe, eu... Só queria mesmo saber mais a respeito do caso.
Dizendo isto, Trevor voltou para seu automóvel. Tomou posse do volante e conduziu o carro para longe da casa de Jodie, que ainda parecia desconfiada quando ele fora embora.
Heather seguiu para o mesmo restaurante no qual encontrara Alex Montini antes. Na intenção de encontrá-lo novamente, ela sentou-se à uma mesa e fez seu pedido. Esperou pacientemente. O palpite dela estava correto. Alex Montini deu as caras no restaurante exatos vinte minutos depois que ela chegara ao local. Usava um típico old jeans, uma camiseta branca qualquer e seus únicos sapatos apresentáveis. Sentou-se junto à ela assim que notara sua presença.
– Sabia que apareceria por aqui. – ela disse.
– Também eu. – ele sentou-se à sua frente e a encarou. – Você disse que nos falaríamos pela manhã. Este foi o único lugar que veio à minha mente quando me perguntei onde poderia encontrá-la.
– O mesmo aconteceu comigo. – Heather deu um sorriso de canto. – O que estava tentando me dizer na noite anterior?
Alex fez menção de retirar um maço de cigarros do bolso de sua calça, mas hesitou. Inclinou-se para frente, sobre a mesa, e, olhando-a nos olhos, disse:
– Emma esteve em meu quarto ontem à noite.
Ele dissera aquilo com total confiança. Estava certo de que sua afirmação era verdadeira. Olhava fixamente nos olhos castanhos de Heather, que brilhavam, transbordando curiosidade. Mil perguntas passaram pela mente dela. Todas de uma vez. Estaria ele lhe dizendo a verdade? Heather já vinha suspeitando dele desde o dia em que ele repentinamente passara a tratá-la de forma gentil e educada.
– Está certo do que acabou de me dizer? – ela arriscou perguntar, fitando-o com ar inquisitivo.
– Estou. – Alex recostou-se na cadeira e suspirou. – Ela esteve em meu quarto. Eu... Eu ouvi a voz dela. Ela falou comigo.
Heather observou-o enquanto ele deixava transparecer toda a sua frustração.
– Eu estava no telefone e... E de repente... Tudo se tornou tão... Estranho. – cabisbaixo e bastante transtornado, Alex buscava as palavras certas para se explicar. – Eu ouvi a voz dela através do telefone. Era ela. Eu a senti logo depois que a eletricidade parou de funcionar.
– Você a sentiu? – Heather indagou.
– Ela passou por mim. Tudo ocorreu rápido demais. Mas tenho certeza de que era ela. Era Emma. – os olhos dele brilhavam, tomados por uma forte emoção.
– Você disse que a ouviu. – ela comentou. – O que foi que ela disse?
Alex hesitou. Lembrava-se claramente do que ouvira naquela noite.
Não a decepcione como me decepcionou...
A voz de Emma ainda soava nitidamente sonora em sua mente, fincada em sua memória. Ainda que aquelas palavras tivessem um significado para ele, Alex não compartilharia isto com Heather. Estava seguro de que isso não faria diferença nos interesses dela. Era melhor manter aquilo para si mesmo. Voltou a fitá-la e disse:
– Não me lembro exatamente do que ela disse. Mas reconheci a voz dela.
Heather não se deixou enganar com tanta facilidade. Percebendo o nervosismo da parte de Alex, ela soube que ele lhe estava ocultando algo.
– É a primeira vez que isso acontece?
– Sim. – ele confirmou rapidamente.
Aquilo começava a fazer cada vez menos sentido para Heather. Se Emma tivesse algo para dizer ou fazer a Alex, ela poderia tê-lo feito antes. Muito antes. Por que ela decidira fazer isso logo agora que Heather estava na cidade? Confusa, ela tomou ar e respirou fundo.
– Eu também a tenho visto. – Heather evitou fitá-lo nos olhos e falava suavemente, com muita calma.
Alex olhou para ela, perplexo.
– Você também a viu? Quando?
Ela ergueu o rosto e o fitou com um olhar seriamente severo.
– Tenho visto Emma desde que consigo me lembrar. Todos os dias.
De forma repentina, a expressão no rosto dele mudou. Estava pálido. Surpreso. Muito surpreso. A afirmação de Heather causou nele um imenso espanto. Com hesitação em sua voz, ele voltou a falar:
– O que foi que disse?
– Passei anos trancafiada em um hospital psiquiátrico porque acreditavam cegamente que eu estava louca. – havia angústia nas palavras dela. – Mas eu não estava louca. E não estou. Tenho uma forte ligação com Emma. Ela quer que eu a ajude a descobrir quem a matou.
Um garçom aproximou-se da mesa, depositando sobre ela um copo e uma garrafa com água gelada a pedido de Heather. Ele afastou-se logo em seguida. Heather despejou água no copo e esvaziou-o em menos de três segundos.
– O que você está me dizendo é que você tem um contato espiritual com ela? Você a vê? Fala com ela? – Alex estava desesperado por uma resposta racional. Algo concreto que o fizesse entender o que lhe ocorrera na noite passada.
– Entenda como quiser. – respondeu bruscamente. – Emma não descansará até que alguém descubra o que realmente aconteceu.
– Sabe que estou disposto a ajudar.
– Não pode me ajudar nisto.
– E por que não? – encarou-a com as sobrancelhas arqueadas.
– Porque você é um dos suspeitos. – ela declarou, inclinando-se para trás num gesto de indiferença.
Alex permaneceu quieto. Ela só podia estar brincando. Tentando manter sua paciência intacta e decidido a não dar início à uma discussão, ele ignorou o que acabara de ouvir e soltou um riso abafado e irônico.
Amanda Thornton estava em sua loja de confecções anotando algo relacionado à uma recente entrega feita no local. Estava em sua sala – um ambiente decorado com móveis modernos, pintados de cinza e branco –, sentada em sua cadeira logo atrás de uma grande mesa repleta de papéis. Com muito trabalho a fazer, Amanda bufou encarando sua mesa. Ainda havia muito a ser feito. Havia papéis para assinar, organizar e jogar fora. Julgou que passaria boa parte – ou até mesmo toda a tarde – cuidado destes afazeres. Começou a colocar tudo em ação. Inesperadamente, ao juntar uma pilha de papéis, Amanda notou que deixara algo cair no chão. Abaixou-se rapidamente e agarrou algo que parecia ser um pequeno pedaço de papel. Ajeitando-se novamente em sua cadeira, ela encarou o que deixara cair segundos atrás. Não era um pedaço de papel. Era uma fotografia. Uma velha fotografia. Nela, Amanda se encontrava ao lado de Emma. E do outro lado estava Jodie. As três exibiam um alegre sorriso no rosto.
Amanda lembrava-se vagamente daquela ocasião. Tinham acabado de entrar para a Harrison Brown Academy. Passando pela mais famosa praça da cidade, Emma avistou um homem idoso com uma câmera. Insistente, ela convencera as amigas a registrarem aquele dia. O primeiro dia delas no colégio. Emma estava feliz como nunca. Posicionaram-se em frente à máquina fotográfica. Emma estava entre ambas, com um belo e largo sorriso nos lábios. No final daquela tarde, Emma entregara a fotografia para Amanda, dizendo que confiava nela para guardar tanto coisas materiais como aquela fotografia quanto segredos. Amanda a abraçou amigavelmente em resposta e as duas riram.
Mas aqueles eram outros tempos. Outra vida.
Acumulada em amargura, Amanda voltou a encarar a fotografia em sua mão. Instintivamente, virou-a para trás e, para seu grande espanto, havia algo deixado ali. Algo escrito. Uma mensagem. Escrito em um tom vermelho como sangue, Amanda pôde ler claramente o que estava escrito atrás da fotografia.
Hipócrita.
Estava segura de que aquilo não estava ali na última vez em que se lembrava de ter visto aquela mesma fotografia. Consequentemente, ela entrou em desespero. Olhou para aquilo mais uma vez. Não reconhecia aquela caligrafia. Não poderia reconhecer de forma alguma, pois o pânico havia tomado conta dela. Tentando se manter calma, Amanda respirou fundo por diversas vezes. Ainda com a fotografia em mãos, ela levou um susto ao ouvir alguém batendo à sua porta.
– Pode entrar. – disse. Sua voz saiu trêmula.
– Amanda, acaba de chegar mais um distribuidor. – anunciou uma das funcionárias do estabelecimento.
– Estou indo.
A jovem funcionária afastou-se, fechando a porta novamente. Amanda olhou para a fotografia mais uma vez. Tentando se convencer de que aquela mensagem deixada ali era apenas uma brincadeira de mau-gosto feita por algum imbecil, ela atirou a fotografia no pequeno cesto de lixo por debaixo de sua mesa e pôs-se em pé, saindo de sua sala.
Heather acabara de estacionar seu automóvel em frente à sua casa. Descendo do carro com uma bolsa de couro em mãos, ela ouviu seu nome ser chamado. Virou-se para trás sem hesitar.
– Fico feliz por te encontrar em casa. – Trevor Williams aproximou-se dela em passos apressados. – Precisamos falar.
– Olha, eu acabo de chegar...
– É importante. – ele a interrompeu.
Heather franziu os lábios e balançou a cabeça. Olhou para ele novamente.
– Tudo bem. O que quer me dizer?
– Descobri onde aquela outra garota mora. Jodie Adams.
Admirada, ela levantou os olhos para ele e esboçou um sorriso.
– Tão rápido, doutor?
– Esta é minha intenção. – ele respondeu com uma ponta de ironia. – Surpreender.
Ela abriu outro sorriso e ele retribuiu da mesma forma.
– Pois bem. – disse Heather. – Onde ela mora?
– Te darei todas as informações. Mas antes disso, há algo que precisa saber. – Trevor tornou-se a se demonstrar sério e ela estranhou aquela alteração em suas palavras. – Jodie agiu de forma incrivelmente estranha quando falei a respeito de Emma.
– Falou com ela? – Heather inquiriu, perplexa.
– Sim. E para minha surpresa, ela não me pareceu muito... Amigável.
Heather virou seu rosto, encarando o nada. Colocando seus pensamentos em ordem, ela esperava encontrar qualquer explicação para aquilo. Alex dissera-lhe que tanto Amanda quanto Jodie eram melhores amigas de Emma.
– Pretende encontrar-se com ela? – a pergunta de Trevor trouxe Heather de volta a si.
– Pretendo. – respondeu, virando seu rosto para fitá-lo novamente. – Preciso que me conte tudo o que descobriu sobre ela.
Ele assentiu com a cabeça.
Heather começou a concluir que todas as pessoas que eram próximas de Emma agiam de forma confusa toda vez que a garota era citada em uma conversa. Era como se todos eles tivessem remorso. Um peso na consciência. Como se eles involuntariamente se culpassem por algo que guardaram durante todos aqueles anos.
Algo que Heather estava determinada a descobrir a qualquer preço.
Heather passara a noite inteira acordada.
Sua cabeça estava recheada de pensamentos a respeito de Jodie Adams. Trevor dissera-lhe claramente que ela havia reagido de forma estranhamente suspeita assim que ele mencionara o nome de Emma. Heather consiga brevemente lembrar-se de Jodie nas lembranças que Emma lhe transmitira. Era alta, com cabelos escuros, olhos a condizer e um bronzeado atraente que, entretanto, não a fazia se destacar como deveria.
Determinada a encontrar-se com ela, Heather levantou-se logo cedo pela manhã. Preparou um café amargo e rapidamente vestiu-se. Caminhou na direção de seu veículo estacionado em frente à sua casa, ajeitando-se no banco do motorista e posicionando a chave na ignição. Checou o pequeno pedaço de papel que levava consigo. O endereço de Jodie Adams.
Conduziu seu veículo calmamente, com sua mente fixa na ideia de se encontrar com a garota e tentar descobrir algo que, talvez, fosse lhe ajudar.
De forma inesperada, ainda que ela estivesse completamente habituada a tal situação, Heather sentiu sua cabeça pesar para trás, latejando violentamente. Com pressa, ela estacionou o veículo próximo à uma calçada, temendo perder o controle de suas ações. Fechou os olhos e prendeu a respiração antes que começasse a se sentir sufocada.
૪
Em uma manhã clara e agradável, Emma recebera a inesperada visita de Alex em sua casa. Seu avô havia saído para algumas compras em um mercado próximo. Alex – sem muito esforço – a convenceu a acompanhá-lo em um passeio. Saindo de casa com ele, Emma não soube decidir qual era a melhor parte de tudo aquilo. Ela estava adorando o suspense que ele estava fazendo sobre o passeio, pois ela estava segura de que seria algo fantástico.
Mas também adorava o fato de que ela passaria algum tempo daquela manhã sozinha com Alex. Independente de qual realmente fosse a melhor parte, ela gostava bastante de ambas.
Caminhando por um parque ecológico da cidade, Alex virou-se para ela e declarou:
– Chegamos.
Emma olhou ao redor, sem ainda entender o porquê de estarem ali, no meio daquele lugar.
Ainda olhando para ela, Alex, muito discretamente, segurou uma de suas mãos, entrelaçando seus dedos num aperto firme. Emma notou que seus dedos tremiam de nervosismo.
– O que estamos fazendo aqui exatamente? – perguntou ela, curiosa.
Alex se manteve calado por alguns segundos antes de finalmente dizer algo, desviando o olhar e analisando o ambiente onde se encontravam.
– A árvore... – murmurou ele, procurando por algo com os olhos.
– Que árvore? – aquilo não fazia o menor sentido para ela.
Ele estava sorrindo nervosamente até avistar o que procurava.
– Essa árvore. – ele caminhou até uma das muitas árvores que havia no local e encostou sua mão no tronco da mesma. – Tem a minha inicial gravada nela. Fiz isso assim que me mudei para esta cidade.
Ela emitiu um sorriso confuso e ele prosseguiu:
– Eu prometi a mim mesmo que quando encontrasse a mulher da minha vida, eu também gravaria a inicial dela aqui, ao lado da minha. – a voz dele estava carregada de afeto e sinceridade. – E hoje eu tenho certeza de que essa letra é um E.
Ele virou-se e começou a fazer ranhuras no tronco da árvore, usando um canivete que arrancara do bolso da calça. Assim que ele voltou a olhar para ela, Emma se aproximou do tronco e passou os dedos suavemente sobre os desenhos na madeira. A + E. 8.8.1998.
Ela respirou fundo, sentindo a emoção tomar conta dela e seu coração palpitar.
As águas cristalinas do Rio Connecticut faziam parte do espetacular cenário em que se encontravam. As árvores estavam em harmonia, a brisa estava maravilhosa. Tudo estava perfeito.
૪
Abrindo seus olhos para a realidade, Heather sentiu seu estômago embrulhar. Dominada por um terrível mal-estar, ela tentou recompor-se e soltou sua respiração.
Voltou a girar a chave na ignição na intenção de seguir guiando seu veículo até o endereço anotado no papel. A primeira tentativa de fazer o carro funcionar falhou. E também a segunda. Heather tentou por diversas vezes ligar o automóvel, mas este parecia se negar a funcionar.
Furiosa e impaciente, ela pegou sua bolsa do banco do passageiro e abriu a porta, saltando para fora de seu veículo negro. Travou as portas com o clique de um botão preso às suas chaves e seguiu caminhando. A cabeça ainda latejava e ela sentia-se atordoada.
Heather caminhou durante longos e cansativos minutos até encontrar o endereço que Trevor Williams lhe informara. Quando finalmente concluiu que estava no local desejado, encontrou-se parada em frente à uma pequena casa com paredes pintadas de verde e um gracioso jardim com a grama recém-aparada.
Preparou-se para o que viria a seguir e dirigiu-se para a porta de entrada da residência. Apertou a campainha. Em poucos instantes uma mulher alta com cabelos negros se encontrava diante de Heather, carregando um amistoso sorriso nos lábios.
– Olá. – disse gentilmente.
– Ahn... Desculpe. – Heather fez esforço para sorrir. – Meu carro quebrou e... Você, por acaso, não teria um telefone? Eu preciso chamar alguém para levar meu carro para o conserto e a bateria do meu celular acabou.
Jodie Adams olhou com atenção para a desconhecida que surgira à porta de sua casa. Era de manhã e ela estava preparando-se para ir ao trabalho. Não estava acostumada com estranhos aparecendo em sua casa daquela maneira.
E mesmo se estivesse, Jodie não gostava de desconhecidos.
Estava sempre alerta a respeito deles. Principalmente depois de ler sobre tantos casos nos jornais, envolvendo desconhecidos procurando por ajuda, que no final das contas cometiam inúmeras atrocidades.
De qualquer forma, a mulher que acabara de pedir-lhe ajuda aparentemente não possuía o perfil de uma criminosa.
– Entre. – Jodie abriu espaço para que ela entrasse em sua casa.
– Muito obrigada. – Heather abriu outro sorriso e deu passos adiante, entrando no local. – Serei rápida.
– Não há problema algum. Sinta-se à vontade. – Jodie fechou a porta por dentro e apontou para o telefone, ao lado do sofá da sala.
Heather assentiu e sentou-se no sofá, agarrando o auscultador. Pelo canto dos olhos, ela viu Jodie se afastar, seguindo para o que parecia ser a cozinha.
Olhou ao redor. A sala tinha pisos de mármore e paredes acinzentadas. Era aconchegante, apesar de pequena. Heather pousou seus olhos na lista telefônica que se encontrava logo ao lado do telefone. Folheou algumas páginas até encontrar o anúncio de uma oficina mecânica. Fitando o número telefônico na lista, ela discou os mesmos números, apertando os botões do aparelho. Aguardou com calma.
O brusco som de algo batendo contra a porta da sala fez com que Heather ficasse totalmente atenta, esquecendo-se do auscultador que segurava em suas mãos. Observou enquanto alguém esmurrava a porta de modo impaciente.
Viu Jodie sair correndo de um dos cômodos, dirigindo-se para a porta com muita pressa. Esta girou a maçaneta, abrindo a porta em um ato de desespero e ansiedade.
– Por que demorou tanto para abrir a maldita porta? – Heather ouviu uma voz soar. Reconheceu-a de imediato.
Frank Palmer.
Ela também pôde ouvir Jodie repreender a si mesma, culpando-se por não tê-lo atendido mais depressa.
– Estava preparando o café. – ela explicou. – O que quer, Frank?
– Nem sequer me convida para entrar? – a voz dele soou irônica e acusadora ao mesmo tempo. – O que há de errado com você desta vez? Tentei telefonar para você durante a manhã toda e você simplesmente ignorou minhas ligações.
– Eu ainda estava dormindo. – Jodie parecia desesperada para evitar uma discussão entre eles. – Acordei um pouco mais tarde do que de costume. Perdoe-me. – levantou seus olhos para ele. – Agora, será que pode me dizer o que faz aqui?
Frank lançou para ela um olhar com desdém.
– Não tenho dormido bem ultimamente. Não depois do que vem acontecendo nos últimos dias. – esclareceu ele. – Pensei que também estivesse passando pelo mesmo. Você conseguiu dormir ontem à noite?
– Sim. – falou.
– Não vai mesmo me deixar entrar?
– Oh, desculpe. – ela se censurou. – Estou com alguém dentro de casa.
– O quê? Quem? – por um instante o olhar indiferente de Frank desapareceu e ele pareceu bastante confuso.
Viu uma silhueta feminina e familiar surgir por detrás de Jodie, passando pela porta.
– Obrigada por deixar-me usar seu telefone. – agradeceu educadamente. – Eles virão buscar meu carro dentro de alguns minutos. Preciso estar por perto.
– Sem problemas. – Jodie respondeu em meio a um sorriso sincero.
Frank fitou a pessoa parada ao seu lado com admiração. A reconheceu em questão de poucos segundos. Vestida de forma elegante, com os cabelos bem penteados, caindo até a altura de seus ombros, ela parecia ainda mais atraente do que ele conseguia se lembrar.
Heather fez um aceno com a cabeça direcionado a ambos e se afastou, caminhando com graça sobre um belo par de sapatos pretos.
– O que ela fazia aqui? – depois de um longo tempo observando Heather partir, Frank voltou-se para Jodie.
– Precisava usar o telefone. O carro dela quebrou. – Jodie respondeu. – Por quê? Você a conhece?
Frank soltou um suspiro como se quisesse dizer “que importância isso tem para você?”.
– Bem, eu devo ir. – disse subitamente.
– Acabou de chegar... – ela se lamentou.
– Sim. Mas tenho coisas a fazer. – aquilo soava mais como uma desculpa do que como uma resposta honesta.
– Pensei que quisesse conversar sobre... Você sabe.
– Não, não mais. Passarei aqui pela noite. Talvez então possamos conversar.
Jodie concordou com a cabeça e ele se retirou dali, acelerando seus passos para longe dela.
Seguindo para onde deixara seu carro estacionado, Heather colocou uma de suas mãos dentro da bolsa que levava consigo. Tirou de dentro dela um telefone celular e, apressada, selecionou os dígitos desejados.
Encostando o aparelho contra seu ouvido, ela aguardou alguém atender à sua ligação. Brevemente, uma voz soou do outro lado da linha.
– Olá, Heather. – a ligação dela fez com que Trevor Williams emitisse um sorriso. Sua voz soara animosa. – Falou com ela?
– Bem, eu a conheci. Tivemos um breve contato. – Heather respondeu, segurando o celular com uma de suas mãos enquanto seguia caminhando para onde deixara seu veículo.
– Algo saiu errado?
– Frank Palmer. O ex-namorado de Emma. – ela começou a explicar. – Surgiu na casa de Jodie de repente, e... Tive de sair depressa. Minha presença causaria desconfiança.
– Eu compreendo. Deve ser cautelosa.
– Ligarei novamente assim que estiver em casa.
– Estarei esperando. – ele assegurou confiante.
Heather encerrou a ligação, colocando o aparelho de volta na bolsa. Olhou para frente e viu que seu carro estava exatamente onde o deixara.
Deu mais alguns passos adiante, já tencionando abrir a porta do automóvel quando, subitamente, sentiu que uma mão apertava-lhe a boca com brutalidade. Desesperada, Heather buscava por ar, sentindo-se sufocada pela mão que pressionava um pedaço de tecido conta seu rosto.
Forçada a respirar o forte odor que exalava do tecido, ela começou a entontecer-se. Tomada por uma forte vertigem, Heather começou a perder seus sentidos, deixando-se cair inconsciente.
Alex Montini estava a caminho de sua casa. Mais um dia na busca de um emprego. Mais uma decepção. Evidentemente, ninguém o contrataria tão cedo. Aquela havia sido uma cansativa manhã. Acordara cedo – como se costume – e aprontara-se para sair na procura de um trabalho.
Passara por vários estabelecimentos. Todos o dispensaram.
Desta vez estava mesmo perdendo não só a esperança, como também a paciência. Sua mente estava cheia de pensamentos envolvendo coisas além de seus planos para o futuro ou seu casamento com Rose. Também havia pensamentos a respeito de Emma. Principalmente depois da chegada de Heather Stevens.
Sua última conversa com ela havia sido demasiadamente conturbada. Ele passara toda a noite anterior analisando atentamente as palavras que ela proferira durante aquela conversa. Tenho visto Emma desde que consigo me lembrar... Todos os dias... Você é um dos suspeitos...
Agora ele tinha plena certeza de que Heather não sabia com quem estava lidando. Considerá-lo suspeito era um erro. E dos grandes. Um erro do qual – talvez – ela viesse a se arrepender mais tarde.
Percebeu que estava próximo à rua cuja qual Heather residia, na casa que um dia fora propriedade do avô de Emma. Sob a influência de um misto de curiosidade e desconfiança, Alex começou a direcionar seus passos para a casa de Heather.
Parou à porta de entrada, fitando-a com hesitação. Deu algumas batidas e recuou um passo, esperando que ela viesse lhe atender. Mas Alex se enganara. Heather não surgiu na porta depois de suas batidas. Bateu à porta novamente.
Nada aconteceu.
Chamou por seu nome e não houve qualquer som em resposta.
Sentiu que algo lhe tocava os pés. Olhando para baixo, surpreso, Alex percebeu a pequena trilha de água que corria por debaixo da porta, saindo pela entrada da casa. Confuso, ele chamou por Heather mais uma vez. O silencia prosseguia.
A trilha de água começou a se tornar maior. Logo toda a entrada da casa estava molhada.
Mas o que está havendo? Pensou ele, começando a sentir uma súbita onda de pânico.
Tentou abrir a porta, mas sua tentativa fora falha. A porta estava trancada por dentro. Afastou-se rapidamente e correu para a porta, jogando seu corpo contra ela. Houve um grande estrondo quando a porta se abriu por completa.
Alex se deparou com uma casa completamente inundada. Encontrou dificuldade para caminhar sobre o piso molhado. Ouviu o som de algo vindo de um dos cômodos da casa que, aparentemente, estava vazia.
Seguiu seu instinto, caminhando na direção de onde o som parecia vir. Passando por um dos banheiros, Alex olhou transtornado para o corpo que se encontrava na banheira, imerso pela água. O som vinha da torneira que despejava uma enorme quantidade de água por toda parte.
Correu para a banheira, fechando a torneira com muita pressa. Olhou para Heather com espanto.
Com os olhos fechados, a pele descorada, submersa pela fria água da banheira, ela parecia dormir no mais profundo sono. Os olhos dele caíram sobre o frasco jogado no chão, ao lado da banheira. Ainda mais apavorado, Alex fitou a pobre figura, colocando seus braços por debaixo dela, arrancando-a da banheira às pressas.
Com muito cuidado, deitou-a sobre o chão molhado do banheiro. Ajoelhou-se ao lado do corpo frágil e tomou seu pulso, concluindo que ela ainda vivia. Inclinou-se sobre ela e, apesar de muito hesitante, pousou seus lábios nos dela, aspirando a água de sua garganta, esperando que suas vias respiratórias fossem desimpedidas.
Instantes depois, sentiu-a se movimentar. Inclinando-a para frente, ele fez com que ela se sentasse. Heather voltou à realidade, jorrando água pela boca.
Estava desesperada por oxigênio. Respirou fundo várias vezes seguidas.
A simples ação de respirar fazia sua garganta e narinas queimar. Percebeu que tremia violentamente. Suas roupas se encontravam ensopadas, assim como todo o resto de sua casa. Olhou para o lado e deparou-se com Alex Montini a fitando com os olhos muito abertos. Estava tão confuso quanto ela.
– O que... O que houve...? – sua garganta ardia, exigindo-lhe um grande esforço para que conseguisse falar.
– Encontrei-a na banheira. – ele disse rapidamente.
Heather ainda sentia dificuldade em respirar normalmente. Tentou lembrar-se do que realmente acontecera. Brevemente, a lembrança do que lhe ocorrera na última vez em que estivera consciente veio à sua mente.
Mas ela não tinha certeza do que se lembrava. Cenas distorcidas passavam diante de seus olhos em grande velocidade.
Alex voltou a olhar para o pequeno frasco jogado no frio chão daquele banheiro. Depois olhou para Heather novamente. Encolhida no chão, tremendo e respirando bruscamente, ela não se parecia nada com a mulher que conhecera dias atrás. Estava apavorada, confusa. Uma garota frágil e assustada.
– Você está passando por algum problema? – ele indagou.
Ela o fitou com surpresa nos olhos.
– Do que... Está falando? – conseguiu dizer com dificuldade.
Alex apontou para o vidro de remédio deixado ao lado da banheira, com a tampa aberta, deixando três ou quatro pílulas espalhadas pelo chão.
– Isto não é meu. – Heather respondeu, balançando a cabeça lentamente. Aquilo lhe provocou uma terrível dor no pescoço. Foi então que tudo começou fazer sentido em sua mente. Heather agora se lembrava claramente do que acontecera.
Alguém havia planejado tudo aquilo.
Alguém a tinha atacado no meio da rua, trazendo-a para casa, inconsciente.
Colocaram-na dentro da banheira, ligando a torneira. Assim achariam seu corpo com o frasco de remédio ao lado. A polícia logo julgaria que ela havia cometido suicídio. E, se houvesse uma investigação – por mais simples que esta fosse – eles descobririam que ela fugira de um hospital psiquiátrico. E então tudo seria óbvio.
Todos acreditariam que Heather sofria de transtornos mentais. Todos achariam que ela havia se matado. Tudo havia sido cautelosamente planejado. Heather instantaneamente entendeu que não estava lidando com qualquer um. Alguém definitivamente não a queria por perto.
Alguém tencionava impedi-la de descobrir toda a verdade. Aquele havia sido um aviso direto. Caso Heather seguisse com a ideia de investigar o assassinato de Emma, ela também acabaria morta.
Se aquilo fosse apenas a respeito da inexplicável morte de uma garota qualquer, Heather obviamente abandonaria aquela ideia. Mas não era.
Aquilo não dizia respeito apenas à morte de Emma.
Era por sua libertação que Heather continuaria.
Por ela mesma. E mais ninguém.
Encolhida no sofá de sua sala de estar, trêmula e ainda assustada, Heather estava com sua mente carregada de pensamentos a respeito do que acabara de acontecer.
Aquilo ocorrera bem ali, em sua casa. Agora ela estava ciente de que alguém estava disposto até mesmo de matá-la, se necessário. E isto porque seu envolvimento no assassinato de Emma havia provocado a ira desta mesma pessoa. Talvez fosse este o autor do crime.
Alex aproximou-se dela, depositando um cobertor sobre seus ombros e sentando-se ao seu lado no sofá.
– Então você não tencionava se matar... – comentou.
– Alguém tentou me matar. – Heather respondeu sem olhar para ele. – Não querem que eu descubra a verdade.
– Heather, eu... Você tem certeza de que isto tem alguma relação com sua investigação sobre a morte de Emma?
– O que está insinuando? – finalmente virou-se para ele, fitando-o com perplexidade.
– Não sei. Você não... Será que não se trata de alguma rivalidade ou intriga entre você e alguém? Alguém que não tenha nada a ver com Emma. Pode ser uma pessoa que...
– Não. – ela interrompeu-o. – Não querem que eu descubra quem matou Emma. Isso é tudo.
Ele abanou a cabeça, desistindo de discutir com ela.
– Bem, você se sente melhor?
Heather soltou um suspiro. Ainda tremia violentamente. Gotas d’água pingavam de seus cabelos, caindo sobre o tapete marrom no chão.
– Ficarei bem.
– Assim espero. – a voz dele tinha um quase imperceptível tom de preocupação. – Prometa que não vai desaparecer.
Ela olhou para ele e Alex pôde ver a confusão nos olhos dela.
– O que disse? – indagou.
– Você é minha única chance de descobrir quem matou Emma. – disse lentamente. – Por favor, não desapareça antes de resolvermos isso.
– Resolvermos? – Heather estava abismada com o rumo daquela conversa. Nada do que Alex dizia parecia fazer sentido.
– Sei que me considera suspeito. – ele respondeu com calma. – Mas estou contigo, Heather. Quero descobrir quem matou Emma, tanto quanto você quer.
Surpreendida pelo que acabara de ouvir, Heather sentiu-se incapaz de dizer qualquer coisa em resposta. Para seu espanto, Alex aproximou-se, pousando uma de suas mãos sobre a dela em um gesto de afeição que a deixou desconsertada. Fitando-a com os olhos negros muito intensos, ele se manteve calado.
– Heather...? – ouviu seu nome sendo chamado. Ao levantar os olhos, Heather deparou-se com o Dr. Williams parado na porta escancarada da sala. Com uma expressão perturbada no rosto, ele olhava para ambos, como se esperasse por uma explicação.
Heather recuou sua mão, colocando-a para longe de Alex rapidamente, desviando seu olhar do olhar severo que Trevor lhe dirigia.
– O que aconteceu? – ele perguntou, inquisitivo.
– Tentaram matar-me. – Heather respondeu de forma natural, mas em seu interior ainda estava aterrorizada.
– Oh, meu Deus, Heather! – exclamou com sua voz transbordando preocupação. Correu para ela, ajoelhando-se em frente ao sofá e tomando ambas suas mãos entre as dele. Estavam trêmulas, geladas. Alex sentiu uma ponta de incomodidade o invadindo. Afastou-se do casal, colocando-se em pé. Notou que Trevor Williams tencionava tomar mil e um cuidados para que Heather se recuperasse e então, sentiu-se dispensável. Sem dizer nada, virou-se e saiu pela porta que, minutos atrás, ele derrubara às pressas.
– Como foi que isto aconteceu? – Trevor a fitava atentamente. – Quem fez isto? E por quê?
– Foi um aviso. – Heather respondeu. – Não querem que eu continue nesta cidade.
Ele não disse nada. Estava claro como água. Heather correria grande risco se prosseguisse com sua pequena investigação. Ali, sentada no sofá, com o terror estampado em seus olhos, Heather parecia tão vulnerável e frágil que Trevor sentiu – quase sem querer – uma imensa vontade de reconfortá-la e abraçá-la. Mas ele não o fizera. Não apenas por respeito a ela, mas também por si mesmo.
Amanda Thornton convidara Jodie para encontrá-la em uma cafeteria da cidade. Jodie comparecera no local no exato horário combinado. Optaram por uma mesa próxima às janelas de vidro do estabelecimento. Jodie Adams sentou-se em frente à amiga com um olhar curioso em seu rosto.
– Sobre o que quer me falar? – Jodie estava sendo clara e direta.
– Se lembra de meu acidente? Aquele com o carro?
– Claro. Aconteceu há poucos dias.
– Jodie, eu não estava bêbada. – ela falava seriamente. – E eu não estava brincando quando disse que vi alguém entrar na frente de meu carro.
Jodie deu de ombros.
– Talvez tenha sido um engano.
– Mas de que diabos está falando? – Amanda alterou seu tom de voz, repentinamente, desesperada para convencer a amiga de que estava falando a mais pura verdade. – Eu a vi. Era ela, Jodie. Tenho completa certeza do que vi.
– Há várias possibilidades de você ter causado uma imensa confusão, Amanda. – disse indiferente. – Era noite, estava escuro...
– Mas que droga, Jodie! – a outra exclamou, recostando-se na cadeira e cruzando os braços, emburrada. – Não me admiraria se você também visse o que eu vi naquela noite.
De um súbito, a expressão no rosto de Jodie mudou. Encarou Amanda com um olhar sério.
– O que quer dizer?
– Você roubou o namorado dela. – assegurou rispidamente. – Obviamente Emma está furiosa com você.
Jodie arregalou os olhos, mas tentou comprimir suas emoções. Pigarreou e voltou a olhar para Amanda com seriedade.
– Emma está morta. – declarou. – Por Deus, Amanda! Está começando a me assustar.
– Não é a única que está começando a se assustar. – Amanda inclinou-se para frente e diminuiu o tom de sua voz. – Emma pode estar morta, mas seu espírito jamais nos deixará em paz.
– Por que diz isso?
– Porque partiu inconformada deste mundo. Ainda havia coisas que ela tencionava fazer. Mas algo a impediu.
– Está dizendo bobagens.
– Sabe que tenho razão, Jodie. Emma quer vingança. – olhou fixamente para ela. – E, pelo visto, a terá.
Jodie não respondeu. No fundo, temia que Amanda estivesse certa. Mas não esboçou nenhuma reação.
À noite, Heather utilizou todo o seu esforço e mais um pouco para convencer Trevor a deixá-la sozinha em casa. Contra a sua vontade, ele despedira-se dela, deixando-a no local.
Heather terminara de limpar todos os cômodos úmidos, um por um. Estava exausta. Tomara um banho quente e vestira roupas confortáveis, preparando-se para uma longa noite de sono. Não pretendia sair da cama tão cedo. Encarou o relógio na mesa de cabeceira. 3h00min. Deitou-se, enfiando-se debaixo de espessos cobertores que a cobriam dos pés à cabeça.
Confortável na cama de seu quarto, Heather permitiu-se cair no sono. Tinha sido um dia difícil. Ainda mais difícil do que os anteriores. Ela julgou que os dias se tornariam ainda mais complicados conforme ela seguisse com a investigação. Não se importava. Nada a faria parar. Nem ninguém.
Afundada em seus quentes cobertores, Heather dormia profundamente. Contudo, ela não deixara de ouvir o estranho som que soou longe, na sala de estar. Ficou totalmente desperta. O som voltou a soar. Instintivamente, Heather abriu a gaveta de seu criado-mudo, tirando dele um canivete que guardara ali por precaução no primeiro dia que passara naquela casa.
Pôs-se em pé, alerta. Caminhou lentamente na direção do corredor que a guiaria para a sala. Seguiu em passos mudos, atenta à cada movimento que fazia. Com as pernas flexionadas, andando com cautela pelo corredor escuro, ela ouviu o som novamente.
Ao chegar à sala, Heather deparou-se com uma sombra se dirigindo para o sofá. Sua bolsa estava lá. A pessoa parecia procurar por algo. Pegou a bolsa deixada sobre o sofá, abrindo-a, vasculhando-a com muita pressa. Heather aproximou-se.
O desconhecido vestia-se de preto por completo. Era impossível visualizar seu rosto. Este também estava coberto por uma máscara de esquiador.
Parou de fazer o que estava fazendo.
Petrificado ali, ele parecia ter sentido a presença de Heather. Fez menção de virar-se para ela, mas ela fora mais rápida. Atacando-o por trás, Heather apertava-lhe o pescoço com seus braços ao redor dele. Ele fez esforço para se livrar dos braços que lhe sufocavam, tentando de todas as formas, arrancá-la de cima de seus ombros.
– Diga-me quem é, maldito! – ordenou ela, apertando-lhe o pescoço com mais força.
Heather tentou tirar-lhe a máscara, mas ele jogou-se de costas contra a parede, fazendo com que ela batesse sua cabeça com força. Contudo, Heather não o soltou. Permaneceu grudada em seu pescoço, como um parasita.
Ele demonstrou que estava disposto a tentar fazer com que ela colidisse sua cabeça contra a parede mais uma vez. Rapidamente, Heather ergueu o canivete que segurava em uma das mãos e fincou-o no antebraço do desconhecido.
Viu sangue brotar do local onde ela o tinha ferido. Soltou-se dele, deixando-se cair no chão com o canivete em mãos. O sujeito pousou a outra mão sobre o braço machucado e correu para fora da casa. Heather colocou-se em pé, ainda atordoada pela pancada que levara na cabeça.
Tentou manter-se equilibrada, mas uma forte vertigem tomou conta dela, fazendo-a se afundar na escuridão, perdendo, assim, seus sentidos.
Ela voltou a abrir seus olhos quando os primeiros raios de sol invadiam sua casa através das janelas entreabertas. Era de manhã. Ao voltar a si, Heather teve a impressão de que havia dormido por anos. Sua cabeça ainda doía. Sentou-se no chão, encostando-se à parede atrás dela.
Olhou ao redor. Estava sozinha.
Abaixou a cabeça, fitando suas mãos. Para sua surpresa, estavam vazias. Procurou pelo canivete com os olhos, passando-os por todo o chão da sala. Não havia qualquer sinal do objeto. Tampouco havia sinais de sangue.
Aturdida, Heather deixou um profundo suspiro escapar. Levantou-se, caminhando até o sofá, onde se sentou e tomou posse de sua bolsa. Verificou se não havia nada faltando. O alívio a dominou assim que percebeu que nada faltava. Alguém bateu à sua porta. Colocando-se em pé, ela seguiu para a mesma, abrindo-a.
– Santo Deus, Heather! – Trevor Williams assustou-se com o aspecto que ela trazia no rosto. Os olhos estavam fundos, os cabelos desgrenhados e a boca seca. – O que aconteceu com você?
– Querem me matar... – a voz dela soou fraca. – Entraram aqui mais uma vez... Eu...
– Já chega. – interveio ele. – Telefonarei à polícia agora mesmo. – fez menção de colocar uma das mãos no bolso da calça, provavelmente para pegar seu telefone, mas Heather o impediu, segurando-o pelo braço.
– Não. Por favor.
– Está correndo perigo nesta casa.
– Ficarei bem. – assegurou Heather, esforçando um sorriso. – Eu só... Estou tão perdida. Não entendo mais o que se passa. Eu realmente não consigo entender.
– Conte-me o que aconteceu. – pediu.
– Alguém surgiu no meio da noite. Parecia procurar por algo. – ela fez uma curta pausa para se lembrar com clareza. – Acho que buscava informações a meu respeito. Querem saber quem sou eu. – concluiu. – Querem saber por que estou na cidade e quais são as minhas intenções.
– Heather, eu quero que fique longe dessa casa. – ele falava aquelas palavras em um desespero visível. – Quero que venha comigo para o hotel, onde não a encontr...
– Não. – ela o impediu de concluir a frase. – É aqui que ficarei até que tudo isso termine. Este é o lugar cujo qual eu me referia quando lhe disse que sabia onde encontrar as respostas para todas as perguntas que eu tinha em mente.
– Precisa me ouvir. – Trevor demonstrava total preocupação. – Não está segura aqui.
– Sei me defender. – respondeu em tom subitamente rude. – Não me impedirão de concluir minha missão neste lugar.
Ele balançou a cabeça negativamente, desaprovando a atitude dela. Temia por ela, por sua vida. E por como continuaria se algo acontecesse à ela.
Mais tarde, naquele mesmo dia, Heather saíra de casa para comprar medicamentos. A cabeça ainda lhe incomodava, latejando de forma incontrolável.
Chegou à uma farmácia, onde rapidamente fora atendida. Com uma sacola em mãos, Heather saiu do local e parou na calçada, colocando a embalagem de aspirina dentro de sua bolsa. Apesar de distraída, Heather não pôde deixar de reconhecer a voz que soou no ar, seguindo em sua direção.
Levantou o rosto e virou-se para o lado, deparando-se com Alex e a noiva. Ela parecia estupidamente feliz, com um sorriso bobo no rosto. Heather não pôde dizer o mesmo a respeito de Alex. Havia uma misteriosa obscuridade por trás de seus olhos que deixaram Heather intrigada desde que o vira pela primeira vez. Sério e com um olhar apático, Alex a cumprimentou:
– Olá.
Heather sorriu gentilmente e acenou com a cabeça para Rose.
– É bom vê-la novamente. – afirmou a garota sorridente. – Como tem passado?
Era uma pergunta estúpida. Heather se perguntou se Alex não teria informado a noiva a respeito do que acontecera quando ele a salvara. Mas estava óbvio. Ele não lhe dissera nada.
Por que não? Pensou.
– Muito bem. Estou bem. – Heather respondeu, por fim, disfarçando sua suspeita.
– Que bom. – Rose emitiu outro largo sorriso. – Alex e eu estamos saindo às compras para nosso casamento.
– Bem, divirtam-se. – disse com um tom de sarcasmo que Rose não conseguiu notar.
Mas Alex notara.
– Temos que ir. – declarou bruscamente. – Nos vemos em breve.
– Claro. – Heather confirmou, assentindo com a cabeça.
Alex também assentiu. Pegou a mão de Rose, entrelaçando seus dedos e fez menção de se afastar. Assim que ele efetuou tal ato, porém, Heather não pôde deixar de perceber algo que a deixou surpresa e intimidada.
Havia um curativo ao redor do antebraço esquerdo de Rose. Ainda que ela o cobrisse com a manga comprida da jaqueta que usava, Heather pôde ver o ferimento no momento em que Alex puxara a mão da noiva.
– Até mais, Heather. – ele disse, afastando-se dela e levando Rose consigo.
Parada no meio da calçada, Heather não soube dizer qual sentimento havia tomado conta dela primeiro. A suspeita, a surpresa e até mesmo o medo estavam presentes. E obviamente ela também estava confusa.
Lembrava-se muito bem de como ferira a pessoa que havia invadido sua casa na noite passada. Lembrava-se também do canivete fincado no antebraço esquerdo do desconhecido. Da forma frenética com a qual se atacaram.
Heather esperava que esta pessoa fosse uma das que estavam em sua lista. Mas aparentemente se enganara. Já não se tratava mais de apenas quatro suspeitos. E sim de cinco.
Mentalmente, Heather organizou seus pensamentos e incluiu mais um nome em sua lista.
Rose.
Trevor Williams fez uma breve pesquisa a respeito dos estudantes que frequentaram a Harrison Brown Academy no ano de 1998 – o ano em que Emma fora assassinada –. Entre um arquivo e outro, deparou-se com um que prendeu sua atenção. Tratava-se da lista de alunos daquele ano.
Ele viu o nome de Emma. Também viu o de Amanda, Jodie, Alex e Frank. Todos frequentavam o mesmo colégio. Todos eles. Todos os suspeitos do assassinato de Emma Connors.
Estava com seus olhos fixos na tela de seu laptop, sentado à beira de sua cama, no quarto de hotel que havia reservado. Batidas na porta trouxeram-no de volta à realidade, subitamente. Ele levantou-se e caminhou para a porta.
Não esperava por ninguém.
Curioso, abriu-a.
Usando um vestido preto de seda, com os cabelos soltos, Heather estava parada à sua porta com uma expressão séria em seu rosto.
– Não tenho a quem recorrer. – declarou ela.
– Entre, por favor. – ele deu espaço para que ela entrasse em seu quarto. Heather caminhou para dentro e viu-o fechar a porta logo depois.
– O que aconteceu desta vez? – indagou ele com inquisição em seus ansiosos olhos azuis.
– Ontem à noite, quando tentei me defender da pessoa que invadiu minha casa, ataquei-o com um canivete.
– Você não havia me dito nada a este respeito.
– Sei disso. – ela prosseguiu. – O caso é que... Quando acordei de meu desmaio... O canivete havia desaparecido. – Heather parecia perdida em confusão. – Estava com ele em mãos antes de perder os sentidos. Mas depois... Desapareceu.
– O que tem em mente? – Trevor perguntou, mas já sabia a resposta.
– A pessoa que me atacou voltou mais tarde para recolher qualquer evidência, levando, assim, o canivete.
Trevor a fitou com os olhos abertos, incrédulo.
– Merda... – bufou, passando as mãos pelos cabelos.
– Eu tenho uma vaga suspeita. – Heather interveio precipitadamente. Ele olhou para ela, esperando uma resposta. – Rose. A noiva de Alex Montini.
– E por que suspeita dela?
– Encontrei-me com ela há poucos minutos, antes de vir até aqui. – ela explicou. – Estava com um curativo no antebraço esquerdo. O mesmo cujo qual eu feri o agressor.
– Heather, isso... Isso não faz o menor sentido. – disse ele. – Por que ela lhe atacaria? Por que invadiria sua casa daquela maneira?
– Eu não faço ideia. – Heather suspirou, sentando-se no canto da cama do quarto, abaixando sua cabeça. Olhou ao redor. Avistou o laptop ao seu lado. A tela encarando-a, como se a chamasse para mais perto.
E, de repente, algo clareou sua mente de forma inesperada, assim como um sinal dos céus. Aproximou seus olhos do computador.
A lista de alunos da Harrison Brown Academy de 1998 estava lá. Seus olhos percorreram a lista, parando no meio dela. Um nome captou sua total atenção. Estava bem ali. Em letras negras por cima de um fundo branco, estampado no monitor à sua frente.
Rose Mason.
Os olhos de Heather brilharam. Trevor não deixara aquela expressão escapar.
– O que houve? – perguntou.
– Rose conhecia Emma. – ela deduziu. – Estava no mesmo colégio que ela. – levantou os olhos e fitou-o atentamente antes de terminar de falar. – No mesmo ano em que Emma foi morta.
Ele apressou-se em sentar-se ao lado dela e fitou a tela de seu computador.
– Estive procurando por informações a respeito de acontecimentos que ocorreram durante aquele ano.
– Doutor, não está me ouvindo. – ela insistiu. – Rose e Emma se conheciam.
– E o que isso significa?
– Significa que ela definitivamente está incluída na lista de suspeitos.
– Tem alguma ideia de como se aproximar dela?
– Como sabe que pretendo fazer isso? – Heather foi pega de surpresa pela intuição dele.
– Porque a conheço mais do que imagina.
Ela ergueu as sobrancelhas sem responder. Mudou a direção de seu olhar rapidamente, sentindo-se desconfortável.
– Será que... Eu posso ler o restante dessa lista? – arriscou quebrar o silêncio incômodo que os envolvia.
– Claro. – ele estendeu o computador para ela. Heather deslizou seus olhos por cada letra, cada palavra, buscando por qualquer informação que lhe fosse útil. – Ei, olha só pra isso. – ela apontou o dedo para o monitor e Trevor inclinou-se sobre o computador para ver do que se tratava.
– Era um dos professores de Emma naquele ano. – ele concluiu. – Frederick Hatcher. Aposentou-se há quinze anos. Logo depois da morte de Emma. – ele lia com cuidado as palavras que estampavam o monitor.
– Exato. – confirmou. – Coloquei o nome dele em uma pesquisa e dê uma olhada. – ela clicou em uma nova página e Trevor leu com muita cautela.
– Aí diz que ele ainda reside nesta cidade.
– Diferente de todos os outros professores daquela época.
– Você pretende procurá-lo?
– Entrarei em contato com ele o mais breve possível. – Heather abriu a bolsa que levava consigo e tirou desta um aparelho celular. Olhou para o monitor mais uma vez, verificando o número telefônico do sujeito, logo abaixo de seu endereço. Trevor a observou se levantar da cama, segurando o telefone próximo ao ouvido, aguardando na linha. – Não atendem.
– Talvez ele tenha mudado o número de telefone.
– Nesse caso, irei até este endereço.
– Heather...
– Eu preciso de toda informação que puder arrancar das pessoas dessa cidade. Das pessoas que conviveram com Emma antes de ela ser assassinada.
– Irei contigo. – decidiu-se, também se colocando em pé.
Heather pensou em detê-lo. Queria colocar seus planos em ação sozinha, por conta própria. Mas sabia que a companhia dele seria inevitável. Ele a seguiria de qualquer forma. Encarou-o, viu o quão ansioso estava e não entrou em discussão, assentindo com a cabeça.
Frederick Hatcher residia em uma antiga casa do outro lado da cidade, em uma rua deserta, sem qualquer sinal de vivacidade. Heather acompanhara Trevor Williams no automóvel dele. Ele estacionara o veículo cinza em frente à suposta residência do sujeito.
Heather olhou para a casa e temeu que Hatcher não fosse recebê-la. Precisava desesperadamente entrar em contato com ele. Estava certa de que o indivíduo lhe daria informações importantíssimas que, talvez, ela tivesse deixado passar despercebidas quando chegara à Middletown.
– É aqui. – Trevor disse com convicção. – Está pronta?
– Claro. – Heather abriu a porta do passageiro e desceu, pousando seus pés no chão. Levantou-se e encarou a casa mais uma vez. Ele desceu do carro também, logo em seguida, colocando-se ao lado dela. Dirigiram-se juntos até a porta do imóvel acinzentado. Heather apertou a campainha, ouvindo o som soar dentro da casa. Aguardou com uma ponta de angústia.
Momentos mais tarde, um homem na casa dos sessenta anos surgiu, abrindo a porta. Tinha cabelos brancos e ralos, uma fisionomia cansada e vestia-se de forma pouco elegante.
– Pois não? – a voz dele era séria e firme, muito diferente de sua aparência física.
Heather foi a primeira a se manifestar.
– Sou Heather Stevens. Acabo de me mudar para a cidade. – explicou. – Este é o Dr. Williams. Um amigo meu.
– E o que desejam? – inquiriu o homem.
– O senhor é Frederick Hatcher?
– Sim. – ele se demonstrou desconfiado. – O que querem comigo?
– Sr. Hatcher, estamos aqui para lhe falar a respeito de uma de suas alunas. – Trevor interveio, articulando suas palavras de modo objetivo e severo. – Emma Connors. Foi assassinada há quinze anos atrás.
Os olhos de Frederick Hatcher se abriram ainda mais, em uma reação de completa surpresa. Ficou em silêncio por um curto intervalo de tempo. Observou os dois rostos parados diante dele e acabou decidindo-se.
– Entrem.
Ao entrar na sala de estar daquela casa, Heather se encontrou em um ambiente antiquado de aspecto um pouco sujo. A poeira espalhada por toda parte fez com que Heather pigarreasse, sentindo-se profundamente incomodada.
Hatcher apontou para o sofá embolorado que se encontrava na sala, em um sinal para que eles se sentassem. Heather sentou-se rapidamente e Trevor não hesitou em fazer o mesmo. O idoso sentou-se no sofá ao lado, encarando-os.
– Disseram algo a respeito de Emma.
– Sim. – os dois responderam em coro. Heather pareceu ser a única a ter se incomodado com o fato de terem respondido ao mesmo tempo.
– Emma foi minha aluna há muitos anos atrás. – ele começou a explicar calmamente. – Era uma garota inteligente, sempre bem-disposta, alegre...
– O senhor deve ter ouvido falar sobre o que aconteceu à ela. – Heather fez um breve comentário. – Emma foi assassinada.
– Eu... Eu sei a respeito.
– Será que o senhor poderia nos dar algumas informações a respeito de... Não sei... O comportamento de alguns de seus alunos naquela época? Ouvi dizer que Emma teve problemas com alguns colegas no colégio.
Frederick Hatcher suspirou profundamente, cabisbaixo. Depois levantou seu rosto e respondeu:
– Emma sofreu muito naquele colégio. Seus colegas a tratavam com desprezo e crueldade. Não era apenas um drama de adolescente. Ela realmente foi maltratada da pior forma possível.
Heather já estava ciente de tudo aquilo. Ela assistira àquelas cenas muitas vezes. Por muitos anos. Todas reproduzidas em sua mente como um filme. Mas ouvir aquilo da boca de outra pessoa era como sentir uma onda de agonia transitando por seu corpo.
Ele ainda estava falando:
– Eu a observei durante todo o sofrimento que vivera. Tentei ajudar, mas Emma era discreta. Jurou que ficaria bem e agradeceu. – Hatcher soltou mais um suspiro. Desta vez, melancólico. – Não posso crer no que foram capazes de fazer àquela pobre garota. – disse ele bastante seguro de suas palavras.
De repente, os olhos de Heather emitiram uma expressão de curiosidade.
– O senhor sabe o que realmente aconteceu à Emma? – ela perguntou, perplexa. Viu os olhos de Hatcher se desviarem dos seus. Tanto a polícia quanto os jornais não sabiam exatamente como Emma havia sido assassinada. – Sabe o que aconteceu naquela noite?
– Acho melhor irem embora... – disse em um murmuro.
– E eu acho melhor que o senhor me responda! – Heather asseverou, alterando seu tom de voz. Colocou-se em pé e Trevor logo se levantou junto a ela, tentando evitar que ela iniciasse uma discussão.
– Heather, creio que seja melhor irmos embora.
Ela observou o sujeito sentado no sofá. Calado. Imóvel. Ele não tinha a intenção de respondê-la. Estava claro. Heather balançou a cabeça, desistindo. Foi conduzida por Trevor até a porta por onde tinha entrado. Antes de deixar a casa, porém, Heather retirou um pequeno papel de sua bolsa e depositou na mesa de centro que se encontrava logo em frente a Frederick Hatcher.
– Ligue-me caso realmente decida ajudar Emma. – dizendo isto, Heather afastou-se e seguiu Trevor até o carro estacionado em frente à casa.
Hatcher fitou o pedaço de papel deixado sobre a mesa de vidro em sua frente.
Heather ajeitou-se no banco do passageiro e respirou fundo, tentando se manter calma.
– Você ouviu o que ele disse? – perguntou, virando-se para Trevor.
– Sim. – ele respondeu. – Também achei estranha a forma confiante com a qual ele disse aquilo. Foi como se ele estivesse realmente a par do que aconteceu. Como se ele soubesse exatamente o que aconteceu com Emma.
– Este sujeito sabe de alguma coisa. – Heather concluiu, pensativa. – Não posso desistir dele. É uma peça importante.
– Se insistir em falar com ele, pode acabar se metendo em encrenca.
– Acha que sou boba? – indignou-se ela. – Eu sei muito bem o que fazer, doutor.
– Não acho que seja boba, Heather. Pelo contrário. – explicou-se com muita paciência. – Sei que é corajosa. Por isso me preocupo. Tenho medo que aja por impulso.
Ela o fitou, curiosa. Já havia lhe perguntado antes, mas não obteve uma resposta que fizesse sentido. Por este motivo, ela ainda se perguntava o motivo de ele se importar tanto daquela forma. Não havia qualquer ligação entre eles. Pelo menos não para Heather. O silêncio foi quebrado pelo estridente som do celular dela. Apressada, Heather tirou o aparelho da bolsa e atendeu, pousando-o contra sua orelha.
– Sim?
– Encontre-me em frente ao McGreevy Park dentro de duas horas. – a voz de Frederick Hatcher deixou transparecer toda a sua ansiedade. – Tenho uma resposta que pode dar fim a muitas de suas perguntas. – ele encerrou a ligação.
Heather guardou o telefone, abismada com o que ouvira.
– Quem era? – Trevor perguntou.
– Hatcher. – ela respondeu sem fitá-lo. – Ele quer me contar algo. Devo encontrá-lo em duas horas.
– Vou com você. – afirmou ele.
– Está certo disso?
– Estou certo de que não a deixarei ir sozinha ao encontro daquele sujeito. E de que não haverá um terceiro ataque contra você.
– Como pode estar certo disso? – ela deu de ombros.
– Porque eu não vou permitir que isso volte a acontecer.
Ela não respondeu.
Uma hora e meia mais tarde, Heather havia trocado de roupa. Consultava seu relógio constantemente. Estava em sua casa, esperando que o Dr. Williams viesse até ela para acompanhá-la até o local onde Frederick Hatcher estaria esperando.
Durante todo aquele tempo de espera, Heather – por diversas vezes – se perguntou que tipo de informações o homem lhe daria. Se eram elas a respeito de Emma ou do possível assassino dela. Se era apenas uma pista sobre o que realmente acontecera. Ou se não era nada. Estava curiosa e ansiosa.
Trevor Williams verificou o relógio pendurado acima de sua cama, em seu quarto de hotel. Tinha trinta minutos para buscar Heather e acompanhá-la. Abriu a porta, pronto para deixar o quarto quando se lembrou de algo. Esquecera-se das chaves de seu carro.
Caminhou para dentro do quarto novamente, seguindo até o criado-mudo de onde pegou as chaves. Sorriu para si mesmo e virou-se.
Ao fazer isto, porém, deparou-se com uma figura que usava vestimentas negras. Pôde ver seus olhos, mas não reconheceu a pessoa.
A última coisa que sentiu foi uma forte pancada na cabeça, que fez com que perdesse os sentidos e caísse ao chão, desacordado.
Heather olhou para seu celular. Tinha dez minutos para se encontrar com Hatcher. Não havia mais tempo. Evidentemente, Trevor não apareceria para levá-la até lá. Tentou telefonar para ele, mas não houve resposta.
Pegando as chaves de sua casa e saindo da mesma, Heather lhe deixou um recado na caixa postal dizendo que estaria no McGreevy Park caso ele decidisse encontrá-la. Entrou em seu carro e girou a chave na ignição.
O ronco do automóvel soou alto quando Heather pisou no acelerador, guiando com pressa rumo ao local combinado. Durante o percurso, Heather dirigiu como uma louca. Ignorou vários sinais de trânsito, ultrapassando o limite de velocidade permitido.
Chegou ao McGreevy Park em exatos dez minutos. Saltou para fora do veículo, batendo a porta. Olhou ao redor. Frederick Hatcher estava atrasado. Não havia sinal dele.
Trevor acordou no chão do quarto do hotel onde havia se instalado. Com a cabeça pesada, latejando impetuosamente, ele esforçou-se para se colocar em pé. Assim que conseguiu coordenar suas ideias, algo lhe veio à mente. Olhou para o relógio atrás dele. 19h05min.
Droga!
Arrancou o celular do bolso da calça e digitou os números com muita pressa, esperando uma resposta do outro lado da linha.
– Vamos, Heather. Atenda.
Heather estava parada em frente ao McGreevy Park, exatamente como combinara com Frederick Hatcher. O vento gelado fustigava seu rosto, causando-lhe arrepios constantes. Ela cruzou os braços, encolhida de pé na calçada do outro lado da rua. Ouviu seu telefone tocar. O som soou abafado.
Lentamente ela tirou-o da bolsa e verificou o número que surgiu na tela do aparelho.
– Onde foi que você se meteu? – perguntou ao atender a chamada.
– Heather, precisa sair deste lugar! – Trevor Williams falava com imenso desespero, mas Heather mal pôde ouvi-lo. Havia um inconveniente chiado cortando suas falas. – Saia imediatamente!
– O quê? Mas do que está falando? – ela inquiriu, confusa.
– Estão atrás de voc... – Heather parou de escutá-lo e retirou o aparelho de perto do ouvido ao notar uma figura correndo em sua direção.
Frederick Hatcher acenava e acelerava os passos para ela. Heather encerrou a chamada, colocando o celular de volta em sua bolsa de couro preta.
Ela sorriu enquanto ele atravessava a rua. Sentiu um alivio e agradeceu a Deus mentalmente por ele ter vindo. Agora finalmente as coisas começariam a fazer algum sentido.
Heather viu-o aterrissar seus pés no meio do asfalto da rua deserta e iluminada pelas fracas luzes penduradas em postes.
Viu também quando, inesperadamente, um veículo escuro vinha em extrema velocidade por aquela mesma rua.
Hatcher não teve tempo para virar-se e ver de onde vinha o som que ouvira. Em questão de segundos – ou até mesmo milésimos –, o automóvel colidiu contra o corpo de Frederick Hatcher, fazendo com que seu sangue espirrasse para todos os lados.
Heather foi obrigada a fechar seus olhos quando grossas gotas de sangue pulverizaram seu rosto e suas roupas. Abriu os olhos e deparou-se apenas com uma carcaça ensanguentada no meio da rua. Havia sangue por toda parte.
Olhou para o lado e viu que o automóvel não parara. Sem pensar duas vezes, Heather correu para seu veículo, colocando-se atrás do volante. Colocou a chave na ignição, girando-a com desespero. Pisou no acelerador e seu carro arrancou bruscamente.
A corrida atrás do carro que acabara de atropelar Frederick Hatcher estava sendo insanamente aterrorizadora. Heather ouviu seu telefone tocar novamente. Com uma mão livre, tomou posse do aparelho e pousou-o contra o lado direito de seu rosto.
– Mataram Hatcher! – declarou rapidamente.
– Como?! – Trevor Williams soou completamente chocado. – Heather, precisa sair d...
– Não me ouviu? Acabam de atropelar Hatcher. Estou atrás do assassino.
– O quê? – ele estava agora mais apavorado do que nunca. – Não pode ficar aí. Estão atrás de você!
– Não. – disse enquanto ultrapassava mais um sinal vermelho. – Sou eu quem está atrás deles.
– Heather, você não p... – ela desligou o aparelho, jogando-o no banco do passageiro. Pousou as duas mãos sobre o volante e pisou com toda a sua força no pedal do acelerador. Ouviu o motor de seu carro atingir o limite máximo. Era o extremo.
Ignorando as buzinas que soavam toda vez que ela cruzava uma rua com os sinais avermelhados, Heather não tirou os olhos do carro que se encontrava logo à sua frente. Não havia placa. Os vidros eram negros como os do carro dela. Por um momento se perguntou quem estaria conduzindo aquele veículo.
Cinco nomes passaram por sua cabeça. Sem ordem exata. Aleatoriamente.
Foi então que, ao cruzar mais uma rua, um caminhão atravessou a mesma, colocando-se em frente ao carro de Heather. Ela viu o veículo negro se afastar, virando uma esquina e desaparecendo. O caminhão permaneceu ali. Parado.
Heather buzinou, proferindo palavras que demonstraram o quanto estava furiosa. Incrédula com o que acabara de acontecer, Heather não soube dizer se estava mais decepcionada com fato de que Frederick Hatcher não poderia mais lhe dar informações ou por ter perdido o assassino de vista.
Um milhão de perguntas vieram à sua cabeça. Entre elas, Heather se perguntou se seria o motorista daquele veículo a mesma pessoa que tentara lhe matar por duas vezes.
Claramente o assassino não só estava disposto a calar Heather, como também dar um fim em qualquer um que estivesse disposto a ajudá-la a descobrir o que realmente acontecera há quinze anos atrás.
Entretanto, Trevor Williams tinha razão. Heather era corajosa. Estaria disposta a lutar frente a frente com a morte, se fosse preciso.
Heather julgou que aquilo seria realmente preciso. E então decidiu-se.
Lutaria com a morte e com qualquer um que a tentasse impedir de concluir sua missão.
Sentada em uma cadeira com paredes cinza ao redor, Heather concluiu que se encontrava na sala do delegado. Haviam a trazido para depor.
Inicialmente Heather concluiu que o motivo disso tudo seria o fato de ela ter testemunhado o homicídio de Frederick Hatcher. Mas ficou completamente perplexa ao saber que o motivo de estar ali era a última chamada efetuada pelo celular da vítima.
O delegado – um sujeito na casa dos cinquenta anos, cabelo grisalho e olhos negros – sentou-se à frente de Heather, fitando-a com atenção.
– Muito bem. – declarou o homem. – Sra. Stevens, parece que temos muito que conversar.
Heather manteve-se firme e séria. Ele prosseguiu:
– Poderia me dizer qual era sua relação com a vítima?
– Claro. – respondeu. – Não havia relação alguma, senhor. Estou na cidade há muito pouco tempo. Para ser sincera, estou escrevendo um livro e, bem... O Sr. Hatcher era um professor de História. Pelo que sei, um excelente professor. Pensei em fazer a ele algumas perguntas a respeito da cidade.
– Hum. – o delegado resmungou e folheou alguns papéis à sua frente. – Bem, como e quando foi seu primeiro encontro com ele?
– Ontem. – ela disse rapidamente. – Procurei pelo endereço na internet. Segui para a residência dele. Ele disse-me que estava ocupado e que poderíamos falar mais tarde. Deixei para ele o meu número de telefone e, poucos minutos mais tarde ele me telefonou. Marcamos um encontro. – Heather fez um grande esforço para se manter o mais natural possível. – Fui ao encontro dele duas horas mais tarde. Para minha surpresa, ele não estava no local marcado.
– Que local seria este?
– McGreevy Park, senhor.
Ele folheou mais algumas páginas.
– Então você realmente presenciou o acidente?
Ela soltou um suspiro.
– Sim. – a lembrança causou nela um arrepio. – Ele vinha em minha direção. Acenando. Esperei do outro lado da rua. Assim que ele a cruzou... Um veículo pas...
– Não precisa entrar nestes detalhes, senhora. Já estamos a par deles. – interrompeu ele. – Estaremos investigando a respeito.
– Certo.
– Fez a coisa certa ao telefonar à polícia assim que o acidente aconteceu.
De repente, Heather levantou os olhos, arqueando as sobrancelhas.
– Como? – indagou.
– A senhora telefonou à polícia. Foi por isso que chegamos à cena do crime naquela mesma noite. Também foi por isso que a trouxemos conosco.
Heather não se lembrava de ter telefonado à polícia. Lembrava-se de ter sido trazida para a delegacia na mesma noite do acidente, entretanto, estava segura de que não fora ela a pessoa que telefonara à eles.
– Sra. Stevens? – a voz do delegado tirou Heather de seus pensamentos.
– Desculpe. – respondeu olhando para ele. – Há mais algo que queira me perguntar, senhor?
– Não. – disse brevemente. – Claramente a senhora apenas estava no lugar errado e na hora errada. Ainda assim, agradeço toda a ajuda que pôde nos oferecer com seu depoimento.
Ela assentiu. O delegado colocou-se em pé. Heather fez o mesmo. Ele a conduziu para a porta de sua sala. Ela saiu pela mesma, caminhando por um corredor que a levou para a recepção da delegacia. Ficou surpresa ao ver que Trevor Williams estava lá. Com os olhos transbordando preocupação, ele precipitou-se para ela e, inesperadamente, puxou-a para si, a envolvendo em seus braços.
– Deus! – exclamou. – Não sabe como fico aliviado em vê-la viva.
Heather afastou-se dele e olhou-o, confusa com o que escutara.
– Estou bem. – respondeu ela.
– Sim, estou vendo. – ele emitiu um sorriso de alívio. Ainda tinha as mãos pousadas sobre os ombros dela. – Pode... Digo, podemos conversar à sós?
– Claro. – ela decidiu. Não tinha escolha. Viu uma sombra passar ao seu lado. Virou-se rapidamente e se deparou com um rosto familiar. Alex Montini estava lá. Heather quis saber por que. Afastou-se de Trevor e deu passos apressados até alcançar o conhecido.
– Alexander. – ela viu-o se virar para ela assim que o chamou.
– O que faz aqui? – ele perguntou. Havia uma perceptível expressão de curiosidade em seus olhos.
– Pergunto-lhe o mesmo. – ela disse, séria. – Por que está aqui?
– Bem, eu.... Um velho conhecido foi assassinado na noite anterior. – explicou. – Estou aqui para depor.
Heather parecia subitamente incrédula. Sentiu-se perdida em uma imensa confusão. Quando fez menção de perguntar algo, um policial emitiu um sinal para que Alex entrasse na sala do delegado.
Ele lançou para ela um olhar que Heather não soube interpretar e então dirigiu-se para a sala. Ela sentiu uma mão pousar em seu ombro esquerdo. Virou-se instintivamente.
– O que houve? – Trevor indagou, sem entender.
– N-nada. Podemos ir?
Ele abriu um sorriso e balançou a cabeça em um gesto positivo.
Foram à uma cafeteria que se localizava próxima à delegacia. Não havia quase ninguém por perto. O estabelecimento parecia vazio. Heather alegrou-se com isso. Detestava lugares lotados. Sentaram-se em uma das mesas e ele a encarou por alguns minutos. Ambos em silêncio. Obviamente, havia muito a ser dito.
– Como foi que tudo isso aconteceu, Heather? – Trevor Williams decidiu que seria ele o primeiro a dar um fim naquele silêncio.
– Fui ao encontro de Hatcher. – a voz dela deixou claro que estava receosa. – Aliás – fitou-o com seriedade. – Por que não foi até minha casa?
– Porque também me atacaram noite passada.
A resposta fora rápida. Heather arregalou os olhos. Ele continuou falando com muita calma:
– Sinto muito por não ter ido com você.
– O que lhe fizeram?
– Isso não faz a menor diferença agora. – ele a interrompeu. – Assim que recuperei a consciência tive plena certeza de que estariam atrás de você. Mas aparentemente era Hatcher quem eles queriam matar desta vez.
– Porque ele sabia demais. – completou ela.
– Exatamente. – Trevor assentiu com a cabeça.
– Eu.... Eu não entendo. – ela olhava de um lado para o outro e depois fitou suas próprias mãos em seu colo. – Às vezes sinto que todos eles são culpados pela morte de Emma. Sinto que.... Todos eles têm uma pequena parcela de culpa. Eles agem como tal. – ela falava em tom de desespero. – Querem que eu pare de tentar descobrir quem fez isso. Querem me colocar medo. E, para ser sincera, estou começando a ficar apavorada.
Ele colocou sua mão na dela, sobre a mesa, e disse:
– Não se preocupe.
Aquele contato fez com que Heather fosse tomada pelo – até então – ignorado sentimento de tranquilidade que ele lhe causava todas as vezes que se encontravam.
– Alex Montini estava lá. – ela disse. Viu a expressão dele se alterar de súbito.
– Eu o vi.
– Disse que teria de depor a respeito de um homicídio. O homicídio de um velho conhecido.
– Frederick Hatcher. – deduziu ele.
– Exato.
– Mas... Por que o chamariam para depor?
Instintivamente, Heather lembrou-se de um importante fato ocorrido ainda naquela manhã.
– Chamaram-me para depor porque meu número telefônico estava registrado nas ligações efetuadas por Hatcher naquele dia.
Os olhos dele estavam cheios de ansiedade. Inclinou-se para frente e respondeu:
– Então Hatcher entrou em contato com ele.
– Só nos resta saber se ele fez isso antes ou depois de ter me telefonado. – ela falou. – E, claro, o motivo de ele ter entrado em contato com esse sujeito.
– Tem algo em mente?
– Sempre. – Heather sorriu de canto. – Falarei com Alex novamente.
– E por quê?
– Porque preciso saber que tipo de ligação ele mantinha com Hatcher. Preciso saber o motivo da ligação. Há muita informação que posso arrancar dele, acredite.
– Não duvido. – ele recostou-se à cadeira. – Considerando o fato de que ele é um dos suspeitos.
– Sim. Ele é.
– É por isso que não aprovo sua ideia, Heather. Aproximar-se dele pode ser perigoso.
Ela cruzou os braços e rolou os olhos.
– Sei me cuidar.
– Você é muito impulsiva.
– O quê?! – Heather soou totalmente indignada.
– Exatamente o que eu disse.
– Oh, então este é o seu diagnóstico? Heather é impulsiva. Prendam-na em uma jaula o mais rápido possível. – disse em tom debochado e irônico. – Ora, por favor!
Ele tentou conter o riso, mas aquilo fora em vão. Heather notou sua reação e pareceu ainda mais surpresa.
– E você ainda ri?
– Claro. – tentou se manter sério. – É ótimo vê-la assim depois de anos sem se manifestar, trancada em seu próprio mundo.
– É difícil se expressar quando lhe deixam trancafiada em um lugar como aquele e jogam a chave fora. – ela tinha um olhar carregado de más recordações. – Ainda mais em um lugar cujo qual você vive cercado por maníacos de todas as espécies.
– Sei disso. – Trevor a fitou com admiração. – Mas posso lhe assegurar que era a mais bela paciente de todo o hospital.
Ela se manteve calada. Não proferiu qualquer palavra por um longo tempo.
– Quanta doçura, Dr. Williams! – exclamou, sarcástica, quebrando o silêncio. – Dispenso elogios. Voltemos ao nosso principal assunto, por favor.
– Bem, então – ele parou de fitá-la com tanta intensidade. – Onde pretende encontrar seu querido suspeito?
– Não posso aparecer na porta da casa dele. Seria muito óbvio que eu quero investigá-lo...
– Pensei o mesmo.
Inesperadamente, Heather sentiu uma forte pontada em sua cabeça. A respiração começara a falhar.
– Dê-me um minuto. – ela colocou-se em pé e seguiu para o banheiro da cafeteria com muita pressa.
Entrou no local e contemplou sua imagem no espelho. A dor de cabeça agora era quase insuportável. Fechou os olhos, mas sabia que controlar o que estava por vir seria impossível. Sua respiração foi interrompida.
Sentiu como se sua alma fosse bruscamente arrancada de seu corpo, sendo conduzida em extrema velocidade para outro lugar. Outro tempo. Outra vida.
૪
– Vamos. Siga-me. – Alex Montini guiou Emma para um lugar que ela desconhecia completamente.
Subindo algumas escadas, ela o seguiu sem ter ideia de para onde ele a estava levando. Ele não havia dito nada a respeito até então. Emma estava certa de que seria mais uma surpresa e estava animada.
– Aqui estamos. – declarou ele.
– Onde? – ela perguntou, ainda sem entender. Alex não respondeu. Ela olhou ao seu redor e percebeu que estavam no terraço de algum lugar.
– Este é o Mancini’s. – Alex sentou-se à beira do terraço e começou a explicar. – Antes era um restaurante. Vão reinaugurar usando outro nome. As pessoas poderão se apresentar aqui.
– Mas que incrível. – Emma disse. Sua voz soara sincera como sempre. Ainda estava parada em pé, olhando para ele.
– Eu tenho muitos planos. Principalmente depois que ouvi a respeito disto. – ele olhou para a bela vista que aquele lugar os proporcionava. – Parece diferente quando se vê de cima, não?
Emma também admirou a paisagem. Jamais tinha visto Middletown de um ângulo como aquele. Apesar de perdida com a vista do lugar, ela indagou:
– Por que você me trouxe aqui?
– Porque esse lugar é especial para mim. – respondeu ele virando-se para ela e olhando em seus olhos. – Assim como você.
Ela abaixou a cabeça, corando. Permaneceu alguns minutos em silêncio. Sentiu que ele se aproximava, tomando ambas suas mãos entre as dele.
– Eu quero me casar com você, Emma.
Emma ergueu os olhos. Alex pode ver que eles estavam começando a transbordar as primeiras lágrimas de alegria. Ela se lançou para ele e eles se abraçaram enquanto ele sorria junto dela.
૪
Heather abriu seus olhos e sentiu um forte impacto ao voltar à realidade. Estava em frente a um espelho, ainda no banheiro da lanchonete. As intenções de Emma ao lhe mostrar aquela lembrança estavam claras como água. Aquilo viera à sua mente em boa hora.
Mancini’s.
Ela respirou fundo, visualizou seu reflexo mais uma vez e deixou o banheiro. Voltando à mesa com o Dr. Williams, Heather encarou-o firmemente e disse:
– Sei onde encontrar Alex Montini.
– Eu...
– Não. – ela o interrompeu antes que ele fosse capaz de terminar sua frase. – Irei sozinha. Isso é algo que eu preciso fazer sozinha.
Ainda que agisse contra a sua vontade, Trevor acabou concordando. Levou-a de volta para sua casa e partiu para seu quarto de hotel com uma pequena ponta de descontentamento.
Heather aguardou ansiosamente pelo cair da noite. Tomou um banho frio e vestiu um belo vestido cinza-claro com sapatos pretos. Partiu de casa às oito horas, seguindo para o centro da cidade. Não demorou muito para que encontrasse o que procurava.
O Mancini’s realmente não se tratava mais de um restaurante. Era um movimentado estabelecimento onde muitos dos habitantes de Middletown iam para comer, beber, ouvir música e se descontrair.
Heather estacionou seu veículo ali perto. Desceu do automóvel e seguiu para a entrada do local. Empurrou as portas de vidro e deu alguns passos adiante, vendo-as se fechar logo em seguida.
Right now he's probably slow dancing with a bleached-blond tramp and she's probably getting frisky…
A agradável e hipnotizante voz da figura feminina que se encontrava no pequeno e improvisado palco do estabelecimento tomava conta do ambiente.
Heather olhou ao redor com seus olhos irradiando curiosidade. Passou seus olhos por cada canto daquele lugar até que, de forma inesperada, pousou-os sobre o conhecido que se encontrava sentado à uma mesa não muito distante dali.
Right now he's probably buying her some fruit little drink ‘cause she can't shoot whisky...
Acompanhado de duas desconhecidas, Frank Palmer exibia um sorriso esbanjando toda sua satisfação enquanto girava um copo de bebida na mão direita. Seus olhares se cruzaram e Heather se repreendeu mentalmente por ter deixado que ele notasse sua presença.
– Ora, mas vejam só quem eu encontrei. – uma voz soou atrás dela. Heather virou-se para trás e se deparou com o próprio. – Está sozinha?
Ela o encarou por rápidos segundos e fez esforço para sorrir.
– Ahn... Sim. Estou.
– Não mais. – passou seu braço por cima do ombro dela. – Por favor, me acompanhe.
Heather involuntariamente deixou-se guiar por Frank Palmer. Sentaram-se à mesa e ele fez um sinal com os dedos para que as outras duas mulheres se retirassem dali. Elas obedeceram apressadamente.
Right now he's probably up behind her with a pool-stick, showing her how to shoot a combo…
– Heather, Heather... – ele cantarolou o nome dela, ainda sorrindo. – O que você tem de tão especial que faz com que eu me sinta incapaz de tirá-la da cabeça?
– Guarde suas falas ensaiadas para as ingênuas garotinhas que está habituado a enganar. – ela dirigiu-lhe um sorriso irônico.
– Ora, não banque a durona. – Frank chamou um garçom e pediu uma garrafa de whisky. – Fico feliz em vê-la aqui.
– Eu disse que íamos nos encontrar muitas e muitas vezes.
– Pois é. – o garçom tornou a reaparecer. Depositou dois copos e uma garrafa sobre a mesa, afastando-se deles em seguida. – Eu a vi na casa de Jodie outro dia. – comentou ele despejando a bebida em ambos os copos.
– Meu carro havia quebrado. – ela respondeu tomando posse de um dos copos cheios. – Precisava de um telefone.
– Entendo. – ele pegou o outro copo. – Bem, à que brindaremos?
– Aos possíveis encontros que teremos depois deste. – Heather respondeu, erguendo seu copo. Havia uma cega convicção em seus olhos.
– Me parece muito certa de que voltaremos a nos ver.
– De fato. – respondeu. – Mas algo me diz que ainda temos muito que conversar. Consequentemente nos veremos.
Ele sorriu novamente e eles brindaram, virando os copos ao mesmo tempo. Ele olhou indiscretamente para as pernas dela e Heather teve de se esforçar para não expressar sua repulsa. Estava segura de que Frank Palmer era o mais provável de todos os suspeitos. Era como se isto estivesse escrito em sua testa. Analisou-o por algum tempo.
– Conhece Alex Montini? – ela perguntou. Os olhos dele esboçaram surpresa e menosprezo.
– Montini? – inquiriu. – Bem, infelizmente. Estudávamos juntos no colegial.
– Eram amigos?
– Pelo visto você não sabe muito sobre ele. – Frank disse em tom debochado. – E nem sobre mim.
Sei mais do que imagina.
– Mas por que esse interesse nele? – ele continuou falando. Heather não respondeu. – A noivinha dele não ficaria nada alegre se soubesse que outra mulher está interessada nele.
– Não estou interessada nele. – declarou com severidade.
– Ainda bem. – Frank emitiu um breve sorriso. – Aquele filho da mãe não é homem o suficiente para você. – encheu mais um copo e esvaziou-o rapidamente.
– Jodie é sua namorada? – perguntou Heather.
– Não exatamente. – respondeu ele. – Na verdade, não faz muita diferença. Eu não preciso dela. Pelo menos não tanto quanto ela aparentemente precisa de mim.
– Isso soa cruel.
– Sou realista.
– Deve partir o coração de todas as garotas da cidade.
– Não é minha culpa. – ele riu. – Elas não são como você.
– Como eu?
– Sim. Você é esperta. – Frank encheu mais um copo. – E não tem medo de se divertir.
Heather emitiu um sorriso forçado.
– Se importa se eu for ao banheiro?
Ele fez que não com a cabeça e ela se afastou. Heather entrou no banheiro às pressas e encostou-se à pia, abrindo a torneira. Jogou água contra seu rosto e admirou sua imagem no espelho. Respirou fundo. Uma vez. Duas. Três.
Manteve-se calma e então arrancou algumas toalhas de papel da caixa presa à parede, ao lado da pia, e enxugou o rosto com cuidado. Respirou fundo mais uma vez e retirou-se dali. Voltando a se sentar com Frank Palmer, notou que ele a recebeu com seu mais encantador sorriso.
– Bem, mas.... Você estava falando a respeito de Rose. – Heather mudou de assunto de modo inesperado. – A noiva de Alex.
– Sim, sim. – ele balançou a cabeça. – A doce e angelical Rose.
– É mesmo?
– Rose sempre foi uma idiota. – ele esvaziou o copo em poucos segundos e o depositou sobre a mesa novamente. – No colégio era a garota que todos evitavam. O tempo todo. Mal falava com as pessoas.
– Então você já a conhecia antes, no colégio...
– Claro.
– E quando foi que ela se tornou a noiva de Alex Montini?
– Um bom tempo depois que... – ele parou de falar. Seu rosto mudou de expressão. Ele virou a garrafa de whisky sobre os copos de novo. – Deixa pra lá.
– Tudo bem. – Heather esforçou mais um sorriso e tomou seu copo em um só gole.
Olhou ao redor. Não tinha visto Alex Montini desde que chegara ao local. Perguntou-se então por que Emma teria lhe permitido ver aquela lembrança.
De repente, sua visão tornou-se um tanto embaçada. Tinha dificuldade para enxergar. Sua audição processava os sons de modo estranho, eles penetravam seus ouvidos todos embaralhados.
– Heather? – ouviu seu nome sendo chamado. Longe. Muito longe. – Você está bem?
Ela sentiu-se atordoada, perdida em meio a sons e imagens que ela não conseguia distinguir umas das outras.
– Venha. – sentiu que uma mão a segurava pela cintura, guiando-a por entre inúmeras sombras que se moviam lentamente ao seu redor.
Em seguida, ela sentiu que alguém a posicionava dentro de algo que lhe parecia um automóvel. Estava sentada em um banco. Sua cabeça doía como nunca.
Sentiu lábios desconhecidos se comprimirem contra os dela de forma brusca. Uma mão deslizava por debaixo de seu vestido.
– Não... – ela murmurou. Era a única palavra que fora capaz de articular. Um misto de estranhas sensações tomava conta de sua mente. Sentia-se fora de órbita. Seus olhos estavam fechados, pois não conseguia ver nada mesmo se tentasse mantê-los abertos.
– Shh... Quietinha. – sussurrou uma voz. Era assustadoramente inebriante.
– Não quero... – Heather tentou, sem sucesso, se desvencilhar da mão que subia por seu corpo. Frank Palmer estava demasiado distraído e bêbado para perceber a presença que se aproximava dele apressadamente.
Sentiu que o puxavam para fora de seu conversível violentamente, derrubando-o ao chão.
– Seu maldito filho da mãe! – Alex Montini montou em cima dele e lhe desferiu um soco no meio do rosto. Frank sentiu duas mãos apertando-lhe a garganta com brutalidade.
Estavam do outro lado da rua.
O carro estacionado no escuro.
Ninguém ao redor. Seria o momento perfeito para dar um fim na vida de alguém tão desprezível quanto Frank Palmer. Mas não era a coisa certa a se fazer. Alex sabia disso. Saiu de cima dele e o observou com a boca ensanguentada.
– Você... É um... Homem morto... – disse Frank com muita dificuldade.
Alex ignorou sua ameaça banal.
Olhou para o corpo fraco e imóvel no banco do passageiro do carro parado ao seu lado. Aproximou-se com cautela.
Passou seus braços por debaixo das costas dela e a carregou para fora do veículo. Afastou-se daquele lugar com Heather nos braços, sem olhar para trás.
Seguiu caminhando até conseguir um táxi. Depositou-a no banco e sentou-se ao seu lado, dando instruções ao motorista. Em menos de dez minutos, o táxi parou em frente à sua casa. Alex entregou algumas notas para o taxista e saiu do carro, cuidadosamente guiando Heather para fora do veículo.
Fez ela se apoiar sobre seus ombros e a conduziu até a porta de entrada de sua residência, ouvindo o taxista partir com o automóvel. Alex retirou um molho de chaves do bolso de sua calça e colocou uma delas na fechadura da porta, abrindo-a. Levou Heather para dentro, fechando a porta.
Com muita cautela, ajudou-a a subir as escadas, degrau por degrau até chegar ao seu quarto. Acendeu a luminária em sua mesa e, ainda com Heather apoiada em seus ombros, deitou-a gentilmente sobre sua cama. Tirou-lhe os sapatos e endireitou o vestido dela. Ajeitou sua cabeça sobre os travesseiros e cobriu-a com um confortável cobertor.
Certificou-se de que ela adormeceria sem ser incomodada e deixou-se cair na poltrona ao lado da cama, onde também acabou adormecendo.
Frank pôs-se em pé, cambaleando e resmungando. Passou a mão pela boca e sentiu o quente e salgado sabor de seu próprio sangue. Caminhou até seu carro, onde se deparou com algo que não soube dizer se era real ou resultado do quão alcoolizado estava. Encravadas nos bancos de couro de seu conversível, como se tivessem sido feitas com algum objeto cortante, quatro letras fizeram com que Frank se sentisse aterrorizado.
Ele aproximou seus olhos dos bancos para ter certeza. E lá estava. Apesar de se encontrar completamente bêbado, ele não deixou de reconhecer aquele nome.
Emma.
Passou os dedos pelos buracos feitos nos bancos de couro. Aquilo só poderia ser brincadeira.
E de muito mau-gosto.
Heather abriu seus olhos lentamente. Sua cabeça ainda doía. Muito. Mas não tanto quanto antes. Os raios de sol fizeram arder seus olhos e ela sentiu-se obrigada a fechá-los novamente, mas se esforçou para mantê-los abertos.
Olhou para o teto.
Depois desceu seus olhos pelas paredes que tinham um tom esverdeado. Ela não reconheceu aquele lugar. Aparentemente estava em um quarto. Um quarto desconhecido.
Mas algo ali lhe parecia familiar. Não se tratava do lugar, mas sim da pessoa que dormia na poltrona estampada com listras e quadrados logo ao lado da cama onde ela estava deitada.
Alex despertou assim que Heather sentou-se na cama e viu quando ela fez menção de pousar seus pés no chão e colocar-se em pé.
– Ei, com cuidado! – disse vindo em socorro dela. Segurou uma de suas mãos e com a outra apoiou as costas dela. – Não vá cair.
– O que estou fazendo aqui? – levantou o rosto e olhou para ele. Ele fez com que ela se sentasse na beira da cama e sentou-se de frente para ela.
– Eu a encontrei em péssimo estado ontem à noite. – ele explicou calmamente. – Estava desacordada. No carro de Frank.
– Frank?! – assustou-se ela. Cenas da noite anterior vieram à sua cabeça. Rápidas e confusas. – O que foi que ele fez comigo?
– Nada. – respondeu. – Creio que cheguei a tempo.
Ela o observou, curiosa, e ele abriu um sorriso sem jeito, pois se sentiu incomodado com o olhar dela. Heather percebeu isso e abaixou os olhos, dizendo:
– Acho que devo lhe agradecer.
– Não se preocupe com isso.
– Salvou minha vida duas vezes. O mínimo que posso fazer é agradecer.
– Como se sente? – Alex perguntou, olhando para ela.
– Um pouco atordoada. – ao levar uma mão à nuca, Heather sentiu a dor de cabeça piorar. – O que foi que ele me deu?
– Não faço a mínima ideia. – ele balançou a cabeça para os lados.
Heather olhou ao redor e sentiu falta de algo importante.
– Minha bolsa... – murmurou. – Merda!
– Ei, se acalme. – Alex abriu um sorriso de canto. – Estava com ela o tempo todo. Veja. – ele pegou a bolsa que se encontrava ao lado da cama, sobre o criado-mudo, e entregou para ela.
– Obrigada. – ela tomou posse de sua bolsa.
– Esses nossos encontros estão se tornando cada vez mais estranhos, não?
Ela assentiu com a cabeça.
– Por que estava na delegacia?
Heather ia fazer a mesma pergunta. Ele havia sido mais rápido. Tentou pensar em uma boa desculpa, mas nenhuma parecia coerente o suficiente para deixá-lo convencido.
– Eu.... Eu procurei por uma pessoa. – explicou. – Alguém que conhecia Emma. Um professor.
– Frederick Hatcher. – ele completou, repentinamente. – Como o encontrou?
– Fiz algumas pesquisas. Fui até a casa dele e conversamos por alguns minutos. Até que... – Heather fez uma pausa ao se lembrar do que havia ocorrido naquela tarde. – Ele falou a respeito do assassinato de Emma.
– E o que foi que ele disse? – Alex indagou, curioso.
– Parecia bastante seguro do que falava. Era como se ele soubesse exatamente o que havia acontecido naquela noite. Na noite em que Emma morreu.
Alex parecia observar o nada. Seus olhos estavam fixos na parede de seu quarto. Uma expressão pensativa estampava seu rosto.
– Isso não parece fazer muito sentido. – concluiu. – Entretanto... – suas palavras ficaram pairando no ambiente. Uma sentença incompleta.
– O que? – Heather perguntou.
– O Sr. Hatcher se aposentou logo depois que Emma foi assassinada. – virou-se para ela, a encarando seriamente. – Ele passou a se isolar de tudo e todos. Trancado em sua velha casa.
Heather sentiu a curiosidade tomar conta dela. Fitou-o nos olhos com intensidade.
– Ele sabia de algo. Ele viu algo.
– Você viu quem fez aquilo com ele? – Alex perguntou, por fim. – O delegado disse que foi um atropelamento.
– Sim. – Heather estremeceu ao se lembrar da cena que presenciara. – Tentei seguir o carro que o atropelou, mas o perdi de vista.
– Tem alguma ideia de quem era o motorista?
Ela não respondeu e Alex compreendeu. Soltou um suspiro
– Sei que me considera um dos suspeitos, Heather. – disse ele. – Mas, mais uma vez quero lhe afirmar: eu não matei Emma.
Heather levantou seus curiosos olhos castanhos para ele numa expressão perplexa. Ele parecia tentar utilizar todo o seu esforço para convencê-la de que era inocente.
– Por que você teve de comparecer à delegacia?
– Porque meu número de telefone estava registrado no telefone celular do Sr. Hatcher. – respondeu naturalmente.
– E por que ele telefonaria a você?
– Hatcher estava bastante perturbado quando me telefonou. – ele falava em tom de frieza. – Disse que eu tinha de me preparar.
– Para o quê?
– Para o que aconteceria depois que ele contasse tudo o que sabia. – fez uma breve pausa. – Bem, eu não entendi no início. Mas depois de vê-la na delegacia.... Digo, você procurou Hatcher. Ele sabia de algo. Decidiu que lhe contaria e queria que eu estivesse preparado para saber a verdade. Para saber o que realmente aconteceu com Emma.
– Me desculpe. – ela abanou a cabeça. – Algo não está fazendo sentido aqui. Ele queria que você estivesse preparado? Por quê?
– Porque, talvez, o assassino de Emma seja alguém próximo. Alguém que todos conheçam. – ele desviou seus olhos dos dela rapidamente. – E só Deus sabe como eu reagiria ao saber quem cometeu aquela crueldade.
– Então Hatcher realmente sabia de algo. Ou melhor, ele sabia quem matou Emma.
– Fiquei surpreso com a ligação dele. Mas agora tudo faz sentido.
Heather sentiu pontadas em sua cabeça e Alex notou a mudança de expressão no rosto dela.
– Ainda dói?
– Muito.
– Eu lamento. – ele disse. – Posso lhe providenciar uma aspirina, se quiser.
– Ficarei bem. – assegurou ela. Tentou, com muito esforço, colocar-se em pé. Ao fazer isto, virou-se para Alex. – A propósito, vi que sua noiva machucou o braço...
– Rose é um pouco desastrada. – esboçou um sorriso. – Feriu-se enquanto preparava o jantar. Sofreu uma queimadura. Mas creio que ficará boa dentro de poucos dias.
Dominada por uma leve onda de alívio, Heather também sorriu, dizendo:
– Espero que ela melhore. – enfiou a bolsa debaixo do braço. – Devo parecer ridícula.
Ele a analisou por alguns segundos.
– Não. – constatou. – Não se preocupe. Tem certeza de que não quer uma aspirina?
– Tenho.
– Bem, você é quem sabe. – disse Alex, dando de ombros.
– Obrigada mais uma vez.
– Sem problemas.
Alex pôs-se a guiá-la até a sala de estar, logo após descer as escadas com ela.
– Os outros ainda devem estar dormindo. – ele fez um breve comentário.
– Outros?
– Meus pais. – pareceu envergonhado. – Eu ainda dependo deles...
– Eu entendo. – Heather sorriu pelo canto dos lábios. Caminharam até a porta da sala. Ela emitiu um sinal de agradecimento e fez menção de se afastar.
– Heather. – Alex chamou-a e ela se virou para ele. – Eu... Eu gostaria de conversar com você.
Heather arqueou as sobrancelhas.
– Às nove. No Mancini’s. – declarou. Esperou que ela respondesse. Heather assentiu e se retirou.
Ela julgou ter ouvido Alex lhe chamar novamente, se oferecendo para acompanhá-la durante o percurso, mas decidiu que não aceitaria a ajuda dele dessa vez. Seguiu sozinha para sua casa com a cabeça repleta de pensamentos confusos. Abriu sua bolsa e tirou da mesma seu telefone. Discou alguns números e esperou.
– Heather... – ouviu a voz de Trevor do outro lado da linha. Soava terrivelmente cansado. – Finalmente retornou as minhas ligações. Onde você esteve?
– Eu... – tentou lembrar exatamente o que havia se passado. – Eu estou bem. Estou indo para casa.
– Onde passou a noite?
– Nos vemos em breve, doutor. – desligou e devolveu seu celular na bolsa.
૪
Por mais que ela tentasse, não conseguiria evitá-lo.
Encontrou-o na porta de sua casa assim que chegou. Ele correu para ela, num desespero perceptível.
– O que aconteceu com você? – perguntou. Desta vez não havia apenas preocupação em seu tom de voz. Também havia um irreconhecível tom autoritário que causou a curiosidade de Heather. – Você faz ideia de quantas vezes eu lhe telefonei?
– Desculpe. – ela balbuciou. – Não tive a melhor de minhas noites.
– Mas o que diabos aconteceu ontem? – Heather o contemplou com surpresa. Notou que havia sombras logo abaixo dos olhos dele e constatou que ele passara a noite acordado.
– Há muito que explicar.
– Encontrou-se com aquele sujeito? Eu sabia que tinha de ter ido com você.
– Não vi Alex Montini naquele lugar. Pelo menos não quando cheguei lá. – ela parou de encará-lo e tentou colocar suas lembranças em ordem. Aquela havia sido uma das piores, ou talvez oficialmente a noite mais estranha de toda a sua vida. – Mas encontrei Frank Palmer
– O ex-namorado de Emma.
– Ele mesmo. – assentiu. – Bebemos, conversamos... Ele me disse algo a respeito de Rose.
– Bebeu com ele?! – ele soou completamente indignado.
– Só tentei parecer o mais natural possível.
– O que aconteceu depois?
– O filho da mãe deve ter armado algo. – ela sentiu a cabeça latejar novamente.
– Sente-se bem? – mais uma vez ele parecia preocupado. Mais preocupado do que surpreso com as atitudes narradas por ela.
– Sim. – Heather respondeu. – Frank colocou alguma porcaria naquela bebida. – as lembranças vinham com pressa à sua mente, deixando-a aturdida. – Levou-me para seu carro e... Ele... Tentou algo, eu não s...
– Por Deus! – exclamou o Dr. Williams. – Sabe o quão culpado eu me sentiria se algo tivesse lhe acontecido? – pousou suas mãos sobre os ombros dela, fazendo-a encará-lo. – Ele não lhe fez nada. Fez?
Heather balançou a cabeça negativamente e ele soltou um suspiro.
– Montini apareceu. – ela prosseguiu. – Levou-me para a casa dele, onde eu acordei esta manhã.
Era tenuíssima a expressão de censura que tomou conta do olhar de Trevor assim que ela mencionara aquele acontecimento. Heather continuou:
– Ele salvou a minha vida. De novo.
– Que irônico. – ele comentou. – O seu principal suspeito é também seu salvador.
Ela decidiu que não discutiria. Não a respeito daquilo. Não com ele.
– Ainda pensa em falar com ele? – Trevor perguntou com indiferença. – Ou já conseguiu obter todas as respostas que procurava ontem?
– Me encontrarei com ele hoje à noite.
Ele não pôde conter um riso que saiu abafado.
– Você adora brincar com o fogo. – afirmou. – Só espero que não seja tarde demais para se arrepender quando acabar se queimando.
Heather sentiu-se incapaz de responder. E Trevor interpretou aquilo de forma totalmente errada. Virou-se e entrou em seu carro cinza, arrancando e afastando-se brusca e apressadamente. Ela permaneceu parada em frente à sua casa por mais alguns minutos depois que ele se fora.
૪
Assim que se deu conta de que já havia anoitecido, Heather preparou-se para ir ao Mancini’s novamente.
Desta vez, certa de que cumpriria com seus objetivos. Usando um vestido de seda branca e os cabelos soltos, guiou com seu automóvel até o local onde estivera na noite anterior – e de onde saíra em circunstâncias constrangedoras –.
Respirou fundo, encarando a fachada iluminada do estabelecimento. Começou a caminhar para dentro deste em passos hesitantes, porém firmes. Passou seus olhos por todo o interior do ambiente até que encontrou Alex Montini.
Estava sentado à uma mesa com um cigarro aceso entre os dedos e uma expressão apática no rosto. Caminhou na direção da mesa dele e viu-o levantar os olhos para encará-la.
– Sente-se.
– Certo. – ela disse, sentando-se na cadeira em frente a ele. – Disse que queria conversar comigo.
– Sim. – balançou a cabeça em sinal positivo. – O que tenho de fazer para que aceite minha ajuda e não me considere mais um suspeito? – perguntou diretamente.
– Não há como tirá-lo da minha lista de suspeitos. – Heather respondeu. – Pelo menos não até que isto tudo termine.
– Heather, eu admiro muito o que está fazendo por Emma. – explicou Alex. – Mas eu também gostaria de saber o motivo de você estar fazendo isso.
– O motivo disto tudo não lhe diz respeito.
– Tudo bem. – Alex deu de ombros. – Como você quiser.
– Me chamou até aqui para isso?
– Não. – deu uma tragada do cigarro e deixou a fumaça escapar em seguida. – Eu a chamei aqui para que pudéssemos colocar as cartas na mesa.
– Não entendo uma palavra do que está dizendo. – Heather soou confusa, mas não deixou de expressar sua frieza.
– Estou do seu lado. – disse ele. Já havia dito aquilo uma vez, em outra oportunidade.
– Não preciso que esteja ao meu lado. Posso resolver isto sozinha.
– Não precisa de mim? – Alex fingiu indignação. – Quer dizer que teria se saído bem ontem à noite na companhia de Frank? Sem a minha ajuda?
– Eu não acredito que estamos falando a respeito deste sujeito.
– Estamos falando a respeito de você. – ele falou. – Você disse-me que esteve internada em uma clínica.
– Isto não lhe interessa. – Heather o interrompeu.
– Qual é a ligação que tem com Emma?
A própria Heather não sabia a resposta. Que ligação teria ela com Emma? Por mais que tentasse, não conseguia se lembrar. Nem de Emma e nem de seu próprio passado.
Não havia lembranças antes da Jones & Johnson. Nada. Era como se nada tivesse acontecido em sua vida antes de sua chegada naquele hospital.
– Não sei... – murmurou.
– Eu amava Emma, Heather. – ele disse isto e notou que ela havia levantado os olhos para fitá-lo. – De verdade.
– Isso não me interessa.
– Desde que ela se foi, minha vida se tornou um fracasso. Eu me tornei um fracasso.
– O que quer dizer com isto? – ela indagou.
Alex soltou um riso de amargura.
– Eu fiz muitos planos quando a tinha ao meu lado. Ela era parte de todos os meus sonhos para o futuro. Tudo o que eu tinha. Tudo o que me mantinha disposto a batalhar para ser alguém. – explicou com os olhos cheios de angústia. – Mas ela se foi. E com ela, todas as minhas esperanças.
Heather teria acreditado nas palavras dele se fosse ingênua e sentimental. Mas ela jamais agira com seu coração. Permaneceu com um olhar severo no rosto.
– Se realmente a amava, – olhou fixamente para ele. – faça com que o assassino dela pague pelo que fez.
– É o que estou fazendo. – assegurou.
– Estão tentando se livrar de mim. – ela disse aleatoriamente. – Não querem que eu descubra quem matou Emma.
– Por que diz isso?
– Porque tentaram matar-me por causa disto. Duas vezes. Mataram Frederick Hatcher porque ele estava disposto a me contar tudo o que sabia. – Heather explicou, muito ansiosa. – Ele me ligou antes, dizendo que me daria uma resposta para todas as minhas perguntas.
– E você acha que a mesma pessoa que o matou.... Foi o assassino de Emma? – ele perguntou com as sobrancelhas arqueadas.
– Tenho quase certeza. Ou é isto, – ela fez uma curta pausa antes de concluir sua frase. – ou estou lidando com um cúmplice do verdadeiro assassino dela.
– Heather, eu tenho uma pergunta. – pela primeira vez, Heather viu uma inesperada expressão amistosa tomar conta do rosto de Alex Montini. – Você realmente julga-me insano ao ponto de matar tudo o que eu mais amava na vida? Sim. Pensou ela. Mas não respondeu à pergunta dele em voz alta. Alex balançou a cabeça negativamente, sentindo-se derrotado. Não a convenceria. Heather era fria como um iceberg. Pelo menos aos olhos dele.
– Soube que este estabelecimento costumava ser um restaurante. – ela comentou.
– De fato. – Alex assentiu. – Mas agora é bem mais do que apenas um restaurante.
– Estou vendo. – os olhos de Heather seguiram direto para o pequeno palco de apresentações que se encontrava do outro lado do local. Alex sentiu-se curioso e tentado a descobrir se seria capaz de “quebrar o gelo” que o impedia de descobrir quem realmente ela era e qual era sua relação com Emma.
– Tenho permissão para tentar surpreendê-la?
Heather levantou uma sobrancelha e o fitou, curiosa. Mas de que raios ele estava falando agora?
– O quê?! – perguntou ela, confusa.
– Vou entender isso como um sim.
Ela viu-o se levantar da cadeira e seguir para o outro lado do restaurante, sem sequer lhe dar uma explicação plausível ou olhar para trás.
Caminhou até o outro lado e subiu os três degraus que o levariam para o improvisado palco que ali havia.
Ele trocou meia dúzia de palavras com as pessoas que se encontravam no palco e aproximou-se de um microfone com um instrumento nas mãos. Heather assistia àquela cena com perplexidade.
Seus olhos estavam confusos e ela sentiu uma imensa onda de curiosidade tomar conta de sua mente.
Viu quando Alex começou a dedilhar uma melodia em uma guitarra. Então a canção rapidamente tomou conta do ambiente, atraindo todos os olhares para o palco.
I used to love her, but I had to kill her. I used to love her, but I had to kill her…
Heather subitamente ergueu o rosto, olhando diretamente na direção dele. Por mais irônica que aquela canção soasse, não era coincidência. Ela estava completamente certa de que ele escolhera aquela música de propósito. Era uma provocação. Mas Heather não deixaria que aquilo a afetasse.
I had to put her six feet under. And I can still hear her complain…
Heather sentiu um breve e repentino misto de raiva e surpresa transitar por seu corpo. Não sabia dizer se deveria se zangar com a provocação de Alex ou apenas ignorar e tratar aquilo com indiferença.
I knew I'd miss her, so I had to keep her. She's buried right in my backyard…
Durante o breve solo, Alex não parava de sorrir, certo de que havia atingido o orgulho dela em cheio.
I used to love her, but I had to kill her. I used to love her, but I had to kill her…
Seus olhares se cruzaram. Então ele emitiu outro sorriso sarcástico e prosseguiu assim que Heather desviou seus olhos para outra direção, sentindo-se incomodada.
She bitched so much. She drove me nuts. And now we're happier this way…
Uma onda de desconforto a dominou por completo. Já não conseguia se manter indiferente quanto ao que estava presenciando. Claramente Alex queria que ela reagisse, conseguindo assim quebrar a armadura de frieza que a cobria durante as conversas que costumavam ter.
I used to love her, but I had to kill her. I used to love her, but I had to kill her…
As frases da música estavam se encaixando propositalmente em cada um dos pensamentos que atravessavam a mente de Heather.
I had to put her six feet under. And I can still hear her complain…
Ele encerrou a canção, livrou-se do instrumento e desceu do palco ouvindo os aplausos animados vindos das pessoas que estavam presentes naquele lugar. Ainda sorrindo, caminhou para a mesa de Heather e tornou a sentar-se com ela.
– Será que eu não mereço nem os parabéns? – ele ousou perguntar.
– Tenho que ir. Já é tarde. – disse ela entre os dentes. Desviou seu olhar, decidida a não ver aquele sorriso irônico estampado no rosto dele.
– Não aja assim. – Alex disse em um tom falsamente simpático que a deixou ainda mais desconfortável.
Observando uma das janelas do estabelecimento, Heather viu algo se mover do lado de fora. Uma sombra. Parecia ter corrido para longe assim que seus olhos o encontraram. Curiosa, Heather voltou a olhar para Alex e disse:
– Eu realmente devo ir. – começou a se levantar. Ele fez o mesmo e a segurou pelo braço, desta vez, com suavidade.
– Deixe-me acompanhá-la.
– Não. – ela respondeu. Livrou-se da mão que segurava seu braço.
– Mas está tarde.
– Eu vim dirigindo. Meu carro está lá fora.
– Tudo bem. – ele se deixou convencer. – Obrigado por ter vindo me encontrar hoje à noite.
– Não há o que agradecer. – Heather disse seriamente. – Esta nossa conversa não adicionou nada de importante à minha investigação. Tampouco à minha vida. – virou-se e se afastou dele em graciosos e firmes passos.
Ele a observava admirado enquanto ela deixava o local, passando pela porta com ar de superioridade. Alex não pôde conter um riso e perguntou a si mesmo se voltaria a vê-la depois do que havia feito. Estava certo de que sim.
૪
Heather saiu do Mancini’s pela mesma porta que havia usado para entrar no estabelecimento. Olhou ao redor e não viu ninguém. Ela tinha absoluta certeza de que vira alguém através da janela de vidro, pelo lado de dentro.
Ela teve a breve impressão de que a pessoa que ela havia visto – ainda que não a tivesse reconhecido – estivera a observando desde que chegara ao Mancini’s.
A sombra havia corrido. Havia desaparecido assim que Heather a vira. Perguntou-se quem poderia ser. Apesar de curiosa, também estava aflita. Correu para seu automóvel e instalou-se atrás do volante, fechando a porta.
Abriu a bolsa e procurou por suas chaves. Ouviu algo colidir contra o vidro de seu carro, logo ao seu lado, causando um som subitamente aterrorizante.
Heather olhou para o lado e reconheceu a pessoa que batia com uma mão na janela do veículo.
Ela respirou fundo, recuperando-se do susto e desceu o vidro, apertando um botão do lado de dentro da porta.
– Rose? – ela disse ao ficar cara à cara com a garota. – Há algum problema?
– Sim. – Rose Mason disse. Sua voz era a mesma, mas o tom que usava agora era completamente diferente do que usara quando Heather falara com ela antes. – Por enquanto este será só um aviso.
Heather franziu a testa.
– Aviso?
– Afaste-se de Alex.
– Mas...
– Afaste-se dele. – ela repetiu. Parecia querer soar ameaçadora. Heather a encarou e ela lhe retribuiu o olhar.
As duas permaneceram caladas por um demasiado curto intervalo e então Rose se afastou, seguindo para o fim da rua, onde desapareceu ao virar uma das esquinas.
Heather manteve-se calada, tentando entender o que acabara de ouvir. Logo compreendeu o que havia acontecido. Ligou o recente fato a o que ocorrera enquanto ainda estava no Mancini’s.
Era ela...
Certamente Rose os tinha visto e interpretara muito mal aquela cena. Todavia, por mais ameaçadora que tentasse soar, a garota estava fazendo papel de tola.
Heather não levou aquilo em consideração.
Soltou um riso e colocou a chave na ignição.
O motor do carro arrancou e ela voltou para casa, disposta a dormir por muitas horas. Aquele havia sido um dia estranho.
E uma noite confusa.
Muito confusa.
Heather não pôde dormir durante toda a noite. Sua cabeça ainda doía. Sua mente estava repleta de pensamentos a respeito dos últimos acontecimentos ocorridos em sua vida. Um terrível sentimento que ela não pôde distinguir transitava por todo o seu corpo, causando nela um misto de angústia e temor.
Mas não soube dizer o que exatamente ela temia. Não soube dizer se eram as coisas que provavelmente viriam a acontecer. Se eram as pessoas que a estavam cercando naquela cidade. Ou talvez os acontecimentos recentes.
Obviamente Heather guardara todas as suas reações para si mesma. Jamais reagira a qualquer um daqueles aterrorizantes eventos que ocorreram desde o dia em que ela deixara a Jones & Johnson. Havia muito guardado em sua mente, em seu coração. Mas Heather estava decidida a nunca permitir que qualquer uma de suas reações escapasse, correndo o risco de tornar-se vulnerável ao deixar seus sentimentos expostos.
Por um momento sentiu-se sozinha. Ainda que fosse forte o suficiente para manter seus sentimentos trancados em seu coração, Heather começou a sentir que estava atingindo seu extremo. O último nível de resistência. Sentiu a grande necessidade de deixar suas emoções fluírem. Mas não havia ninguém com quem pudesse contar. Ninguém que a pudesse ouvir naquele momento.
Claramente nenhuma das pessoas que ela conhecera na cidade era realmente digna de confiança. Foi quando Heather percebeu que, até então, apenas uma pessoa poderia aliviar aquela aterradora sensação de mal-estar que tomava conta de cada célula de seu corpo. Trevor...
Ela já não tinha notícias dele há horas. Muitas horas. O que era raro, pois ele sempre a telefonava para se certificar de que ela estava bem. Mas aquilo não ocorrera naquela noite. E nem na manhã seguinte.
Heather começou a ficar curiosa. Telefonou para ele por diversas vezes. Cinco no total. Mas não houve resposta, ele não atendia. Ela desistiu, deixando-se cair na cama mais uma vez. Lembrou-se brevemente da ameaça feita por Rose na noite anterior. Garota boba. Pensou ela. Será uma grande decepção para ela se o noivo for um assassino.
Mas também havia um fato que não poderia ser tão facilmente ignorado. O ferimento no antebraço de Rose. Alex dissera-lhe que o incidente ocorrera enquanto a noiva preparava o jantar. Inicialmente Heather sentiu-se aliviada. Porém a desconfiança voltou a assombrar suas lembranças a respeito da noite em que fora atacada por alguém em sua própria casa.
Ainda que parecesse óbvio demais para ser verdade, Heather concluiu que não deveria descartar a hipótese de que Rose havia lhe atacado naquela noite. Ela sentiu outra pontada na nuca. A cabeça agora latejava violentamente. Sentou-se na cama e tentou controlar a terrível dor de cabeça, mas parecia impossível.
Heather sabia o que estava por vir.
Fechou os olhos com muita força. Algo causou um grande impacto nela, ao colidir contra seu corpo.
૪
A noite estava calma, silenciosa. O clima era perfeitamente fresco, uma deleitável brisa vinha da direção do Rio Connecticut.
Alex pediu a Emma para que viesse à sua casa assim que anoitecesse. Ela passou um longo tempo preparando-se para encontrá-lo.
Seguiu a pé até a residência da família dele – que ironicamente estava viajando naquele final de semana –. Parou em frente à porta e apertou a campainha. Ele a recebeu com seu melhor sorriso, abraçando-a com ternura e convidando-a para entrar. Emma sorriu de volta e entrou.
– Bem, posso saber por que me convidou para vir até aqui? – ela perguntou, ainda sorrindo.
– Porque gostaria de lhe fazer algumas perguntas. – Alex indicou o sofá com a cabeça e ambos se sentaram lado a lado. Emma o encarou. Ele tinha um olhar de preocupação no rosto.
Obviamente eu devo ter feito algo errado e ele está magoado. Com toda razão, eu suponho. Pensou com uma ponta de receio.
– E então? – Emma arriscou perguntar.
– Ninguém parece aprovar nosso relacionamento, Emma. – ele comentou. – Digo, seu avô.
– Isto não importa.
– Realmente. – Alex concordou. – Mas tenho medo de que você desista de nós por causa da desaprovação dele.
– Onde quer chegar?
– Me sinto na obrigação de provar a você que podemos dar certo juntos. Independente do que os outros digam ou façam.
Ela sorriu nervosamente. Sua respiração se alterara. Emma tentou conter seu nervosismo. Viu-o se aproximar dela, puxando-a para si com muita calma e sentiu os lábios dele selar os seus lentamente.
Quando voltou a abrir os olhos, Emma censurou-se completamente por não saber o que dizer naquele momento. Alex viu a expressão hesitante nos olhos dela e perguntou:
– Por que tem medo?
– Sou insegura. – respondeu, cabisbaixa.
– Não há razão para isso. – ele levou o dedo indicador até o queixo dela, levantando o rosto dela, fazendo-a encará-lo. – Você é perfeita.
– Eu tenho tanto.... Tanto medo de fazer tudo dar errado. Eu não sei nem como explicar o que eu sinto, eu... – ela parecia perdida em milhões de pensamentos negativos que a deixavam atônita.
Desta vez, Alex pousou seu dedo indicador levemente sobre os lábios dela, fazendo-a se calar.
– Pare de ficar se magoando. Eu não vou deixar que nada lhe aconteça. – olhou diretamente nos olhos dela. – Eu amo você. Deixe-me acabar com todos os seus medos e te mostrar o quanto você é perfeita.
– Mas... Eu não... – ela balbuciou, confusa e receosa.
– Me dê essa chance. Por favor, me deixe amar você...
De início, Emma assustou-se. Sua reação seguinte foi algo totalmente novo para ela. A felicidade de estarem juntos era grande para ambos. Emma sentia-se inteiramente feliz por estar ali com ele. Confiava nele. Apenas nele. Era tudo o que ela possuía. Todos haviam virado suas costas quando Emma mais precisara deles.
Todos, menos Alex Montini.
Ao lado dele sentia-se verdadeiramente amada. Segura. Feliz. Estava certa de que o amava. E de que aquele era um sentimento recíproco. Emma emitiu um sorriso bobo e aproximou-se dele, selando seus lábios mais uma vez.
O beijo era inocente, mas tornou-se um ato cheio de desejo quando Alex começou a intensificar o beijo deles. Ele afastou-se dela com cuidado, fitando-a nos olhos.
– Quero que veja uma coisa.
Sem entender, Emma sentiu que ele segurava a mão dela, guiando-a pelas escadas até chegar ao seu quarto. Já vira o quarto dele antes, em ocasionais circunstâncias, mas algo estava diferente. Na verdade, tudo estava diferente. Os olhos de Emma brilharam com admiração.
– Meu Deus! – exclamou, parada em frente ao quarto dele.
Havia rosas brancas em pequenos buquês por todo o canto e muitas pétalas dessas mesmas rosas em um tapete sobre o chão. Pelas janelas abertas, de onde uma refrescante brisa vinha, ela notou pela primeira vez que a vista era linda.
– Não está exatamente perfeito... – Alex comentou.
Emma virou-se para ele, enquanto ele parecia esperar qualquer reação dela. Sem dizer mais nada, ele a abraçou. E então eles se beijaram. Emma esqueceu-se de todos os malditos medos, e, pela primeira vez, não se importou com o que poderia acontecer. Apenas fez aquilo que seu corpo e seu coração pediam.
– Eu te amo. – ela disse em tom muito baixo, olhando-o com infinito amor.
Ele a encarou de volta. O coração dela disparou e quando ela tentou coordenar as ideias, seus lábios já estavam encaixados mais uma vez naquela noite. Todavia, havia outro significado naquele beijo. Era um gesto de entrega, porque Emma não queria mais perder momentos como aquele por medo.
Alex decidiu que não trataria a situação com naturalidade. Também não se tratava de qualquer garota, mas sim da que ele realmente amava.
Ele deitou-a com mil cuidados sobre o tapete azulado que se encontrava esticado no chão, acariciando o rosto dela com suavidade. Alex então posicionou seu corpo sobre o de Emma e se apossou dos lábios dela.
Consequentemente ele se encarregou de despi-la – peça por peça – pacientemente, de modo que Emma percebeu que tinha a permissão de também tirar as roupas dele. Ajudou-o a se livrar de suas roupas, jogando-as pelo chão do quarto.
Ela abriu imenso sorriso e depois lançou seus braços ao redor dele, o abraçando com força. Emma fechou os olhos enquanto Alex descia as mãos sobre ela, puxando-a até seus corpos ficarem colados. Então uma súbita sensação de que o “felizes para sempre” estava apenas começando tomou conta de sua mente e de seu coração.
૪
Heather abriu seus olhos ao sentir que algo se esvaía dela. Sentiu-se atordoada. Olhou ao redor.
Instintivamente perguntou-se qual seria o motivo de Emma ter permitido que ela tivesse total acesso àquela lembrança. Tentou entender qual era a intenção por trás do que Emma acabara de lhe mostrar, mas não encontrou nenhuma resposta. Agora estava mais confusa do que nunca.
Durante todos os anos que passara na Jones & Johnson, ela jamais vira uma lembrança como aquela. Suspirou e desistiu de pensar. Seus pensamentos rapidamente voltaram ao fato de que Trevor Williams ainda não havia lhe telefonado. Com uma – sem muito significado – breve ponta de preocupação, Heather tomou posse de seu telefone e discou os respectivos números que a fariam entrar em contato com ele. Novamente não houve resposta do outro lado da linha.
Então ela decidiu que procuraria por ele pessoalmente.
Levantou-se, pegou sua bolsa e partiu rumo ao hotel no qual ele estava hospedado. Deixou seu carro estacionado em frente à entrada do pequeno prédio e tomou um elevador, na expectativa de encontrá-lo no quarto.
Chegou à porta do quarto e bateu na mesma por diversas vezes. Não ouviu uma resposta. Ninguém apareceu para atendê-la. Foi quando Heather se lembrou de que ele havia comentado algo que ela ignorou quando escutara. Entretanto, agora aquele comentário lhe parecia útil. Heather abaixou-se e passou a mão por debaixo do tapete em frente à porta do quarto e seus dedos encontraram algo.
De lá ela tirou uma única chave.
Soltou um riso irônico e imaginou em quais outros aspectos Trevor também poderia ser clichê. Ela colocou a chave na fechadura e girou-a duas vezes, ouvindo-a se destrancar. Abriu a porta lentamente e avançou para dentro.
O quarto estava intacto. Da mesma forma que o tinha encontrado na última vez em que estivera ali.
– Dr. Williams, onde se meteu? – ela perguntou.
O silêncio pareceu respondê-la.
Aparentemente não havia ninguém ali. Ela checou o banheiro da suíte e concluiu que ele realmente não estava no local. Saiu do quarto, fechando a porta e colocando a chave de volta para debaixo do tapete, caminhando na direção do elevador.
O elevador a levou para a recepção pela qual ela havia passado antes. Aproximou-se do balcão e perguntou para a recepcionista se ela havia visto Trevor.
A mulher abanou a cabeça num gesto negativo e disse que não o tinha visto desde a tarde do dia anterior. Heather então chegou à conclusão de que ele não havia passado a noite no hotel.
Curiosa, ela deixou o hotel, voltando para seu carro. Soltou um suspiro – como faz quando não consegue obter uma resposta para uma pergunta de grande importância – e bateu com as mãos no volante.
Ouviu o som de seu celular soar e apressadamente abriu sua bolsa, tomando posse do aparelho e pousando-o ao lado de seu rosto após pressionar um botão.
– Doutor, onde foi q...
– Esta é sua última chance. – uma voz que Heather não pôde reconhecer soou. – Pare de se meter no passado.
Por sua vez, Heather sentiu-se uma idiota. Aquilo obviamente era uma brincadeira.
– Quem está falando? – ela indagou firmemente.
– Apenas ouça. – a pessoa a interrompeu. – Estamos com seu médico. Se quiser vê-lo vivo novamente, afaste-se do passado. – a voz proferia palavras em tom de ameaça. – Você tem dez horas para salvá-lo e sair da cidade.
O coração dela disparou. Quis saber quem era a pessoa que lhe falava naquele momento. Claramente aquilo não se tratava de uma brincadeira.
– Dez horas. – repetiu a voz. A ligação foi encerrada.
Heather fitou seu telefone. Precisava pensar. Precisava agir.
Seguindo seu instinto, voltou a telefonar para o número de Trevor, mas nada aconteceu.
Ninguém atendeu.
Seu primeiro impulso seria o de comunicar a polícia. Mas Heather não podia. Não confiava em ninguém. Em ninguém, exceto Trevor Williams. E agora a vida dele dependia das atitudes que ela tomaria a seguir. Precisava dela.
Subitamente ela percebeu que também precisava dele. Era o único em quem ela realmente confiava. Tudo em que ela podia se agarrar enquanto se encontrava rodeada de pessoas que protagonizaram seus pesadelos desde a primeira vez que Emma lhe concedera a permissão de ver suas lembranças.
Mas ele não estava mais ali e Heather sentiu-se perdida. Sozinha. Não havia mais ninguém com quem pudesse contar. Como um sinal enviado dos céus, um nome surgiu na mente de Heather. Ela não pensou duas vezes. Era a pessoa destinada a ajudá-la naquele momento.
૪
Alex Montini estava na sala de estar de sua casa, terminando de comer a sopa instantânea que preparara para o jantar – como de costume –, quando ouviu alguém batendo à porta. Julgou que pudesse se tratar de algo grave, considerando o fato de que as batidas soavam desesperadas.
Levantou-se do sofá com uma tigela em mãos e seguiu para a porta. Abriu-a lentamente. De repente, uma expressão de surpresa tomou conta de seu rosto e ele franziu a testa.
– Heather? – perguntou. – O que faz aqui?
– Preciso de sua ajuda. – ela declarou. Sua voz saíra decidida e severa. Realmente precisava da ajuda dele. Mais do que nunca.
Durante o percurso até a casa de Alex, Heather levou em consideração as vezes em que ele salvara a sua vida. Então concluiu que ele poderia lhe ajudar mais uma vez, ainda que a situação agora fosse totalmente diferente.
Ficaram cara a cara.
Ele fitava-a nos olhos, sem entender. E ela o observava com o rosto erguido, esperando uma resposta. Mentalmente, Heather pedia a Deus para que a resposta fosse positiva.
Do contrário, teria de agir sozinha. E esse, decididamente, seria um caminho repleto de dificuldades para ela percorrer.
Ainda assim, Heather não estava receosa.
Jamais estivera.
– Por favor, tente dirigir mais devagar. – Alex pediu gentilmente.
Heather estava uma pilha de nervos. Seus olhos estavam fixos para frente. Não piscava. Não dizia nada. Seu pé parecia estar colado ao pedal do acelerador. O carro avançava cada vez mais depressa. Alex Montini começou a sentir uma breve ponta de arrependimento por ter aceitado o pedido de ajuda dela. Horas atrás ela havia batido à sua porta. O rosto estava sério, revestido em autoconfiança, mas ela tinha engolido o próprio orgulho ao pedir sua ajuda, ainda que negasse. Deveria estar realmente desesperada, embora não demonstrasse isso de forma clara. Alex lembrou-se também das palavras que ela dissera quando havia lhe pedido para ajudá-la.
– Preciso de sua ajuda. – ela tinha uma expressão de frieza no rosto.
Por sua vez, Alex arqueou as sobrancelhas, confuso.
– O que houve? – acabou perguntando.
– Meu... Amigo. – disse. – Estão com ele.
– Quem? – Alex parecia não estar acompanhando a explicação dela. De fato, aquilo não estava fazendo o menor sentido. Heather se limitava aos detalhes.
– Por favor... – a voz dela soou como um sussurro. Abaixou a cabeça para não deixá-lo notar que estava assustada com toda aquela situação.
– Heather, diga-me o que aconteceu. Quem está com seu amigo?
– Eu não faço a mínima ideia! – exclamou, voltando a erguer o rosto para encará-lo. – Preciso que me ajude. Não posso fazer isso sozinha. Não mais.
– Tudo bem. Olha... – ele escolheu bem suas palavras para tentar mantê-la calma. Somente assim conseguiria tirar dela uma explicação plausível. – Não quer entrar e me cont...
– Não! – Heather o interrompeu. – Tenho dez malditas horas para salvá-lo! Tenho que fazer isso. E tenho que fazê-lo agora!
Desde que a conhecera, ele jamais a tinha visto em tal estado. Julgou a reação dela completamente estranha, mas decidiu não entrar em discussão. Sem dizer mais nada, voltou para dentro de sua casa e, segundos depois, tornou a aparecer na porta.
– Vamos. – ele declarou.
Heather sentiu uma leve onda de alívio. Seguiu para seu carro e Alex fez o mesmo, entrando pelo lado do passageiro assim que a viu destrancar as portas com um pequeno controle preso às suas chaves. Mal se instalaram nos assentos e Heather já se precipitou, colocando a chave na ignição e girando-a bruscamente. O barulho do motor soou. Ela pisou com toda a sua força no acelerador e arrancou. Os pneus causaram um estridente ruído. E Heather não parou de acelerar desde então.
Agora estavam a caminho de lugar nenhum. Ela agia de forma estranha, limitando-se apenas a mudar as marchas do automóvel e virar o volante para os lados. Seus movimentos pareciam ser programados. Roboticamente programados para apenas executar aqueles movimentos. Nada mais. Alex estava mais confuso do que nunca. Tentou – por diversas vezes – fazê-la explicar exatamente o que estava acontecendo, mas Heather manteve-se calada durante todo o percurso. Finalmente ele percebeu que a velocidade do carro estava diminuindo. Viu Heather afastar seu pé do pedal lentamente. Ela girou o volante para seu lado esquerdo, estacionando o veículo ao lado de uma calçada. Em seguida, desligou o motor, virando a chave.
– Merda! Merda! – ela exclamava, batendo os punhos no volante. – Inferno!
– Heather, precisa se acalmar. – Alex virou-se para ela.
– Querem que eu saia da cidade. – disse.
– Quem?
– Eu não sei, tá legal?! – Heather também se virou para encará-lo dessa vez. – Eu não sei de mais nada.
– Bem, acho que você poderia me explicar o que houve, desde o início. – ele falou. Mas sua voz não demonstrava preocupação ou interesse. Sua expressão era apática, como sempre. – Esse seu amigo... Não seria o sujeito que surgiu do nada enquanto conversávamos há algum tempo?
– Ele não surgiu do nada. – ela disse com convicção. – Estava tentando me proteger.
– Do quê? De mim? – ironizou ele, exibindo um sorriso.
– Olhe, isso não faz a menor diferença agora. – Heather não estava com paciência para qualquer que fosse o jogo dele naquele momento. – Estão com ele e deram-me dez horas para salvá-lo.
Alex parou de encará-la e olhou para o lado. Pensou um pouco. Depois voltou a fitá-la, dessa vez com uma expressão totalmente diferente.
– Por que não vai à polícia?
– Eles o matariam antes que a polícia chegasse ao local. – ela respondeu. Ao pensar nessa possibilidade Heather sentiu uma – até então – desconhecida sensação lhe percorrer pelo corpo. – Não confio em ninguém.
– Bem, então o que eu estou fazendo aqui? – indagou Alex.
Heather permaneceu calada. Ele tinha razão. Por que ela o tinha procurado? Ele era um de seus suspeitos. Não confiava nele. Mas Emma confiara. E muito. E ela parecia querer que Heather também fizesse o mesmo. Ou pelo menos, tentasse. Será que devo? Pensou, deixando um suspiro escapar.
– Emma me levou até você. – Heather disse em tom baixo. Os olhos de Alex se encheram de surpresa. Ela decidiu prosseguir. – Quer que eu confie em você.
Alex não soube exatamente o que dizer. Não tinha ouvido ou falado o nome de Emma com tanta frequência desde que ela se fora. Mas isto agora havia se tornado um hábito. Falar de Emma era algo que acontecia naturalmente quando estava com Heather. De alguma forma, ela trazia de volta todas as lembranças que, durante todos aqueles anos, ele decidira manter trancadas bem no fundo de sua memória. Não se sentia mais tão transtornado ao falar ou lembrar-se dela. Não quando Heather estava por perto.
– Emma sabe que eu jamais faria mal algum a ela. – ele disse, finalmente. Por mais que tentasse, não conseguia esconder a emoção que embargava sua voz. – E nem a você.
Heather não deixou que aquilo a surpreendesse. Estava à prova de qualquer falsa simpatia ou mentira, certa de que não acreditaria em nenhuma das palavras dele até o dia em que encontrasse o assassino de Emma.
Um imenso silêncio tomara conta do ambiente. Alex sentiu-se incomodado e prosseguiu:
– Como foi que lhe informaram que estão com ele?
– Me telefonaram. – ela disse rapidamente.
– Bem, se fosse à polícia eles poderiam rastrear o número.
– Já disse que não confio neles.
Alex deu de ombros. Também não parecia se importar muito. Não tinha motivos para isso. O som de um celular soou e Heather procurou por seu telefone apressadamente.
– É o meu. – Alex tirou seu celular do bolso da calça. Apertou um botão, atendendo a chamada com muita calma. – Rose, estou ocupado. Não. É uma entrevista de emprego. Ligarei de volta assim que puder.
Heather assistia àquela cena sem dizer qualquer palavra. Ouviu-o dizer à noiva para que não se preocupasse e o quanto a amava, desligando em seguida.
– Desculpe. – ele disse. – Tem certeza de que não quer a ajuda da polícia?
– Não. – Heather respondeu pela terceira vez.
– Bem, então devemos pensar em outra forma de localizar a pessoa que telefonou.
Heather parou de escutá-lo. Pelo espelho retrovisor de seu carro, ela reconheceu o veículo escuro que atravessava a rua atrás da qual eles estavam. Instintivamente, voltou a girar a chave na ignição. Recuou seu carro, girando-o no meio da rua.
– O que está fazendo? – Alex inquiriu. De um súbito ele pareceu assustado.
Heather voltou a acelerar, avançando para a rua de trás. Seguiu o mesmo caminho que o outro carro poderia ter tomado, procurando pelo mesmo com os olhos.
– O que está acontecendo? – ele tornou a perguntar.
– Carro preto. Sem placa. Mantenha seus olhos nele se o vir. – asseverou ela com os olhos vidrados para frente.
– Do que está falando?
– Foi o mesmo carro que atropelou Hatcher. – disse. Sua voz tinha um tom frio e determinado que deixou Alex perplexo.
Heather guiou insanamente como quando fizera quando perseguira este mesmo veículo na noite em que Frederick Hatcher fora atropelado. Desta vez, porém, estava decidida a não perdê-lo de vista. Foi então que, de modo totalmente inesperado, um celular voltou a tocar. O som era penetrante, mas Heather manteve seus olhos fixos. Alex verificou seu telefone e concluiu que desta vez não se travava de uma chamada para ele. Era o celular de Heather que tocava insistentemente.
– É o seu. – declarou Alex.
Heather não parou para atender. Seus olhos encontraram o carro que tanto procurava. Estava logo à sua frente. Rapidamente ela se resolveu.
– Atenda. Coloque no modo viva-voz. – pediu.
Alex pegou a bolsa dela do banco de trás e tirou desta o celular que vibrava e tocava sem parar. Pressionou alguns botões e segurou o aparelho próximo à Heather, que ainda se mantinha dirigindo. Logo, a mesma voz que Heather ouvira antes voltara a tomar conta do ambiente. Ela ainda não pôde reconhecê-la.
– Está pulando etapas.
– Mas de que merda está falando? – Heather perguntou, ainda guiando pelo mesmo caminho do carro à sua frente.
– Ainda não está na hora de rever seu namoradinho.
– Não é você quem dita as regras. – ela resmungou. Descobriu-se rangendo os dentes. – Como saberei que não está mentindo?
– Quero que volte para a casa e prepare suas malas. – ordenou a voz.
– Não. – respondeu ela, desafiadora. – Quero falar com ele. Agora.
Ouviu-se um irônico riso da parte da pessoa que falava do outro lado da linha, seguida de ruídos que Heather não pôde distinguir.
– Ouviu o que eu disse? – indagou. Ao mesmo tempo queria mandar aquela pessoa direto ao inferno. Mas manteve-se séria. – Está me ouv...
– Heather. – ela imediatamente reconheceu a voz que vinha do telefone. Uma repentina sensação a dominou, forçando-a a parar o carro. Freou bruscamente e tomou o celular das mãos de Alex às pressas. – Saia da cidade. Fuja. É você quem eles querem.
Ela perguntou-se como Trevor conseguia manter a calma mesmo na situação em que se encontrava. Sua voz ainda soava suave e acolhedora. Como sempre. Saia da cidade. A voz dele ecoou em sua cabeça.
Ele certamente queria que ela desaparecesse da cidade sem nem ao menos tentar encontrá-lo antes. Heather sentiu uma enorme vontade de dizê-lo para parar de agir de tal forma. Não era hora para dizer a ela o que fazer. Não era hora para tentar protegê-la. Decididamente ela não sairia da cidade. Não daquela maneira.
– Não posso.
– Saia da cid...
– Mas aonde eu iria...? – ela perguntou, o interrompendo. ...Sem você? Completou a frase em seus pensamentos antes que pudesse se censurar por isso.
Os mesmos ruídos de segundos antes voltaram a soar, deixando Heather confusa.
– Você tem nove horas e dez minutos. – a aterrorizante e ameaçadora voz pareceu voltar a tomar posse do telefone. A ligação fora encerrada em seguida.
Heather percebeu então que havia deixado o carro escapar de sua vista. Eles planejaram isso.
– Queriam que você se distraísse. – declarou Alex Montini no assento ao lado. Então ele havia pensado o mesmo que ela.
– Não posso sair da cidade... – murmurou ela.
– Nós vamos resolver isso. – ele assegurou. – Vai dar tudo certo.
Mas Heather duvidada muito que aquilo fosse terminar bem.
૪
Rose Mason caminhava pela Westfield Street com sacolas em mãos após deixar um supermercado. Em passos curtos e pacientemente lentos, Rose nem sequer notara a presença que a seguia. Encontrava-se logo atrás dela, porém em passos mais rápidos que os seus. Sentiu uma mão tocar-lhe no ombro e assustou-se, se virando para trás.
– Perdão. – Amanda Thornton abriu um sorriso ironicamente amistoso.
– Amanda, o que quer? – Rose ajeitou as sacolas em suas mãos. Estavam pesadas demais.
– Estou curiosa para saber.
– Saber o quê? – jamais tivera qualquer relacionamento amigável com Amanda. Aquela inesperada conversa estava sendo inconveniente.
– Acabo de ver seu noivo.
Rose deixou um espontâneo sorriso iluminar seu rosto. Ela julgou então que Alex saíra de sua entrevista de emprego. Mal podia esperar para telefoná-lo e perguntar se havia se saído bem.
– Mesmo? – perguntou ela, sorrindo.
– Sim. – Amanda assentiu, balançando a cabeça. – Em um carro, com outra garota.
O sorriso de Rose desapareceu imediatamente.
– O que foi que disse?
– Seu noivo estava dentro de um carro, com outra garota. – ela repetiu. – Deve conhecê-la. É a garota que chegou recentemente à cidade.
– O que faziam juntos?
– Aparentemente estavam apenas conversando. – Amanda explicou. Seu tom era sarcástico. – Ora, mas não faça essa cara! Heather é uma garota legal. É minha vizinha. Não parece querer arranjar problemas. Muito menos com um sujeito comprometido.
Rose não respondeu. Seus olhos expressavam uma mistura de perplexidade e desaprovação. Amanda divertiu-se com a reação da garota e tentou conter o riso.
– Bem, tenho que ir. Estou atrasada para o trabalho. – ela disse. Rose apenas acenou com a cabeça. – Até breve.
Amanda Thornton afastou-se apressadamente, deixando Rose para trás. Esta ainda estava calada. Imóvel no meio da calçada, ainda com as sacolas em mãos. Mas elas não lhe pareciam mais tão pesadas. Era como se ela ainda estivesse entorpecida pelo que escutara. Seu noivo estava dentro de um carro, com outra garota.
As palavras tornavam a soar em sua cabeça, ecoando. Rose não soube como reagir. Seu medo – cujo qual ela já vinha acumulando em imensa quantidade desde que conhecera Alex – tornara-se ainda maior depois que ouvira aquela afirmação dos lábios de Amanda. O pior de seus medos. O medo de perder Alex.
Não conseguia imaginar como seria sua vida sem ele. Não queria imaginar.
Tentou alertar Heather uma vez. Disse para que se afastasse dele. Mas claramente ela tinha ignorado seu aviso. Então Rose decidiu que desta vez não falaria, mas agiria.
Não permitiria que nada nem ninguém lhe roubassem a única coisa que tinha.
Aquilo que ela tinha lutado tanto para possuir.
O amor de Alex.
Amanda Thornton estava afundada em sua cadeira, atrás de uma mesa repleta de papéis que, só de olhar, causavam nela uma terrível enxaqueca. Todos os dias o trabalho se duplicava. Tomar conta dos negócios de seus pais estava sendo uma tarefa incrivelmente difícil.
A lembrança de momentos atrás fez com que, no entanto, ela abrisse um sorriso de satisfação.
Deixar Rose nervosa e, melhor ainda, ter visto a cara dela ao saber que o noivo estava no carro de outra mulher, havia sido uma visão divertidíssima.
Amanda nutria dentro de si um pequeno – que consequentemente tornou-se grande – rancor, desejando assim, aproveitar-se de certas situações para transformar a vida da politicamente correta Rose em um verdadeiro inferno.
Estavam no colegial quando Amanda rotulou Rose como uma inimiga. Havia uma grande pesquisa para ser feita, individualmente. Amanda logo se agitou em sua carteira ao ouvir o professor falar a respeito.
Precisava desesperadamente recuperar suas notas. Caso fosse reprovada, seus pais certamente a mandariam para morar com um de seus parentes distantes, em outra cidade. E Amanda não desejava aquilo de maneira alguma.
Prestou atenção em cada uma das palavras ditas pelo professor, tomando nota de cada detalhe. Então ela estava pronta. Pronta para fazer o trabalho escolar de sua vida. Daria o seu melhor para isso.
૪
Rose havia sido transferida para a Harrison Brown Academy na metade do ano. Não conhecia ninguém. Sentava-se ao fundo da sala de aula. Raramente podia-se ouvir o som melancólico e insípido de sua voz.
Com o rosto pálido, olhos verdes opacos e cabelos castanhos que se ondulavam até seus ombros, Rose Mason evidentemente não era a garota mais bonita do colégio. Nem a mais popular. Não era como se as pessoas não gostassem dela. Elas apenas não se importavam com sua presença. Não davam importância alguma ao fato de ela estar ali, fazendo parte ou não do colégio.
Todos se recusavam a formar uma dupla com ela quando o assunto era um trabalho escolar para cada dois alunos. Rose não tinha amigos. Nunca tivera. Mas desde cedo aprendera a viver consigo mesma, sem precisar depender ou esperar a amizade de alguém surgir em sua vida.
Assim, passara a dedicar seu tempo – inteiramente – aos estudos. Fazia todos os trabalhos, pesquisas, lições de casa... Como consequência de seu gigantesco esforço, Rose sempre manteve suas notas no nível mais alto possível. Era evidente que seus pais estavam orgulhosos, mas ela não se importava. Fazia aquilo para satisfazer a si mesma. Seu ego. Sua vida resumia-se apenas a seus esforços para manter suas notas. Nada mais.
Até o dia em que conhecera Alex Montini.
Da maneira mais clichê possível, esbarrou nele enquanto atravessava o corredor principal da Harrison Brown Academy. Seus livros caíram e ele, gentilmente, ofereceu-se para recolhê-los. Pegou-os do chão e depositou os mesmos nas mãos dela. Seus olhares se cruzaram e Alex abriu um meio sorriso.
Rose sentiu-se incapaz de parar de fitá-lo. Os cabelos escuros muito curtos e os penetrantes olhos negros prenderam sua atenção por completo.
– Desculpe. – ele disse. E sua voz soou como melodia para os ouvidos de Rose.
– Não tem problema. – emitiu um sorriso que saiu completamente errado. Estava nervosa. Censurou-se por parecer uma boba diante dele.
Alex tornara a sorrir e afastou-se em calmos passos. Rose o observou se afastar. Descobriu-se profundamente atraída e decidiu que se aproximaria dele. Mas ficara surpresa ao descobrir que Alex não estava disponível para ela. Viu-o conversando com uma garota durante um dos intervalos. Eles trocavam carinhos e conversavam muito próximos um do outro.
Rose sentiu-se trêmula.
Um desconhecido sentimento tomou conta de seu coração e ela sentiu náuseas ao assistir àquela cena. Passara a tarde seguinte trancada em seu quarto – chorando –.
Dizem que todos já viveram ou algum dia chegarão a viver uma, duas, muitas decepções amorosas até conseguirem tirar destas experiências uma lição e, assim, prepararem-se para encontrar seu verdadeiro amor.
Bem, Rose não estava disposta a enfrentar uma segunda decepção.
Ainda que sua primeira tivesse sido rápida demais para ser considerada uma decepção amorosa. Voltou a dedicar-se apenas aos estudos sem pensar duas vezes.
Estava no colégio há apenas uma semana. Rapidamente chegaram aos seus ouvidos alguns fatos referentes à garota de Alex. Emma Connors.
Rose então ouviu uma das garotas de sua classe falar a respeito de Emma. A interlocutora era Amanda Thornton. A garota que ouvia atentamente as palavras ditas por Amanda era Jodie Adams. Rose logo as julgou amigas de Emma e decidiu tomar uma decisão.
Utilizando apenas um pouco de sua invejável inteligência, Rose encontrou o histórico de todos os alunos do terceiro ano da Harrison Brown Academy. Todas as classes. Verificou todos os nomes com cautela, como um mestre no xadrez pronto para dar o xeque-mate. E então encontrou algo.
As notas de Amanda Thornton.
Então era por isso que ela demonstrara-se tão agitada durante a explicação do professor a respeito do trabalho pedido para aquela mesma semana.
Rose sorriu para si mesma. Já tinha algo preparado em mente.
O prazo para a entrega do trabalho era até a sexta-feira daquela semana. Na manhã desta data, Rose aparecera no colégio com um sorriso no rosto. Algo que jamais acontecera antes. Parecia satisfeita com algo. Algo que – mesmo que ainda não tivesse sido concluído – fora usado por ela como uma válvula de escape.
Através do que planejava, ela deixaria sua frustração se esvair tanto de sua mente como de seu coração.
Entrou em sua sala de aula e caminhou até seu lugar, instalando-se em sua carteira, no fundo da classe. Ainda sorria. Viu quando Amanda chegou, logo em seguida. Esta se sentou em uma carteira metros adiante. Rose não deixara de notar a pasta que Amanda trouxera consigo.
Aguardou ansiosa, porém pacientemente até o sinal do intervalo soar. O barulho a deixou completamente atenta. Esperou que todos – incluindo o professor – se retirassem da sala, enquanto ela fingia estar procurando por algo em sua bolsa.
Quando teve completa certeza de que estava sozinha no local, tirou um pequeno monte de papéis debaixo de sua carteira e correu para o lugar de Amanda, começando a vasculhar por debaixo da mesa. Tateou até encontrar a pasta que a garota havia trazido. Abriu-a e retirou da mesma todos os papéis que Amanda colocara na pasta.
Depositou-os sobre a mesa e, cuidadosamente, recortou o topo do papel que vinha em frente, numa espécie de capa. O nome de Amanda estava naquele pequeno pedaço de papel que Rose recortara e jogara fora.
Rapidamente, substituiu estes papéis pelos que ela tirara debaixo de sua própria mesma.
Em seguida, levou os papéis de Amanda para debaixo de sua carteira. Respirou fundo e soltou um riso triunfante, concluindo que tudo havia saído como planejara.
૪
O sinal que anunciava o final do intervalo soou. Os alunos voltaram às suas respectivas salas e o mesmo fizeram todos os professores. Amanda seguiu para sua sala e sentou-se em sua carteira, bastante animada. Havia passado todas as noites da semana acordada, fazendo mil e uma pesquisas, escrevendo, desistindo e recomeçando.
Passara por esse processo por diversas vezes, até conseguir o que queria. Seu trabalho estava impecável. Estava segura disto e mal podia esperar para entregá-lo ao professor que se encontrava sentado na mesa à sua frente.
O homem de cabelos tingidos de preto e óculos com lentes grossas começou a chamar os alunos para entregarem-lhe os trabalhos da semana. Amanda estava com os olhos atentos.
– Thornton. – ele a chamou e Amanda pôs-se em pé num salto. Retirou a pasta debaixo de sua carteira e caminhou na direção da mesa do professor. Depositou a mesma pasta sobre a mesa dele e ele fez um aceno positivo com a cabeça, para que ela voltasse à sua carteira.
Amanda obedeceu, tentando conter sua ansiedade. O professor abriu a pasta que Amanda deixara sobre sua mesa. Retirou dela todos os papéis que encontrou e começou a ler atentamente. Já satisfeita com seu próprio esforço, Amanda preparou-se para receber os parabéns.
Mas algo a fez hesitar.
Assistiu a mudança de expressão no rosto do professor e começou a ficar receosa. Teria escrito algo errado? Não. Ela havia feito inúmeras revisões antes de entregar o trabalho às mãos dele. Estava certa de que não havia qualquer erro sequer.
– Amanda, venha até aqui. – o professor pediu de forma educada. Amanda levantou-se e dirigiu-se para ele.
– Algum problema, Sr. Morris? – ela indagou.
– Isto é algum tipo de brincadeira? – ele segurava os papéis em uma das mãos, balançando-os conforme falava. – Porque se for, não tem graça nenhuma.
Amanda franziu o cenho, confusa.
– M-mas o que há de errado? – sua voz saiu trêmula. Seu cérebro já não conseguia processar o que ouvia. O pânico começara a tomar conta dela.
– “Sr. Morris é um velho que acha que levantando a voz vai conseguir a atenção de seus alunos durante suas extremamente insuportáveis aulas, quando na realidade ele não consegue levantar mais nada”. – ele leu em voz alta, fitando os papéis em mãos.
Amanda sentiu seu rosto queimar. Corou diante de tal situação. Aquilo não estava fazendo menor sentido. A única coisa que fora capaz de ouvir era o riso vindo por detrás dela. Não apenas um, mas vários. Vários risos debochados.
Virou-se para trás e viu que todos riam e apontavam. Mais distante, ao fundo da sala, avistou Rose.
Ela tinha uma pasta em mãos e um sorriso de satisfação no rosto.
Mas o mundo dera muitas e muitas voltas. Amanda prometera a si mesma, desde aquele ocorrido no colegial, que faria com que Rose pagasse por tê-la feito passar por toda aquela humilhação. Porém, sua vingança seria sutil. Jamais desperdiçara uma oportunidade de se divertir à custa da garota. Ainda mais depois que esta se tornara noiva de Alex Montini. E isto bastava para que Amanda aquietasse seu coração.
Para Amanda, o simples fato de Rose estar prestes a se casar com Alex era o suficiente para que ela pagasse pelo que fez.
Emitiu um sorriso em meio a tais pensamentos e voltou ao trabalho.
૪
Jodie não recebia qualquer visita ou ligação da parte de Frank Palmer há muitos e muitos dias. Começou a se perguntar se ele a estava evitando. Caso estivesse, Jodie estava determinada a tirar satisfações. Foi até a casa da família dele, mas seus pais disseram-lhe que Frank havia viajado, deixando claro que visitaria um amigo em uma cidade vizinha.
Jodie obviamente julgou tal situação demasiadamente estranha e confusa. Havia tentado entrar em contato com ele através de seu celular por incontáveis vezes. O telefone dele encontrava-se desligado. Pelo menos era isso o que ela ouvira toda vez que tentara falar com ele.
Voltou para sua casa com um aperto no coração. Sentia imensas saudades dele, por mais que não quisesse admitir para si mesma. Sem sombra de dúvidas não queria que ele saísse de sua vida da mesma forma que entrara: inesperadamente.
O envolvimento entre eles ocorrera anos depois da formatura na Harrison Brown Academy. Depois deste evento, muitos dos alunos mudaram-se para lugares diferentes e distantes. Todos em busca da universidade dos sonhos. Ou então, apenas tinham o desejo de aproveitar a vida enquanto ainda eram jovens. Jodie permanecera na cidade. Alugou um pequeno imóvel e começou a realizar seu sonho de tornar-se independente.
Sua independência, porém, lhe causara alguns problemas dos quais Jodie se negava a falar a respeito. No mesmo dia em que se mudara para sua nova casa, decidiu sair à noite para comemorar seu feito.
Seguiu até uma boate lotada da cidade e, pela primeira vez, bebera como se não houvesse o amanhã. Desfrutara de todos os copos que conseguira aguentar.
Foi então que um sujeito aproximara-se dela. Era alto, tinha cabelos castanhos ondulados e lustrosos que entravam em perfeita harmonia com seu ardiloso par de olhos verdes. Sua voz soava como um encantamento.
E aos olhos de Jodie ele se assemelhava a um anjo. Mas não um anjo qualquer. Um anjo da morte. Era sedutor e astuto, mas possuía uma perceptível graciosidade. Uma combinação perfeita.
Ele lhe falava com a inebriante voz, sussurrando ao ouvido dela enquanto lhe estendia discretamente a mão repleta de comprimidos de todas as cores.
Os olhos de Jodie brilharam.
As cores misturavam-se de forma desigual, porém amistosa, como um caleidoscópio convidativo que a chamava para as portas do paraíso. Era também esta a sensação que a voz do sujeito que lhe falava causava nela.
Sem hesitar, tomou posse de alguns dos comprimidos que ele lhe oferecia. Ele logo lhe estendeu outra mão, desta vez com um copo. Ela colocou os comprimidos para dentro da boca e tomou o copo da mão dele, virando-o em um só gole. O indivíduo abriu um sorriso encantador, deixando transparecer todo o seu deleite.
Jodie acordara na manhã seguinte em uma cama que não era sua. Em um quarto que não era seu. E aquela definitivamente não era a sua casa. Olhou para o outro lado da cama e viu que não estava sozinha.
Frank Palmer dormia profundamente. O ex-namorado de Emma. Instintivamente ela se censurou por ter agido de forma tão imprudente na noite anterior.
Deixando a realidade voltar à sua mente aos poucos, Jodie percebera então que era Frank o sujeito que lhe oferecera os comprimidos na noite anterior. A cabeça dela doía fortemente devido à ressaca.
Fez menção de se levantar da cama, mas notou que estava nua por debaixo do único lençol que cobria tanto seu corpo quanto o de Frank Palmer, que não fizera qualquer movimento desde que Jodie acordara. Mas o que foi que eu fiz?
Ainda que aquela fosse a sua reação inicial, Jodie passara a frequentar aquela mesma boate todas as noites. E, ao contrário do que muitos achavam, ela não acordava em camas diferentes. Todas as manhãs se encontrava na mesma cama – cuja qual pertencia a Frank –.
O relacionamento anormal deles tivera tal início, e Jodie prometera a si mesma que não se deixaria levar por suas emoções. Como se enganara! Semanas mais tarde já não conseguia se imaginar sem ele.
Uma terrível angústia a dominava toda vez que se perguntava se Frank se limitava a dormir apenas com ela. Mesmo sabendo a resposta, Jodie negava-se a admitir que ele não pertencia à ela. Negava-se a deixá-lo ir, pois sabia que, uma vez que ele saísse de sua vida, ela voltaria a ser o que era antes.
A mesma garota sem graça e desinteressante com quem ninguém quisera ir ao baile de formatura no último ano do colégio. Em nenhum momento sequer, Jodie levara em consideração que ele um dia fora namorado de Emma.
Logo Emma, que a tratara com tanto carinho e consideração.
Na realidade, Jodie decidira bloquear qualquer lembrança que tinha dela. Não queria que Emma fizesse parte de seu passado. Apagou-a para sempre de sua memória e seguiu sua vida. Já não importava mais se Frank havia ou não sido um bom namorado para Emma.
Era o presente que importava.
E Jodie estava segura de que o presente não poderia ser melhor do que aquilo.
Deitada em sua cama, fitando o teto, ela tentou telefonar para Frank mais uma vez. E mais uma vez, não obteve sucesso. O telefone dele permanecia desligado.
૪
– Tem certeza do que está fazendo? – Alex Montini se encontrava encostado ao batente da porta do quarto de Heather, enquanto ela arrancava roupas aos montes de seu armário, jogando-as nas malas em cima da cama.
– Tenho. – ela respondeu, tirando mais e mais roupas de dentro do armário, muito apressada.
– Bem, eu ainda acho que o mais prudente seria comunicar a polícia. Mas não entrarei em discussão com você.
Heather não respondeu, ocupada demais colocando todas as suas roupas nas malas que ela deixara abertas sobre sua cama. Ao retirar as últimas peças de roupa restantes no armário, ela notara algo. Havia um papel deixado no fundo deste mesmo armário.
Heather rapidamente pegou-o em uma das mãos e o observou com curiosidade. Parecia um envelope. Abriu-o com cautela e deste retirou um bilhete. Alex aproximou-se dela.
– O que diz? – inquiriu.
Ela não disse nada. Seus olhos estavam fixos no papel. Gentilmente, Alex tirou o bilhete das mãos dela.
“Pegue todas as suas coisas e siga com seu carro até a saída da cidade.”
As letras não eram manuscritas. Eram impressas. Impossibilitando que qualquer pessoa reconhecesse a caligrafia do autor daquele bilhete. Alex tinha plena certeza de que Heather não obedeceria às ordens dadas pelo desconhecido. Mas, para sua surpresa, estava enganado.
Heather virou-se e terminou de fechar as duas malas que se encontravam em sua cama. Levou cada uma em uma mão e fitou-o nos olhos.
– Não precisa me acompanhar. – afirmou ela.
– Eu não acredito que vai fazer o que estão pedindo. – ele se demonstrou profundamente indignado.
– Desculpe, mas não vejo alternativa.
– Querem matá-la, Heather. Será que não percebe? – por um instante, Heather pôde jurar que ele estava preocupado. – Você é uma ameaça para essa pessoa. E nós dois sabemos perfeitamente que tudo indica que esta mesma pessoa seja o assassino do Sr. Hatcher.
– E de Emma. – Heather completou, olhando para outra direção.
– Precisa pensar em outra forma de ajudar aquele sujeito.
Involuntariamente, Heather quase o repreendeu pelo modo como falava a respeito da única pessoa em quem ela realmente confiara desde então. Mas lembrou-se de que Trevor Williams também costumava chamar Alex de “aquele sujeito”, porém em tom totalmente diferente. Tom cujo qual Heather nunca soube interpretar da forma que deveria.
Seus pensamentos voltaram à realidade que estava vivendo. Ela optou por arriscar seguir as instruções da pessoa que lhe escrevera o bilhete.
– Você vem? – ela perguntou, olhando para ele mais uma vez. Alex ainda tinha o bilhete nas mãos e a fitava com receio.
– Heather... – os olhos dele voltaram a cair sobre o papel que segurava. – Por acaso, passou pela sua cabeça o fato de que a pessoa que lhe deixou este bilhete entrou em sua casa?
Heather naturalmente já havia pensado naquilo. Mas não dera a devida importância ao fato. Não se importava. Estava afundada em desespero. Todavia, não estava disposta a cruzar os braços e se lamentar. Queria agir. Tinha de agir. Olhou para Alex com indiferença e respondeu-lhe:
– Isto não importa. – ela fez menção de passar por ele, levando consigo suas malas, mas Alex a deteve.
– Estamos juntos nisso. – declarou em tom rude, porém determinado.
Heather levantou os olhos para fitá-lo e imaginou o quão bom ator ele estava sendo, caso fosse o assassino de Emma. Por mais inexpressiva que fosse a aparência dele, Heather sempre notara que Alex deixava as emoções transparecerem através de suas palavras. Propositalmente ou não, era isto o que ele fazia. Talvez estivesse tentando cegá-la com mentiras. Ou talvez ele estivesse – depois de anos – deixando que sua frieza se esvaísse, dando lugar ao que costumava ser quando ainda era possível ter Emma em seus braços.
De um modo ou de outro, Heather não se importava muito com aquilo. Não agora. Precisava desesperadamente de respostas. Ou melhor, de alguém que a pudesse guiar por aquele obscuro caminho constituído de mentiras e segredos nunca descobertos que a cercava por todos os lados.
Heather se deu conta de que esse alguém estivera com ela durante todos os momentos em que precisara clarear sua visão enquanto seguia por este caminho.
Esse alguém era Trevor Williams.
Mas agora esse mesmo alguém precisava que ela lhe retribuísse o favor. Precisava da ajuda dela.
Ela certamente o faria.
Mesmo que o preço a ser pago para concluir tal ato fosse alto.
Heather encontrava-se atrás do volante de seu carro. Sentiu a presença de alguém. Alex havia se colocado no banco do passageiro ao lado dela.
Antes de partirem para a saída de Middletown, Alex pedira para que ela parasse em frente a casa dele, pois ele precisava se certificar de algo antes de seguir junto dela. Agora ele havia retornado ao veículo.
Heather o fitou da cabeça aos pés, procurando descobrir o que ele havia trazido consigo após sair de sua residência. Constatou que ele não levava nada nas mãos.
– O que foi que você veio buscar aqui? – ela perguntou, curiosa.
– Isso não importa agora, não é mesmo? – Alex respondeu sem olhar para ela. – Podemos ir?
Heather levou sua mão à chave colocada na ignição. Girou-a lentamente e ouviu o motor funcionar. Estava na hora. Ela não sabia exatamente o que encontraria assim que chegasse ao local combinado. Estava receosa, mas algo em sua mente a dizia para tentar. Seguindo seus pensamentos, Heather guiou rumo à saída da cidade.
Alex manteve-se calado durante todo o caminho. O silêncio tornou-se insuportável. Heather decidiu quebrá-lo.
– Acha que eles estão esperando por mim?
– Acho que desejam vê-la morta. – respondeu ele, rispidamente.
O som do celular dela tornara a soar no ambiente, deixando-a totalmente desperta. Fez um sinal com a cabeça para que Alex retirasse o aparelho de dentro da bolsa dela. Ele obedeceu, atendendo a chamada e selecionando o modo viva-voz.
– Pare o carro. – ordenou a voz do outro lado da linha. Heather franziu a testa.
– O quê?! – disse, confusa.
– Façamos uma mudança de plano. – o desconhecido sugeriu. Heather rapidamente girou o volante, estacionando seu carro ao lado de uma calçada. – Estou lhe dando um prazo maior. Dois dias.
Heather não fazia a menor ideia do que a pessoa estava falando. Se o indivíduo desejava tanto que ela saísse da cidade o mais breve possível, por que estaria lhe oferecendo agora um prazo ainda mais longo? O que estariam planejando?
– Por que tomou esta decisão? – ela indagou em tom firme.
– Porque quero ver o quão longe você iria para salvar uma vida. – respondeu a voz. Querem brincar com minha mente. Pensou ela. A voz acrescentou:
– Dois dias. – Heather pôde ouvir a ligação sendo encerrada e encarou o celular nas mãos de Alex com os olhos muito abertos.
– Por que estão me dando mais tempo? – Heather pensou em voz alta.
– Não sei. – Alex deu um suspiro. Ainda segurava o celular dela. A tela do aparelho piscava em vermelho: ligação encerrada. E Heather sentiu a agonia se alastrar por seu corpo aos poucos. – O número estava oculto. Como na última vez em que ligaram.
– Preciso rastrear esse maldito telefone. – declarou ela.
– Heather, a polícia pod...
– Basta! – protestou. – Já lhe disse milhões de vezes que não confio na polícia!
– Tudo bem. – ele respondeu, desistindo. – O que tem em mente?
– Eu... Eu não entendo. – Heather encarava o volante de seu carro enquanto tentava colocar seus pensamentos em ordem e tirar deles alguma conclusão. – Por que raios eles me dariam um prazo maior? Dois dias...
Alex não respondera. Heather tentou encontrar uma resposta sozinha, vasculhando no meio de todos os confusos e aleatórios pensamentos que invadiam sua mente sem parar. Ela começou a sentir um forte latejar na cabeça. Era o sinal. Estava vindo. De novo. A dor tornou-se cada vez mais forte e Heather teve de inclinar-se para frente, com as mãos sobre a cabeça, tentando a muito custo reprimir as dores. Alex notou toda a agitação dela, e se precipitou para ajudá-la.
– Heather, o que há com você? – perguntou. Tentou tirar as mãos dela que mais pareciam estar coladas à sua cabeça, pois ela as pressionava com toda a sua força, tentando conter a insuportável enxaqueca. – O que está acontecendo?
– Não! Não! Não! – ela gritava repetidas vezes.
– Heather, fale comigo! – ele começou a se desesperar diante da cena que presenciava.
Heather ergueu sua cabeça e então, foi como se algo lhe invadisse o corpo. Sentiu uma imensa pressão colidir contra seu estômago, forçando-a a recuar, recostando-se no banco do motorista do carro.
Alex viu o corpo dela ser jogado para trás e não conseguiu compreender o que estava havendo. Com as costas coladas ao banco do carro, Heather cerrou seus olhos com força e pôde sentir algo se esvair dela, tomando outro rumo. Um caminho rápido. Frio. Quase ilusório.
Vozes e imagens se misturavam enquanto sua essência ultrapassava este caminho.
Era uma gigantesca confusão de informações.
Emma Connors chegara cedo ao colégio naquela manhã. A brisa gelada vinda do rio fustigava seu rosto enquanto ela passava pelos portões principais, seguindo para a entrada da Harrison Brown Academy.
Começou a caminhar pelo corredor que a levaria direto para sua sala de aula. Atravessar aquele corredor era como passar por debaixo de uma tempestade de olhares e comentários maldosos que caíam sobre Emma. Ela não ousara olhar para os lados.
Com o passar dos dias, desde seu rompimento com Frank Palmer – incluindo os eventos ocorridos depois disto – os comentários e os olhares debochados direcionados a ela apenas aumentaram. Ainda que tentasse com todas as suas forças se manter indiferente em relação a isso, Emma começara a se sentir sufocada.
Aquela situação não pararia. Pelo menos não tão cedo.
Foi naquela mesma manhã, enquanto passava por entre os conhecidos rostos que a julgavam com seus olhares críticos, que ela teve a sensação de que aquilo definitivamente não pararia. O tormento em sua cabeça tornara-se uma imensa confusão. Um misto de sentimentos que ela não conseguia identificar.
Com medo de perder a razão e ter um ataque em público, Emma desviou seu caminho. Não foi para sua sala de aula. Deu meia volta e entrou em outro corredor que a guiaria para os banheiros. Entrou no banheiro feminino e correu para uma das pequenas cabines que separavam os sanitários.
Pegou a bolsa que trazia consigo debaixo do braço e abriu-a, em busca de algo. Sentada sobre a tampa do sanitário, ela desesperadamente vasculhava sua bolsa procurando pelo que mais desejava encontrar naquele momento.
Tirou de sua bolsa outra pequena bolsa, e dela retirou um apontador de lápis verde. Encarou-o por segundos e então o arremessou contra a parede de forma brutal. Viu o pequeno objeto se estilhaçar no chão do banheiro.
Passou seus olhos por cada pedaço espalhado pelo piso até que encontrou. Estava ali. Refletindo a luz do banheiro, brilhava como uma lâmpada. Uma luz no meio da escuridão.
A escuridão que passara a habitar tanto a mente quanto o coração de Emma. Inclinou-se para baixo e pegou a lâmina do apontador do chão. Sentou-se novamente, encarando o objeto com curiosidade e receio.
Será que vai doer muito?
Estava mais curiosa do que preocupada. De fato, aquilo doeria. E talvez muito. Mas Emma não se importava mais. Era impossível que qualquer dor física se igualasse à dor que ela sentia em seu interior. Sua mente estava cansada. Seu coração estava repleto de mágoas. Mas seu corpo estava intacto. Não haviam feridas em seu exterior.
Emma julgou que uma “troca de dores” fosse ajudá-la a aliviar sua mente e coração. A dor exterior aliviaria a dor interna.
Segurou a lâmina com firmeza e esticou seu outro braço para frente. Sem pensar duas vezes – pois tinha medo de acabar desistindo –, ela aproximou a lâmina de seu pulso direito e pressionou-a contra a sua pele. Fechou os olhos e deslizou a lâmina com delicadeza, de modo gentil, muito cautelosa.
Sentiu uma terrível ardência em seu pulso. Abriu os olhos e viu o sangue brotar lentamente do corte recente. Foi como se sua mente começasse a processar tudo de modo mais lento. Sua visão reproduzia as imagens em slowmotion.
O sangue escorria por seu braço aos poucos. Era quente e frio ao mesmo tempo. O coração de Emma batia descompassado. A realidade voltou ao seu corpo rapidamente, como um choque. Emma apressou-se em arrancar pedaços de papel do rolo preso à parede ao seu lado.
Apressadamente ela limpou seu ferimento e colocou-se em pé. Recolheu todos os pequenos pedaços do apontador que quebrara, jogando-os na lixeira ao lado do sanitário. Abrindo a porta da cabine, Emma respirou profunda e longamente. Um súbito e ao mesmo tempo inexplicável alívio tomou conta dela.
Aproximou-se da pia, abrindo-a e lavando suas mãos. Encarou sua imagem no espelho. Ela se perguntou como Alex reagiria se ela lhe contasse o que acabara de fazer.
Certamente a julgaria fraca, vulnerável, ou pior: sentiria pena dela. Emma decidiu que manteria aquilo para si mesma. De qualquer forma, havia se libertado do grande peso que carregava sobre os ombros. Sentia-se aliviada. Temporariamente.
૪
Heather abriu os olhos ao sentir que algo escapara de sua mente. Sua respiração era pesada. Ouviu seu nome ser chamado. Longe e em tom quase inaudível.
E então sua audição voltou ao normal. Virou-se para o lado e Alex a encarava com os olhos cheios de espanto, chamando por ela.
– Você está bem? – ele perguntou ao ver que ela havia voltado a si.
– E-estou. – Heather fez esforço para responder. A dor em sua cabeça ainda não cessara.
– O que houve?
– Eles a destruíram... – balbuciou ainda perplexa com o que tinha visto em sua cabeça.
Alex levantou uma sobrancelha sem entender.
– Mas do que está falando? – quis saber.
Heather permaneceu em silêncio, tentando coordenar suas ideias. Alex não permitiu que o silêncio se prolongasse por mais tempo. Soltou um breve suspiro e disse:
– Está com fome?
O estômago de Heather respondera por ela, roncando alto. Não havia comido desde que acordara naquela manhã. Ainda assim, não sentia fome. Tampouco sono. Sentia-se em estado neutro. Tudo o que queria era encontrar Trevor e dar um fim em toda aquela desesperadora situação.
– Venha. Eu vou lhe preparar alguma coisa. – disse Alex.
Aparentemente ele estava tentando agir de modo gentil. Abriu a porta do carro e desceu, esperando que Heather fizesse o mesmo.
Sem pensar muito, ela pegou sua bolsa e também abriu a porta, saindo pelo lado do motorista. Pôs-se em pé e trancou as portas, usando um controle em suas chaves.
Alex se dirigiu para a porta de sua casa e Heather o seguiu, calada. Entrou na sala de estar e nem sequer se deu ao trabalho de analisar o lugar onde agora se encontrava. Alex esperou que ela passasse pela porta e fechou-a logo em seguida. Ele caminhou até a cozinha e Heather foi atrás dele, parando à porta da cozinha, se encostando à parede. Sua mente estava uma verdadeira confusão. Ela não sabia como reagir diante de tudo o que estava acontecendo.
Alex abria e fechava as gavetas dos armários da cozinha. Pegou um prato, talheres, uma panela e um pequeno pacote de macarrão instantâneo.
Sem dizer nenhuma só palavra, Heather assistiu-o preparar o macarrão e, três minutos mais tarde, ele despejou-o sobre o prato que havia colocado na mesa, ao lado de alguns talheres. Ele indicou a cadeira com a cabeça, num sinal para que Heather se sentasse.
Ela o fez, deixando sua bolsa pendurada na cadeira e Alex sentou-se ao lado dela, em outra cadeira.
– O que aconteceu agora há pouco... – ele começou a falar. – O que foi aquilo?
Heather pegou uma colher e começou a mexer na comida posta em seu prato.
– Você queria saber qual era a minha ligação com Emma. – respondeu. – Bem, é assim que ela se comunica comigo.
Alex a fitou com surpresa. Ela parecia segura do que dizia.
– Ela se... Comunica com você? – indagou ele.
Heather balançou a cabeça em um gesto positivo e encheu a colher com macarrão, a levando até sua boca.
– Querem me enlouquecer. – ela declarou, levantando o rosto e olhando nos olhos dele.
– Eu realmente não consigo pensar em nenhuma forma de descobrir o motivo de terem lhe dado um prazo maior para salvar aquele cara. – explicou Alex. – Mas saiba que estarei contigo.
Heather voltou a abaixar sua cabeça, dando mais alguns bocados em seu macarrão.
– Sabe, eu... – ele fez uma pausa para escolher muito bem as palavras que dariam início a este inesperado assunto. – Eu espero que você não desapareça.
Ela levantou os olhos como se estivesse exigindo uma explicação. Alex deu continuidade ao que estava dizendo:
– Não sei muito bem como explicar. Só quero que saiba que sua presença ameniza todo esse peso que eu trago na consciência. – ele a fitou intensamente nos olhos, tentando fazer com que ela entendesse, apesar de também se sentir confuso com o que estava explicando. Na verdade, estava confuso com o que sentia. – Não desapareça. Só isso.
Ele havia dito a mesma coisa no dia em que a encontrara desacordada na banheira. Porém desta vez, parecia realmente temer que ela fosse desaparecer. Heather não entendeu o motivo.
– Não desaparecerei. Por enquanto. – ela respondeu. Alex exibiu um sorriso e parou de fitá-la.
– Emma foi a melhor coisa que aconteceu em minha vida. – ele disse, repentinamente. – Na realidade, ela mudou a minha vida. E a mim.
– O que foi que ela fez exatamente? – Heather indagou, indiferente.
– Ela me aceitava pela pessoa que eu era. Sabia quem eu era, o que eu era e o porquê. Ela foi a única a... Realmente ver através de mim.
– Tenho a certeza de que ela se sentia da mesma forma. – comentou ela. Alex arqueou as sobrancelhas, a observando com um ar inquisitivo.
– Por que diz isso?
– Você era tudo o que ela tinha. – respondeu Heather. E então ela voltou a dar colheradas em seu prato.
A presença de Emma tornara-se extremamente perceptível para ele. Havia sentido aquela mesma sensação antes, desde o momento em que esbarrara em Heather por acaso, derrubando seus papéis na água. Ela não só havia trazido as lembranças, mas também a presença de Emma de volta à vida dele.
E agora sentia-se completamente preso àquela sensação. Não queria que aquilo partisse de sua vida mais uma vez.
Com o coração transbordando emoção, ele a observou com curiosidade e admiração. Descobriu-se involuntariamente desejoso de saber mais coisas a respeito dela. Até então tudo o que sabia era que Heather era viúva. E que estava totalmente determinada a descobrir quem assassinara Emma. Mas havia muito que Alex desejava saber sobre ela. De onde era? Teria família? Amigos? Namorado?
O sujeito que o apartara dela no dia em que quis saber o motivo de ela estar investigando a morte de Emma certamente não causava nela nenhum interesse amoroso. Ela queria salvar o sujeito apenas porque era a coisa certa a se fazer. Não havia outro interesse.
Alex constatara isso pela forma como Heather agia e falava.
Não era o tipo de garota que se apaixonaria por alguém. Pelo menos não tão facilmente. Ele tinha a impressão de que Heather mantinha todos os seus sentimentos – quaisquer que fossem – trancafiados em um lugar muito distante e íntimo, bem no fundo de sua mente.
Sim, de sua mente, pois evidentemente Heather jamais agira com o coração.
– Não vou deixá-la sozinha. – ele disse depois de um longo tempo em silêncio. – Prometo.
Heather ergueu os ombros num gesto indiferente. E Alex sorriu novamente. Não conseguia mais negar que a personalidade dela o intrigava, de modo que ele tomou a decisão de desvendar o envolvente e complexo enigma que era Heather Stevens.
O som de batidas na porta de entrada da casa fez com que Alex abandonasse seus devaneios e voltasse à realidade.
– Estão batendo à sua porta. – informou Heather, terminando sua refeição.
Alex assentiu e se levantou, deixando-a sozinha na cozinha de sua casa. Atravessou a sala de estar e seguiu em direção à porta. As batidas voltaram a soar. Suaves, porém persistentes. Abriu a porta e se deparou com o rosto que costumava ver todos os dias.
– Rose... – ele disse o nome dela em um suspiro, repreendendo-se por não ter pensado nela durante todo o dia.
– Como foi a sua entrevista de emprego? – ela perguntou em um tom que Alex não ouvira antes. Não vindo dos lábios dela.
– Eu... Acho que tudo ocorreu bem. – respondeu.
– Mesmo? – Rose tinha um sorriso irônico estampado no rosto. Alex não estava gostando daquilo e a fitou com surpresa. – Não vai me deixar entrar?
Ele pensou em uma convincente resposta para dar a ela. Mas antes que pudesse articular suas palavras, Rose ergueu a cabeça por cima do ombro dele e avistou Heather sentada em uma cadeira, no fundo da cozinha.
– Era esse o seu compromisso? – inquiriu ela. – O tão importante compromisso que impediu você de me telefonar dizendo o que estava se passando?
– Rose, eu...
– Não quero ouvir, Alex. – Rose o interrompeu. Seu tom de voz agora era amuado. Ele pôde ver os olhos dela brilhando, tentando conter as lágrimas de decepção que estavam começando a brotar. Alex não encontrou uma explicação e Rose decidiu que não deixaria que ele a visse chorando.
Afastou-se dele com muita pressa e não o ouviu a impedir. Alex abanou a cabeça e viu a noiva ir embora. Em um misto de remorso e pena, ele fechou a porta e decidiu que resolveria aquilo mais tarde.
Rose seguiu para o fim da rua. Parou de correr. Os olhos começaram a transbordar lágrimas de ódio. Mas não era apenas ódio. Seu coração agora carregava um conjunto de maus sentimentos e lembranças de um passado não muito agradável.
Definitivamente aquela garota seria um problema. Estava na hora de colocá-la em seu lugar.
E Rose sabia exatamente o que fazer para que isto acontecesse.
Heather permaneceu na casa de Alex até o ponto em que começou a se sentir incomodada com a presença dele. Não que ele causasse nela algum tipo de medo.
Mas a presença dele fazia com que ela se lembrasse da última visão que havia tido. Emma parecia temer que ele a julgasse depois do que ela fizera. Heather não entendera muito bem o motivo daquilo, já que Emma mostrara a ela que confiava totalmente em Alex.
Por que então ela temia a forma como ele reagiria se soubesse que ela havia se cortado?
Heather despediu-se dele, agradecendo pela refeição que ele tinha lhe preparado e tratou de convencê-lo que ficaria bem. Alex a fez prometer que telefonaria a ele caso algo acontecesse. Contra a sua vontade, Heather assentiu e deixou a casa, partindo então para a sua.
Estacionou seu veículo de cor escura e vidros negros em frente à entrada de sua casa e desceu com sua bolsa em mãos. Após travar as portas do veículo, Heather caminhou lentamente na direção da porta do imóvel. Tirou uma chave da bolsa e colocou-a na fechadura, girando-a.
Soltou um suspiro de cansaço. Já era noite. O telefone não voltara a tocar desde então. E ela ainda sentia-se perturbada com aquela falta de notícias.
Empurrou a porta e deu alguns passos adiante. Seus olhos se abriram por completo ao encontrar sua sala de estar em um estado no qual ela não a tinha deixado antes de sair.
O sofá encontrava-se rasgado, com marcas provavelmente feitas com facas por toda parte. Pelo chão, vários objetos arrancados dos armários e estantes. O tapete estava manchado.
As paredes...
Havia algo na parede em frente à Heather. Uma mensagem. Um aviso. Em letras vermelhas – que Heather julgou ter sido feitas com batom – ela pôde ler claramente:
Saia da cidade.
Heather olhou ao redor e notou que as outras paredes também levavam uma mensagem.
Desapareça.
Este não é o seu lugar.
Vá embora. Agora.
O vento passava pela janela aberta da sala, causando um som terrivelmente perturbador. Heather precipitou-se para a janela, fechando-a. Concluiu então que a pessoa entrara em sua casa por aquela mesma janela. Virou-se para voltar a encarar as paredes cobertas com letras.
Ela não reconhecia aquela caligrafia. Não poderia mesmo se quisesse. Estava petrificada, tomada por uma aflição que até então ela havia tentado evitar.
E de repente Heather percebeu que seu maior medo era ter medo. Pois sabia que uma vez que ela temesse aquelas ameaças, ela se tornaria totalmente vulnerável. Pronta para ser atacada. Então, outro sentimento misturou-se ao que ela sentia naquele momento. A solidão.
Ela havia caído em si, percebendo que estava sozinha. Encostou-se à parede, com os braços ao redor de si mesma, deixando-se escorregar para o chão, lentamente permitindo que as lágrimas de desespero despencassem de seus olhos.
Por um momento quis saber se aquilo era realmente melhor do que passar o resto de seus dias trancafiada em uma clínica psiquiátrica mesmo não estando mentalmente enferma. Se ainda estivesse na Jones & Johnson sua única preocupação seria quanto tempo levaria até que aquele lugar tirasse dela toda a sua sanidade.
Quando isto acontecesse, ela se tornaria um deles. E ficaria naquele mesmo lugar até morrer. Não seria tão difícil, pois desde que conseguia se lembrar, enquanto estava naquele hospital, a única coisa que Heather fazia da vida era esperar que ela acabasse. Mas ela mesma mudara o rumo daquele destino. Ela mesma tomara a decisão de que não terminaria sua vida presa naquele maldito quarto. Consequentemente, ao pensar nestes feitos, uma pergunta surgiu em sua mente. Estaria ela fazendo o certo?
Heather prometera a si mesma que jamais seguiria seu coração, pois ele era falho e certamente tomaria decisões levadas pelas emoções e sentimentos. E, bem, os sentimentos podem nos enganar com muita facilidade. Mas não tinha ela agido com o coração quando decidiu partir para Middletown, disposta a descobrir o que realmente acontecera a Emma? Ela estava tomada pela emoção quando decidiu que ajudaria a garota que a tinha atormentado durante todos os anos dos quais conseguia se lembrar com clareza.
Mas não por Emma. E sim por si mesma. Queria se livrar daquelas visões. Daquele tormento. E aí estava a resposta pela qual Heather procurava. Não, ela não havia agido com o coração. Havia agido egoistamente com sua mente.
Tudo o que queria era paz. Para si mesma.
E a única forma de conseguir isto, era conseguindo também a paz de Emma.
Encolhida no canto da sala de estar de sua casa, com lágrimas rolando por seu rosto, Heather respirava profundamente. O telefone tocou em sua bolsa, ao seu lado.
Ela tomou posse do aparelho com pressa, pois poderia se tratar do desconhecido que lhe telefonara. Atendeu a chamada rapidamente, mas uma ponta de decepção tomou conta dela ao ouvir uma voz que ela pôde reconhecer sem muito esforço.
– Heather, está aí? – Alex Montini parecia um tanto preocupado do outro lado da linha.
Heather sentiu-se novamente tomada pelo desespero e receio. Com a voz carregada, ela respondeu:
– Eles... Não... Não me deixarão em paz...
– O quê? Mas o que houve? – ele perguntou. Ela recomeçara a chorar e ele pôde ouvir que ela estava perturbada com algo que havia acontecido. – Estou indo para sua casa. Se acalme.
Heather não se deu ao trabalho de responder. Não fazia diferença. Encerrou a chamada e pousou o telefone no chão, ao seu lado. Colocou os braços ao redor dos joelhos – como costumava fazer quando ainda se encontrava na Jones & Johnson – e deixou que as lágrimas continuassem a cair.
૪
Alex saiu de sua casa com muita pressa. Tratou de trancar a porta e correu o mais rápido que conseguia na direção que o levaria para a casa de Heather. As ruas estavam parcialmente vazias. Quase nenhum som podia ser ouvido. Exceto pelos motores de carros, atravessando ruas mais distantes. Ou insetos noturnos.
Alex seguiu seu caminho em passos muito rápidos até avistar a rua que procurava. Correu ainda mais depressa naquela mesma direção. Deparou-se com a porta aberta. Ele entrou na casa, procurando por Heather com os olhos. Acabou por encontrar uma casa completamente revirada.
Seu aspecto dava a impressão de que um furacão passara por ali minutos antes. Alex ouviu algo e rapidamente seus olhos seguiram na direção do som. Heather estava ali. Encolhida no canto da sala. Cabisbaixa. Os braços ao redor dos joelhos. Ele correu para ela, agachando-se ao seu lado. Cuidadosamente, tentou afastar os braços dela, percebendo então que ela chorava desesperadamente.
– O que aconteceu? – indagou em tom baixo.
Heather levantou o rosto lentamente e, com os olhos aguados, indicou as paredes da sala. Alex virou-se para trás e leu as quatro mensagens ali deixadas em vermelho. Uma em cada parede. Ainda que estivesse surpreso e perplexo, ele não deixara de notar que reconhecia aquela caligrafia.
As letras eram suavemente escritas com certa firmeza, o que era irônico. Todas iguais. Eram perfeitas. Alex sentiu-se tomado por uma impaciência insuportável.
Tornou a olhar para Heather, que ainda chorava no canto da sala. Devia estar apavorada. Voltou a se aproximar dela, vendo que ela abaixara a cabeça mais uma vez, dominada por soluços que a impediam de falar. Calmamente, tomou-a nos braços, aninhando-a com ternura.
– Vai ficar tudo bem. – ele disse num sussurro.
Heather decidiu que não reagiria de modo negativo, pois nem isso conseguia fazer devido àquele terrível misto de sentimentos que agora transitava por sua mente. Receio. Raiva. Suspeita. Agarrou-se ao conforto que os braços de Alex lhe ofereciam naquele momento e ali ficou. Calada. Deixando que as lágrimas caíssem.
Entrar em contato com Heather daquela maneira causou em Alex um súbito sentimento de tranquilidade. Refrigério. Era como se ela tirasse de seus ombros todo o peso que ele carregara durante anos, sem precisar dizer ou fazer coisa alguma. Apenas por estar ali. Perto dele.
A presença dela era como o fim de todo o seu sofrimento e culpa. Desejava poder ficar ali com ela por mais tempo. Mas não podia. Sabia que não.
૪
Trevor Williams sentiu sua cabeça pesar para os lados. Suas mãos doíam, pois algo lhe apertava o sangue, forçando ambos seus braços para trás. Estava sentado em algo que ele constatou ser uma cadeira. Uma cadeira nada confortável. Abriu seus olhos, mas nada pôde ver. Havia algo o impedindo de enxergar. Algo que apertava seu rosto.
Certamente eles o tinham vendado. A venda, entretanto, lhe apertava com muita força, causando nele certo sufoco. Respirou fundo e sentiu um cheiro que não pôde reconhecer. O odor era algo que se aproximava de um misto de terra e mofo.
Ele ouviu passos e começou a se agitar.
Alguém se aproximava. Sentiu uma presença chegando mais perto, em passos precipitados.
– Ora, ora... – soou uma voz. Um tom irônico e debochado. Trevor não fazia ideia de quem se tratava, mesmo que tentasse reconhecer aquela voz. – Vejo que está acordado.
Ele não respondeu, atento ao que a pessoa estava dizendo.
– Mas acho que ainda não dormiu o suficiente, doutor. – o desconhecido emitiu um riso. Trevor sentiu que lhe soltavam os braços e então um breve alívio o invadiu. Os pulsos doíam devido ao que usaram para amarrá-los.
Levou os braços para frente, sentindo-os doloridos. Logo a pessoa puxou um de seus braços, forçando-o a esticá-lo. Trevor tentou – com toda a força que ainda lhe restava – se livrar da mão que o segurava pelo braço esquerdo.
Tentou desvencilhar-se, mas sentia-se demasiadamente fraco. Esgotado. Tentou se esforçar, mas não era um adversário para a pessoa que ali se encontrava. Não agora, no estado em que se encontrava. Mesmo estando impossibilitado de ver onde estava e com quem estava, Trevor pôde sentir sua cabeça dar voltas. Tudo rodava.
Seu braço ainda estava esticado, contra a sua vontade. Ele sentiu algo sendo pressionado contra seu antebraço. Depois foi empurrado para dentro, perfurando sua pele.
Sentiu que lhe injetavam algo direto em sua veia. A agonia era suportável, mas o desespero de não fazer ideia do que estava acontecendo era incontrolável. Trevor se agitou ainda mais na cadeira, tentando se libertar da mão que o segurava pelo braço e daquilo que ele julgava ser uma agulha.
Ele se contorcia, tentando de todas as formas escapar, mas todo o seu esforço fora em vão. Sentiu que a agulha era lentamente retirada de seu antebraço. Um riso soou. Sarcástico. Debochado. Trevor parou de se agitar.
Um cansaço imediato e inesperado tomou conta dele, fazendo sua cabeça pender para frente. Encontrava-se agora ainda mais cansado do que antes. Ele lutou para manter seus olhos abertos por debaixo da venda que lhe apertava a cabeça, mas começou a se sentir vencido.
O que quer que fosse aquilo que haviam injetado nele, estava fazendo com que ele perdesse os sentidos aos poucos. Sua respiração tornou-se mais lenta. Mais fraca. Sua audição começara a falhar. Já não ouvia mais nada. Ou pelo menos não conseguia identificar os sons que ouvia.
Era como uma longa e psicodélica viagem. Fechou os olhos e sentiu como se sua alma flutuasse em alta velocidade por um túnel repleto de imagens distorcidas e sons que não condiziam com elas. Tentou se manter lúcido, lutando contra todas aquelas sensações que de modo involuntário o invadiam.
Pensou em Heather. Em seus indecifráveis e capciosos olhos castanhos que sempre o intrigaram. Desejava com toda a sua alma descobrir se ela estava bem. Se estava viva. Certamente se culparia pelo resto de sua vida se algo acontecesse a ela. Com o rosto de Heather em seus pensamentos, Trevor Williams perdeu seus sentidos.
E claramente aquela não era a primeira vez que desmaiara sentado naquela cadeira. Estava naquele mesmo lugar há muitas, muitas horas. E todas as vezes que voltava a si, alguém rapidamente tratava de colocá-lo para dormir novamente. Era como um interminável pesadelo. Não por estar ali. Sozinho. Sendo constantemente dopado pelas drogas que injetavam em seu corpo. Mas por não ter a mínima ideia de como Heather estava. Por não poder ajudá-la.
Estar com ela naquele momento, cujo qual ele julgava ser o momento em que ela mais precisaria dele.
૪
Rose estava quase pronta para deitar-se. Eram oito horas da noite e ela sentia-se exausta. Vestiu-se com uma longa, porém simples camisola branca e seguiu para a cozinha, decidida a tomar um copo d’água antes de ir ao seu quarto.
Caminhou para a cozinha e não se incomodou com as luzes apagadas.
Também decidiu que não as acenderia, pois seguiria para seu quarto logo depois de tomar seu copo d’água. Aproximou-se da pia e pegou um copo. Abriu a torneira e deixou que a água enchesse o copo que ela segurava logo abaixo.
Em seguida, tomou um gole de sua água gelada e caminhou para a janela. Através dela, ficou observando as ruas iluminadas pelas luzes dos postes. Estavam vazias. Desertas. Era uma noite calma. Especialmente depois do que ela fizera. Não era um grande feito ainda. Mas estava certa de que aquilo daria um fim – ou pelo menos uma pausa – em seu problema.
Seu maior problema naquele momento.
Tomou outro gole de água e sorriu para si mesma. Em breve tudo ficaria bem. Tudo voltaria ao normal.
Foram os sons de batidas à sua porta que fizeram com que ela parasse de pensar. Pousou seu copo sobre a pia da cozinha e caminhou na direção da sala.
Hesitante, Rose se perguntou quem estaria batendo à porta. Não esperava ninguém. Parou em frente à porta da sala e franziu o cenho. A curiosidade falara mais alto, então ela destrancou a porta, abrindo-a lentamente.
Alex estava lá, parado em frente a ela. Sua expressão não era uma das melhores. Rose jamais o tinha visto daquela maneira. Encarou-o com as sobrancelhas arqueadas, esperando que ele começasse a falar.
– Por que fez aquilo? – perguntou evitando fitá-la nos olhos. Ele observava o chão. Sua cabeça estava abaixada e sua voz soava firme e ríspida, num tom de censura. – Por que foi à casa de Heather? Para assustá-la? Por que diabos você fez aquilo, Rose?
Rose abriu os olhos, perplexa. Ele nunca usara aquele tom direcionado a ela. Aquela era a primeira vez. Ela se sentiu incapaz de responder, surpresa com o modo com o qual ele agia agora.
– Ela não tem nada a ver com a nossa relação. Por Deus, deixe-a em paz! – exclamou, erguendo o rosto para encará-la. – O que você fez foi errado. Muito errado.
Ela permanecera calada e Alex não tencionava lhe dirigir mais nenhuma palavra. Olhou para ela mais uma vez. Um olhar indiferente. Apático. Por trás daquele mesmo olhar, porém, havia decepção e uma inesperada raiva.
Ele se deu conta de que era a primeira vez que se sentia assim em relação à Rose. Sua própria noiva.
Alex virou-se e começou a se afastar. Rose não dissera nada. Absolutamente nada. Viu-o ir embora sem olhar para trás e voltou para dentro de casa, fechando a porta.
Não conseguia reagir. A sensação de ciúme misturada a uma pequena quantidade de raiva tornara-se agora um ódio. Um imenso ódio que Rose necessitava libertar através de atos.
૪
Heather estava agora sentada no sofá da sala de sua casa. Alex dissera-lhe que resolveria algo e voltaria na manhã seguinte. Disse-lhe também para telefonar a ele caso algo voltasse a acontecer. Ela começou a compreender o motivo pelo qual Emma confiara tanto nele. Ele realmente inspirava confiança. Parecia sincero em suas palavras e algumas atitudes. Heather certamente confiaria nele cegamente se ele não fosse um de seus suspeitos.
Distraída e desinteressada, olhou ao seu redor. A sala ainda tinha um péssimo aspecto. Ela estava segura de que levaria longas horas para colocar tudo de volta no lugar. Abanou a cabeça negativamente, deixando aqueles aleatórios e não muito importantes pensamentos para trás.
Repentinamente, sentiu uma pressão sobre sua cabeça. Algo que lhe apertava violentamente. Com muito esforço, Heather tentou se manter firme, mas a pressão tornara-se ainda maior, fazendo sua cabeça latejar.
O latejar era agora insuportavelmente forte. Ela começara a sentir dificuldade para respirar normalmente. Era como se um enorme peso estivesse despencando sobre ela, sem parar. Heather sabia que era inevitável. Sabia que não conseguiria evitar que aquilo acontecesse de novo.
Cerrou seus olhos, levando as mãos à cabeça enquanto sua alma, sua essência, era jogada em um poço de confusas imagens e vozes misturadas entre si. Havia uma luz. Era o fim do poço. E Heather sentiu que estava o alcançando. Aproximando-se dele cada vez mais rápido, até chegar à tal luz.
Emma passara todo o intervalo trancada no banheiro feminino. Fechada em uma das cabines, ela passou a mão pela boca e respirou fundo. Sentia como se seu estômago estivesse dando voltas. Mil voltas.
Abaixou a tampa do sanitário e pressionou com força a descarga presa à parede branca do banheiro, deixando que todo o seu café da manhã desaparecesse pelo esgoto. Evidentemente não estava orgulhosa do que tinha acabado de fazer. Mas o alívio que aquela ação passara a lhe proporcionar desde que começara a praticar aquilo era totalmente indispensável. Principalmente em momentos como os quais estava vivendo.
Respirou fundo mais uma vez. Sentiu aquele deleitável e quase milagroso alívio invadir seu corpo. Sua mente. Seu coração e sua alma. Emitiu um sorriso leve e abriu a porta da cabine. Seu coração quase saltou pela boca quando, ao abrir a porta, se deparou com uma colega de classe: Rose Mason.
Emma raramente a via. Na realidade, raramente prestava atenção na presença da garota. Especialmente porque passava a maior parte de seu tempo ao lado de Alex. Sendo assim, nada mais lhe importava. Não quando estava com ele. Rose a encarava com um olhar obscuro. Algo que incomodou Emma.
Ela não soube exatamente o que dizer. Temia que Rose tivesse percebido o que ela acabara de fazer. Não queria ouvir sermões. Não queria que ninguém sentisse pena dela. Pensou em começar a se explicar, mas hesitou. Não havia quaisquer motivos para isso. Rose não era uma amiga. Não era parte de sua vida.
Mas no fundo de seu coração, Emma desejava que a garota não dissesse a ninguém o que acontecera naquele banheiro.
– Desculpe. – Rose disse timidamente. – Não sabia que esta cabine estava ocupada.
– Não está mais. – rapidamente Emma respondeu, esforçando um sorriso. Agradeceu a Deus mentalmente por Rose não ter feito qualquer comentário sequer a respeito do que ela achava que a menina tinha visto ou ouvido. Era um sinal de que, claramente, Rose não havia percebido nada.
Sem dizer mais nada, Emma afastou-se e saiu do banheiro. Seu estômago começara a doer, mas ela decidiu que ignoraria aquilo. Em breve isto passaria. Ouviu o sinal soar. Era hora de ir para casa. Correu para a sala de aula e aproximou-se de sua mesa.
Tomou posse de sua bolsa e se retirou pela mesma porta que entrara. Caminhando pelo corredor principal do colégio, Emma olhou ao redor e sentiu-se aliviada por não ter visto Alex na saída. Ele evidentemente lhe faria perguntas, querendo saber o motivo de ela ter passado todo o intervalo no banheiro.
Muito apressada, ela passou pelos portões da Harrison Brown Academy e tomou seu caminho, rumo à sua casa. Atravessou todas as ruas que faziam parte do percurso que sempre a levava para seu lar. Ao passar por uma calçada que dava às pessoas uma bela e ampla visão do Rio Connecticut, Emma sentiu seu estômago se contrair. Uma forte dor fez com que ela se inclinasse para frente, derrubando seus pertences pelo chão.
O mesmo chão no qual era agora se contorcia tomada pela terrível dor no estômago. Lágrimas de agonia começaram a escorrer por seu rosto. Ela levou ambas as mãos até a barriga, apertando-a, tentando inutilmente conter a dor.
– Ei! – alguém gritou. Ela ouviu rápidos passos se aproximando. – O que você tem?
A voz agora soava bem mais próxima. Estava bem ali. Ao lado dela. Emma respirou fundo várias vezes. A dor subitamente se amenizou. Mesmo sem entender, lentamente ela sentou-se no chão e começou a recolher seus livros e bolsa.
Ao fazer menção de recolher um de seus livros espalhados pelo chão, ela sentiu que uma mão entrava em contato com a sua. Parecia tentar também recolher seu livro.
Instintivamente ela ergueu os olhos e encarou o desconhecido que se encontrava em pé, perante a ela. Ela julgou que ele teria aproximadamente a mesma idade que ela. Possuía cabelos e olhos claros. Uma fisionomia inteligente. Havia uma leve expressão de preocupação em seu rosto.
Emma voltou a recolher seus objetos, colocando-os dentro de sua bolsa. Pôs-se em pé, ainda atordoada.
– Sente-se bem? – o tom da voz dele fez com que Emma concluísse que estava mesmo preocupado.
– S-sim. – respondeu. Colocou a bolsa debaixo do braço e suspirou. – Obrigada.
Ele retribuiu com um sorriso amigável e Emma passou por ele, se afastando apressadamente. Continuou seu caminho. Estava agora receosa. A terrível dor em seu estômago desaparecera. Mas ela se perguntou o que faria caso ela voltasse. Um pesadelo. É isto o que estou vivendo.
O receio tornara-se maior e Emma se perguntou se deveria engolir seu orgulho e pedir ajuda.
૪
Heather sentiu que algo retornava ao seu corpo. E que algo também se esvaía dele. Era como uma troca. Uma troca de informações. De tempos. De almas. Abriu seus olhos e encheu seus pulmões de ar.
Como consequência do que acabara de ver em sua mente, ela quis saber por que Emma lhe mostrara aquilo. Descobriu então que aqueles haviam sido dias horríveis. Dolorosos. Sofridos. Dias aos quais Emma teve de sobreviver sozinha.
Mesmo tendo Alex ao seu lado, ela tinha medo de lhe contar o que se passava em seu interior. Tinha medo de que ele a abandonasse. E caso ele o fizesse, Emma estava certa de que não suportaria.
Era nisto que Heather pensava agora. Era esta a conclusão que ela tirara de suas últimas visões.
Emma havia sofrido. E muito. Antes mesmo de seu assassinato, sua vida já não era mais a mesma. Ela estava se destruindo aos poucos. As pessoas a estavam destruindo. Até que não restara mais nada dela.
Heather soltou um suspiro de lamentação. Então, algo lhe ocorreu. O desconhecido que encontrara Emma no meio da calçada, encolhida no chão devido às dores... Ela não o tinha visto em suas visões antes. Não fazia ideia de quem se tratava. Estava segura de que Emma também não o tinha conhecido.
Ele não havia sido parte da vida dela. Heather constatou que, talvez, ele fosse uma peça importante no quebra-cabeça que ela passara a montar desde o dia em que chegara àquela cidade. Ainda que não fosse uma peça tão importante, Heather o colocaria para junto das peças que ela já havia recolhido. Uma vez que tivesse todas elas juntas, estaria pronta para montar o enigma.
Pronta para descobrir a verdade.
Não só a verdade sobre o assassinato de Emma Connors. Mas também a verdade sobre seu próprio passado.
Heather adormecera ali mesmo, no sofá de sua sala de estar. Lembrava-se de ter tentado lutar contra o cansaço, mas o sono a vencera. Acordou pela manhã, ao ouvir o estridente som de seu aparelho celular. E então se sentiu subitamente desperta, sentando-se no sofá e tomando posse do celular que se encontrava sobre a pequena mesa de centro da sala.
– Alô? Alô? – ela atendeu a chamada em tom de desespero.
– Está na hora de fazer uma viagem. – anunciou a voz irreconhecivelmente ameaçadora. – Uma viagem pelo passado.
– O que está querendo dizer? – Heather perguntou em tom ríspido.
– Começando pelo colégio de onde Emma provavelmente tinha maravilhosas lembranças. – soltou um riso abafado e encerrou a chamada. Heather nem sequer tivera tempo de lhe fazer um pedido... Não. De ordenar que a deixassem falar com Trevor. Tinha de saber se ele continuava vivo. Do contrário não haveria qualquer motivo para seguir com aquela loucura. Rapidamente sua mente voltou ao que o desconhecido acabara de dizer.
O colégio...
Ainda com o celular em mãos, Heather discou alguns números e ficou aguardando. A voz de Alex Montini invadiu o ambiente assim que ele atendera a chamada.
– Heather, o que houve desta vez? – indagou deixando transparecer sua preocupação.
– Querem que eu vá ao colégio.
– Colégio? – ele soava agora indignado. – Mas por quê?
– Eu... Eu não faço ideia. – Heather respondeu. – Mas tenho a sensação de que algo estará esperando por mim. Ou alguém. Pensou assim que terminara de explicar a ele o que estava acontecendo.
– Eu a acompanharei. – declarou. – Sabe que não está sozinha nisto.
Heather não conseguiu conter um sorriso de canto quando ouvira tal afirmação. E rapidamente se repreendeu mentalmente por isso.
– Esteja pronto. Passarei por sua casa antes de tomar meu rumo até a Harrison Brown Academy. – asseverou ela.
– Certo. – concordou Alex.
Heather encerrou a chamada e colocou-se em pé. Tomou o banho mais rápido de toda a sua vida e vestiu roupas limpas. Pensou em comer ou beber algo antes de partir, mas receava que o tempo se esgotasse. Deixou sua casa sem ao menos tomar um copo d’água e colocou-se no banco do motorista de seu carro, logo atrás do volante. Arrancou com seu automóvel bruscamente, seguindo para o caminho que a levaria até a casa de Alex. Chegou ao local, estacionando seu carro ao lado da entrada da casa. Desceu do veículo e caminhou até a casa. Apertou a campainha e ficou surpresa ao se deparar com uma mulher desconhecida. Aparentava estar na casa dos cinquenta anos. Tinha intensos olhos castanho-escuros e cabelos tingidos de preto – provavelmente para cobrir os fios grisalhos –.
– Pois não? – ela disse ao abrir a porta.
– Ahn... – balbuciou Heather, confusa. – Alex está?
– Sim, claro. – a mulher emitiu um sorriso.
– Mãe, preciso ir. – Alex repentinamente surgiu de dentro da casa, passando ao lado da mulher pela porta. – Voltarei a tempo para o jantar. Então não se preocupe.
Ela assentiu e fechou a porta. Alex agora fitava Heather com ansiedade.
– Você está bem?
Heather o encarou por longos segundos e não disse nada, dando um sinal com a mão para que ele a seguisse até seu carro. Entraram ambos no veículo e Heather conduziu o mesmo para a Harrison Brown Academy. O prédio do colégio cujo qual Emma Connors e – ironicamente – todos os suspeitos de seu assassinato frequentavam aparentava um aspecto diferente do qual Heather antes vira em suas visões. Aparentemente ele havia sido reformado. As paredes externas estavam pintadas de cinza e azul. Heather ficou um longo tempo em silêncio, contemplando a fachada do prédio através da janela de seu automóvel.
– Nossa... – admirou-se Alex. – Há muito tempo não passo em frente a este lugar. Está diferente.
Heather se virou para ele.
– Eu sei.
Abriu a porta de seu carro, colocando-se para fora dele. Alex fez o mesmo e Heather travou as portas e janelas com um simples click de seu pequeno controle grudado às chaves.
Caminhou lenta e hesitantemente até a entrada do colégio.
Uma grande placa posta sobre os portões principais dizia o nome do local. Heather parou em frente aos portões. Alex se aproximou e apertou o que evidentemente era um interfone, logo ao lado de um dos portões. Uma voz soou através do aparelho e Alex se apresentou como um ex-aluno do colégio que estava interessado em fazer uma pesquisa a respeito do prédio.
Os portões foram abertos e eles o atravessaram, seguindo para o corredor principal do colégio. Heather conhecera aquele lugar. O tinha visto várias vezes em sua cabeça.
Sentiu um arrepio lhe percorrer o corpo. Olhou ao redor enquanto atravessava um caminho cercado por armários acinzentados e rostos desconhecidos.
Alex parou para dar uma explicação a alguém que parecia ser responsável pelo colégio. Ele caminhou na direção dela minutos depois.
– Temos alguns minutos para ficar aqui. Notou algo de suspeito?
– Não. – ela respondeu em tom muito baixo. Ouviu seu celular tocar e vibrar dentro de sua bolsa. Apoderou-se dele com rapidez, colocando-o próximo à sua orelha direita.
– Você sabe para onde ela ia sempre que se sentia fraca? – perguntou a voz em tom irônico.
A ligação havia sido encerrada antes mesmo de Heather dizer algo em retorno. Encarou o visor de seu celular, atônita. Foi então que percebeu.
Aquela havia sido uma pista. Uma charada.
Para onde Emma ia sempre que se sentia fraca?
O banheiro! A resposta surgiu imediatamente na mente de Heather. Ela olhou para Alex e disse:
– Para o banheiro. Venha.
Ela seguiu o caminho que conhecia devido as milhões de vezes que havia visto aquele prédio durante o que Trevor Williams costumava chamar de alucinações. Alex a acompanhou até o fim do corredor. Viu que ela havia parado em frente a uma porta. Constatou que aquela era a porta do banheiro feminino.
Heather fez um sinal com a mão para que ele a seguisse para dentro do banheiro. Ele hesitou um pouco, mas acabou seguindo-a.
O banheiro feminino da Harrison Brown Academy ainda mantinha o mesmo aspecto de quinze anos atrás. Heather caminhou lentamente por entre as cabines que separavam os sanitários. Alex vinha logo atrás dela, em passos silenciosos e calmos.
Mas Heather parou de andar de repente. Ficou imóvel. Petrificada. Sentira como se algo a chamasse. Um som inaudível a todos os ouvidos, menos aos de Heather. Gélido. Hipnotizante. Incompreensível. Este som vinha de dentro de uma das cabines pintadas de verde-escuro.
Muito hesitante, Heather virou-se para a cabine ao seu lado. Encarou-a com inquisição. A porta estava fechada. O som prosseguia. Era um confuso misto de sussurros e suspiros de lamentação. Heather pousou sua mão contra a porta e empurrou-a para dentro, abrindo-a por completo. Ficou surpresa ao perceber que não havia ninguém lá dentro.
O som havia cessado no momento em que ela abrira a porta da cabine. Alex aproximou-se dela, olhando para o sanitário de aspecto repugnante que se encontrava ali.
– Pelo amor de Deus! – exclamou. – Não há nada aqui. Vamos embora.
Heather não o respondeu. Fixou seus olhos em algo que havia notado. Estava bem atrás do vaso sanitário. Um pequeno objeto branco que se destacava – quase imperceptivelmente – no meio de toda aquela sujeira.
Heather deu passos para dentro da cabine, agachando-se e esticando sua mão para tomar posse do objeto. Com cuidado, ela retirou-o de trás do sanitário.
Era um envelope.
Um envelope como o que encontrara em seu armário anteriormente. Voltou a colocar-se em pé, desta vez com o envelope em mãos, encarando-o, abismada.
Heather abriu-o lentamente e dele tirou algo que a deixou espantada. A imagem retirada de dentro do envelope causara nela uma surpresa e tanto.
Era uma fotografia.
E nela, Emma sorria ao lado do avô, Arthur Connors. Alex também estava boquiaberto. Observou a imagem com atenção. Emma iluminava a fotografia com seu radiante sorriso. O mesmo sorriso do qual ele sentia falta. O sorriso que havia desvanecido em sua mente com o passar dos anos.
Para Heather aquilo era um jogo. Um jogo claro e objetivo. Os autores de todo aquele jogo estavam se remoendo para descobrir quem ela era e por que estava na cidade, disposta a descobrir quem assassinara Emma Connors.
Queriam assistir à sua reação uma vez que ela encontrasse aquela foto. Queriam saber qual era a sua ligação com Emma. A própria Heather não sabia responder aquela pergunta. Então ela teve a impressão de que estava sendo vigiada. Olhos estavam espalhados por toda parte. Não podia confiar em ninguém. Tudo parecia ser uma armação para descobri-la.
Tentou conter sua reação de surpresa, disfarçando-a com indiferença. Virou-se para Alex, dizendo:
– Tome. – entregou a fotografia para ele. – Para que não se esqueça do rosto dela novamente.
Ela passou por ele, saindo da cabine e afastando-se do banheiro, deixando-o sozinho com a imagem de Emma nas mãos. Alex seguiu-a para a saída do corredor principal do colégio. Ele acenou com a cabeça para a pessoa que os tinha recebido e retirou-se do local, seguindo Heather até a saída do prédio.
– O que eles querem dizer com isto? – ele ainda segurava a fotografia em uma das mãos. – Onde querem chegar?
– Eu também preciso de algumas respostas. – declarou ela. – Podemos conversar em outro lugar?
Ele assentiu com a cabeça.
Minutos mais tarde encontravam-se sentados frente em frente a uma cafeteria da cidade. Haviam escolhido uma mesa distante das demais. Heather encarava a mesa de madeira, pensativa. E Alex a fitava com muita cautela e curiosidade.
– Este era o avô dela. – ele tirou a fotografia do bolso de seu jeans e apontou para o homem que sorria junto à Emma. – Arthur Connors.
– Gostaria de saber como eles encontraram isto. – disse ela indiferente.
– Também eu. – Alex suspirou. – Disse-me que quer respostas. Bem, estou disposto a esclarecer todas as dúvidas que puder.
Ela o analisou com desvelo. Mesmo que ele realmente fosse o assassino de Emma, Heather não deixaria de admitir que ele sempre soubera ser convincente. Suas palavras soavam sinceras na maioria das vezes. Seu olhar – apesar de indolente – carregava sentimentos há muitos anos trancados no fundo de seu coração. Era um trabalho difícil não se deixar levar pelo modo como ele falava e agia. Ainda assim, Heather se esforçava ao máximo para não inocentá-lo antes do tempo.
– O que quer saber? – ele indagou. Sua voz tirou Heather de seu transe. Ela pigarreou, constrangida ao notar que estava fitando-o por muito tempo.
– Você sabia o que estava acontecendo com Emma? – perguntou. – Antes de seu assassinato?
– Emma era fraca, Heather. – Alex respondeu naturalmente. – Eu já lhe disse. Ela era sentimentalmente dependente. Eu a amava, de fato. Mas não posso negar que ela era fraca.
– Não a julgava boa o suficiente para você?
– Emma era boa demais para mim. Não foi isso o que eu quis dizer quando mencionei que ela era fraca. – ele argumentou. – Tentei de várias formas afastar dela todos aqueles pensamentos negativos que ela tinha a respeito de si mesma. Eu tentei fazê-la enxergar o quão incrível ela era. – ergueu os olhos para encará-la antes de prosseguir. – E o quanto ela me fazia feliz.
– Então está me dizendo que Emma era negativa. – disse ela em tom inquisitivo.
– Com toda a razão, pois as pessoas a julgavam o tempo todo. – ele desviou seus olhos dos dela. Enfiou a mão no bolso da calça da qual tirou um maço de cigarros e um isqueiro. Apressou-se em acendê-lo. Heather não deixara de notar que as mãos dele tremiam. Assistiu-o dar uma tragada e liberar a fumaça com certa elegância. – E só Deus sabe o quanto eu tentei protegê-la. Mas evidentemente eu falhei. Não só com ela, mas com todo o resto.
– O que está querendo dizer?
– Eu me tornei um fracassado, Heather. – afastou o cigarro da boca e emitiu um sorriso de amargura. – Desde que ela se foi.
– Parece que ela não era a única pessoa sentimentalmente dependente por aqui...
– De fato. – ele respondeu. – Mas eu não era sentimentalmente dependente dela. Aquilo ia muito mais além. Ela me completava de todas as maneiras que se possa imaginar.
Heather começara a se sentir importunada pelo modo como ele falava de Emma. Pela maneira com a qual ele narrava a supostamente feliz história de amor na qual eles haviam sido protagonistas.
– Emma era como um anjo. – ele estava falando. – Por mais clichê que isto venha a soar, ela realmente eliminou toda a dor, toda maldade da minha vida e de meu coração.
Heather abaixou os olhos, incapacitada de encontrar as palavras certas. Se Alex verdadeiramente amava Emma e sentia-se daquela forma por causa de sua morte, Heather se culparia por ter feito um julgamento completamente errado a respeito dele. Mas a suspeita sempre surgia, subitamente, durante todas as conversas que tinham. Heather manteve-se quieta, até sentir que algo pousara sobre sua mão esticada em cima da mesa. Tornara a erguer os olhos. Com sua mão sobre a dela, Alex a fitava com seus intensos olhos negros, esforçando um sorriso.
– Você é a única coisa que mantém Emma viva nos meus pensamentos. – disse-lhe no tom mais sincero que conhecia. – Obrigado por trazê-la de volta.
Heather não compreendera aquela frase. Logicamente Alex estava tentando convencê-la de que suas intenções eram boas. Mas ela não estava segura a respeito disso. Desconfiava de todo o esforço que ele fazia para provar sua inocência a ela. Todavia, o contato dele fizera com que ela sentisse uma colisão entre várias sensações. Um conflito entre inúmeros sentimentos. Sentimentos dos quais Heather vinha fugindo desde o dia em que o vira pela primeira vez – pessoalmente –. O choque de emoções que abalara todo o seu corpo no momento em que sentira a mão dele sobre a sua durara apenas alguns segundos. Curtos, porém gloriosos segundos que teriam feito uma grande diferença se Heather não estivesse à prova de qualquer tipo de afeto.
Voltou à realidade, tirando sua mão debaixo da dele com pressa. Ele a estava tentando enganar. Estava certa disso. E obviamente Heather não permitira que aquilo acontecesse. Ainda assim, precisava dele. A própria Emma o tinha designado para auxiliá-la naquela árdua situação. O que Heather mais desejava naquele momento era colocar um fim em tudo aquilo. Mas para isso, precisaria confiar em Alex.
E aquilo definitivamente não seria uma tarefa fácil.
૪
Jodie Adams acordara já pensando na desculpa que apresentaria ao seu chefe assim que chegasse ao trabalho. Estava atrasada. Muito atrasada. Não soube dizer o que a tinha feito dormir por mais tempo naquela manhã.
Levantou-se de sua cama às pressas ao consultar o relógio preso à parede de seu quarto assim que abrira os olhos. Vestiu um robe cor-de-creme e seus chinelos que se encontravam ao lado da cama, como sempre. Caminhou lentamente para a saída de seu quarto, atravessando o corredor e finalmente alcançando sua cozinha.
Com os olhos semicerrados devido à grande quantidade de sono que ainda tomava conta de seu corpo, Jodie abriu a geladeira e tirou dela uma embalagem de leite. Despejou-o sobre um copo e tomou todo o leite em três goles rápidos. Depositou o copo sobre o balcão da cozinha e virou-se para trás, pronta para colocar a embalagem de volta na geladeira.
Seus olhos se abriram completamente. Sua respiração cessou. Um gigantesco espanto a invadiu, até atingir o fundo de sua alma. O coração parara de bater subitamente. Era como se o tempo tivesse congelado.
A figura que agora se encontrava perante a ela tinha o corpo unanimemente pálido. Suas roupas estavam todas encharcadas.
Seu olhar era umbroso, sinistro, melancólico. Jodie surpreendeu-se ainda mais ao ver que ela avançava um passo em sua direção.
Sem esboçar qualquer tipo de reação em seu rosto, com os olhos vidrados no que via, Jodie lentamente começou a recuar seus passos. Um. Dois. Três. Fez menção de dar um quarto passo para trás, mas seu pé encontrara algo no chão.
Algo que fez com que ela se desequilibrasse.
Seu corpo foi projetado para trás em alta velocidade. Uma das últimas coisas que sentira antes de perder a consciência foi a forte colisão entre sua cabeça e o balcão da cozinha.
E então tudo escurecera. Jodie sentiu-se submersa pelas trevas.
Depois, não sentiu mais nada.
– Ainda há muitas perguntas em minha cabeça. – Heather bebericou um pouco do café que havia pedido ao garçom. – Emma está presente em minha vida desde que consigo me lembrar, mas... – olhou para baixo. – Eu não sei tudo sobre ela.
– Eu estou aqui para lhe dar todas as respostas que puder. – Alex respondeu acendendo o quarto cigarro durante aquela conversa.
– Vai acabar se matando se continuar fumando deste jeito. – asseverou ela, indiferente. Ainda assim, sentia-se profundamente incomodada com a fumaça.
– Bem, um dia todos nós vamos morrer, não é mesmo? – disse-lhe com ar sonhador e um sorriso no canto dos lábios.
Heather rolou os olhos e soltou um breve suspiro. A voz dele tornara a soar. Desta vez, em tom sério.
– O que quer saber a respeito de Emma?
– Na realidade, quero saber sobre esta cidade. A cidade na qual ela vivera durante toda a sua vida. – explicou ela. – Eu não sei, mas... Algo me diz que há alguma coisa errada com essa cidade. Com as pessoas que vivem aqui.
– Obrigado pela parte que me toca. – ironizou Alex dando uma tragada em seu cigarro.
– Não brinque comigo. – Heather estreitou os olhos para fitá-lo com seriedade.
– Eu não estou brincando, Heather. Longe de mim a intenção de fazer isto. – argumentou. – Se quer saber sobre a cidade em si, há uma pessoa que poderá ajudá-la e, embora eu quisesse muito que fosse, esta pessoa não sou eu.
– A quem se refere? – indagou ela com ansiedade.
– Ao padre Thomas. – respondera ele rapidamente.
Os olhos de Heather brilharam de curiosidade. Ela piscou firmemente antes de fitá-lo novamente. Não reconhecia aquele nome.
– Por que o julga capaz de me ajudar?
– Ele vive nesta cidade há vários anos. Sabe tudo a respeito dela. Conhece todas as pessoas que vivem aqui. E, obviamente, está a par de tudo o que acontece com elas.
– Onde posso encontrá-lo?
– Nossa Senhora de Czestochowa. – ele apagou o cigarro sobre a mesa. – É uma igreja. Talvez a mais velha de toda a cidade.
Heather guardou aquelas informações em sua memória instintivamente. Nossa Senhora de Czestochowa. Padre Thomas.
– Tenho certeza de que ele poderá lhe dar qualquer informação sobre a cidade. Entretanto, não sei se ele será capaz de lhe dar informações pessoais a respeito de algumas pessoas.
– Por que não?
– É contra sua religião. – Alex disse com convicção. – Ainda mais se forem segredos ditos em confissão.
Heather o fitou com perplexidade. Por um instante se perguntou se Alex Montini era uma pessoa religiosa. Aquilo seria talvez a maior ironia de todas, se ele viesse a ser o assassino de Emma. Por fim, respirou fundo e terminou de beber seu café. Estava muito doce, mas Heather não se importou.
– Irei procurar por ele. – colocou-se em pé bruscamente, tomando posse de sua bolsa. – Vamos?
Ela olhava para ele na expectativa de que ele a acompanhasse mais uma vez. Alex levantou os olhos para encará-la, mas não se pôs em pé junto dela.
– Eu preciso falar com Rose. – explicou ele.
– Eu entendo. – Heather parecia desapontada por um momento. E Alex detestou a si mesmo por isso.
– Digo... É claro que estarei lá com você. Podemos nos encontrar em frente à igreja antes de você falar com o padre, se quiser. – ele sugeriu gentilmente.
– Tudo bem. – ela concordou lançando a ele um sorriso de gratidão. Deixando algumas notas sobre a mesa, Heather partiu da cafeteria deixando Alex para trás. Ajeitou-se no banco do motorista de seu automóvel e arrancou rumo à igreja de Nossa Senhora de Czestochowa. Ficou surpresa ao encontrar um prédio inteiramente moderno, com a fachada refeita em um estilo contemporâneo. Deixou seu carro estacionado logo em frente à igreja. Saltou para fora com sua bolsa em mãos, trancando as portas com seu pequeno controle.
Seguiu para a entrada da igreja em passos hesitantes. Olhou ao redor. As ruas pareciam vazias, o que era confuso, pois o céu ainda estava claro e a luz do sol irradiava o asfalto.
Uma súbita brisa vinda da direção do rio bateu em seus cabelos, fustigando seu rosto, fazendo-a sentir uma agradável sensação de alívio e liberdade.
Fechou os olhos e sorriu para si mesma. Mas seu sorriso se desmanchou em seus lábios em questão de poucos segundos. O rio está tentando me enganar. Pensou. Não sou uma mulher livre. Estou presa aos meus próprios pesadelos.
Havia apenas uma saída para conseguir sua liberdade. E um dos passos a serem dados para se chegar àquela saída era procurar pelo padre Thomas. Desistindo de esperar Alex aparecer, Heather encarou as portas fechadas da igreja.
Pousou suas duas mãos sobre elas, abrindo-as lentamente, sem hesitar.
Deparou-se com uma igreja vazia. Escura. Repleta de bancos de madeira em tom envelhecido. O lugar exalava um desagradável cheiro de mofo.
Heather passou seus olhos por todos os cantos. Aparentemente o padre Thomas não estava ali. Ela avançou seus passos, seguindo para o grande corredor cercado pelos bancos. Olhando ao redor, Heather sentiu a incômoda sensação de que não estava sozinha. Levou ambas as mãos aos ombros, como se abraçasse a si mesma, ao sentir um gélido arrepio por todo o seu corpo.
Seguiu caminhando até o fim do longo e um tanto sombrio corredor, passando por todos os bancos da igreja.
– Padre Thomas? – ela chamou por ele.
Sua voz ecoou em resposta. Ao ouvir o som de sua própria voz, Heather sentiu uma estranha onda de angústia invadir sua alma.
Um riso soou, também ecoando. Inocente. Aterrorizante. Desconhecido. Heather virou-se para trás. Não encontrou nada. Nem ninguém.
O riso voltara a soar. Seu tom era infantil, porém melancolicamente aterrador. Olhou ao seu redor mais uma vez. Estava completamente sozinha. Ou pelo menos aparentava estar.
Então se perguntou de onde vinham aqueles risos. Seriam eles apenas frutos de seu desespero? Heather sentia-se confusa e ao mesmo tempo aturdida.
– Quem está aí? – arriscara perguntar. Ninguém lhe respondera. Ouviu o eco de sua própria voz pela segunda vez. O riso tornara a soar. Mais alto. E ironicamente mais alegre.
– Você não a trará de volta... – desta vez um sussurro soara no ambiente, ecoando. Ecoava também na mente de Heather. – Nada a trará de volta...
Heather começou a girar ao redor, procurando com os olhos a pessoa que articulava aquelas palavras.
– Os mortos não voltam... – dizia a inebriante e ameaçadora voz. Heather tentou seguir a direção do som, mas não conseguia ver ninguém. Não soube dizer de onde vinha aquela voz.
– Os mortos não podem voltar...
– Apareça! – exclamou Heather em tom muito alto. O eco seguido de sua voz tornara-se atormentador. – Apareça, desgraçado!
– Ela jamais voltará... – a desconhecida voz sussurrava suavemente, causando também um eco que se espalhava pelos quatro cantos da igreja. – Você sabe disto... Você sabe...
– Não! – protestou.
– Sabe o que aconteceu a ela naquela noite...
– Não! Não! – Heather levou ambas as mãos, cobrindo suas orelhas. Queria evitar aquelas agonizantes afirmações. Queria que elas parassem. Queria que a voz se calasse.
– Você sabe o que aconteceu...
– Pare! – suplicou. Lágrimas de desespero começaram a escorrer por suas faces.
– É por isso que ela escolheu você...
– Deixe-me em paz! – Heather descobriu-se gritando no meio da igreja vazia. Já não conseguia conter as lágrimas que escapavam incontrolavelmente de seus olhos. Ela girava ao redor, com as mãos cobrindo os ouvidos, seguindo o som com os olhos.
– A verdade... Você conhece a verdade, Heather... Você sabe o que aconteceu...
– Não! – gritava ela. Sentia-se arrebatada por uma imensa onda de desespero e angústia.
– Deixe-a ir, Heather... – a voz lhe sussurrava com suavidade. – Ou irá se juntar a ela.
Heather interpretara aquilo como uma ameaça. A última frase não havia sido um sussurro. Era, de fato, uma ameaça. A voz soara firme. Determinada. Convicta.
O riso voltara a soar. Mais alto. Mais estridente. Heather sentiu seus ouvidos arderem. Sua cabeça rodava. E o riso prosseguia. Olhou ao redor mais uma vez. O riso tornava-se cada vez mais insuportável de se ouvir. Era um verdadeiro tormento. Uma tortura.
De repente, viu as portas da igreja se fecharem. O estrondo das portas sendo fechadas ecoou por toda a igreja. Heather correu para as portas, desesperadamente tentando abri-las de novo. Mas era impossível. Pareciam trancadas por fora.
O medo começara a invadir Heather. Virou-se para trás. Sentiu sua boca secar. Seu coração batia descompassado. Seus olhos estavam arregalados, em busca de uma saída.
– Saia da cidade... – o sussurro tornara a invadir o ambiente. Heather já não suportava mais aquela frase. Tinha ouvido aquilo inúmeras vezes.
– Me deixe em paz! Me deixe em paz! – gritou em um apelo. Seus gritos podiam ser ouvidos do lado de fora.
– Heather! – ouviu seu nome do outro lado das portas. Virou-se para elas rapidamente, tentando abri-las. Inexplicavelmente, elas não se encontravam mais trancadas.
Ao abri-las, Heather se deparou com Alex Montini. Havia confusão em seus olhos e um desconhecido ao seu lado.
Seguindo seu primeiro impulso, Heather se lançou para ele, jogando os braços ao redor do pescoço dele, destroçada pelos soluços.
– Meu Deus, o que... O que houve? – o sujeito que ali se encontrava assemelhava-se a um padre.
Padre Thomas parecia confuso. Alex não respondeu, colocando os braços ao redor de Heather, aninhando-a contra si.
– Querem... Querem me enlouq... – ela encontrava-se incapaz de falar, tomada pelas lágrimas que não cessavam.
– Está tudo bem agora. – disse ele em tom baixo, tentando acalmá-la. Uma inesperada comoção pareceu abalar todo o seu corpo ao sentir que Heather estremecia em seus braços.
Era frágil e agora estava completamente vulnerável, algo que Heather sempre evitara. E algo que Alex sempre tivera curiosidade em presenciar.
Mas vendo-a em tais circunstâncias, ele sentiu-se comovido e teve a impressão de não conseguir mais ocultar o que estava claramente óbvio. O que sentia em relação à Heather Stevens era algo muito próximo do que sentira há quinze anos. Sentimentos similares direcionados a pessoas diferentes.
A infeliz diferença era que jamais poderia segurar Emma nos braços novamente. Contudo, Heather estava mais próxima do que nunca. Bem ali.
Tremendo e soluçando como uma criança desesperada. Alex desejou que jamais pudesse soltá-la.
Que jamais pudesse deixá-la ir embora.
૪
A desconhecida voz masculina que tencionava soar ameaçadora parecia falar com alguém ao telefone. Ainda com os olhos vendados, dominado pela forçada escuridão, Trevor Williams voltara a si. Todavia, tentou não se agitar. Estava certo de que eles voltariam a drogá-lo assim que notassem que ele havia recuperado sua consciência. Manteve-se calado. Imóvel.
Com a cabeça pendendo para frente, ele tentou ouvir o que a voz dizia, mas os sons pareciam chegar distorcidos aos seus ouvidos. Como se fossem cortados no percurso. Sentiu que uma presença se aproximava cautelosamente.
– Sua garota tem coragem, doutor. – disse a voz em tom irônico. – Será uma pena ter de estragar aquele rostinho.
– Ouse encostar um dedo nela... – Trevor Williams levantou o rosto num gesto desafiador, tomado por uma fúria que até então não havia experimentado. – E se arrependerá do dia em que nasceu.
– Mas vejam só! – exclamou o sujeito, soltando uma gargalhada. – Parece que alguém acaba de acordar. Teve bons sonhos? – o tom de sua voz tornava-se mais irônico a cada palavra que articulava. – Aposto que sim. Ou vai negar que não sonha em tê-la em sua cama? – inclinou-se para se aproximar dele, falando-lhe em tom baixo. – Não negue que nunca imaginou como seria beijá-la, tê-la em seus braços e possuí-la como nenhum outro homem jamais o fez. – o desconhecido segurava-o pelo queixo, o forçando a ouvir suas provocações. – É... Eu posso imaginar... Tocar aquela pele tão suave e macia... Ela deve ser uma gata selvagem na cama, não é?
Trevor se desvencilhou da mão que lhe apertava o queixo e cuspiu no rosto da pessoa que lhe falava de Heather naquele tom sujo. Ouviu o desconhecido soltar outra gargalhada.
– Tudo bem. – disse. – Você pediu por isso.
O indivíduo voltou a soltar um dos braços dele, injetando-lhe algo que fez com que Trevor voltasse a se sentir ainda mais sonolento. Sua cabeça girava sem parar. Já não conseguia manter seus olhos abertos.
Sentiu todo o seu corpo pesar para os lados. Sua cabeça doía violentamente. De modo involuntário, tentando lutar contra os efeitos da droga que haviam lhe injetado, Trevor Williams voltara a adormecer chamando por Heather.
૪
Alex Montini explicara ao padre Thomas que voltaria para falar com ele o mais breve possível. Preocupado com Heather, ele a colocou no carro. Tomou a liberdade de guiar o carro dela com a própria sentada ao seu lado, no banco do passageiro. Heather ainda sentia-se incapaz de falar, de explicar o que havia acontecido naquela igreja.
Em silêncio, ela parecia observar algo pelos vidros do veículo. Sentiu o automóvel parar. Alex desceu do mesmo, dando a volta e abrindo a porta para que ela também descesse do carro. Estendeu-lhe uma mão e colocou-a de pé. Com muita cautela, ele a conduziu para dentro de uma casa.
Não demorou muito para que Heather percebesse que estava na casa dele. E pelo que pôde notar, não havia mais ninguém presente.
– Acho que tiveram de sair. – comentou Alex.
Segurando-a pela mão, ele lentamente a guiou pelas escadas. Chegaram ao seu quarto e Alex colocou-a sentada na beira de sua cama. Consequentemente ele se sentou na poltrona ao lado e pôs-se a fitá-la.
– O que houve, Heather? – inquiriu.
Heather mantinha-se cabisbaixa. Suas mãos começaram a tremer. Possuía um aspecto perturbador. Sua voz saíra como um sussurro estrangulado quando disse:
– Não aguento mais...
– O que lhe fizeram? – ele se inclinou para frente e tomou ambas as mãos dela entre as dele. – Diga-me.
– Vão acabar me enlouquecendo...
– Não. – Alex fitava-a nos olhos, procurando uma forma de acalmá-la. – Ei... Não se preocupe. Eu estou aqui.
– Querem me destruir. – ela ainda falava em voz baixa. Seus olhos estavam amedrontados e ela começara a suar frio. – Como fizeram a Emma.
– Nada lhe acontecerá. – Alex se aproximou dela, depositando-lhe um beijo na testa. Heather sentiu todo o seu corpo se abalar, como se recebesse uma súbita descarga elétrica.
Levantou os olhos para encará-lo e viu que ele lentamente aproximava seu rosto do dela. Sem deixar de fitá-lo nos olhos, Heather pôde sentir a respiração dele colidir contra a sua.
Alex esperava que ela tomasse a primeira ação, mas ela certamente não o faria. Entretanto, o magnetismo cumpriu o seu papel e Alex se aproximou ainda mais, até que seus lábios pudessem tocar os de Heather. Ele a beijou intensamente, vendo-a corresponder colocando os braços dela em seus ombros.
Pousou as mãos sobre a cintura dela, enquanto ela deixava-se cair sobre a cama, puxando-o para si. Inclinado sobre o corpo de Heather, Alex apressou-se em tirar a camisa e jogá-la em qualquer canto do quarto. O olhar de Heather caiu imediatamente sobre ele, admirando seu corpo de músculos rijos enquanto ele apressadamente se livrava do restante de suas roupas.
Ainda posicionado sobre o corpo dela, Alex tomou uma das mãos dela e pousou-a sobre seu coração, fazendo-a sentir seus batimentos acelerados.
– Você consegue sentir isso? – perguntou ele num sussurro. – Isto é o que você trouxe de volta à minha vida.
Heather não pôde responder. Do caloroso desejo de segundos atrás, ela agora transitava para a angústia que a invadia aos poucos. Alex tornara a se inclinar sobre ela, beijando-a enquanto descia as mãos para as pernas dela, apertando e arranhando.
Sentiu que ele lentamente subia as mãos por debaixo de seu vestido, tencionando despi-la com muita calma. Contudo, Heather ainda ouvia a frase que ele acabara de lhe dizer. Ela ecoava repetidamente em sua mente. Isto é o que você trouxe de volta à minha vida.
E então lembrara-se das palavras que lhe sussurraram na igreja.
Você não a trará de volta... Nada a trará de volta...
Ela voltou à realidade do momento que vivia ao sentir as mãos de Alex lhe arrancar o vestido cuidadosamente, seguido da única peça que vestia por debaixo do mesmo. Sentiu os lábios dele deixando um rastro de beijos por toda a extensão de seu corpo, o que deveria causar nela sensações cujas quais ela ainda não conhecia. Ou não se lembrava.
Mas ao contrário disto, Heather sentia-se friamente indiferente. Entorpecida. Tudo o que sentia naquele momento era o terrível peso da culpa cair sobre sua cabeça. Remorso. Agonia.
Nada a trará de volta...
A voz ainda soava em sua mente. Nítida.
– Eu quero você, Heather... – Alex sussurrou-lhe ao ouvido e, com o corpo formigando de desejo, fez menção de penetrá-la suavemente.
Antes que ele pudesse concluir seu feito, Heather erguera os olhos para encará-lo. Subitamente, foi como se algo a projetasse para dentro de um túnel infinito. Um túnel constituído por vozes e imagens. Todas mescladas. Confusas. Impossíveis de se distinguir umas das outras.
Cenas vieram à sua cabeça em extrema velocidade. Como um filme sendo avançado por um controle remoto.
⁑
O corpo de Emma coberto de feridas... Cortes... Queimaduras... Outro corpo encontrava-se sobre o dela. Tinha a intenção de machucá-la... Humilhá-la... Vozes soavam ao redor da cena... Rindo. Debochando.
Os gritos desesperados que não foram ouvidos.
As lágrimas de terror escorrendo de seus olhos completamente inchados devido às pancadas que levara.
Repentinamente, Emma virara o rosto para um dos lados. Seus olhos se encontraram com outros olhos. Sua voz soou como um gemido sofrido enquanto um corpo desconhecido a violava com brutalidade e os outros ao redor se divertiam com o que viam.
Ajude-me, Heather...
⁑
– Não! – protestou Heather, assim que sua essência voltara ao seu corpo. Seu grito soara alto. Tão alto que Alex a fitou com os olhos arregalados, numa expressão de surpresa e espanto. Ela ficou em pleno silencio, sem mover um único músculo, olhando para ele. – Não... – murmurou.
– Meu amor, eu prometo não machucá-la. – ele tentou argumentar.
Heather sentiu que a agonia que antes percorria por seu corpo agora a sufocava por completo. Sentia-se totalmente incomodada com as circunstâncias nas quais se encontrava.
Ela não respondeu.
Interpretando aquele gesto da maneira errada, Alex afastou-se dela. Heather sentou-se na cama procurando por suas roupas que se encontravam misturadas aos lençóis. Procurou também por seu juízo, que certamente havia se perdido pelo caminho.
– D-desculpe. – balbuciou ela.
Alex ainda estava sentado na cama, de costas para ela. Parecia completamente frustrado. Respirou fundo e se virou para olhá-la.
– Está tudo bem. – garantiu ele. – Não se preocupe.
Heather vestiu-se com pressa e colocou-se em pé. Olhou para ele mais uma vez, sentindo um remorso quase tão grande quanto o qual sentiria caso tivesse se deixado levar por suas emoções minutos atrás.
Sem dizer mais nenhuma só palavra, Heather virou-se e se retirou do quarto. Desceu as escadas e saiu pela mesma porta pela qual havia entrado com Alex.
Avistou seu automóvel e caminhou até ele, abrindo a porta e se colocando no banco do motorista. Respirou fundo, passando as mãos pelos cabelos. Estava segura de que havia feito a coisa certa. Estivera prestes a cometer um erro. Uma traição à memória da garota que havia lhe designado para ajudá-la a encontrar a paz.
Estava agora certa de que quase vivera um momento que não pertencia à sua vida. Um amor que não era seu. Mas então o que lhe pertencia? Heather contava com toda a fortuna deixada pelo falecido esposo. Isto era tudo.
Ela não possuía lembranças de seu próprio passado. Tampouco uma família. Foi quando ela se deu conta de que estava completamente sozinha.
Agora compreendia perfeitamente como Emma se sentira dias antes de seu assassinato.
Solitária.
Trevor Williams voltara a si depois de mais um longo intervalo de tempo. Intervalo cujo qual ele passara dormindo contra a sua vontade. Abrira os olhos. Ainda encontravam-se vendados.
A venda ao redor de seu rosto apertava-lhe a cabeça, causando-lhe uma terrível enxaqueca. Todo o seu corpo estava dolorido. Seus pulsos ardiam, pois a corda que os prendia para trás da cadeira lhe apertava o sangue violentamente.
A voz que antes lhe falara em tom irônico e debochado agora proferia palavras de ameaça em tom autoritário – aparentemente – ao telefone.
– O prazo se esgota hoje. – dizia a voz. Parecia estar dando instruções, ordens. – Hoje apagaremos aquela garota. Sim.
Trevor sentiu a angústia e o desespero invadirem-no. Tentou com todas as suas forças se manter imóvel, temendo que eles voltassem a lhe injetar aquilo que fazia com que ele adormecesse. Há exatos dois dias ele não se alimentava.
Raramente o dono da única voz que ele ouvira desde que chegara àquele local lhe proporcionava o alívio de matar sua sede em um copo com água. Sentia-se demasiadamente fraco. Não apenas pelas drogas que haviam injetado em seu corpo desde então, mas também pelo sono. Pela fome. Pelo desespero que o consumia violentamente.
Todavia, precisava se acalmar. Precisava pensar. Agir. Sua mente funcionava de modo lento devido às circunstâncias nas quais se encontrava.
Ainda assim, com muita paciência, tentando conter a angústia que – aos poucos – não o deixava se concentrar, Trevor começara a procurar por uma solução. Uma saída. E então percebeu que era isto. Era este o primeiro passo a ser dado. Sair dali.
૪
Heather encarou seu telefone, segurando-o por debaixo do volante de seu carro. Não dormia de verdade há dois dias. Tampouco conseguia se alimentar normalmente. Dois dias...
Se deu conta de que o prazo acabaria naquela mesma noite. Eram 16h17min. Ela constatara isto ao consultar o visor de seu celular. Sentia-se completamente desesperada, ainda que não deixasse isso transparecer. A angústia a sufocava. Ainda mais ao perceber que o telefone não tocara há muitas e muitas horas.
Tentou imaginar o que eles estariam planejando desta vez. Claramente eles haviam dado a ela um prazo maior para brincar com sua mente. A fotografia no banheiro do colégio e os sussurros na igreja, causando em Heather o medo e o terror, eram o entretenimento daquelas pessoas. Das pessoas que provavelmente fizeram parte do assassinato de Emma.
Heather culpava estas mesmas pessoas pela vida miserável que vinha vivendo desde que conseguia se lembrar. Pelos ataques que sofria sempre que Emma entrava em contato com ela. Pelos anos que passara trancada na Jones & Johnson. Por tudo o que vivera desde então. Heather guardara dentro de si um ódio imenso que agora precisava encontrar uma forma de escapar antes que acabasse consumindo-a.
Causando em Heather uma breve sensação de alívio, o som do celular soou. Alto e estridente. Sem pensar duas vezes, ela atendeu, posicionando-o contra sua orelha. Não disse nada, esperando que a pessoa do outro lado da linha se manifestasse primeiro.
– Seu prazo se esgota hoje. – assegurou o desconhecido.
– Sei disso. – Heather respondeu com convicção.
– Já sabe o que tem de fazer caso queira seu médico de volta. – afirmou a voz. – Terá de sair da cidade.
– Bem sabe que aceitarei o que me propor desde que poupe a vida dele. – ela declarou firmemente. – Ele não tem nada a ver com tudo isso.
– Nos vemos dentro de uma hora, na saída da cidade. Esteja com suas malas prontas. – ordenou. – Não haverá volta.
Heather não respondeu e a ligação foi encerrada. Ele havia lhe dado as mesmas instruções antes. Antes de adiar o encontro. Antes de lhe proporcionar mais dois dias de prazo. Heather temia que a pessoa adiasse aquele encontro mais uma vez. Se antes ela já se sentia desesperada, agora não sabia mais o que fazer. Ou o que pensar.
Encarou seu telefone mais uma vez. Instintivamente discou alguns números e ficou à espera.
– O que houve? – a voz de Alex Montini soou do outro lado da linha.
Heather não soube como pedir sua ajuda. Não depois do que ocorrera entre eles. Sentia-se imensamente desconsertada. Estava certa de que o tinha magoado com sua atitude. Pela primeira vez, Heather receava ter causado dor em alguém. Com a voz trêmula e receosa, ela declarou:
– Preciso de você.
Ela ouviu Alex se sentir incomodado com aquela afirmação. Precisava dela pelo menos tanto quanto ela dele. Porém, em situações diferentes. Ouviu-o pigarrear e soltar um suspiro curto e rápido.
– Diga-me o que aconteceu.
– Me encontrarei com eles hoje à noite. Em uma hora. – explicou ela. – Preciso de você, Alex.
Desta vez foi Heather quem se sentiu incomodada ao ouvir o som da própria voz dizendo o nome dele.
– Estão armando algo para cima de você. – asseverou Alex. Sua voz era ríspida, deixando claro para Heather que ele não estava muito feliz com ela. – Está louca se pensa em ir ao encontro deles.
– Talvez eu esteja. – disse. – Mas não permitirei que a vida de outra pessoa seja envolvida em algo que só diz respeito a mim.
– Entretanto quer que eu a acompanhe. – ele pareceu ironizar o que ela havia dito. – Está envolvendo a minha vida nisto.
– Você mesmo disse que me ajudaria. – ela o fez se lembrar de sua promessa. – Olhe, se está com raiva de mim, eu entenderei. Mas não deixe que isto nos impeça de descobrir quem assassinou Emma. – Heather dizia com severidade. – Foi ela quem me mostrou que eu podia confiar em você. Não me decepcione agora que eu finalmente decidi fazer o que ela me pediu.
Alex sentiu uma onda de surpresa o invadir. Em outras palavras, Heather acabara de afirmar que confiava nele. Aquelas haviam sido as palavras mágicas para que ele deixasse sua frustração se esvair, novamente dando lugar ao afeto que tinha por ela.
– Estamos juntos nessa, Heather. – ele declarou em tom firme. – Pode contar comigo.
Heather emitiu um sorriso, aliviada. Tudo daria certo. Tinha de dar certo. Apertou o aparelho celular com força ao ouvir a decisão de Alex. Ele a ajudaria. Emma tivera razão, afinal de contas.
Alex Montini era uma boa pessoa.
– Estarei passando por sua casa quinze minutos antes de partir para a saída da cidade. – avisou ela.
– De acordo. – Alex respondeu, encerrando a ligação.
Heather respirou fundo, preparando-se para o que viria a seguir. Em uma hora as coisas seriam colocadas às claras. Em uma hora ela estaria frente a frente com o possível assassino de Emma.
A pessoa a quem ela culpava por todos os solitários e confusos anos que passara trancafiada em uma clínica psiquiátrica.
A resposta para todas as suas perguntas.
૪
Preso a uma desconfortável cadeira que o forçava a se manter sentado, Trevor Williams decidiu-se. Estava na hora de agir. A voz que ele já vinha ouvindo ao longo dos dois dias que se seguiram voltara a soar.
– Heather Stevens... – disse a voz. – Heather McLean... Foi internada em um hospital psiquiátrico em Hartford há quinze anos. Não é de se admirar que ela aja como maluca. – soltou uma risada de deboche. – Então você a conheceu neste hospital psiquiátrico, não? – o sujeito aproximou-se de Trevor, proferindo palavras com o melhor de seu sarcasmo. – Quantas vezes você se divertiu com ela na cama daquele hospital?
Trevor Williams entendeu então que poderia fazer um jogo com a mente de seu sequestrador. O sujeito provavelmente estava sob pressão, com a mente recheada de idéias sem coordenação alguma.
– Deve estar molhando as próprias calças de tanto medo, suponho eu. – ele fez um comentário aleatório esperando causar uma reação diferente no desconhecido que lhe falava.
– De que diabos está falando? – perguntou a voz elevando seu tom.
– Heather já sabe quem é o assassino de Emma Connors. – declarou com falsa convicção. – São vocês quem estão nas mãos dela e não o contrário.
– Impossível! – disse o homem rindo nervosamente. – Não há como ela saber.
– Sinto lhe informar, mas, sim, há um modo de saber. E ela já sabe. – explicou o médico com toda a calma. – Ela os entregará à polícia muito em breve.
– Está dizendo besteiras. – ele afastou os passos e Trevor pôde ouvir que ele andava de um lado para o outro, deixando óbvio que estava ficando transtornado.
– Heather tem vocês nas mãos. – Trevor prosseguiu seriamente, vendo seu jogo de palavras dar certo. – Ela sabe exatamente o que aconteceu. E sabe quem foi o autor de toda aquela crueldade.
– Não! – ele ouviu o sujeito fazer uma objeção. – Ela não sabe de nada. Não se lembra de nada. Não pode se lembrar.
Trevor percebera a ênfase colocada na última sentença. Mas tinha de continuar usando toda a sua persuasão para ver até onde o sujeito era capaz de chegar.
– Heather sabe muito bem quem assassinou Emma.
Sentiu que a pessoa aproximava-se rapidamente, ameaçando agredi-lo. E então ele interveio:
– Faça isto se quiser! Mas todos vocês que estão envolvidos naquele homicídio pagarão por seus crimes. Nada impedirá Heather de entregar vocês.
– Filho da mãe! – exclamou a voz.
Trevor manteve-se calmo, atento a cada som emitido pelos movimentos da pessoa que lhe falava, pois não podia ver com seus olhos vendados.
Lentamente, ele sentiu que o desconhecido avançava para ele novamente, como um animal à espreita. Estava na hora de reagir. Antes que o punho do sujeito lhe acertasse o rosto, Trevor reuniu todas as forças que ainda lhe restavam e colocou-se em pé.
Com as mãos ainda presas à cadeira, ele girou seu corpo bruscamente, seguindo seus instintos e a direção do som. Numa fração de segundos, sentiu que o móvel atingira algo.
Ouviu um urro de dor.
Seguiu a direção do som novamente, avançando a cadeira – ainda presa às suas costas – para a pessoa que agonizava. Atingiu-lhe com a cadeira cinco vezes, até que os sons cessaram. Rapidamente, sem pensar muito, pois não havia tempo, Trevor recuou, correndo em alta velocidade até colidir de costas contra uma parede.
Sentiu a cadeira se despedaçar, não se importando com a dor que sofrera devido ao impacto.
Apesar de ainda se encontrar com os braços amarrados para trás, agachou-se e passou com os dedos pelo chão, tateando às cegas até encontrar algo que ele julgara ser um pedaço de madeira. Constatou que este era áspero e pontiagudo. Com muito cuidado, porém apressado, Trevor passou com o pedaço de madeira pelas cordas que lhe apertavam o sangue.
Livrando-se completamente das cordas, ele retirou a venda de seus olhos. Um tecido sujo e com aspecto terrivelmente nojento. Jogou-o para longe.
Ainda que o sol já estivesse se pondo, Trevor sentiu uma quase insuportável ardência em seus olhos ao sentir a luz os invadindo aos poucos. Há dois dias não via nada. Olhou ao redor. O lugar parecia um galpão abandonado. As paredes e o chão estavam imundos. Havia prateleiras vazias por toda parte.
À sua frente jazia o corpo de seu sequestrador.
Morto ou apenas desacordado, o desconhecido não fazia mais diferença. Não naquele momento. Trevor sabia que não havia tempo para se recuperar ou pensar. Não havia tempo para se preocupar consigo mesmo. Tinha de avisar Heather. Avisá-la de que o suposto encontro entre ela e os sequestradores era na verdade uma armadilha. Tencionavam matá-la.
Ao lembrar-se desta possibilidade, Trevor Williams pôs-se em pé segurando-se à parede. Com muita dificuldade, pois ainda sentia-se demasiadamente fraco e atordoado, ele retirou-se do local onde passara os dois piores dias de toda a sua vida. Saindo por uma entrada sem portas, Trevor deparou-se com inúmeras árvores e plantas.
Os animais noturnos invadiam o ambiente com seus sons. Sem hesitar, ele adentrou o que mais parecia uma floresta, procurando por uma saída o mais rápido possível. Não podia parar. Não podia olhar para trás. Tinha de chegar à cidade a tempo.
De dentro do galpão que ele acabara de deixar, o corpo estirado no chão movimentou-se. Cautelosamente, com um breve movimento de seu braço, retirou um aparelho celular do bolso traseiro de sua calça. Apertou um único botão e segundos depois declarou:
– Apaguem-na.
૪
Heather seguiu com seu automóvel até a residência de Alex Montini. Buzinou duas vezes, aguardando qualquer sinal de que ele a acompanharia. Poucos minutos depois o viu sair de sua casa, trancando a porta por fora.
Seus passos eram rápidos e ansiosos, entretanto ele demonstrava um pouco de nervosismo em seus olhos. Um nervosismo que Heather não deixara de notar. Alex abriu a porta do carro, instalando-se no banco do passageiro ao lado dela.
– Pronta? – indagou.
– Lhe faço a mesma pergunta. – disse Heather sem olhar para ele.
– Acho que sim. – assegurou firmemente. – Está quase na hora.
Sem responder, Heather girou a chave na ignição e pisou no acelerador. O carro arrancou bruscamente, mas ela manteve a velocidade controlada. Ainda lhe faltavam quinze minutos. Quinze minutos para chegar a uma conclusão. Talvez o fim de todo aquele mistério.
O mistério que envolvia tanto a morte de Emma Connors quanto a vida da própria Heather. Estava completamente segura de que uma vez que desvendasse o enigma por trás do assassinato de Emma, tudo faria sentido em sua vida. Desvendaria também os segredos de seu passado. Havia um tumulto de sentimentos correndo por suas veias.
Desejava acabar de uma vez por todas com toda aquela angústia. E antes de tudo, queria ter certeza de que Trevor estava vivo.
Dominada pelo receio e também pela inquietude, Heather segurou o volante de seu carro com força, fixando seus olhos no asfalto conforme seguia pelas ruas que a guiariam para a saída de Middletown.
A saída da cidade estava vazia. Sombria. O perfeito cenário para uma cena de horror. Fora exatamente isto o que Heather pensara ao chegar ao local. Estacionando seu carro ao lado da estrada que levavam as pessoas para fora da cidade, Heather bufou.
Pegou sua bolsa de couro preta de onde tirou seu telefone. Consultou as horas no visor. Faltavam dois minutos. Respirou fundo, deixando transparecer sua ansiedade.
– Creio que chegamos a tempo. – comentou Alex com muita calma. Sua calma causara ainda mais angústia em Heather. Ela virou-se para olhar para ele.
– Faltam dois minutos.
– Heather, isto é realmente loucura. E você sabe disso. – ele disse de forma severa.
– Não importa. – respondeu ela. Parou de fitá-lo, observando a estrada pelos vidros de seu carro, apreensiva. – Nada mais importa. Estou sozinha. Concluiu em seus pensamentos. Tiraram-me tudo o que eu tinha. Tudo em que eu podia me agarrar. O único em quem eu realmente podia confiar.
Em meio a estes mesmos pensamentos que natural e involuntariamente eram encaminhados para sua mente, Heather chegou à irônica conclusão de que não seria capaz de confiar em Alex Montini. Não como confiava em Trevor Williams.
E mais irônico ainda era o fato de que ele costumava ser o único a aliviar toda a sua ansiedade e seu pânico. E agora era por causa dele que ela sentia aquelas mesmas sensações. Tentou se manter calma, respirando fundo várias vezes.
Mas todo aquele esforço fora por água abaixo assim que ela ouviu o som de um motor. Um veículo se aproximava. Pelo espelho retrovisor ela avistou faróis acesos avançando em sua direção. Heather começou a se agitar no banco do motorista. Sentiu que uma mão pousava sobre seu braço. Virou-se para encarar Alex.
– Fique calma. – ele discretamente levantou a jaqueta que cobria o bolso de sua calça.
Nele encontrava-se um revólver. Os olhos de Heather estavam arregalados, surpresos. Foi quando ela descobriu o motivo pelo qual, na última vez em que tencionaram se encontrar com os sequestradores, Alex havia lhe pedido para passar em sua casa antes. Para que ele pudesse pegar algo.
Agora Heather sabia perfeitamente do que se tratava e descobriu-se indignada.
– Por quê? – ela perguntou.
– Porque não confio neles. – respondeu em tom rude. – E você também não deveria confiar.
Heather soltou um suspiro, dizendo:
– Nós não precisaremos d... – o som de um tiro soou. Alto. Estrondoso. Assustador.
Antes que a bala atingisse o vidro traseiro do carro de Heather, ela sentira que alguém a empurrava para baixo. O carro estremecera, mas os vidros não haviam se estilhaçado. Estes eram blindados. Heather levantou a cabeça devagar.
Alex viu os olhos dela esbanjarem surpresa e terror. Com muito esforço, Heather tentava coordenar as idéias enviadas rapidamente para sua cabeça.
– Você está bem? – Alex perguntou. Havia forçado ela a se abaixar assim que notara que algo estava prestes a acontecer.
Sem dar a ele uma resposta, Heather girou a chave e tomou posse do volante de seu carro, afundando seu pé no pedal do acelerador. Seu carro arrancou de forma bruta, causando um estridente som nos pneus.
Seguiu para a estrada à sua frente sem raciocinar propriamente. Estava desesperada. Verdadeiramente desesperada. Atingindo o limite máximo de seu veículo, Heather respirava ofegante. Suor escorria por seu rosto, misturando-se às lágrimas de pânico que começaram a brotar de seus olhos.
– Não vão me pegar... Não vão me pegar... – repetia ela. Havia um olhar insano em seu rosto. Alex a observava falar sozinha enquanto guiava em extrema velocidade pela estrada escura. Ele virou-se para trás. O veículo de onde a bala partira os estava seguindo.
– Heather! – gritou na esperança de salvá-la de seu choque. – Heather, precisa me escutar!
– Não! Não! – ela soluçava aos gritos, sem deixar de conduzir seu automóvel. – Não vão me pegar! Não!
Alex não soube que atitude tomar. Seu impulso era de telefonar à polícia, mas lembrou-se do que levava consigo. Pousou a mão sobre o revólver, retirando-o de seu bolso.
Virou-se para trás, apoiando as mãos sobre o banco do carro, segurando a arma. Suas mãos tremiam. Jamais fizera aquilo antes. Apontou para onde o motorista do carro provavelmente estaria sentado. Era impossível ter certeza, pois o veículo que os seguiam também possuía vidros escuros.
Alex fechou os olhos e respirou fundo, lentamente pousando seu dedo sobre o gatilho. Heather ainda falava consigo mesma, como se fizesse uma prece à sua própria mente. A voz dela misturou-se com o som do motor acelerando, fundindo-se também com o som do carro que seguia logo atrás.
A mente de Alex tornou-se uma verdadeira confusão. Ele não conseguia encontrar seu foco. Prendeu a respiração e depois deixou que o ar escapasse, deixando-se cair sobre o banco.
– Não posso... – suspirou.
– Não é você quem eles querem. – disse Heather. Seus olhos estavam vidrados na estrada. Suas mãos apertavam o volante com brutalidade. Seu pé estava fincado no pedal do acelerador. – Eles querem a mim. – subitamente ela jogou seu corpo para o lado, mantendo apenas uma mão no volante.
Com a outra, ela puxou a maçaneta da porta do lado do passageiro. Alex sentiu o desespero tomar conta dele assim que a porta se abriu com o carro em movimento.
– Saia. – ordenou ela, voltando a colocar ambas as mãos sobre o volante. – Saia agora!
– Heather, está louca. Não posso fazer isso.
– Não deixarei que coloquem outra vida em risco por minha causa. – afirmou seriamente. – Saia!
– Não! – ele respondeu. Estava pelo menos tão assustado quanto ela evitava demonstrar.
– Saia desse maldito carro! Agora, Alex! Saia! – ela virou-se para ele e viu que ele emitia um gesto negativo com a cabeça, incapaz de responder. – Merda! Saia agora!
– Não, Heather!
Heather tomou ar e violentamente jogou seu corpo contra o dele, projetando-o para fora do carro. Sem olhar para trás, Heather seguiu com seu veículo, acelerando ainda mais. Era uma corrida. Uma verdadeira corrida da morte.
Ela constatou pelo espelho que o carro continuava a segui-la. Sentiu um breve alívio. Era realmente ela quem eles queriam. Ouviu o estrondo de outro tiro soar logo atrás dela. Seu corpo se abalou com o susto.
Contudo, o tiro não atingira seu veículo.
Ela seguiu acelerando até que outro tiro soou. Sentiu-se envolta em pleno pânico assim que percebeu que não conseguia mais manter o controle de seu carro. Haviam acertado um dos pneus. Tentou desesperada e inutilmente manter seu automóvel na pista, mas este acabou rodando bruscamente. Heather viu imagens e ouviu sons ao mesmo tempo. Todos misturados.
Aquilo tinha uma breve semelhança com o que ela sentia toda vez que Emma entrava em contato com ela. O automóvel girou no ar, como um ballet mortal, capotando uma. Duas. Três vezes no total, parando no acostamento da estrada.
Consequentemente o veículo que vinha logo atrás parou. Estacionou-se próximo ao carro de Heather que agora se encontrava completamente destruído. Do veículo desconhecido uma figura surgiu, descendo do mesmo.
Aproximou-se do carro de Heather com um sorriso no rosto. Seus passos eram silenciosamente cautelosos. Chegou mais perto, até alcançar o lado do motorista do carro.
Passou com seus olhos por todo o interior do veículo destruído. Inesperadamente concluiu que este se encontrava vazio.
Sem esboçar qualquer tipo de reação, o indivíduo retirou um telefone celular do bolso. Apertou um botão e aproximou o aparelho de sua orelha.
– A garota continua viva. – anunciou. – Desapareceu.
Adquirindo uma cicatriz toda vez que atravessava um caminho completamente fechado por árvores e galhos, ela não parou de correr. O corpo encontrava-se cansado. Exausto. Seus ossos doíam. Todos eles.
A escuridão desfavorecia sua visão. O único som que podia ouvir era o de seus passos mesclados com os sons dos animais que provavelmente ali habitavam. Com muito esforço conseguia manter seu foco. Seus olhos abertos. Lágrimas escorriam incontrolavelmente por estes mesmos olhos, umedecendo seus lábios secos. O gosto era salgado.
A adrenalina corria por suas veias na medida em que avançava seus passos. Rápidos. Como se flutuassem pelos ares. A última vez em que se sentira assim fora em sua fuga.
O maior golpe de sorte de toda a sua vida.
Mas ela não conseguia mais continuar. Lentamente seus passos foram diminuindo o ritmo. Com o coração palpitando violentamente em seu peito, Heather respirou ofegante enquanto apoiava-se ao tronco de uma velha árvore.
Pousou ambas as mãos sobre os joelhos, inclinada para frente, tentando recuperar todo o fôlego necessário para prosseguir. Olhou para trás. Não havia ninguém. Então ela parou por um segundo para raciocinar. Colocando suas ideais em ordem, Heather percebeu que havia escapado da morte mais uma vez.
As lembranças do último acontecimento vinham à sua mente com clareza. Nitidez. Ela ainda podia sentir a terrível sensação de que morreria em questão de segundos. Mas aquilo não acontecera, de fato. Heather lembrava-se claramente do que fizera para enganar a morte mais uma vez.
Ter saltado para fora do veículo enquanto ele ainda girava no ar, capotando várias vezes em seguida, havia sido um feito e tanto. Os ferimentos causados por tal ato, por muita sorte ou talvez milagre, não eram tão graves quanto os que ela provavelmente sofreria caso continuasse dentro do carro.
Ela não soube dizer se o motorista do carro que vinha logo atrás havia visto seu corpo sendo projetado para fora do veículo milésimos antes da primeira volta no ar ser executada involuntariamente pelo automóvel.
De qualquer forma, estava certa de que agora eles procuravam por ela. Precisava continuar. Precisava encontrar uma saída.
Sem hesitar, Heather ergueu o rosto e respirou fundo. Tomou ar e continuou seu caminho sem rumo.
૪
Jodie Adams abriu seus olhos com muita dificuldade. Concluiu que se encontrava deitada no que provavelmente era uma cama. A luz penetrou seus olhos como facas, causando nela uma péssima sensação de desconforto.
Agitou-se lentamente e sentiu que alguém se aproximava. Com o rosto inclinado para olhá-la, Frank Palmer exibia uma expressão indiferente em seus olhos. Observou-a com desdém e declarou:
– Bem, vejo que acordou.
– O-onde estou? – indagou. O ato de falar causou nela uma terrível ardência na garganta seca.
– Hospital. – respondeu Frank sem parecer se importar muito. – Disseram que você caiu. Bateu com a cabeça. Sente-se bem?
Um breve flashback foi executado na mente de Jodie. Ela lembrava-se. Jamais esqueceria o olhar que lhe fora lançado quando sofrera o acidente em sua casa. Um olhar repleto de rancor. Ódio. Sede de vingança.
Era isto o que aquele olhar havia transmitido uma vez que se encontrara com o olhar de Jodie. Ela sentiu um breve arrepio ao lembrar-se daquele olhar.
– Estou bem... – disse num sussurro. A voz estava fraca. Ela estava fraca. Subitamente uma questão completamente aleatória surgiu em sua cabeça. Frank notou que o olhar cansado de Jodie emitia agora curiosidade e suspeita. – Onde você esteve? – inquiriu ela.
Ela viu a expressão de Frank se alterar. Ele franziu a testa e fixou seus olhos nos dela.
– Fui visitar um amigo em uma cidade vizinha.
– Que amigo? – Jodie perguntou. Ainda havia confusão em seus olhos.
– São negócios do meu pai, tá legal? – argumentou nervosamente. – Era um sócio dele, amigo da família. Tive que representá-lo. Meu pai esteve ocupado.
– Está cuidando dos negócios da família agora? – ironizou ela. Tentou rir para frisar ainda mais sua ironia, mas sentia-se demasiadamente fraca para tomar tal atitude.
– Olha só, isso não lhe diz respeito. – Frank soltou mais uma de suas grosserias. – Preciso ir. Vejo que ter vindo até aqui para me certificar de que você estava bem foi uma péssima idéia. – ele afastou-se da cama onde ela estava deitada. E então Jodie observou-o indo embora, batendo a porta do quarto do hospital.
Sentindo-se confusa, porém receosa, Jodie sentiu uma pequena ponta de remorso. Aquela havia sido uma das poucas vezes – ou talvez a primeira – em que Frank demonstrara-se preocupado com ela. Talvez não devesse ter agido de forma tão arrogante com ele. De qualquer modo, já estava feito.
૪
Heather encontrou abrigo em uma pequena construção abandonada no meio de todo aquele matagal. O local encontrava-se em estado crítico.
Era do tamanho de um cômodo comum. As paredes estavam quebradas e sua pintura descascando. Heather concluiu que alguém abandonara aquele lugar há muito tempo. Perguntou-se como e por que alguém construiria algo no meio de todas aquelas árvores. Bem, não fazia diferença. Deixou-se cair no chão assim que adentrou o local. Sua respiração era pesada.
Ela arfava enquanto tentava controlar os batimentos acelerados de seu coração. Estava escuro. Muito escuro. Era uma noite fria e evidentemente nada agradável.
Vestindo um jeans que lhe caía perfeitamente bem e uma blusa simples, Heather tremia de frio sentada no chão daquela construção. Aparentemente não havia mais ninguém ao redor. Sentiu o alívio tomar conta de seu corpo e de sua mente. Todavia, voltar para a cidade seria um tiro no escuro.
Quem quer que fosse a pessoa que havia a perseguido, certamente procuraria por ela em sua casa. Ela tinha de se esconder. Salvar a si mesma. Não podia morrer agora. Não antes de descobrir toda a verdade. A verdade sobre Emma e sobre seu próprio passado. Encolhida em um canto, tentando se manter aquecida, Heather decidiu que ficaria naquele mesmo lugar até se decidir. Pela manhã ela tomaria uma decisão.
Envolveu os braços ao redor dos joelhos e abaixou a cabeça. Estava cansada, muito cansada. Os olhos começaram a pesar, fechando-se lentamente. Deixou-se cair no sono. Ali. Sentada no meio da mais plena escuridão. Escuridão que, de certa forma, servia de consolo e abrigo para o desespero de Heather. Era irônico. Ela detestava a escuridão. Sentia-se sufocada toda vez que se encontrava em um ambiente escuro.
Não desta vez.
Caindo no sono, deixando sua mente vazia e seu coração congelado, Heather mergulhou em seu subconsciente. O descanso, entretanto, durou pouco tempo. Fora uma questão de poucos minutos.
Ela ouvira um som que soara próximo de onde ela estava. O mesmo som seguia repetindo-se lentamente. Várias vezes. Ela logo julgou saber do que se tratava. Passos! Pensou. Estava agora totalmente desperta e atenta. Encontraram-me!
Silenciosamente Heather colocou-se em pé. Encostou-se à parede logo atrás e manteve-se cautelosa. Estava se aproximando. Ela nada podia ver. O escuro que minutos antes a confortava agora era seu inimigo.
Calada e hesitante, Heather manteve-se firme com as costas coladas à parede. Os passos aproximaram-se. Foram chegando mais perto. Mais próximos.
Iluminada pela luz fraca e pálida vinda do céu, uma sombra surgiu em frente à entrada da velha construção. Heather tentou recuar, mas aquele era seu limite. Continuou colada à parede, como se quisesse atravessá-la.
A sombra aproximava-se dela, vindo lentamente em sua direção. Cambaleando pelo caminho, a pessoa causou a súbita curiosidade de Heather.
– Por favor... – sussurrou a voz na escuridão.
O som soara fraco, quase inaudível. Contudo, Heather teria reconhecido aquela voz entre outras milhões. Cautelosamente ela começou a caminhar na direção do som. Seus passos eram mudos. Bem calculados, pois estava hesitante.
– Dr. Williams? – arriscou perguntar. Temia a resposta que viria em seguida. Um longo silêncio se prolongou, mas este logo foi quebrado.
– Oh, meu Deus... É você, Heather...?
Ela concluiu suas teorias. Um sorriso – resultado de um misto de alívio e surpresa – surgiu no rosto de Heather. Ela correu para ele, seguindo o som de sua voz e precipitou-se para pousar ambas as mãos sobre seus ombros.
Ao chegar tão próxima de Trevor, Heather finalmente teve plena certeza de que era ele, pois as leves luzes dos céus iluminavam o ambiente. Diante do rosto ferido do médico condizendo com todo o resto – resultado das agressões que sofrera –, Heather fitou-o com perplexidade. As mãos antes pousadas em seus ombros rapidamente subiram para o rosto dele.
– O que lhe fizeram? – indagou.
E sua voz soou trêmula, deixando transparecer todas as emoções que haviam sido acumuladas durante os últimos dias. Comovido com a reação dela, na emoção do reencontro, Trevor se esforçou para emitir um sorriso cansado.
Levou suas mãos para as mãos dela que se encontravam pousadas suavemente sobre seu rosto machucado.
– Eu... Eu ficarei bem... – ao notar o tom de voz fraco no qual ele falava, Heather precipitou-se em ajudá-lo a se acomodar.
– Venha. – colocando um dos braços dele ao redor de seus ombros, ela o guiou para dentro da construção abandonada. Em lentos e calmos passos, ela colocou-o sentado no chão, encostado à parede.
– Fique aqui, está bem? – disse Heather pacientemente. – Vai ficar tudo bem.
– Heather...
– Não fale. – interrompeu ela. – Precisamos de luz.
Heather colocou-se a pensar, procurando por uma solução. Logo uma resposta veio à sua mente. Ela virou-se para Trevor que se encontrava agora sentado no chão daquele local envolto em trevas e assegurou:
– Sei o que fazer. Você fica aqui.
– Não... Heather...
– Fique aqui. – declarou ela mais uma vez.
Trevor se calou. Tentar vencer uma discussão com Heather era perda de tempo. Sem hesitar, Heather saiu e, deparando-se com todas as árvores e plantas que envolviam o ambiente em que eles estavam, seguiu um caminho por entre as mesmas.
Ali perto ela recolheu tudo o que precisaria. Buscou por galhos de diversos tamanhos e mato seco. Retornou à velha construção minutos depois. Trevor ainda estava lá. Sentado. Exausto. Fraco. Heather posicionou os itens recolhidos no meio do chão e aproximou-se do médico.
– Quem estava com você?
– Eu... Eu não... Não sei, Heather...
– Não se lembra dos rostos? Das vozes?
– Estive com... Os olhos vendados... Todo o tempo... – ele tossiu violentamente. – Não vi... Nada...
Heather encarou-o aturdida. Imaginou os horrores que o haviam forçado a viver durante aqueles dois dias.
– Eu sinto muito. – disse ela.
– O que você... O que você trouxe...? – ele perguntou ainda com muita dificuldade.
Heather voltou à realidade de um súbito. Voltou-se para os galhos e matos secos. Juntando sua idéia ao ato, Heather tentou fazer com que uma fogueira se acendesse.
Sua tentativa fora em vão. Não havia qualquer combustível que pudesse abastecer o fogo. Trevor lentamente levou sua mão até o bolso da calça. Tal ato fez com que todo o resto de seu corpo estremecesse devido às dores.
– Heather... – chamou ele. Ela virou-se para encará-lo e encontrou-o com o braço estendido. – Meu celular não... Não funciona... Mas... A bateria...
Ela compreendera de imediato. Rapidamente apoderou-se do aparelho, retirando a tampa traseira e em seguida a bateria. Posicionou a bateria embaixo do mato seco e começou a fazer movimentos entre um pedaço de madeira e uma pedra.
O fogo demorou a surgir, mas depois de muitas tentativas, ele subiu alto, iluminando todo o ambiente num clarão inesperado, porém necessário. Heather afastou-se do fogo e colocou-se sentada ao lado de Trevor, recostando-se à parede.
– Deu certo. – sorriu pra si mesma. – Parece que você conhece mesmo todas as soluções, doutor.
Pelo fato de estar há dias sem comer ou dormir, todas as idéias enviadas para a mente de Trevor eram lentamente processadas. Como um conta-gotas enchendo o mar.
Após o primeiro impulso do reencontro entre eles, ele finalmente lembrou-se de seu propósito.
Virou-se para ela bruscamente, dizendo:
– Querem... Matá-la...
– Sim, eu sei. Mas acho que a sorte está ao meu lado. – esforçou outro sorriso. – Bem, ao nosso lado.
Ficaram ambos em silêncio. Seus olhares permaneceram fixos um no outro. Uma troca de emoções aconteceu. Algo que Heather não soube explicar. Afeto. Um sentimento mútuo.
Após um longo tempo fitando-o, Heather saiu de seu transe e observou a fogueira improvisada que acabara de fazer.
– Eu quero me desculpar. – disse de repente. – Na última vez em que nos vimos eu agi de forma totalmente irracional. Você tinha razão. Isto está ficando perigoso demais para mim.
Trevor juntou as forças que ainda estavam presentes em seu corpo e mente à sua infinita paciência antes de respondê-la.
– Nada é perigoso demais para você. – afirmou ele. – É muito corajosa. Talvez seja por isso que eu a admire tanto. Sempre admirei.
Heather não respondeu de imediato. Ficou observando o fogo por um longo intervalo de tempo. E então as palavras soaram antes que ela pudesse controlá-las ou filtrá-las em sua cabeça.
– Senti sua falta.
Trevor julgou ter ouvido mal, mas não ousou pedir para que ela repetisse o que acabara de afirmar. Ela certamente o negaria. Observou-a por segundos.
– E eu a sua.
A mente de Heather estava um verdadeiro tumulto. As emoções que até então ela vinha evitando ou tentando guardar dentro de si estavam escapando por entre seus dedos, fazendo com que ela perdesse o controle do que sentia e pensava. Sentiu os olhos começarem a ficar aguados. Tentou não piscar, temendo que uma vez que começasse a chorar, não fosse capaz de parar.
Mas a pressão que descia cada vez mais sobre sua cabeça era incontrolável. A pressão que ela colocava sobre si mesma, forçando-a a tomar quaisquer que fossem as atitudes necessárias para atingir seu objetivo. Para resolver todos aqueles problemas e finalmente seguir uma vida normal. Uma vida normal... Jamais terei uma. Estou marcada para sempre. Marcada por um passado que desconheço.
E então, antes que ela pudesse tentar manter seu autocontrole, as lágrimas começaram a escapar, escorrendo por seu rosto. As lágrimas tornaram-se soluços. Insopitáveis soluços. Mas algo fez com que estes cessassem. Algo que Heather não ouvira.
O silêncio que respondia às suas lágrimas era aterrador. Olhou ao seu lado e Trevor Williams parecia inconsciente. Aproximou-se dele, inclinando-se e chacoalhando-o pelos ombros de forma desesperada.
– Doutor, acorde! Acorde! – ela estava começando a ficar aflita, mas toda a sua angústia desapareceu quando ele voltou a si.
– O q... O que houve...? – sua voz agora soava mais fraca do que antes.
Ela deixou um suspiro de alívio escapar e afastou suas mãos dos ombros dele. Seus olhos se abriram por completo, assustados, assim que ela constatou que havia sangue em ambas as suas mãos.
– Vamos ter de cuidar de você antes de qualquer coisa. – asseverou ela.
Tornou a se inclinar sobre ele e, com mil cuidados, tratou de lhe desabotoar a camisa branca coberta por sujeira e parciais manchas de sangue. Afastou o tecido de um dos ombros dele, mas ficou atônita ao notar que o ferimento que sangrava se estendia por toda a extensão das costas dele.
Aquilo acontecera após a colisão proposital que ele causara entre a cadeira na qual estava preso e a parede. Transtornada, Heather observou os ferimentos, sentindo o remorso cair sobre ela.
– Me deixe ver isso. – aquilo soara como um pedido, mas ela não esperou que ele respondesse. Cuidadosamente retirou-lhe a camisa e depositou-a ao seu lado, no chão. Heather forçou-o a se sentar logo à sua frente, concluindo que os ferimentos eram, de fato, graves, levando em consideração as circunstâncias em que se encontravam.
– Merda... – Heather bufou. – Precisamos fazer algo antes que se infeccionem.
– Estou bem... – ele respondeu. Seu tom de voz entregava todos os pontos. Definitivamente ele não estava bem. E não ficaria bem se continuasse naquela situação. Heather fechou os olhos, tentando – a muito custo – encontrar uma solução para o problema que o destino lhe apresentara desta vez. Lembrou-se subitamente de algo que acontecera quando ainda estava na Jones & Johnson. Algo que ela ouvira. Uma conversa entre duas enfermeiras e um dos psiquiatras daquele hospital.
Heather teve a inesperada vontade de agradecer aos céus por ter se lembrado de algo tão aleatório e, ao mesmo tempo, tão necessário para aquele momento. Com os olhos semicerrados, Heather tomou posse da camisa de Trevor mais uma vez, e então posicionou seu rosto próximo ao tecido.
Com os lábios entreabertos, receosa, ela deixou que sua saliva escorresse para a camisa manchada. Em seguida, aproximou-a dos ferimentos que literalmente cobriam toda a área das costas dele, pressionando o tecido contra os cortes ainda abertos. Ela o viu estremecer de dor assim que entrou em contato com sua pele esfolada.
– O que... Está fazendo? – ele quis saber.
– Bem, uma vez eu ouvi dizer que saliva acelera a cicatrização e evita infecções. – explicou com o tecido ainda pressionado contra as costas dele.
– Acho que... Não sou o único a conhecer todas as... Soluções... – ironizou ele, apesar do estado em que se encontrava.
Heather emitiu um riso breve e espontâneo. Ele virou-se para ela e a fitou diretamente nos olhos, irradiando admiração.
– É bom tê-la por perto... De novo...
Afastando o tecido molhado do corpo dele, ela não respondeu, dominada pelo que vinha tentando evitar. Negar. Ignorar. Mas já não conseguia cumprir isto com a mesma facilidade de antes. Até mesmo sua mente – sempre fria e indiferente – estava começando a trair seus princípios.
Ela tentou desviar seu olhar do dele, mas não pôde. Os cabelos louros em desalinho e os olhos azuis muito abertos que sempre pareciam inquisitivos para Heather, faziam agora com que ele parecesse menos formal do que de costume. E, automaticamente, Heather descobriu-se profundamente atraída. Tinha de admitir que era bom tê-lo por perto também.
Não apenas naquele momento, mas em todos os outros.
Era ele quem sempre aliviara toda a sua aflição e agonia. E então, de forma súbita, Heather percebeu o quanto sua vida havia mudado por causa dele. Fora o primeiro e o único a não desistir dela desde o dia em que se conheceram. Havia insistido nela. Se esforçado para ajudá-la.
Aquilo havia sido o combustível necessário para que Heather tomasse a atitude de escapar do hospital onde vivera por tantos anos.
Consequentemente aquele afeto mútuo que nenhum dos dois queria admitir havia se tornado algo muito mais além de uma relação entre um médico e sua paciente.
Heather não soube dizer quem havia sido o primeiro a agir. Sentiu que ele tomava suas mãos entre as dele. Trêmulas e geladas. Assim como as da própria Heather. Estava nervosamente ansiosa e nada hesitante. Algo que resultou em sua indignação. Mas aquilo não durara muito. Não depois que Trevor aproximara-se dela, selando seus lábios com os dele.
Ela permaneceu imóvel. Calada. Quando se deu conta, estavam em um beijo intenso. Um beijo que revelara tudo aquilo que nem ele e nem ela eram capazes de dizer. A sensação que aquilo causara em ambos era de que o mundo lá fora não existia mais. Tudo estava bem. Heather já não se sentia mais nervosa quando Trevor colocou ambos seus braços ao redor de sua cintura, intensificando o beijo entre eles. Sem quebrar o beijo, eles caíram no chão, rindo.
Heather não se deu ao trabalho de sentir-se incomodada com o chão frio e sujo ou com o ambiente em si. Sentiu o calor do corpo forte e magro de Trevor sobre o dela, enquanto ele inclinava-se sobre ela, não deixando seus lábios se separarem dos dela por nenhum segundo sequer. Heather podia sentir as mãos dele em sua cintura e cada vez mais elas desciam, até que chegaram às calças dela.
Despindo-a com delicadeza, porém apressadamente, Trevor afastou seu rosto do dela, admirando o sorriso de satisfação que ela levava nos lábios. Livrou-se das roupas dela e do restante de suas próprias roupas, afastando as pernas dela com cautela. Fitou-a nos olhos, como num pedido, esperando que ela aprovasse o que viria a seguir.
Com os olhos semicerrados, Heather o observava cheia de expectativa e desejo. Era o sinal de que Trevor precisava. Ao entrar nela, ele deslizou as mãos por todo o seu corpo, parando sobre suas coxas, dando leves arranhões. E foi quando ela se entregou por completo a ele. Então ele voltou a se inclinar sobre ela e a beijá-la, arrancando gemidos de prazer da parte dela.
– Você me ama, Heather? – ele sussurrou com os lábios encostados no rosto dela.
Não estava certo de que era cedo ou tarde demais para perguntar. Receava que aquela pergunta a fizesse se sentir incomodada. Heather tinha os olhos fechados e mantinha um sorriso nos lábios. Não era necessário que ela respondesse. Com aquele gesto de entrega e a expressão estampada em seu rosto, Heather estava dizendo sim à pergunta que ele lhe fizera.
Naquela noite – a noite que antes tinha tudo para ser a pior de suas vidas –, amaram-se com lentidão, num misto de paixão e ternura.
Assim sendo, Heather se deu conta de algo. Alex Montini teria lhe possuído na noite em que ela o rejeitara por causa do que ocorrera em sua mente. Mas Trevor Williams a fazia se sentir verdadeiramente amada.
Amava cada parcela de seu corpo. Amava-a por ser quem ela era, não porque ela trazia a ele lembranças de outro alguém. Sentia-se completa com ele. Em todos os sentidos.
As frases compostas apenas por gemidos apareceram de novo. Os dois se perderam naqueles sons tão desordenados e ao mesmo tempo cheios de prazer.
Ele a fitou intensamente quando percebeu que o prazer a tinha atingido como uma súbita explosão. Contemplou a expressão no rosto de Heather antes de se saciar dentro dela, decidido a se recordar daquela imagem para o resto de sua vida.
Trevor deixou-se cair sobre ela, beijando-a mais uma vez. Ela manteve os braços ao redor dele, apertando-o contra si com o cuidado de não tocar as feridas em suas costas. Então ele retirou-se dela lentamente, deixando-se deitar ao lado dela no chão.
Estavam ambos cansados. Suados. Exaustos. Heather aproximou-se dele e Trevor a envolveu em seus braços.
Observando o fogo que queimava o mato seco e os galhos que ela havia juntado, Heather sentiu seus olhos pesarem pela segunda vez naquela noite. Sem hesitar, ela caiu no mais profundo sono.
Ao se certificar de que ela dormiria confortavelmente, Trevor também se permitiu cerrar os olhos e dormir.
Não sabiam o que iria acontecer pela manhã, mas não importava.
૪
Rose despertou de seu sono assim que ouviu batidas violentas contra a porta da sala de sua casa.
Colocou-se em pé rapidamente.
Desperta, ela seguiu para a porta, atravessando todos os cômodos. Parou em frente à porta e girou a chave na fechadura, abrindo-a com cuidado.
O olhar frio e penetrante nos olhos negros de Alex a deixaram assustada. Ele estava ali. Parado. O rosto ferido. Segurava um braço com o outro. Dava a impressão de ter voltado de uma batalha cuja qual havia perdido.
Ele manteve o olhar fixo no rosto dela. Rose não soube o que perguntar, mas Alex soube o que dizer.
– Preciso encontrá-la. – declarou com severidade.
Rose nada conseguiu dizer. Continuou observando o estado terrível em que ele se encontrava. O olhar dele causou nela um receio que até então ela não havia sentido.
Algo estava errado.