A chuva cai forte e eu nem cogito a possibilidade de sair de casa. Posso observar pela janela os vários raios e trovões lá fora e o barulho que ecoa tão forte, como se toda essa tempestade estivesse na minha cabeça. É irônico, acho que no fim, essa tempestade está de fato na minha cabeça, me caçando e me atormentando até o último neurônio. E ela tem estado por aqui há muito tempo.
Respiro fundo e tento me acalmar ao som do piano que repercute na minha mente, nas minhas lembranças. Há tempos esse era o som que mais me acalmava. Hoje em dia eu mal consigo lembrar as notas.
A tempestade continua lá, reinando no seu lugar de origem, esse mundão gigante. Eu quase consigo ouvi-lo desabar, quase consigo ouvir as últimas notas da canção do fim do mundo serem libertas pela natureza. Há muito os homens procuram o som perfeito, a melodia que curará doenças, que fará a felicidade ressurgir nos corações aflitos e que trará a harmonia entre as pessoas. Tanta gente procura essas notas, eu já as ouvi há anos e ficava tão encantada.
Mal notei quando meu corpo por si mesmo foi para um espaço vazio no meio da sala e começou a dançar aqueles mesmos passos, mas estavam tão incompletos. Eram perfeitos em cada aresta, cada movimento, mas ainda sim tão vagos. Parecia uma chuva desabando sozinha numa cidade deserta e solitária, como um “Singing in the Rain” sem um beijo emocionante. Era tão belo e tão vazio, tão doloroso.
As lágrimas desciam pelo meu rosto seguindo a minha memória, coisas que guardei tão lá no fundo... Preferia que estivessem mortas. Como num reflexo um trovão ressoou nos meus ouvidos e a memória das notas perfeitas começou a tocar na minha mente.
O meu próprio vinil no meu próprio toca-discos particular. Minha própria tortura mental, perfeita e tão dolorosa.
Mas, de repente, a música parou e meu corpo se mobilizou também. Era inútil. Ele havia se perdido na chuva, no mundo, se perdido de mim. Ri da minha própria desgraça e finalizei esse momento de pensamentos tão contraditórios.
Ele não voltaria nunca mais porque, com sorte, estava no Paraíso. Ou em qualquer lugar melhor que aqui.
havia falecido na guerra, foi chamado e teve que ir. A única vez que chorei tanto na vida foi quando recebi a carta e a comitiva. Honras ao soldado morto. Bravura no campo. Seu corpo nunca foi encontrado, no meio de tantos outros cadáveres, seria impossível achar o dele. Também não era uma missão muito importante pra o Exército, tantos morrem todos os dias. Acho que eles não pensam na importância desses homens mortos em algo que não seja a própria nação.
Ouço a campainha tocar e giro os olhos, irritada, pensando em quem tocaria na casa de outra pessoa em plenas três da manhã. É hora das pessoas, teoricamente, estarem dormindo. Caminho, preguiçosamente, até a entrada, ajeitando meu robe de seda e preparando uma boa resposta pra esse intrometido.
Onde já se viu interromper os devaneios alheios?
- Olha aqui, eu não sei quem você pensa que é, mas... – Discursei sem mesmo deixar a pessoa falar alguma coisa. Eu estava de olhos fechados, me segurando pra não avançar no seu pescoço ali mesmo.
- Eu... Você... Você nunca conseguiu dormir bem em noites chuvosas. – Interromperam-me, me impedindo de continuar. Eu não consegui abrir os olhos por medo do que poderia encontrar em minha frente, porque, no momento, meus ouvidos haviam me traído. Aquela voz... Não pode ser. Meus olhos encheram-se de água e as lágrimas desciam suavemente pelo meu rosto. Meu corpo se arrepiou por completo, não pelas rajadas de vento frio que entravam pela porta junto com a chuva, que chegava arranhando a minha pele.
Simplesmente pela circunstância dos fatos. Só pelos fatores destino, impossibilidade e loucura. Só pelo fator tempo. Só porque hoje faz exatamente dez anos. Só porque meu pedido mais profundo se realizou: dez anos depois, ele apareceu.
- Você veio. – Lágrimas com o calor e o gosto de lar escorriam pelo meu rosto e paravam nos meus lábios. Eu estiquei a minha mão direita em sua direção, ainda de olhos fechados, e senti o calor da sua guiar a minha em direção à sua face.
Um choque perpassou o meu corpo ao sentir a aspereza da sua barba, a textura da sua pele, os traços do seu rosto. Minha mão passeava pela sua face, matando a saudade do toque que eu tanto sinto saudades.
- Abra os olhos, cherié, abra os olhos. – Sua voz estava cheia de emoção, pedia com todo coração. Eu precisava abrir os olhos, mas o que encontraria em minha frente? O mesmo homem que eu vi há quinze anos? Ou o homem cujos pêsames recebi do exército há dez anos? O que havia acontecido com entre esses quinze anos de desaparecimento? Mas dentre todas essas escolhas, entre escolher gritar e expulsá-lo afirmando que era uma farsa e que ele estava morto, entre não abrir os olhos e voltar para dentro de volta à minha tristeza, eu escolhi o fator impossibilidade. Eu abri os olhos e preferi acreditar que tudo era verdade.
E a visão que eu tive foi a melhor possível. parecia tão saudável, tão feliz, tão bonito, exatamente como eu costumava vê-lo. Estava de calça jeans e uma longa blusa de manga branca, seus cabelos sedosos estavam molhados pela chuva e seus olhos estavam molhados pelas lágrimas, tão brilhantes.
- Já é a hora, . Vamos. – Seu sorriso era benevolente, sem pena e sem aquela expressão de dó que as pessoas costumam exibir. A mesma que eu detesto. Era o mesmo de sempre, o mesmo homem que eu amei desde o primeiro momento.
Eu não via porque não segurar a sua mão, ir com ele. Não é coisa de suicida, dependente ou algo do gênero. Quer dizer, ele está, ou estava, morto. Não era pra ele estar batendo à minha porta, me chamando para ir com ele, nenhuma pessoa em sã consciência faria isso. Acho que eu nunca estive em sã consciência desde que ele saiu daquela porta com a estampa do Exército consigo.
Eu segurei a sua mão e mergulhei para um mundo melhor, onde não havia guerra, tragédia ou dor. Eu passei pela porta e tudo se transfigurou ao meu redor. A noite parecia dez vezes mais bonita que o normal, as estrelas pareciam mais nítidas, a lua maior e mais bonita.
Seu sorriso era brando, me chamava, me convidava para uma dança. A dança que começava desde a troca de olhares e ia até o passo final. Até o grand finale.
A melodia perfeita, a nossa música, de alguma forma, ressoava no ambiente, deixando o momento mais perfeito do que poderia ser. Eu não ligava se estivesse louca acreditando em algo que não existe. É só que essa ilusão era muito mais confortável que a minha realidade.
Minhas sensações se expandiram, eu sentia cada pressão que as gotas grossas de chuva faziam ao cair em minha pele, sentia o ar fresco que levantava e deixava um cheiro de terra molhada. Era uma liberdade no peito, um sentimento puro. Meus pés descalços entravam em contato com o asfalto molhado e completava o conjunto de todas as sensações que remetiam ao meu passado longínquo e distante, a melhor época da minha vida. A única época que eu, de fato, vivi.
Nós não conseguíamos desgrudar o olhar do outro, o magnetismo era tão clichê e tão bom. Dançávamos sutilmente com passos calculados, nos aproximávamos e nos afastávamos igualmente, e a única coisa que nos unia era maior do que o amor e todas as suas lembranças subsequentes: a arte.
O amor pela coisa que alimenta a humanidade desde o início das eras, que nos faz evoluir e aproximar, como uma grande família. Faz nos perdermos dentro de nós mesmos, a entrarmos numa perdição melhor que uma bênção. Ajuda-nos a achar quem somos de verdade, a sair do nosso labirinto interior. A arte é sagrada para os que sabem apreciá-la.
No fim do espetáculo que só as estrelas podiam apreciar, eu o abracei de uma forma como nunca fiz antes. Apaixonante e absolutamente clichê, cheio de saudade e coisas que eu gostaria de ter dito, mas elas ficaram muito mais explícitas do que se eu tivesse proferido alguma coisa.
Meus braços envolviam seu pescoço e suas mãos quentes se fecharam em minha cintura, de forma que ele podia me levantar do chão. Nossos rostos estavam muito perto, nossas respirações se mesclaram e o meu coração batia a mil por segundo. Nossos lábios selaram um beijo que definiria o destino do grand finale...
Nesse momento, eu não pude ver muita coisa, só uma luz branca vindo em minha direção. Eu sabia que esse era o meu fim, de alguma forma, eu iria para junto dele. De . Ele sempre esteve comigo da mesma forma que eu sempre estive com ele, inseparáveis além do véu da morte.
A luz branca se aproximava e a música chegava ao fim. Eu estava em seus braços confortáveis e com a doce sensação de liberdade que sempre dominaria o meu coração. Eu estava com ele, tudo estava completo agora. A música estava sincronizada com a dança, os passos completos, a melodia perfeita estava novamente sendo encontrada em sua forma mais pura. Ele sorriu para mim, eu sorri de volta e ouvi as palavras que mais gostaria de ouvir: Nós estaríamos juntos para sempre. Então tudo ficou branco e eu senti o meu corpo ficar mais leve, mais suave, mais sutil. Eu estava novamente com ele. Ouvia vozes, elas me cercavam e tudo parecia agitado em minha volta. Acho que foi nessa hora que eu percebi o que tinha acontecido.
Mas nada disso importava, agora, eu estaria onde deveria estar. Ao seu lado.

FIM


Nota da Autora: Olá ! Bem-vinda à sua vida após a morte! OIJIODJSD Just kidding. Então, eu sou cruel e sacana, sei disso, valeu. Mandei essa short em Dezembro de 2012 pra o Especial do We <3 FFOBS, e acabei decidindo mandar pra aqui também. Cara, eu chorei muito escrevendo essa fic, beleza? Feito um bebêzinho :( Estava morrendo de medo de terminá-la na época, pois temia que não ficasse tão boa quanto eu esperava, mas acho que ficou legal, né? Anyway, quem gostou comenta aí na caixa de coments, quem não gostou comenta também e se gostou e acha que vale a pena, que tal indicar? OSIPJDOISJD Just kidding again, autora folgada. Sejam felizes aí :D


Nota da Beta e NÃO da Autora: Encontrou algum erro de script/html/português? Avise-me através deste e-mail ou pelo twitter. Não use a caixa de comentário com essa intenção. Obrigada.
Agradecimentos sobre a fiction? Somente com a autora!

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