Escrita por: Gii Zwicker
Betada por: xGabs Andriani




Quando abriu a porta do apartamento que dividia com os pais em Midtown, encontrou-o vazio. Aquilo era normal, filha de uma corretora de imóveis e de um advogado renomado, a garota estava habituada à ausência deles.
fechou a porta de entrada do apartamento e trancou-a. Jogou sua mochila no chão da sala, fazendo a promessa mental de recolhê-la antes que sua mãe retornasse para casa. Deslizando pelo chão encerado do apartamento moderno de quase duzentos metros quadrados, a garota foi até a cozinha e se serviu de um copo de água.
Aquele dia havia sido exaustivo. No colégio, o professor de filosofia resolveu colocar a sala do segundo ano para discutir os motivos por trás do conflito que acontecia na Faixa de Gaza; alguns alunos apresentaram pontos em defesa dos ataques militares de Israel e outros se posicionaram ferozmente contrários a ele.
, por sua vez, não conseguia entender aquela discussão. Ao bem da verdade, não conseguia entender a guerra como um todo. Enquanto via os amigos discutindo sobre política e religião, mentalmente ela se perguntava que culpa poderia ter um pequeno garotinho que ela viu sendo retirado dos escombros que um dia haviam sido uma casa pelo noticiário.
Ao fim da aula, ela sentiu como se uma nuvem negra e densa a tivesse envolvido, consumindo suas energias de forma que tudo o que ela queria era uma cama quentinha e, talvez, um livro para folhear até que ela sentisse que o mundo era um lugar habitável novamente.
Por isso, terminou de tomar a sua água e pescou o seu iPod dentro do bolso do moletom. Encaixou os fones de ouvido e, caminhando em direção ao seu quarto, começou a procurar por uma música que pudesse combinar com o seu estado de espírito.
Quando passou por John Lennon, imediatamente as letras de “Imagine” começaram a ecoar dentro de sua mente e, sem pensar duas vezes, ela colocou a música para tocar.
Deitou-se em sua cama e ficou observando o teto, enquanto deixava que seus pensamentos fossem envolvidos pelos acordes do piano e a voz de Lennon. Por fim, fechou os olhos e fez exatamente o que ele pediu: imaginou um mundo em que não houvesse guerra, onde todas as pessoas poderiam compartilhar de um mesmo planeta sem se apegarem a pequenos e irrelevantes detalhes que eram capazes de deflagrar os mais cruéis e sangrentos conflitos.
Imaginou crianças israelenses e palestinas brincando. Os meninos, de esconde-esconde. As meninas, de boneca. Ou, talvez, fazendo penteados umas nas outras, rindo. Imaginou dois senhores jogando xadrez e conversando sobre amenidades, independentemente do turbante e do quipá que usavam.
Fechou os olhos e mergulhou naquele mundo embalado pela voz tranquila de John Lennon.

~.~


Quando abriu os olhos, encarou o topo esverdeado de árvores grandes. Entre as folhas era capaz ver de relance um céu azul claro e sem nuvens. Franzindo o cenho numa expressão confusa, ela forçou o corpo para cima, sentando-se.
Estava deitada no gramado e precisou tirar algumas folhas secas dos cabelos. Segurou uma delas pelo caule seco e girou-a, tentando entender o que estava acontecendo. Seu cérebro ainda estava um pouco afetado pela sonolência, mas ela tinha quase certeza que não tinha dormido num parque.
Olhou em volta, tentando se situar, mas antes que pudesse conseguir elaborar um raciocínio que fizesse sentido, ouviu duas vozes conversando.
A primeira era infantil e dizia:
- Mas onde está o meu pai, moço? – seu tom era choroso e fez com que o coração de se comprimisse em seu peito.
Instintivamente, ela se levantou de onde estava, retirou os fones de ouvido e guardou-os dentro do bolso do moletom. Caminhou na direção das vozes e encontrou um homem de altura mediana puxando um menininho pela mão para o interior do parque. O local parecia inabitado e, imediatamente, a visão a deixou incomodada.
- O que está acontecendo aqui? – ela perguntou, sua voz cortando a distância entre eles como uma navalha.
O homem lança um olhar rápido na direção dela, parecendo surpreso por ter sido flagrado, e imediatamente solta a mão do garoto, correndo em meio às árvores até desaparecer de vista. Imediatamente, corre até o garotinho e se ajoelha à sua frente, apoiando as mãos em seus ombros.
- Você está bem? – perguntou, desviando os olhos para a mata escura às costas do menino, mas não conseguia mais identificar o homem, que havia se mesclado às sombras – Aquele homem fez alguma coisa com você?
O garoto a observou com os grandes olhos castanhos, parecendo assustado. Lentamente, balançou a cabeça de um lado para outro.
- Bom – ela suspirou, aliviada. – Ótimo. Você está perdido do seu pai, é isso? – ele concordou com um aceno enfático de cabeça – Tudo bem. Está tudo bem agora – ela prometeu – Vou te ajudar. Qual é o seu nome?
- Meu nome é Sean – ele respondeu, sua voz soando trêmula e instável.
- Está certo, Sean – ela sorriu, tentando fazer com que ele se sentisse seguro – Vamos achar o seu pai, okay? Qual é o nome...?
Antes que ela pudesse terminar a pergunta, os berros desesperados de um homem começaram a ecoar em volta deles.
- SEAN?! SEAN?! SEAN, CADÊ VOCÊ?!
- AQUI! – Sean gritou, desvencilhando-se das mãos de e caminhando com passos incertos na direção do som – PAI! ESTOU AQUI!!
A voz do pequeno Sean trouxe um homem até o local onde eles estavam. Ele era alto, magro e usava roupas que trouxeram uma expressão perplexa ao rosto de . O homem abraçou o garotinho com força e, depois de se certificar que ele estava bem, lançou um olhar acusador na direção da garota.
- Você...! – ele começou, com o dedo em riste – O que você queria tirando o Sean de mim? Fique bem avisada que eu...
No entanto, já não estava mais o escutando. Muito mais estranho do que as roupas que o homem usava, era o seu rosto. Ele estava com uma barba que cobria a parte inferior do seu rosto, seus cabelos eram castanhos e fartos, tinha um nariz adunco um pouco torto, e olhos escuros, protegidos por óculos de lentes redondas.
Se não fosse absolutamente impossível, poderia jurar que estava frente a frente com o próprio John Lennon.
“Mas não pode ser”, ela pensou, fazendo alguns cálculos mentais, “Ele está morto há quase vinte e cinco anos”.
Só percebeu que o homem muito parecido com um de seus maiores ídolos continuava falando com ela, com o dedo em riste e os olhos transbordando raiva, quando a voz do pequeno Sean fez-se ouvir.
- Pai! Para! – ele se colocou entre os dois, defendendo com seu pequeno corpo – Está tudo bem! Ela me salvou! Tinha um homem me levando para dentro da floresta! Ele disse que ia me ajudar a te encontrar, mas eu acho que ele estava mentindo – o garotinho de espessos cabelos escuros e com o mesmo nariz adunco do pai murmurou – Ela apareceu e ele foi embora!
Os olhos escuros do homem fixaram-se no filho e, depois, ergueram-se relutantes para a garota que o encarava com as sobrancelhas levemente arqueadas.
- Bem... – ele pigarreou, parecendo envergonhado – Eu sinto muito por isso... Eu só... Você sabe... Perdi meu filho e estava desesperado. Eu sinto muito. De verdade. Não deveria ter falado com você daquele jeito. Na verdade... – carinhoso, bagunçou os cabelos do filho com uma das mãos – Parece que você foi a minha heroína hoje.
- Está tudo bem... – murmurou, sentindo que a voz que escapava pelos seus lábios não era verdadeiramente sua – Eu só... – sentia-se incapaz de desviar os olhos do rosto dele; era tão parecido – Você já deve ter ouvido isso muitas vezes antes, mas... sabia que você é a cara do John Lennon? Tipo... muito igual. Mesmo – ofegou a última parte.
O homem gargalhou, como se o que ela tivesse acabado de falar fosse a piada mais engraçada que ele já tinha ouvido. o observou com uma expressão confusa, enquanto o pequeno Sean olhava do pai para a sua salvadora, com a mesma expressão perdida.
- Eu ouço isso bastante – o homem respondeu, quando finalmente recobrou o fôlego – Sou super parecido com esse cara.
- Parecido, não! – Sean corrigiu o pai, com uma expressão veemente e infantil – Você é esse cara – voltou os olhos castanhos para – Meu pai não parece o John Lennon, ele é o John Lennon.
permitiu que seus olhos pulassem do pai para o filho algumas dezenas de vezes antes de jogar a cabeça para trás e soltar uma sonora gargalhada que durou alguns segundos.
- Você só pode estar brincando... – murmurou, quase sem fôlego; no entanto, percebeu que os dois a observavam levemente aturdidos. Eles pareciam sérios e confusos com a reação dela – Você não pode ser o John Lennon – ela disse, num tom de voz definitivo.
O homem ergueu as sobrancelhas, parecendo intrigado.
- Não? – com um gesto displicente, ele puxou a carteira do bolso da calça e pescou sua habilitação e estendeu-a na direção da garota, de forma que ela pudesse ler o seu nome ao lado de uma foto em preto e branco – Alguém deveria avisar o governo dos Estados Unidos, então. E o britânico. E basicamente todos os tabloides do mundo.
Incrédula, arrancou o documento da mão do homem, que soltou uma exclamação surpresa, mas não se moveu para recuperá-lo. Os olhos da garota varriam a habilitação, enquanto seu cérebro tentava compreender o que estava acontecendo.
- Isso não faz... – ela hesitou, erguendo os olhos para focar no rosto do homem parado à sua frente – Isso não pode... – tudo parecia girar à sua volta – Que dia é hoje? – perguntou, sua voz lutando para vencer a nuvem de confusão que parecia tomar seu cérebro.
- Quatro de setembro – ela ouviu a voz do homem respondendo.
Até a voz é idêntica...”, ela pensou, sentindo tudo girando à sua volta.
- De que ano? – ela lutou para pronunciar a pergunta.
Houve uma breve hesitação por parte do homem, como se ele estivesse estranhando a questão.
- 1980 – ele respondeu, num tom de voz óbvio – A senhorita está se sentindo bem?
Mas antes que ela pudesse responder àquela pergunta, tudo à sua volta ficou escuro e ela sentiu seu corpo desabando para o nada.

~.~


Quando abriu os olhos novamente, encarou um teto branco e suspirou aliviada, imaginando que estava novamente em sua cama e que tudo não havia passado de um sonho muito estranho.
Mas a sensação durou apenas o tempo necessário para que ela percebesse que o lustre que estava ao alcance dos seus olhos era exótico e de aparência cara, em nada parecido com os que tinham na sua casa.
Em seguida, reparou que não estava deitada em sua cama. Na verdade, ela estava deitada num sofá grande e branco, extremamente confortável. Moveu-se minimamente para poder observar melhor o local em que estava e encontrou os olhos escuros e curiosos de um garotinho sobre ela.
Sean estava sentado sobre o tapete persa a apenas alguns metros de onde ela estava; ele tinha algumas miniaturas de carros e trens espalhados à sua volta, mas nenhum deles parecia remotamente tão interessante para o garoto quanto ela.
- Oi, Sean – ela murmurou, lutando contra a estranheza de todo aquele fato; no mundo real, aquele no qual ela era apenas uma garota comum com pais ausentes, Sean Lennon era um homem de quase quarenta anos.
Mas ali estava ele. Com cinco anos e brincando com trens.
tinha a sensação que seu cérebro havia sido substituído por um pedaço de algodão. Inútil. Era como se o órgão tivesse chegado à conclusão de que nada mais fazia sentido, então ele poderia muito bem simplesmente desistir de tentar encaixar as peças desconexas daquele complexo quebra-cabeça.
- Você acordou! – a voz de John Lennon fez-se ouvir às suas costas e a garota se virou a tempo de observá-lo aproximando-se com uma xícara nas mãos – Eu fiz um chá. Não sei muito bem o que servir para uma desconhecida que desmaia no meio da rua, mas como sou britânico... você sabe... resolvi me apegar às minhas raízes culturais.
- Está tudo bem – ela murmurou, envergonhada, aceitando a xícara – Obrigada.
bebericou um pouco do líquido agradavelmente quente sentindo o peso dos dois pares de olhos sobre ela; ali, um ao lado do outro, ela conseguia perceber como pai e filho eram semelhantes.
- Está se sentindo melhor? – John perguntou, afinal de contas, quebrando o silêncio que havia se estabelecido na sala.
- Ahn... Sim – ela respondeu, mas logo lembrou que ela estava sentada no sofá do apartamento de John Lennon conversando com ele, enquanto tomava chá; então, completou – Na verdade, não tenho certeza. É confuso. Eu me sinto... – interrompeu-se, arregalando levemente os olhos – Isso é um sonho?
John Lennon gargalhou novamente pela segunda vez naquele dia e sentiu-se pequena e insignificante. Detestava ter a sensação que ela era alvo de risadas.
- Sabe, você é a primeira pessoa que conheço que está determinada a não acreditar que está conversando comigo – ele comentou, com um brilho divertido nos olhos – De duas uma: ou você gosta muito de mim, ou me detesta.
Os olhos de se arregalaram e ela se apressou em dizer:
- Sou uma grande fã. Sério. De todo o seu trabalho.
John sorriu, parecendo satisfeito com a resposta. O silêncio voltou a reinar entre eles e voltou a bebericar o seu chá, perdida em suas próprias considerações.
- Quando você terminar – John disse, esfregando as mãos no tecido da calça jeans – Eu te dou uma carona até a sua casa.
- Ahn... – quase engasgou, tentando imaginar como poderia responder aquilo sem parecer uma completa lunática – Não precisa.
- Não diga besteiras – John revirou os olhos escuros, parecendo levemente aborrecido pela colocação da garota – Você salvou a vida do meu filho hoje. É o mínimo que eu posso fazer.
“Quer saber? O que importa? Se for verdade, se não for... Que tal aproveitar a oportunidade de conversar com John Lennon?”, pensou.
Então, sorriu para ele e concordou com um aceno de cabeça.

~.~


Sean despediu-se dela com um aceno acanhado e ficou aos cuidados da babá. No carro, passou o endereço de seu prédio para John, que verificou um mapa da cidade atenciosamente antes de ligar o carro e começar a dirigir pelas ruas.
Do lado de fora do prédio havia sempre um grupo de fãs, homens e mulheres que usavam camisetas com a estampa do rosto de John ou o símbolo do movimento hippie; todos eles se agitaram ao identificar o carro do artista saindo, mas o músico não parou para conversar com nenhum deles.
- Deve ser insano ter gente do lado de fora da sua casa o dia todo, todos os dias, para te ver – comentou, assombrada.
- É o preço que a gente paga, não é? – ele encolheu os ombros, os olhos fixos na rua – Fiz parte de uma banda mundialmente famosa. Agora trabalho na minha carreira solo e faço alguns trabalhos com a Yoko... É um pouco inconveniente a maior parte das vezes, mas eu acredito que isso é um sinal de que a minha arte importa para essas pessoas. É o que eu tento pensar quando me sinto sufocado ou irritado com tudo isso, pelo menos.
- E funciona? – ela questionou, erguendo as sobrancelhas.
- Algumas vezes – ele respondeu, com um sorriso enigmático; depois, contraiu os lábios numa linha tênue – Me ocorreu agora que você pode ter salvado a vida do meu filho e que ficou por algumas horas deitadas no sofá do meu apartamento, mas ainda não sei o seu nome.
soltou uma risadinha incrédula. Quando se conversa com uma celebridade, detalhes como apresentações podem ser subestimados pelo cérebro.
- Meu nome é . . – disse, sentindo as bochechas pinicando de uma forma desconfortável – Muito prazer – acrescentou, débil.
Ele riu novamente, divertindo-se com o desconforto dela.
- O prazer é todo meu, – ele respondeu.
Durante o restante do trajeto, eles conversaram sobre diversos outros assuntos. Na verdade, a garota escutava mais do que ousava falar. John era capaz de falar o suficiente por eles dois e quando começou a falar sobre os direitos das mulheres, ficou tão entretido no seu próprio discurso que só foi interrompê-lo cerca de dez minutos depois, quando estacionou junto ao meio-fio.
- É esse o endereço – ele anunciou, mas sua expressão era perplexa enquanto ele observava o cenário através da janela.
sentiu seu coração afundando ao perceber que o local onde o seu prédio costumava existir – ou existirá? – está um terreno baldio de aparência perigosa e abandonada.
- Tem certeza que é aqui? – o músico perguntou, desconfiado, voltando os olhos na direção dela com uma expressão preocupada.
- É aqui mesmo – ela pigarreou, tentando manter o desespero longe de sua voz – Obrigada pela carona, senhor Lennon. E evite deixar o Sean longe dos olhos de um adulto responsável, está bem? Obrigada por tudo, e...
Antes que ela pudesse se mover para sair do carro, o antigo vocalista dos Beatles apertou a trava das portas e se viu presa. Lançou um olhar confuso na direção dele.
- O que está acontecendo? – John perguntou; ela percebeu os olhos dele sobre as suas calças jeans levemente rasgadas, assim como a sua blusa da Abercrombie que era desfiada nos locais certos com o intuito de parecerem velhas e remendadas – Você não tem onde morar, é isso?
considerou suas opções. Poderia contar a verdade para ele, que envolveria certamente mais uma de suas longas e contagiantes gargalhadas. Poderia mentir e dizer que tinha um lugar para ficar e desocupá-lo.
O que ela optou por fazer, no entanto, foi um meio-termo entre as duas posições.
- Eu costumava morar aqui – ela respondeu, escolhendo cuidadosamente suas palavras – Mas as coisas mudam da noite para o dia. Mas não se preocupe. De verdade – ela acrescentou, enquanto lutava para destrancar a porta do carro – Eu vou ficar bem. Sério – adicionou; a frase soou muito mais corajosa do que ela realmente se sentia, o que era um alívio.
- Não – John balançou a cabeça de um lado para o outro, usando um tom de voz definitivo – Depois do que você fez hoje, não tem a mínima possibilidade... Você não vai ficar perambulando pelas ruas de Nova York sozinha.
cogitou recusar, tentar argumentar contra as palavras dele, mas logo percebeu que não havia sentido. Ela não queria ficar perambulando sozinha pelas ruas de Nova York sem destino e sem um rosto conhecido a quem pudesse pedir ajuda, de modo que seria mais fácil simplesmente aceitar o que o músico lhe oferecia.
Durante o caminho de volta, a garota conseguia sentir os olhos de John se fixando sobre ela em toda oportunidade.
- Quando você nasceu, ? – ele perguntou.
Imediatamente, o corpo dela ficou tenso; seu cérebro trabalhava de forma enlouquecida, tentando encontrar uma forma de responder àquilo sem dar a entender que ela só nasceria a quase vinte anos no futuro daquele dia.
- Dia dezenove de setembro – ela murmurou, sentindo a boca seca.
- De...? – ele instigou, querendo saber o ano.
- Eu tenho dezesseis anos – explicou – Vou fazer dezessete daqui a alguns dias.
- Hum... E seus pais? – o músico prosseguiu.
se remexeu no banco do carona, sentindo-se incomodada como um investigado durante um inquérito policial.
- Minha mãe mora em Illinois – respondeu, lembrando-se da história de seus pais – E meu pai mora em Nova Jersey.
- Nova Jersey é perto... – John murmurou, como quem não quer nada – Você e seu pai não se falam ou algo parecido?
- Algo parecido – murmurou, cruzando os braços e observando a rua; não queria ser grosseira com o homem, que vinha sendo solícito e atencioso, mas tudo o que ela queria era que aquelas perguntas acabassem e ela pudesse ter um segundo de sossego.
John parecia intrigado com a história da garota.
- Se você não fala com o seu pai e sua mãe mora em outro estado... O que você está fazendo em Nova York? – perguntou, cortando o breve silêncio que havia se estabelecido entre eles.
Com um suspiro, voltou os olhos na direção dele e respondeu com toda a sinceridade que possuía:
- Eu não tenho a menor ideia.
A resposta pareceu pegar John desprevenido, porque não disse mais nada durante o restante do trajeto.
Por outro lado, o cérebro de parecia ecoar a pergunta de John internamente. Admitindo que ela tinha realmente voltado no tempo... e agora estava frente a frente com John Lennon... qual era o propósito de tudo aquilo?
Aos poucos, uma resposta começou a se formar; lentamente, como uma figura opaca cujas cores se tornam mais vívidas gradativamente.
“E se eu estiver aqui para avisá-lo sobre o seu assassinato?”

XxXxX


Quando os dois voltaram a entrar no grande e luxuoso apartamento, encontraram-no vazio. John a informou que Sean provavelmente estava tirando uma soneca da tarde e aconselhou-a a se fazer à vontade, seguindo em direção à cozinha em seguida.
Suspendendo a respiração, apertou a mão em dois punhos e seguiu-o até o interior do recinto.
- Você precisa de alguma coisa? – ele perguntou, ao perceber a presença dela.
- Ahn... – ela hesitou, procurando pelas palavras certas freneticamente, mas elas pareciam fugir do alcance de seu cérebro; soltou o ar lentamente, num suspiro trêmulo – Posso me sentar? – ela perguntou, com um sorriso receoso, indicando a mesa redonda de madeira branca, contornada por quatro cadeiras que combinavam com ela em material e cor.
- Claro. Quer mais chá? Talvez uma coca? Leite? Água? – ele ofereceu, enquanto abria a geladeira e inspecionava o interior. Para , aquele era o tipo de eletrodoméstico que se encontraria numa loja de velharias, mas imaginava que John devia ter pagado uma fortuna nela.
- Eu estou bem... eu... – novamente, seu cérebro pareceu ficar em branco e, diversas vezes, ela pensou em desistir.
Qual era o ponto?
Ele certamente não acreditaria nela. Ela quase não conseguia acreditar em si mesma!
Talvez estivesse louca.
Ela estava inquieta, remexendo-se na cadeira, quando John se sentou de frente para ela e, gentilmente, fez com que um copo roxo de vidro cheio de água gelada deslizasse pela mesa até chegar perto dela.
ergueu lentamente os olhos e encontrou o rosto dele. John sorriu levemente, com seus dentes tortos, seu nariz adunco e seu rosto tão familiar, mas tão desconhecido.
Ali estava ele, cuidando dela, tudo isso porque ela havia sem querer salvado Sean de ser sequestrado ou machucado por um estranho mal intencionado.
havia lido livros sobre John Lennon e sabia que ele era uma pessoa temperamental e difícil de lidar. Era um artista, afinal de contas. Mas ali, sentado do outro lado da mesa, ele parecia apenas um homem gentil e atencioso.
Um homem gentil, atencioso e talentoso, que o mundo inteiro idolatrava.
Perdida em pensamentos, se perguntou se as coisas seriam diferentes se John Lennon não tivesse sido assassinado. Assim como Paul McCartney, ele era um homem influente e, talvez, se ele ainda estivesse vivo, o mundo seria um pouco menos terrível e cruel e um pouco mais próximo do que ele havia sugerido em “Imagine”.
Era possível que esse fosse o propósito de tudo aquilo.
Mais vinte e quatro anos de John Lennon? O mundo obviamente se beneficiaria com isso, não era?
Inflada com um senso de propósito, ela abriu a boca e permitiu que as palavras escapulissem:
- Eu preciso ser sincera – sentiu as bochechas pinicando ao sentir os olhos dele fixos sobre ela, intrigados – Não que eu tenha mentido, eu só... Eu não fui cem por cento honesta. Eu nasci em 19 de setembro... de 1998 – percebeu a expressão confusa dele, mas continuou antes que ele tivesse tempo de fazer perguntas ou que ela perdesse a coragem de continuar com aquela loucura – E o endereço que eu te dei? Eu realmente moro lá. Vão construir um prédio naquele terreno baldio, John. Daqui a... – ela fez alguns cálculos mentais – dez anos, mais ou menos, e meus pais vão comprar o apartamento 127C e é lá que eu moro. Eu estava deitada na minha cama, nesse apartamento, há cerca de três horas atrás e acordei no parque. Eu não sei porquê. Eu não sei o que aconteceu. Eu só sei que eu fui dormir e era 4 de setembro de 2014, e acordei em 1980.
John observou-a com as sobrancelhas erguidas por alguns instantes, até que finalmente soltou uma sonora gargalhada; ela durou por tanto tempo que ele perdeu o ar no meio dela, mas, incapaz de parar, prosseguiu soltando ofegos ao invés de um som alto e desconcertante.
sentiu como se suas bochechas estivessem pegando fogo e, num gesto instintivo, afundou as duas mãos nos bolsos de seu moletom. Sentiu quando sua mão esquerda se enroscou no emaranhado de fios do seu fone de ouvido e seus olhos se arregalaram quando ela sentiu o retângulo gelado com a ponta dos dedos.
“Meu iPod!”, ela pensou, vitoriosa.
Sem considerar a questão mais profundamente, ela puxou o aparelho do bolso e colocou-o sobre a mesa; John ainda estava entretido demais gargalhando do que ela havia dito para perceber o que ela havia feito e, por isso, a garota empurrou o iPod classic prata dela na direção do homem, em silêncio.
Aos poucos, ele conseguiu se acalmar o suficiente para perceber que havia um objeto retangular e brilhante na sua frente. Soltando ainda algumas risadinhas mais contidas, ele pegou o iPod com as duas mãos e analisou-o atentamente.
- O que é isso? – ele perguntou, girando o artigo nas mãos, estudando-o por todos os ângulos possíveis.
- É um iPod – ela respondeu, satisfeita por ter conseguido conquistar a atenção dele – É o que nós usamos para ouvir música.
- Em 2014 – ele completou, num tom que parecia beirar entre o cético e o divertido.
- Na verdade, esse modelo é de 2005 – ela rebateu, determinada a convencê-lo – Aqui, deixa eu te mostrar como funciona.
Ela se levantou e contornou a mesa, sentando-se na cadeira ao lado dele e puxando seu iPod das mãos grandes dele. Percebeu que os olhos dele não deixaram o objeto prateado desde que o viram pela primeira vez.
havia lido que John era simplesmente fascinado por tudo o que era tecnológico, de forma que ele possuía um outro apartamento no mesmo prédio apenas para guardar todos os apetrechos de alta tecnologia que comprava, mas raramente os usava.
Assim, ela sabia que se aquilo não o convencesse de sua história, nada mais o faria.
- Ele tem o limite de oitenta gigabytes – ela explicou, enquanto deslizava a trava superior e John soltou uma exclamação discreta quando a tela se iluminou; deu um sorriso leve, mas percebeu pela pilha avermelhada no topo superior esquerdo que ela precisava agir rapidamente – Isso quer dizer que você pode armazenar até vinte mil músicas.
- Isso é impossível! – ele objetou, mas havia uma insinuação de dúvida no seu tom de voz; seus olhos não desgrudavam do objeto nas mãos dela.
Só para exemplificar, ela rodou o dedo pelo controle de sensor circular e, diante dos olhos arregalados de John, o nome de inúmeros artistas rolaram pela tela até ela chegar onde queria. BEATLES.
Apertou o botão central e a pasta da antiga banda de Lennon abriu, mostrando a discografia completa da sensação britância.
- Aqui está, toda a discografia dos Beatles – ela murmurou, satisfeita diante da expressão perplexa dele; imitando-a, John acariciou o sensor branco já meio encardido com a ponta do dedo e observou enquanto a faixa azul deslizava para baixo, mostrando os nomes de músicas que ele havia composto e tocado na companhia de seus companheiros de banda.
- Como pode toda a nossa discografia caber em algo tão... pequeno? – ele murmurou, parecendo perplexo.
- A tecnologia vai evoluir muito daqui para frente, John – ela respondeu, usando um tom de voz suave porque sabia que precisava que ele não resistisse ao que estava sugerindo.
John continuou movendo o sensor, até que a lista de todas as 601 músicas que ela possuía deles chegasse ao final.
Foi aí que ela teve uma ideia.
- Aqui, John. Deixa eu te mostrar outra coisa – ela disse, gentilmente recuperando o aparelho e com destreza manuseando-o até chegar à letra S. Moveu o dedo vagarosamente, até chegar a Swedish House Mafia – Coloque os fones de ouvido – ela o instruiu.
John passou a desembaraçar os fios até chegar às duas extremidades de plástico.
- Tão pequenos... – ele murmurou, observando-os por alguns segundos antes de encaixá-los em suas próprias orelhas – Tudo é pequeno, de onde você vem?
“De onde você vem”, ela repetiu mentalmente, sentindo seu coração batendo com um pouco mais de força dentro do peito.
Isso significava que ele estava começando a acreditar nela... certo?
Ela sorriu e apertou o play, na esperança que aquele fosse o último passo que Lennon precisava dar para finalmente entender que ela não era louca ou mentirosa.
Bem baixinho, ela conseguiu ouvir as primeiras batidas de “Don’t You Worry Child” e mordiscou o lábio inferior, ansiosa, enquanto mantinha os olhos fixos no rosto dele. John parecia intrigado, mas sua expressão de choque e perplexidade avançava a medida que os segundos passavam e se tornavam minutos.
- O QUE É ISSO? – ele berrou, tentando se fazer ouvir acima da música que pulsava em seu ouvido.
riu, enquanto ele tirava os fones de ouvido e voltava os olhos arregalados para ela.
- Música eletrônica. House, para ser mais exata – respondeu – E, então, o que você achou? Gostou?
- Eu... – ele hesitou, buscando por palavras – Eu nunca ouvi nada remotamente parecido com isso. É tão... vibrante... e... e... diferente... eu... Nós temos o disco, mas... mas não chega nem perto... Quero dizer... – ele estreitou os olhos na direção dela – Você veio mesmo do futuro. Não veio?
sentiu seu corpo inteiro relaxando e concordou com um aceno de cabeça.
- Sim, John – ela suspirou.
- Como? – ele questionou, com os olhos arregalados.
- Eu honestamente não sei – ela respondeu, sentindo seus pensamentos começando a colapsar, como sempre acontecia quando ela tentava entender o que estava acontecendo. Como havia chegado ali? Como voltaria para casa? E se estivesse presa ali para sempre? – Dormi em 2014 e acordei em 1980. Simples assim. Complicado assim.
- Uau... – ele soltou, perplexo, e pegou o iPod da mão dele, habilmente enrolou o fone de ouvido em volta dele e guardou-o no bolso de seu moletom novamente – Eu só... uau – houve um breve instante de silêncio entre eles – Tem tanta coisa que eu quero perguntar! – ele exclamou, parecendo uma criança na véspera do Natal – Os carros! Os carros voam? Quero dizer, se vocês conseguiram que vinte mil músicas coubessem num retângulo achatado e brilhante, os carros certamente voam.
Foi a vez de rir.
- Sinto muito por desapontá-lo, John. Os carros continuam firmes na terra. Mas a maioria deles têm quatro portas agora! E eles podem ir bem rápido. E alguns deles são elétricos, o que quer dizer uma boa redução na poluição.
- Carros elétricos – ele assoviou, perdido em pensamentos – Imagine só! É o tipo de coisa que o Paul com certeza vai comprar! – riu e seus olhos se acenderam – Falando em Paul, e nós? Os Beatles? Nós chegamos a voltar? Em algum tempo, no futuro, quero dizer?
Ali estava.
sentiu seu estômago afundando e seu coração pareceu se comprimir dentro do peito.
- Não, John – ela murmura, usando a mesma voz suave que usara com ele mais cedo – Os Beatles nunca mais se juntam.
- Sério? – ele pareceu decepcionado com a revelação – Quero dizer, eu não queria nada agora, mas eu sempre imaginei que num futuro nós fossemos nos juntar novamente. Talvez um CD a mais, sabe? Ou alguns últimos shows, em homenagem aos velhos tempos... – ele se perdeu em pensamentos por alguns segundos e, nervosa, passou a brincar com a barra do moletom – Por que nunca nos juntamos? Foi o Paul, não foi? Ele arranjou algum problema? Ele é todo cheio de estrelismo, tenho certeza que ele deve ter feito milhares de exigências, como se ele fosse o grande rei do Universo, e...
- Não teve nada com o Paul, John – o interrompeu; ela havia lido sobre a implicância de John com o seu grande amigo, mas era engraçado ver aquilo acontecendo de verdade – Tenho certeza que ele teria se juntado a todos vocês se fosse possível por uma última vez. Mas... – ela relutou, respirando fundo para ganhar tempo e encontrar as palavras certas, que continuavam determinadas a fugir dela – Mas não seria possível uma reunião dos Beatles.
John ficou em silêncio, tentando agregar significado às palavras da garota sentada ao seu lado.
- O que isso quer dizer? – ele perguntou, afinal de contas.
- O que eu quero dizer é que... os Beatles nunca chegaram a se reunir... porque era impossível... porque... – ela respirou fundo e fixou os olhos nos de John – Nem todos os integrantes viveram o suficiente para uma reunião.
mordiscou o lábio inferior e observou a reação dele. Primeiro, os olhos dele se estreitaram, como se estivesse lutando para compreender o que ela havia dito, em seguida, se arregalaram levemente e havia uma espécie de dor inconfundível nas írises castanhas dele.
Por fim, ele voltou os olhos para a parede branca da cozinha e ficou na mesma posição por alguns segundos, mas que pareceram horas na cabeça de . Lentamente, ele voltou os olhos para ela e não havia mais nada em seus olhos. Não havia tristeza, desespero, temor... apenas uma espécie de vazio estranho.
- Quando nos conhecemos hoje... – ele murmurou, pronunciando lentamente cada palavra com uma voz rouca – Você não queria acreditar que era eu. Você achou que estava sonhando... – sentiu seu estômago se revirando – Achou que estava sonhando, porque... – ele relutou e, inexplicavelmente, lágrimas subiram aos olhos da garota quando ele fixou os dele sobre ela – De onde você vem... eu estou morto, não estou?
Uma lágrima se desprendeu de um de seus cílios e a secou com um dos dedos; tentou falar, mas não conseguiu encontrar o fôlego necessário para expulsar as palavras que pareciam se acumular em sua garganta. Por isso, limitou-se a concordar com um aceno de cabeça.
Os dois se observaram por um instante, mas antes que qualquer um deles pudesse dizer qualquer coisa, o som da porta da frente se abrindo fez-se ouvir.
- É Yoko! – ele exclamou, parecendo sobressaltado, retirado drasticamente de seus pensamentos; levantou-se e lançou um olhar urgente para – O que quer que você faça, não conte nada do que você me disse para ela, okay?
pigarreou e concordou com um aceno de cabeça.

XxXxX


havia lido muito sobre a figura polêmica de Yoko Ono, a japonesa que roubou o coração de John Lennon e o transformou do vocalista bem humorado dos Beatles no artista solo excêntrico que morava em Nova York e tinha um apartamento para todas as bugigangas tecnológicas que lhe chamavam a atenção.
A garota seguiu Lennon para fora da cozinha e viu quando ele recebeu a japonesa com um abraço apertado, afundando o nariz nos fios escuros, grossos e longos de seus cabelos. Foi como se mais nada no mundo existisse, a não ser eles dois. Yoko ergueu o rosto e John a beijou de uma forma calorosa, sem se importar com o fato de que os estava espionando.
“Ele provavelmente nem lembra mais que eu estou aqui”, ela pensou, sentindo suas bochechas queimando e um desconforto esquentando a sua pele; prudente, desviou os olhos para os próprios pés e permaneceu em silêncio.
não saberia dizer quanto tempo se passou, mas em determinado momento, a voz melódica da japonesa fez-se ouvir:
- Quem é essa?
A garota não precisou erguer os olhos para saber que era a ela que Yoko se referia. Ao contrário da maioria das mulheres que conhecia, que ficariam desconfiadas ou inseguras ao encontrar seu marido com uma garota mais de vinte anos mais nova sozinhos, a esposa de John Lennon fez a pergunta com uma curiosidade quase desinteressada.
- Ah! – John exclamou, confirmando a teoria de que ele havia se esquecido completamente da sua existência com a chegada de Yoko – Yoko, essa é a . , essa é Yoko Ono, minha esposa.
“Eu sei, esqueceu?”, ela quis perguntar, mas logo se lembrou do aviso dele para evitar tocar no assunto com Yoko e limitou-se a sorrir sem graça, enquanto John explicava para a esposa como a garotinha desconhecida parada na porta da cozinha havia salvado Sean de ser sequestrado por um desconhecido.
Assim que o homem terminou o relato, Yoko se afastou do corpo do marido e caminhou a passos decididos na direção de , tomando as duas mãos da garota nas suas e olhando-a no fundo dos olhos com o tipo de firmeza que deixou a mais nova levemente incomodada.
Havia algo a respeito de Yoko Ono. Ela era baixinha, com longos cabelos escuros e uma aparência frágil, mas nada daquilo parecia importar quando ela estava tão próxima; era como se a presença dela preenchesse todo o recinto e, de repente, ela era tão alta quanto uma modelo, seus cabelos contornavam seu rosto do jeito certo... ela era forte como uma leoa, astuta como uma águia e tranquila como um riacho.
- Muito obrigada por ter salvado o meu filho, senhorita – ela murmurou, sem desviar os olhos dos de – Minha dívida com você é eterna. Tem algo que eu possa fazer por você?
- Ah... – a garota soltou, incapaz de pensar em qualquer coisa que pudesse dizer.
- Na verdade, amor – John interveio – não tem onde ficar. Estive pensando que talvez poderíamos pagar uma acomodação em algum hotel por um mês ou dois... até ela conseguir descobrir o que fazer em seguida, ou...
- Não – Yoko o interrompeu, seus olhos ainda fixos no rosto de ; John se calou imediatamente – Ela salvou o nosso Sean; se precisa de um lugar para ficar, , temos um quarto de hóspedes que está sempre vazio. Ele é seu por tanto tempo quanto for preciso.
- Ah... – a jovem balbuciou novamente, desviando os olhos do rosto redondo de Yoko para fixá-los em John, que apenas sorria tranquilo para as duas – Está bem... Obrigada.
O sorriso de Yoko Ono se alargou e ela soltou as mãos de , voltando sua atenção novamente para o marido.
- John, vou para o quarto descansar um pouco... – suspirou, parecendo exausta – Que tal mostrar o quarto para a ? Depois, talvez, você queira se juntar a mim...?
se sentiu mortificada. John riu e concordou, dado um beijo estalado na bochecha da esposa, que entrou num dos corredores e desapareceu de vista. O antigo vocalista dos Beatles esperou até que tivesse certeza de que não poderiam ser ouvidos por Yoko e voltou-se para a garota.
- Ela vai te fazer muitas perguntas – informou, num tom grave – Sobre a sua vida. Seus pais. Seus amigos. Sobre... tudo. O que quer que você faça, não conte a verdade para ela. Se ela souber que você vem do futuro... – ele se interrompeu como se a hipótese fosse dolorosa demais para ser considerada – Ela não pode saber.
- Está bem – concordou, relutante.
- Me prometa – John insistiu, fixando seus olhos nos dela.
- Prometo! – a garota rebateu, sustentando o olhar dele.
John ficou mais alguns instantes em silêncio, estudando-a, como se estivesse tentando decidir se poderia confiar em para manter o segredo de Yoko. Depois de algum tempo, concordou com um aceno de cabeça e fez um gesto discreto com a cabeça, indicando que ela devia acompanhá-lo.
Os dois entraram pelo mesmo longo corredor pelo qual Yoko desaparecera e caminharam por algumas portas até que John abriu uma em específico. O quarto era maior do que tinha no apartamento dos pais; havia uma cama de casal arrumada e intacta, mas o que mais chamou atenção da garota eram os livros. As paredes estavam escondidas por prateleiras repletas dos mais diversos exemplares. Imediatamente, as pontas dos dedos dela começaram a coçar, ansiosos por folhear alguns deles.
Afinal de contas, quantas pessoas poderiam dizer que haviam inspecionado pessoalmente a biblioteca pessoal de John Lennon e Yoko Ono?
- Sinta-se à vontade para ler alguma coisa, se você quiser – o homem se pronunciou, quase como se tivesse lido a mente dela – Agora, se você me der licença, vou visitar minha esposa.
- Certo – murmurou, caminhando até a estante mais próxima.
Seus olhos começaram a varrer os títulos e os autores, tão entretida que mal percebeu quando John saiu do quarto, fechando a porta cuidadosamente às suas costas. Escolheu “O Conto das Duas Cidades”, de Charles Dickens, e deitou na cama, perdendo-se nas primeiras páginas do livro.

XxXxX


Cerca de uma hora depois, foi convidada por John e Yoko para jantar. Deixando o livro de lado e tomando o cuidado de guardar o seu iPod dentro da gaveta do criado-mudo, a garota juntou-se a eles numa longa e magistral mesa de mogno que era grande demais para uma família composta por apenas três pessoas.
O jantar foi delicioso. Pratos vegetarianos perfeitamente cozinhados pela funcionária do apartamento e, mesmo sendo menor de idade, Yoko e John permitiram que ela tomasse uma taça de vinho tinto. O gosto era meio azedo e fez cócegas no seu estômago.
Como John previra, Yoko encheu-a de perguntas, parecendo determinar a descobrir tudo o que se poderia saber sobre a garota. Talvez aquilo fosse um efeito colateral de ser uma artista plástica ou simplesmente um interesse genuíno em relação à pessoa que havia salvado seu único filho.
Como havia feito com John, escolheu cuidadosamente as palavras, optando por meias-verdades e mentindo apenas quando não houvesse forma de responder sem efetivamente revelar o segredo que havia prometido guardar da mulher.
- E os seus pais? Familiares? – Yoko perguntou, estudando-a com os olhos escuros e astutos – Não tem mesmo ninguém que possa acolhê-la? Não que a sua presença seja um infortúnio, é só... eu fico curiosa.
John lançou um olhar tenso na direção de e a garota relutou por alguns instantes, enquanto seu cérebro trabalhava freneticamente atrás de uma resposta aceitável para aquela pergunta.
- Não tenho muito contato com a minha família – ela respondeu, cuidadosa; aquilo era verdade, seus pais raramente a levavam aos eventos familiares – E os meus pais e eu... somos pessoas completamente diferentes – ela sentiu um aperto no peito, porque nunca tinha realmente conversado sobre sua relação com os seus pais de forma franca com ninguém; e, então, ali estava ela. Falando sobre isso com Yoko Ono e John Lennon – Eles estão preocupados com dinheiro e carreira e quase nunca estão em casa. E, ultimamente, não tenho conseguido sequer conversar com eles direito, estão sempre... – ela se interrompeu a tempo, porque a conclusão dessa frase seria “com os olhos presos em seus smartphones” – pensando neles mesmos e no que eles querem e quase nunca se interessam em ouvir o que eu tenho a dizer.
John parecia um pouco menos tenso, satisfeito que a explicação dela tenha conseguido ocultar o fato de que seus pais provavelmente ainda nem tinham se conhecido, considerando que só viria a nascer dali a dezoito anos.
Yoko, por sua vez, observava-a com uma expressão compreensiva e penalizada. percebeu, com algum alívio, que não era o tipo de pena de quem se sente superior, mas do tipo de quem já passou por uma situação semelhante e entende o que o outro está sentindo.
- Eu também tive a minha diferença com os meus pais – a japonesa murmurou, em resposta – Afinal de contas, sou uma artista – deu uma risadinha introspectiva, como se tivesse acabado de contar uma piada interna que só ela entendia – Todos os artistas são incompreendidos pelos seus pais... E entendo que você sinta como se precisasse de um tempo deles... – acrescentou, solidária – Mas saiba que vai passar. Continue a ser como você é e, mais cedo ou mais tarde, eles vão te enxergar do jeito que você é e compreender quem você é. A aceitação vem com o tempo... Mas sabe o que é importante também? – ela acrescentou, como quem compartilha um segredo – Que você também enxergue e aceite os seus pais como eles são. Tente fazer isso e garanto que vai poupar a todos vocês muitas discussões e desentendimentos...
considerou as palavras de Yoko e percebeu com uma pitada de culpa que talvez também estivesse fazendo projeções e colocando expectativas sobre os seus pais, assim como eles faziam com ela. Se queria que seus pais a aceitassem como era, também era razoável que fizesse o mesmo com eles.
- Acho que você está certa – respondeu, levemente agradecida.
- Ela sempre está – John suspirou, lançando um olhar apaixonado na direção da esposa.
Yoko deu um sorriso tranquilo e riu, achando graça da devoção do ex-Beatle pela japonesa. Mentalmente, desejou no futuro encontrar um homem que fosse tão apaixonado por ela como John era por Yoko.

XxXxX


Depois do jantar, voltou para o seu quarto. John havia deixado um pijama emprestado de Yoko sobre a cama, mas a garota optou por continuar com as suas próprias roupas. Muito embora estivesse nas primeiras cem páginas de “O Conto das Duas Cidades”, resolveu analisar mais atentamente a biblioteca à sua disposição.
Seu coração quase parou de bater dentro do peito ao encontrar “In His Own Write”, um livro de contos e poemas escritos pelo próprio John Lennon. Sem pensar duas vezes, puxou o livro da prateleira e deslizou para debaixo dos cobertores, acendendo o abajur ao lado da cama.
Estava entretida na leitura de um dos poemas, incapaz de precisar quanto tempo havia se passado desde que abrira o livro pela primeira vez, quando ouviu o som de algo batendo suavemente contra a porta de madeira do quarto.
- Pode entrar – ela avisou, erguendo os olhos do livro.
A porta se abriu lentamente, revelando o rosto de John.
- Oi – ele murmurou.
- Oi – ela respondeu, fechando o livro, mas tendo o cuidado de marcar a página que estava com o dedo.
- Não consegui dormir – ele explicou, entrando no quarto e fechando a porta suavemente às suas costas.
- Eu também não – ela respondeu, erguendo o livro dele para explicar o motivo de sua insônia – Você escreve bem. É divertido. E leve.
- Obrigado – ele sorriu, mas seus olhos continuavam com o mesmo brilho triste e pensativo; sem pedir licença, ele se sentou sobre os cobertores, ao lado do pé dela – Estive pensando sobre a nossa conversa. Na verdade, não consigo pensar sobre outra coisa desde que conversamos.
Houve uma breve pausa após a confissão dele, mas não soube o que dizer. Parte dela tinha a impressão que não havia nada que pudesse ser dito. Por isso, esperou.
- Fiquei me virando na cama, sabe? – ele ofereceu um sorrisinho triste – Tentando imaginar como acontece. Doença? Overdose? Morte natural? Assassinato? Suicídio? São tantas alternativas e... eu nunca tinha realmente pensado sobre isso. É idiota, certo? A morte é uma promessa que nos é feita no momento em que nascemos, mas... mesmo assim... nós temos essa estranha sensação de que somos infinitos. Imortais. Eternos – ele desviou os olhos do rosto de para as próprias mãos – Eu fiz as contas... em 2014, eu teria completado 74 anos – deu uma risada verdadeira, como se a ideia de se imaginar um idoso fosse divertida demais – E, honestamente, eu nunca pensei em viver tanto assim. Então... depois de pensar muito a respeito... resolvi que não quero saber – voltou os olhos para ela, parecendo incerto.
sentiu seu coração apertado dentro do peito. O sofrimento estava estampado no rosto dele e ela se sentia responsável por ele. Talvez não devesse ter dito nada.
- Mas e se você puder evitar que isso aconteça? – ela insistiu, sentindo a garganta apertada e a voz saiu um pouco trêmula – E se eu te contar e você puder mudar o rumo das coisas? Viver por mais tempo? Não... não valeria a pena, então?
- E se, tentando evitar que aconteça, eu acabe fazendo exatamente a mesma coisa? Ou, então, tentando evitar, eu acabe morrendo de outro jeito, mais cedo? E se as coisas acontecem do jeito que elas têm que acontecer, e nós simplesmente temos que aceitar e entender isso? – ele rebateu, num tom de voz suave – Acredite, eu pensei nisso. Passei as últimas horas tentando decidir o que aconteceria se você me explicasse como acontece. Mas tudo o que eu consigo imaginar é que é como se você fosse me dar uma sentença de morte, entende? Se você disser “John, você morre em uma semana”, tudo o que eu vou pensar ao acordar amanhã é “eu tenho apenas mais seis dias para viver” e, honestamente? Eu enlouqueceria.
mordiscou o lábio inferior e concordou com um aceno de cabeça.
- Se eu não souber quando, ou onde, ou como, ou porquê... – ele continuou, incentivado pelo silêncio dela – Eu continuo no mesmo lugar, entende? Eu vou morrer, tudo bem. Eu sabia disso. Quero dizer, eu nunca tinha realmente pensado sobre isso, mas não era uma novidade que isso aconteceria. Você também vai morrer. A Yoko. Sean. Todos morrem. Quando eu acordar amanhã, não vou pensar “só tenho mais sei-lá-quantos dias de vida”, vou pensar “estou vivo hoje”... E prefiro esse pensamento ao outro. Isso é loucura?
Inexplicavelmente, os olhos de se encheram de lágrimas e ela negou com um aceno de cabeça.
- Faz completo sentido, John.
- Ótimo – ele sorriu, e, dessa vez, o ato alcançou seus olhos castanhos – Fico feliz. Acho que vou voltar para o meu quarto agora. E tentar dormir. Amanhã é um novo dia, certo?
- Certo – respondeu, sorrindo de volta – E eu vou voltar a ler o seu livro.
John concordou um aceno de cabeça e levantou-se; ele estava com a mão na maçaneta, quando se voltou para ela com uma expressão compenetrada.
- ?
- Hum? – ela voltou os olhos para ele e encontrou-o observando-a com uma expressão relutante.
- Eu fiz alguma diferença? – ele perguntou, afinal; sua expressão era dolorida, como se ele estivesse com medo da pergunta – Quero dizer... Eu... As pessoas... O mundo... Eu fui importante?
abriu a boca, mas nenhuma palavra saiu dela. Seu corpo inteiro parecia pesado e era como se nada mais importasse, a não ser os olhos de John sobre ela e a ansiedade que brilhava neles.
- Hoje, na minha aula... lá em 2014... estávamos discutindo uma guerra que está acontecendo. Milhares de crianças estão morrendo e... é tudo tão triste. Muitas vezes, eu sinto como se o mundo estivesse doente, morrendo... e só eu conseguisse perceber isso, sabe? – ela ofereceu um meio-sorriso – Então, eu cheguei em casa, peguei meu iPod e coloquei “Imagine” para tocar. E, você diz “você pode dizer que sou um sonhador”...
- “Mas não sou o único” – John completou, no ritmo da música, sua voz rouca e repleta de emoção.
sorriu e concordo com um aceno de cabeça.
- Ouvindo a sua voz, lembrei que não estou sozinha. Que existem milhares de pessoas que, como eu e você, conseguem enxergar que algo está errado e que pretendem lutar com todos os instrumentos à sua disposição para transformar o planeta em que vivemos num lugar melhor... – houve um breve instante de silêncio entre eles – Sua música me dá esperança de um futuro melhor. Não só para mim, mas para pessoas espalhadas pelo mundo inteiro. Você importa, sim. Você deixou o mundo um pouco melhor depois que... você sabe – ela pigarreou – Você deu aos sonhadores um hino. Poucas pessoas podem se gabar disso.
Percebeu que os olhos de John marejavam discretamente. Ele pisou algumas vezes antes de sussurrar:
- Obrigado.
- Não, John... Obrigada – ela disse, sustentando o olhar dela.
Ele deu um meio-sorriso e girou a maçaneta, abrindo a porta que dava acesso ao corredor.
- Boa noite, – ele desejou.
- Boa noite, John Lennon – ela retribuiu.
A porta se fechou gentilmente após a saída dele e voltou os olhos para o livro de John em suas mãos. No entanto, as páginas ficaram borradas à medida que as lágrimas nublaram seus olhos.
Em algum momento, sem nem ao menos perceber, caiu no sono.

XxXxX


O som de uma sirene acordou . Quando ela abriu os olhos, encarou o teto do seu próprio quarto e sentiu um alívio e uma decepção galopante, tudo ao mesmo tempo. Esforçou-se ao máximo para se lembrar de tudo daquele sonho, porque ele pareceu tão... real.
Ao contrário de quando havia dormido à tarde, podia ouvir o som da televisão e barulhos da cozinha, o que indicava que seus pais já estavam em casa. Abriu a porta do próprio quarto e saiu para encontrá-los.
Encontrou o pai sentado no sofá, com uma taça de vinho nas mãos, assistindo o noticiário, enquanto sua mãe lutava para separar um pedaço da pizza de queijo que haviam pedido.
- Oi, mãe – murmurou, ainda se sentindo um pouco sonolenta – Como foi o dia no trabalho?
- Oh! Você está aqui! – Miranda se sobressaltou ao observar a filha.
- Ahn... sim – ergueu as sobrancelhas – Estava dormindo no meu quarto.
- Ah... bem, eu não devo ter procurado direito, então – a mãe sorriu para ela – Vai querer um pedaço? Ah! E chegou uma encomenda para você. Seu pai deixou em cima da mesa.
Franzindo o cenho, deixou a mãe tagarelando na cozinha e caminhou até a mesa. Havia um embrulho de papelão sobre a mesa, sem remetente, mas com o nome dela. Curiosa, usou as unhas para abri-lo.
No interior do papelão, estava um iPod igualzinho ao seu, sobre um exemplar do “In His Own Write” exatamente igual ao que tinha lido no seu sonho.
Relutante, engoliu em seco e enfiou a mão dentro do bolso do seu moletom. Vazio.
Com as mãos trêmulas, ela pegou o livro de capa dura e abriu-o.
Na primeira página, numa letra muito singular, estava escrito:

“You may say, I’m a dreamer...
Com muito amor,
John Lennon”.


Um pouco mais embaixo, com uma letra mais feminina e discreta, estava escrito:

“Este foi o último pedido dele.
Com amor,
Yoko Ono”.


Sentindo os olhos se enchendo de lágrimas, fechou o livro e abraçou-o. Apesar dos caminhos molhados em sua bochecha, a garota abriu um sorriso e caminhou em direção ao seu quarto, com o iPod nas mãos.
Sim, era possível que ela tivesse viajado no tempo naquela tarde. Naquele momento, no entanto, tudo o que ela queria verificar era se o seu iPod ainda era capaz de carregar após ter ficado sem bateria por vinte e quatro anos.


FIM



Nota da Autora: Oi, gente!
Há algum tempo atrás, cerca de um ano, eu tive esse sonho no qual eu encontrava o John Lennon e contava para ele sobre o seu assassinato. Acordei e acho que fiquei tão envolvida com essa ideia maluca que nunca cheguei a esquecê-lo, prometendo a mim mesma que um dia faria uma fanfic com essa premissa...
Cheguei a tentar escrevê-la algumas vezes antes, mas nunca deu certo. Não ficava a contento e isso me irritava um pouco. HAHAHA
No entanto, essa semana, a ideia simplesmente ficou grudada na minha cabeça e não me abandonava de jeito nenhum. Por isso, resolvi escrevê-la paralelamente a todos os outros projetos.
Se você gostou da história, ficou com alguma dúvida ou quer falar comigo, sinta-se a vontade para falar comigo no TWITTER ou pela ASK. Além do mais, você pode curtir a página das minhas histórias no facebook! É só clicar AQUI .
Além do mais, estou muito ansiosa para saber o que vocês acharam da ideia e tudo mais! Espero que gostem!
Por favor, não esqueçam de comentar me dizendo o que acharam!
Com muito amor,
@giizwicker.




comments powered by Disqus




Qualquer erro nessa atualização e reclamações somente no e-mail.
Para saber quando essa fic vai atualizar, acompanhe aqui.



TODOS OS DIREITOS RESERVADOS AO SITE FANFIC OBSESSION.