Prólogo
"Ontem eu disse 'adeus' à você." — Aya Kitou




A pista de danças estava cheia e barulhenta, mas eu desviei meus olhos de lá para tentar enxergar as horas enquanto me encaminhava para o bar. Somente quando me apoiei no balcão de mármore escuro e frio que distingui os ponteiros apontando onze e meia da noite. Respirei fundo e encarei um dos garçons, moreno e alto, que me olhava languidamente antes de pedir um copo d’água ao outro garçom que estava atendendo a garota ao meu lado. Ele prontamente largou da menina e se dirigiu para perto do moreno e compartilhou com ele uma risadinha e uma cotovelada. Por mais que meu estômago revirasse com essa atitude idiota, eu não podia falar nada, eles não tinham culpa. Lancei meu olhar para baixo e encarei a pequena porção de pano prata que cobria meu corpo. Ofensa era a última coisa que eu poderia sentir ali, minhas vestimentas praticamente gritavam por uma cantada barata. O gordinho me trouxe a água e um pedaço de papel, que, mais tarde, eu descobri ser um número de um dos quartos daquele hotel. Sorri amarelo para ele e sentei na cadeira próxima, sentindo a água descer pela garganta e fazendo passar por alguns momentos a sensação de enjoo. Girei lentamente a cadeira até estar de costas para o bar e deslizei os olhos pelo local, já estava quase na hora dele aparecer. Uma tontura instantânea verteu minha visão por alguns segundos, fazendo-me segurar firmemente no apoio da cadeira, o que só reforçou o motivo pelo qual eu estava ali. Assim que passou, abri meus olhos e encontrei um par de curiosas esmeraldas olhando para mim com um ar preocupado.

— Está tudo bem, minha cara? — perguntou um homem de aparência sofisticada, que vestia um conjunto social preto.
— Oh, sim. Foi só uma pequena tontura. — dei o melhor de meus sorrisos e agradeci por tudo estar a favor do meu plano.
— Então me deixe acompanhá-la por precaução. Não acharia agradável uma dama como a senhorita perder os sentidos sem que ninguém possa acudi-la. — ele sorriu galante, sentando-se logo ao meu lado. Pelo visto eu nem precisaria recorrer ao primeiro estranho que cruzasse meu caminho na hora certa.
. — sorri e lhe estendi a mão, que ele segurou entre as suas com firmeza e levou aos lábios. Se eu não estivesse tão centrada, isso teria feito cócegas no meu estômago. Mas nem seu sorriso cinematográfico me faria sentir algo a mais ali.
— Bernardo de Lucca. — ele arqueou a sobrancelha e se virou para pedir alguma bebida.

Aproveitei para procurar novamente o relógio e me espantei quando vi que já passava da meia noite. Meus olhos percorreram o salão novamente até encontrar o que eu tanto procurava. Daniel. Ele estava parado na porta, confuso e procurando alguém. Estava exatamente como tinha que estar. Senti uma pontada no coração e outra tontura ameaçou me derrubar, mas eu fui mais forte e me levantei antes que desistisse de tudo. Bernardo me encarava curioso e sorriu abertamente quando estendi minhas mãos para ele. Ele as segurou e, de repente, sua pele, que era macia, parecia feita de concreto e gelo. Seu cheiro, antes agradável, agora tinha um toque irritante de tabaco e sua aparência gloriosa não era mais tão atraente. Mas mesmo assim eu continuei. Puxei-o até onde Daniel estava e assim que me certifiquei que ele poderia nos ver, parei. Uma música muito oportuna começou e eu me virei para encarar Bernardo, seus olhos brilhavam e ele logo me puxou para mais perto. Senti uma vontade louca de empurrá-lo quando ele envolveu minha cintura com seus braços, mas eu não podia, não agora. Girei lentamente com ele até ter Daniel na minha visão periférica e então ter meu medo e plano concretizados. Ele estava estático a alguns passos de mim, como se não acreditasse no que via.
Era a hora certa e eu não podia desistir. Sorri convidativamente para Bernardo e fui me aproximando de seus lábios. No momento em que se tocaram, senti as lágrimas forçando meus olhos, mas as segurei firmemente e deixei que Bernardo terminasse o show por mim, ajudando-me a enterrar sete anos da minha vida.


Capítulo 1

"Mamãe, dentro do meu coração: existe você, que sempre acreditou em mim. A partir de agora conto com você. Desculpa por causar tanta preocupação." — Aya Kitou




O barulho irritante do bip que marcava as batidas do meu coração parecia ficar cada vez mais alto à medida que o tempo passava. Os ponteiros não colaboravam comigo e o meu estômago parecia querer sair pela boca a qualquer momento. Com algum esforço, procurei me inclinar um pouco para cima até sentar na cama silenciosamente, mas minha mão apoiou no ferro errado e este caiu no chão, fazendo um estrondo que eu não duvidaria nada se tivesse sido ouvido na esquina daquele hospital. Minha mãe se levantou de um sobressalto enquanto esquadrinhava cada centímetro meu com as mãos, para se certificar que tudo estava certo.

— Por Deus, menina, não me assuste assim de novo. — bufou enquanto se abaixava para pegar a revista, ainda dentro do plástico transparente, que havia deixado cair no desespero.
— Me desculpe por te acordar assim, estava tentando me sentar, mas parece que errei o cálculo. — dei um sorriso amarelo, enquanto terminava de me ajeitar. — Por que não vai pra casa? Você parece estar cansada, nem abriu a revista pra ver as fofocas. — sorri com a careta e a língua que ela me mandou — Eu te ligo e aviso quando terminar.
— Fique quieta e trate de se concentrar para não tirar essa agulha do lugar — ela olhou para ver se alguma enfermeira passava pelo corredor —, não quero ver nenhuma dessas cavalas te furando hoje de novo.

Olhei o meu braço para me certificar de que a agulha estava no lugar antes de voltar a encarar o rosto cansado de minha mãe. Eu sabia o quão difícil era para ela estar ali, vendo-me passar por tudo isso sem poder fazer nada para ajudar, e acho que esse foi um dos principais motivos para que eu aguentasse a dor e o enjoo sem demonstrar nada enquanto ela estivesse por perto. Eu tinha leucemia e já era a minha terceira sessão de quimioterapia. Algumas enfermeiras já sabiam sobre meu estado, então, de uma em uma hora, elas conseguiam uma desculpa para mamãe sair de lá. Só assim eu podia aliviar um pouco a tensão nos músculos.

— Está tudo bem? — ela parecia preocupada e eu podia imaginar que estivera me olhando enquanto eu suspirava cansada.
— Estou sim, mãe. Vá tomar um café, não precisa ficar me vigiando para que eu não fuja daqui. — sorri abertamente, tentando lhe passar confiança.

Funcionou e, no instante seguinte, ela me passava trezentos e sessenta recomendações para que eu não corresse perigo, ou algo assim. Depositou distraidamente a revista na cadeira e saiu saltitando corredor a fora. Sorri com a imagem dela se afastando, porém, assim que meus olhos pousaram na revista, meu sorriso sumiu e um bolo subiu pela minha garganta. Antes que eu pudesse sequer pensar, alguém já tinha colocado um balde na minha frente e eu despejei ali apenas água e suco gástrico. Era a única coisa que sobrava no fim das sessões no meu estômago. Senti alguém amarrar meu cabelo e levantei a cabeça para enxergar quem era.

— Obrigada, Jessy. — eu sorri para uma enfermeira de aparentemente vinte anos que sempre estava ali comigo.

Ela sorriu de volta e me deu um copo com água para que eu pudesse limpar a minha boca. Cuspi novamente no balde e acenei para que ela o levasse embora, só pioraria meu enjoo, mas antes ela me deixou alguns chicletes de menta para mascar. Joguei dois na boca e voltei minha atenção para a revista.
Eu realmente não havia me enganado, era Daniel Jones na capa. Ele estava lastimável e parecia sair tonto de um bar qualquer. Apertei as folhas da revista nas mãos e a joguei na cadeira que mamãe estava sentada. Senti a cabeça se chocar com o travesseiro e fechei os olhos, impedindo que as lágrimas caíssem. “Foi o melhor pra ele. Foi o melhor pra ele.” Era a frase que ficava rodando na minha mente e aliviava um pouco a dor em meu coração. Quando descobri que estava doente, não precisei pensar muito. Ele era muito famoso e ainda tinha tanto para viver. Era injusto que alguém como eu o fizesse se afastar de toda sua vida. E seria exatamente o que ele teria feito, e com prazer. Eu tinha certeza disso, certeza de que ele ficaria do meu lado até o fim, mas eu não podia fazer isso. Era como levar a vida dele embora comigo e trancá-la num baú onde ele jamais poderia reavê-la. Então, eu preferia sofrer sozinha, porém, com a confiança de que, no futuro, sua vida seria melhor, que ele se desligaria de mim e que continuaria com seus shows ao redor do mundo, conquistando sorrisos e corações. Porque era isso que ele fazia, conquistava. Conquistava amor, felicidade, carinho, benevolência, amizade e tudo o que poderia ser considerado bom. Era um peso grande demais acabar com tudo isso, então eu tomei a minha decisão. Não foi tão difícil armar um plano, afinal, eu o conhecia como a palma de minha própria mão e sabia exatamente o que fazer para que ele nunca mais me procurasse. O mais difícil não foi planejar. O mais difícil foi colocar esse plano em prática.

— Por que você está chorando, meu anjo? — ouvi a voz preocupada de minha mãe se aproximando rapidamente pelo corredor, e só então notei que soluçava como criança. — Dói? — ela perguntou, segurando suas próprias lágrimas enquanto se embrenhava ao meu lado na cama.

No momento em que ela puxou minha cabeça para seu colo, eu descobri que era mais fraca do que pensava. As lágrimas já não tinham mais freio e os soluços saíam mais altos. Mamãe começou a me embalar, já sem tentar segurar as lágrimas que corriam em sincronia com as minhas enquanto sussurrava para mim.

— Me desculpe. — ela soltava com a voz fraca. — Me perdoe por não poder te ajudar.

Meus olhos ardiam e minha mente parecia pesar toneladas, mas, mesmo assim, eu tive certeza quando ela entendeu o que estava acontecendo. Seu corpo se retesou e ela chutou a cadeira com o pé para que ela virasse no chão, levando a revista junto.


Capítulo 2

"Por que essa doença me escolheu? Destino é algo que não se pode colocar em palavras." — Aya Kitou




A tela da TV plana de LCD mudava constantemente a imagem e eu já podia sentir a câimbra no dedo de tanto apertar o mesmo botão do controle remoto. Bufando, joguei-o em algum canto e deixei em um documentário sobre hienas. Olhei no relógio só para constatar que ainda faltavam três horas e meia para mamãe voltar para casa. Minha bexiga já estava incomodando e eu não podia mais esperar a boa vontade de alguém. Tirei todos os quilos de cobertor que me esquentavam e, com excessiva lentidão, me levantei, rezando para que eu conseguisse segurar até o fim do percurso que terminava na privada. Já se foram quatro sessões de quimioterapia, sendo a última no dia anterior mesmo, e eu estava completamente acabada. Poderia até dizer que cinco lutadores de sumô se jogaram sem dó em cima do meu pobre e frágil corpinho, e não era só pela dor e pela fraqueza. Eu também tinha manchas horríveis e roxas em pelo menos oito lugares pelo corpo, além de um rosto de defunto e várias pintinhas vermelhas arroxeadas. Sim, eu estava um desastre, mas até que estava otimista. O médico havia me dito que tinha grandes chances de melhora com as sessões sendo feitas regularmente e só faltavam seis, eu já estava quase na metade do tratamento.
Depois de cinco minutos, eu consegui chegar à porta e, por sorte, aguentei o resto do percurso. O barulho da urina saindo parecia sinfonia para os meus ouvidos e um ‘ah’ de satisfação escapou, fazendo-me rir da situação idiota. Levantei-me para dar descarga e lavar as mãos, mas me distraí com o espelho no fim. Eu realmente estava doente, qualquer um que me visse poderia dizer isso. Não só pelas olheiras fundas que estavam marcadas no meu rosto, como também pela opacidade dos olhos. Não brilhavam, não como antes. Suspirei e passei uma das mãos pelo cabelo. Assim que a voltei na posição inicial, senti meus olhos se encherem de lágrimas ao encarar o pequeno chumaço de cabelo preso entre meus dedos. Eu sabia que já havia várias falhas na parte de trás, mas tinha resolvido deixar de lado pelo fato de não conseguir vê-las. Porém, esse pouco de cabelo era da frente e claramente eu podia ver um buraco mal feito onde antes era a minha franja. Uma lagrima solitária escapou, esquentando o caminho por onde corria e eu já sabia o que devia fazer.
Abri a segunda gaveta do armarinho e encontrei a máquina que o meu irmão mais velho usava para aparar o próprio cabelo quando ainda morava aqui. O cheiro de sua loção de barbear ainda intacta se expandiu no ar, fazendo-me sentir saudades. Ele fora estudar fora e só voltava nas férias para passar alguns dias conosco. Encarei uma última vez a minha imagem no espelho e conectei a máquina na tomada.
Senti as pernas fraquejarem, mas me segurei forte na pia, eu só precisava aguentar mais alguns minutos, só isso. Apertei o botão que ligava e o barulho da máquina foi a única coisa que eu escutei por um minuto. Mas quando ela encostou-se ao meu couro cabeludo o estrondo dos meus soluços acompanhavam disformemente o barulho coordenado do aparelho que cortava aquilo que eu cuidei com tanto carinho por quase toda a vida. Três horas e alguns minutos depois minha mãe abriu a porta da sala e seu olhar se tornou instantaneamente marejado quando avistou a minha figura ainda chorando no sofá, sendo esquentada por quilos de cobertores.


Capítulo 3

“Coloquei a mão no meu peito. Posso sentir meu coração batendo.
Meu coração está funcionando.
Estou feliz. Eu ainda estou viva!” — Aya Kitou




— Você vai mesmo continuar com isso? Eu preciso muito ir ao banheiro daqui a pouco e sabe que detesto ficar curiosa. — bufei enquanto mastigava meu cereal da manhã e encarava frustrada o sorriso besta no rosto de mamãe. — Você é uma mulher muito má, sabe disso não?
— É claro que sei, ou não estaria pagando meus pecados te aguentando por toda uma vida. — ela sorriu mais ainda e eu apenas sacudi a cabeça negativamente.
— Você reclama do privilégio de ter uma filha como eu, tão boa e tão adorável. — ergui a cabeça enquanto fazia uma pose digna de uma rainha, embora não combinasse muito bem com o meu pijama de bolinhas e o meu estado, jogada na cama, mastigando cereal integral para não acabar com a pouca saúde que me restava.

Foi então que uma voz diferente invadiu o ambiente, fazendo-me virar a cabeça para porta com tamanha rapidez que até a vasilha de cereal eu consegui derrubar.

— Adorável? Realmente! Nem comer um cereal com decência você consegue! — foi uma das visões mais felizes do meu dia.
! — abri um sorriso maior do que minha mandíbula aguentava, mas nem a dor me fez fechá-lo. — Seu desnaturado, venha me abraçar!
— Seu desejo, uma ordem. — ele bateu continência, sorrindo, antes de dar a volta na cama e se sentar ao meu lado. — Senti tanto a sua falta, maninha. — suspirou enquanto apertava as minhas costelas em um abraço de urso.
— Mas não precisa me matar asfixiada por isso. — sorri feliz enquanto ele me soltava se desculpando.

Eu podia ver a preocupação no olhar dele, porém, não queria que a tristeza estragasse esse momento.

— Vamos, pegue logo um pano e limpe a bagunça que eu fiz. Agora que você voltou vai virar meu mordomo pessoal. — gargalhei enquanto ele fazia um bico enorme e implorava a mamãe que limpasse por ele.

Assim que ela desceu, ele se deitou ao meu lado e tirou um embrulho do bolso. Entregou-me dizendo que era só uma lembrança e escondeu a cara embaixo da coberta. Eu ri enquanto abria a embalagem e o que tinha lá dentro me deixou encantada.
Desde pequeno ele tinha aptidão para criar, então eu sempre arranjava pedras, argila e até madeira para que ele esculpisse sua criatividade. Mas desde que papai se fora, eu não o vira mais fazer isso, e ali dentro estava a única coisa que eu não esperava. Um lindo cavalo marinho esculpido em pedra sorria para mim. Enxuguei algumas das lágrimas que ameaçavam cair e bati suavemente no cobertor volumoso ao meu lado.

— Quem é? — ele perguntou brincalhão.
— Hum, a garota que mais ama o seu irmão. A única no mundo, porque irmãos mais velhos são supostamente chatos, né, então você sabe... — não consegui terminar porque ele já tinha colocado a mão para fora do cobertor e afundado-a na minha cabeça em um cafuné com uma força um pouco desmedida.
— Por Deus, menino, você vai arrancar a cabeça da sua irmã assim. — mamãe bufou enquanto enxugava o chão e recolhia os restos mortais do meu cereal.

Fiz um bico enorme na cara e o direcionei a , ele sabia tão bem o que eu queria que já tinha começado a resmungar.

— Nem adianta me olhar com esses olhos pidões, não vou ao mercado comprar doce de abóbora pra você. — ele fechou a cara numa expressão séria totalmente fingida. — Sabe quanto custa as minhas perninhas aqui? MUITO!

Dez minutos depois, eu estava sozinha no quarto. Ele e mamãe foram ao mercado comprar meu doce.
Suspirei, contente que ele estivesse aqui. Eu havia sentido muito sua falta e tinha medo que algo acontecesse antes que eu sequer pudesse vê-lo. Já tinha passado por sete sessões de quimioterapia e o meu estado parecia só piorar. As olheiras estavam cada vez mais fundas e qualquer movimento mais brusco acabava comigo. Olhei os ponteiros do relógio, mas antes que eu pudesse identificar as horas, senti minha bexiga arder.

— Droga. — murmurei baixo enquanto me lembrava de que estava apertada desde quando mamãe tinha entrado no quarto com meu café da manhã.

Com um pouco mais de dificuldade, retirei os cobertores de cima de mim e estiquei a cabeça para ver onde estavam meus chinelos. Cautelosamente me virei e desci os pés da cama, indo direto na pantufa enorme do tigrão e os encaixei lá. Peguei um pouco de ar antes de levantar e juntei toda força que tinha para segurar a bexiga. Passo por passo, grão por grão. Parecia que eu nunca ia conseguir chegar ao banheiro a tempo, meus pés não ajudavam. Por fim, consegui sair do quarto, apoiando-me na parede e implorando à minha bexiga que aguentasse mais um pouco.
A televisão da sala estava ligada e, por um segundo, eu me distraí com o grande sorriso estampado no rosto de um apresentador qualquer. Foi só por um segundo, mas foi o segundo que me debilitou. Minhas pernas fraquejaram quando eu tropecei em um dos fios que estavam espalhados pelo chão, e, antes que eu pudesse raciocinar, ouvi o baque surdo do meu corpo batendo no chão e o meu próprio gemido de dor. Fechei os olhos com força sem segurar as lágrimas que desciam e tentei me levantar. Não consegui. Porém, o esforço que eu fiz para tentar, acabou por terminar comigo. Senti o líquido quente descer pelas minhas pernas, molhando minha calça e ensopando o chão a minha volta. Gritei com toda força que tinha... Mas não saiu nenhum som da minha garganta. No mesmo instante, a porta se abriu e meu irmão entrou sorridente por ela.

— Maninha! — ele gritou, ainda achando que eu estaria no quarto. — Mamãe está pegando seu doce e mais algumas coisas no porta-malas, você vai...

Sua voz sumiu quando seus olhos encontraram minha figura e ele ficou completamente estático. Senti meus olhos arderem e não consegui frear as ondas de soluços que sacudiam violentamente meu corpo dolorido. Ele deu um passo à frente na minha direção e eu gritei saísse dali. Mamãe apareceu na porta sem entender nada e, assim que me viu, largou tudo no chão para correr até mim. No meio do percurso, virou-dr e falou com .

— Vá guardar essas coisas na cozinha. — olhou preocupada pra ele. — E fique por lá.

A primeira coisa que ela fez foi me abraçar ao mesmo tempo em que meus soluços pioraram, sussurrando que tudo ia ficar bem. Que tudo ia ficar bem.


"Com tanta raiva, com tanta vergonha, sem poder fazer nada...
Eu choro. Que fraca, não?" — Aya Kitou


XXXX


Meus músculos já não me obedeciam e eu parecia simplesmente não estar ali. A água do chuveiro caía, molhando meu corpo e fazendo arder algumas feridas, mas eu não me importava. Mamãe me olhava com compaixão enquanto esfregava shampoo no meu cabelo e isso só parecia piorar minha situação. Ela terminou meu banho e enquanto me ajudava a colocar um moletom foi que trocamos as primeiras palavras depois do ocorrido.

— É bom pensar em alguma maneira. — ela sussurrou, amorosa, enquanto me cobria e afagava minha cabeça. — Se você achar que não chegará a tempo no banheiro, não seria bom estipular horários?

Meus olhos já estavam cheios de lágrimas novamente e meu coração parecia se espremer dentro do meu peito.

— Que tal a cada três horas? — ela perguntou enquanto beijava minha testa.

Eu somente concordei com a cabeça e tentei sorrir para ela. Nesse instante, alguém bateu na porta. E eu sabia muito bem quem era. Assim que ele entrou, mamãe se despediu e nos deixou sozinhos. Senti as lágrimas já rolando, mas não tive tempo de enxugá-las, pois as mãos de de repente já estavam lá fazendo isso por mim.

— Você está bem? — ele perguntou numa voz baixa.
— Eu acho que estou. — suspirei pesadamente. — Eu tenho que estar.

Ele me encarou por algum tempo antes de pular para o outro lado da cama e se enfiar debaixo do cobertor como fazia antigamente. Isso me fez sorrir, mas também me fez lembrar o passado. Todas as vezes que eu tinha o coração partido, fazia isso e conversava comigo por um bom tempo, até que eu me acalmasse. Todas as vezes que eu tive o coração partido foram por causa de Daniel.

Flashback

Que direito ele achava que tinha de fazer isso comigo? Que direito ele achava que tinha de fazer isso com a minha melhor amiga? A raiva era tão grande que as lágrimas já não tinham mais freio. Minha vontade era pegar um pedaço de madeira e enfiar trocentas vezes na sua cabeça, mas sabia que era só por causa da raiva momentânea. Para falar a verdade, eu havia gostado. Muito mais do que devia. E isso que me dava raiva, eu me sentia traindo a minha melhor amiga. Mais do que isso, eu me sentia como se tivesse acabado de perder meu melhor amigo. A porta se abriu bruscamente e entrou correndo por ela.

— O que aconteceu, ? Por que você entrou correndo em casa? — ele se desesperava enquanto verificava se eu não tinha algum ferimento.
— Eu fiz merda, . Eu acabei com a minha vida. — resmunguei enquanto me jogava na cama.
— Por Deus, só não me diga que matou alguém, não quero ser cúmplice. — ele brincou, tentando me animar.
— Eu beijei o Daniel. — olhei arrependida para ele, mas desviei o olhar assim que vi sua expressão de choque. — Eu beijei o namorado da minha melhor amiga. Eu beijei o meu melhor amigo.

O silêncio reinou por um minuto, e a agonia começou a mastigar meu coração.

— Você gosta dele? — ele me perguntou sério, mas eu não tinha certeza do que responder.

Encarei o chão e imagens de momentos que passei com Daniel começaram a rodear minha mente. Batidas incessantes me fizeram voltar a realidade e só depois de alguns segundos que notei serem as batidas do meu coração. Foi então que eu descobri que sempre estivera apaixonada por ele, eu só havia fechado os meus olhos para isso. Senti mais lágrimas brotarem quando encarei os olhos do meu irmão e tudo o que eu pude fazer foi confirmar com a cabeça.

Fim do Flashback

— Como o Danny está lidando com tudo isso? — ele perguntou, distraído com as estrelinhas do edredom.
— Ele não sabe.

Pelo silêncio que se instalou no lugar, eu pude perceber que ele não gostava dessa perspectiva.

— Por quê? — ele soltou depois de algum tempo.

Fechei meus olhos e deixei que a imagem de Daniel e seus olhos, cravados sempre na minha alma, aflorasse em minha mente. Ele sorria e, como sempre, parecia esbanjar uma luz em torno de si. Eu não poderia suportar se ela luz um dia se apagasse. Pior ainda se fosse por minha causa.

— Quando penso no meu futuro, eu não vejo nada. — soprei enquanto olhava inexpressivamente para o teto. — Eu ao menos sei se vou continuar viva até a próxima semana.
— Não diga isso. — ele sussurrou e eu sabia que provavelmente estava segurando o choro.
— Ele tem um futuro brilhante pela frente e eu não posso oferecer nada. — respirei fundo e escutei um soluço sendo contido. — A única coisa que eu posso renunciar por ele, é a mim mesma. — em menos tempo do que seria possível, seus braços me puxaram para perto, apertando-me carinhosamente e ele afundou seu rosto no meu ombro enquanto chorava como um bebê. E eu o acompanhava na triste sinfonia de lágrimas.


"Ao lembrar do passado as lágrimas escorrem inevitavelmente.
A realidade é muito cruel, muito rígida.
Não posso nem ao menos sonhar.
Se imaginar o futuro, ainda outras lágrimas escorrem." — Aya Kitou





Capítulo 4

"O que tem de mais em cair?
Você pode se levantar de novo.
Se olhar o céu depois de cair, o céu azul, hoje também,
Se estende infinitamente e sorri." — Aya Kitou




— E aí? O que você acha? — coçou o queixo enquanto enfiava o jornal na minha cara.
— Se você puder afastar esse papel um pouco, eu talvez possa enxergar o que você quer me mostrar. — sorri sarcástica pra ele.
— Mas nem desmoronando numa cama você perde seu humor, hein?! — ele sorriu e afastou o papel.

Circulado por um marca texto amarelo estava o anúncio de uma casa na praia. Beira-mar, pedaço de praia privada, mobiliada, clima agradável, a apenas 2 km de um hospital. Franzi o rosto, tentando decidir se era uma decisão apropriada me mudar.

— Vamos, não faça essa cara. Vai ser melhor assim, você verá! — ele sorriu, passando-me confiança. — Não precisamos de mais acidentes como o último, certo?

Apertei os punhos quando a lembrança invadiu a minha cabeça. Realmente, não precisávamos de mais um desses.

Flashback

Eu já estava me sentindo melhor, geralmente sempre me sentia assim uma semana antes da próxima sessão. Acho que era porque completava sempre três semanas desde a última e era quando meu corpo estava menos cansado. A ideia de sair um pouco me pareceu espetacular assim que coloquei um de meus melhores conjuntos combinando com um lenço amarrado na cabeça. Tudo estava perfeitamente bem, nós decidimos ir ao shopping dar uma volta. Mamãe me comprou alguns mimos e inventava de me carregar nas suas costas em todo tipo de escada que não fosse rolante. E, infelizmente ou não, só havia uma escada rolante dentre todas as quinze do edifício. Era o fim de semana perfeito.

— Você prefere de morango ou de cereja? — perguntei para mamãe enquanto olhava o cardápio de preço e sabor do milkshake, mas não recebi resposta.

Achei que fosse por causa do barulho que estava na praça de alimentação, então perguntei de novo, porém, continuei sem resposta. Virei-me para trás e encontrei mamãe estática no mesmo lugar e me encarando preocupado. Cheguei até a desconfiar que meu rosto podia estar perdendo a cor, mas antes que eu pudesse concluir algo, meus olhos congelaram no mesmo lugar. Por Deus, o que ele estava fazendo ali? Vinham ele e seus colegas de banda, sendo seguidos por pelo menos cem fãs e uma dúzia de fotógrafos. Meu coração ameaçou sair voando e uma tontura começou a embaçar minha visão. Automaticamente me apoiei em e pedi que ele me tirasse dali. Ele me pegou no colo no mesmo momento que meus olhos encontraram os azuis de Daniel, e então eu apaguei.

Fim de Flashback

— Acho que você tem razão. Quando nos mudamos? — sorri brincalhona.
— Se você quiser, podemos ir amanhã mesmo. — respondeu, encarando-me sério, o que me assustou um pouco.
— Você está falando sério? — arqueei uma das minhas sobrancelhas, quase inexistentes, desconfiada.
— Claro que sim. — ele sorriu. — Não vamos ficar muito tempo lá, é só até você melhorar. — completou como se estivesse dizendo que o céu é azul.

Senti meu interior se aquecer com o otimismo dele e só o que pude fazer foi sorrir e dizer:

— Então amanhã quero conhecer minha casa de férias.


XXX


Estava quase terminando de amarrar meus sapatos quando o telefone tocou. Logo alguém atendeu, então voltei a atenção ao barulho das ondas logo atrás da minha janela enquanto finalizava o serviço no meu velho all star. Hoje seria a minha penúltima sessão de quimioterapia e eu estava um pouco ansiosa, mas sempre que olhava aquela imensidão azul me acalmava. Acho que era por isso que havia escolhido de cara o único quarto com a sacada de frente para o mar. Dirigi-me lentamente até a cerca da sacada e me apoiei nela, deixando que a brisa tocasse meu rosto. Porém, não tive muito tempo, porque logo mamãe entrou histérica no quarto, dizendo-me que o doutor estava na cidade e havia adiantado a consulta com urgência.

— O que isso quer dizer? — perguntei enquanto apanhava minha malinha de primeiro socorros, vulgo alguns chicletes, palavras cruzadas e baralhos.
— Que estamos atrasadas. — ela respondeu enquanto me arrastava até o carro.

Mamãe, apesar de ainda estar preocupada, agora se estressava bem menos. Era visível que o ar marinho fazia tão bem para ela quanto para mim.

Encostei a cabeça na janela e fiquei observando a paisagem. Algumas crianças no parque central da cidade brincavam com seus pais e ainda alguns casais de velhinhos jogavam damas sorrindo. Assim, não notei quando chegamos ao hospital. Só caí em mim quando mamãe abriu a porta do carro para mim.

— Vamos, meu anjo. — ela me deu a mão, que eu usei de apoio para levantar.

Fomos andando calmamente até a entrada, mas o que eu vi me deixou tensa. Doutor nos esperava logo na entrada com quilos de papéis e envelopes em um dos braços.

— Sejam bem-vindas novamente. — ele sorriu e usou a mão livre para nos cumprimentar.

Seguimos-o até seu escritório e a cada passo que ele dava meu coração tremia. Ele sempre nos atendia no quarto, só quando me deu a notícia da doença que nos levou a um escritório. É claro que não era o mesmo, estávamos em uma cidade diferente, mas ele havia feito questão de viajar algumas horas para me atender hoje.

— Tenho novidades. — ele disse tranquilamente assim que sentamos em sua mesa improvisada.
— O que aconteceu? — mamãe perguntou receosa e ao menos imaginava o que estava por vir.
— Conseguimos um doador compatível. — ele sorriu abertamente para nós e eu senti algo reascender dentro de mim. Só mais tarde que eu fui descobrir que era a esperança.


Capítulo 5

"A alegria vem depois da tristeza." — Aya Kitou




Mamãe andava inquieta de um lado pro outro na sala de espera e eu apenas ria de sua ansiedade. Já se completavam três semanas desde que haviam encontrado o doador e tudo o que eu sabia sobre ele, ou ela, era que estava no mesmo hospital que eu, recuperando-se da extração de parte da sua medula. Os médicos estavam preparando a minha transfusão e logo me chamariam.
Eu não estava nada tranquila, mas não podia fraquejar ou minha mãe teria que ser internada por AVC. Toda vez que ela me olhava com seus olhos contraídos, eu apenas sorria docemente e voltava a ler a revista, a qual eu não fazia ideia do conteúdo, e podia apostar que também não estava muito interessado na televisão.
Só precisei esperar mais dez minutos e logo o Dr. apareceu na porta da sala, sorrindo para mim.

— Pronta pra conhecer o quarto que vai ser seu pelos próximos trinta dias? — ele estendeu uma mão para mim.

Eu sorri e fui até ele enquanto mamãe nos seguia e meu irmão arrastava a minha mala. O quarto não ficava longe e era aconchegantemente agradável. Assim que me instalei, com alguns porta-retratos e até pôsteres, a equipe que me acompanharia durante minha estadia entrou pela porta. Enfermeiros, nutricionistas, psicólogos, dentistas e outros que trataria de cuidar de todos os aspectos da minha saúde. Eu já tinha conhecido quase todos durante essas três semanas e fui apresentada aos que faltavam.
Dr. conversava tranquilamente com mamãe, explicando-lhe como seria o procedimento. Eu já havia escutado tanto que praticamente sabia de cor. Nas três semanas anteriores, eles implantaram um cateter venoso no lado direito do meu peito, e era por lá que haviam injetado substâncias que diminuíam a produção normal do meu sangue. E, agora, depois de tudo feito, seria por lá que ocorreria a transfusão do sangue colhido da medula do doador. Esse procedimento seria acompanhado por médicos e enfermeiros, que checariam meus sinais vitais e se certificar de que tudo estava bem. Mas eu só poderia ter um acompanhante no quarto, e como logo teria que voltar para faculdade, a escolhida foi mamãe.
Meu corpo estava muito suscetível a qualquer doença, então tivemos que comprar mantimentos dobrados, pois não poderia dividir nada como mamãe, a não ser o quarto. Encarei o porta-retrato que eu havia especialmente colocado ao lado da minha cama. Eu e Daniel estávamos rindo que nem duas bestas nele, enquanto travávamos uma guerra de areia.
Antes que eu pudesse me lembrar de como havia sido divertido aquele dia, a porta se abriu e um dos meus enfermeiros entrou empurrando uma cadeira de rodas.

— Está pronta? — ele me perguntou, sorrindo.
— Não. — eu respondi um pouco nervosa com um meio sorriso amarelo. — Mas acho que nunca vou estar, então vamos logo com isso. — deixei escapar uma risada nervosa enquanto ele me ajudava a descer da cama e sentar na cadeira. Mamãe pegou alguns livros, duas blusas de frio e nos seguiu até a sala onde seria realizado o transplante.

Mário, o enfermeiro, pediu que eu abrisse os primeiros botões do meu pijama só pra que ele pudesse enxergar a ponta do cateter, e, assim que conseguiu, puxou o suporte que continha minha nova medula. Conectou os dois cateteres e ligou os aparelhos para que tudo começasse. Enquanto mamãe me olhava sorridente, eu podia sentir o sangue quente entrando vagarosamente no meu corpo e, por mais estranho que possa parecer, isso me deu uma sensação de saudades imensas. Fechei os olhos e deixei que as memórias aflorassem na minha mente.

Flashback

— Eu não vou entrar, está muito gelada. — gritei para o garoto de cabelo rebeldemente avermelhado, que sorria para mim enquanto desviava das ondas.

Era a primeira vez que Danny ia à praia e era eu quem estava o levando, isso não podia me deixar mais feliz. Sua expressão quando olhou o mar pela primeira vez estaria gravada em mim para sempre. Agora, ele corria contra as ondas e se jogava nelas com um sorriso enorme no rosto. Eu apenas o observava sentada na minha cadeira de sol, não tinha nenhuma intenção de entrar.

— Não está gelada! — ele afirmou com convicção.
— É claro que não — sorri —, e você também não tem sarda. — ironizei, por fim, enquanto sacudia negativamente a cabeça.

Abaixei momentaneamente para pegar o protetor na bolsa, tempo suficiente para que ele corresse até mim. Seus braços frios e molhados me envolveram e, em meio aos meus gritinhos, só notei que ele me carregava quando já estávamos quase dentro do mar.

— Espera! — eu grunhi, fazendo-o parar assustado. — Me deixei pelo menos tirar os sapatos. — finalizei, fazendo um sorriso enorme aparecer em seu rosto.

Sacudi os pés até as sandálias caírem na areia e, por fim, deixei que ele me levasse. Quando a água começou a tocas minhas canelas, e antes que eu pudesse sequer reclamar da temperatura da mesma, ele correu para o fundo e se jogou na água comigo.

— Cachorro! — eu me levantei indignada, com o cabelo provavelmente lotado de areia.
— Também te amo! — ele respondeu sorrindo e estendeu os braços para me abraçar pela cintura.

Sorri feliz e juntei nossos lábios no mesmo momento que uma brisa gostosa bateu em nossos corpos nos arrepiando.

— O que você acha de ficar comigo pra sempre? — ele perguntou em meio aos beijos.
— Perfeito. — sorri juntando nossas testas.

Eu não precisava de mais nada.

Fim do Flashback

— Não durma, querida. — mamãe sussurrou calmamente para mim. — O último enfermeiro que veio aqui disse que seria melhor que você permanecesse acordada.
— Não estava dormindo. — suspirei. — Apenas perdida em memórias.

Mamãe ficou me encarando por um longo tempo e, quando voltou a falar sua voz parecia cautelosa, como se ela tivesse medo que eu me quebrasse.

— Se o transplante funcionar, o que você vai fazer em relação ao Danny? — senti algumas pontadas no peito, mas me controlei.
— Eu não sei. — respondi sinceramente. — Acho que não farei nada, quem garante que ficarei curada pra sempre?
— Deve estar sendo difícil pra você. — ela segurou forte a minha mão direita.

Uma lágrima solitária marcou seu caminho pelo meu rosto, mas eu a enxuguei antes que outras viessem. Mamãe soltou da minha mão e, parecendo um pouco trêmula, abriu sua bolsa. Tirou um papel de lá e o colocou em minhas mãos.

— Me desculpe, filha, eu recebi isso quando fui ver como estava nossa casa na cidade. A vizinha tinha recebido por nós e, quando eu vi o remetente, preferi esconder de você. — ela apertava as mãos e chorava um pouco. — Me desculpe, eu só não queria te ver mais triste. Minhas mãos tremiam e, sem olhar o remetente, abri a carta. A letra fina e atrapalhada confirmou minha suspeita e um bolo se formou na minha garganta.

“Eu ainda não sei o que está acontecendo, mas creio que você já sabe de tudo o que eu vi.
Às vezes fico pensando em por que tudo isso foi acontecer logo conosco, mas não consigo ficar lembrando por muito tempo, cada segundo que aquela imagem passa pela minha mente é como se mil facas me atingissem ao mesmo tempo.
Não posso te dizer que estou bem, eu não estou. Também não posso te dizer que te perdoo, eu não estou pronto ainda, e ao menos sei se você deseja ser perdoada.
Teria sido melhor se você tivesse pelo menos se explicado, mas você não me procurou.
Tem momentos em que a raiva de você explode e eu não posso evitá-los. Porém, também não posso evitar sentir sua falta.
Daniel”


Meu corpo todo tremia e as lágrimas já não estavam mais sob meu controle. Mamãe abraçava um lado do meu corpo, consolando-me, mas ela não podia fazer passar a única dor que poderia me matar. A dor do meu coração.
Dois enfermeiros vieram ver o que acontecia e pediram que eu me acalmasse, pois isso não seria bom para o transplante. Não foi difícil parar de chorar, as minhas lágrimas já tinham se acabado. E foi exatamente assim, com a carta apertada em uma das minhas mãos e mamãe me abraçando, que eu recebi minha medula, e eu ao menos sabia se ela iria mesmo me curar.


Capítulo 6

"O fato de eu estar viva é uma coisa tão encantadora e maravilhosa que me faz querer viver mais e mais." — Aya Kitou



Sentei na beirada da praia, na parte onde a areia era mais macia, e deixei meus olhos apreciarem a vista. Uma brisa agradável alcançou meu corpo, fazendo-me sorrir ao sentir meu cabelo balançar. Passei a mão por ele, sentindo seu pouco comprimento deslizar pelos meus dedos e isso só fez meu sorriso aumentar.
Já completavam oito meses desde que recebi o transplante. Oito meses que o meu quadro só apresentava melhoras. Oito meses que eu tinha tido a última notícia de Daniel. Lembrar-me dele era bom e agradável, preenchia a falta que ele fazia. Mas pensar nele e no que estaria fazendo destroçava o pedaço de carne que já quase não batia mais no lado esquerdo do meu peito.
Encarei novamente o horizonte e resolvi mudar o rumo dos meus pensamentos antes que me machucasse mais. Há algumas semanas, o Dr. nos disse que o doador havia se contatado com ele, queria me conhecer e ver o bem que tinha feito. Isso me deixou muito feliz e é claro que eu concordei. Seria bom olhar nos olhos da pessoa que salvou minha vida.
Meus olhos procuraram meu relógio de pulso e eu acabei constatando que estava atrasada já. Mamãe não estaria em casa e estava de volta a faculdade, então, pensando nisso deixei a porta aberta para que a pessoa entrasse, caso eu me atrasasse, como sempre fazia. Deixei que a brisa balançasse meus cabelos mais uma vez antes de correr de volta até a varanda de casa.
No caminho, aproveitei para colher mais conchinhas para a minha coleção. Como a camisa que eu usava era bem larga, puxei um pedaço dela, descobrindo parte da minha barriga e usei como bolsa para colocá-las. Devo ter conseguido pelo menos vinte novos formatos e a blusa já estava pesada quando voltei pra casa.
Tirei os chinelos na entrada e, ao entrar, tropecei na porta, deixando escapar um palavrão e uma conchinha. Quando abaixei para pegá-la, alguém pigarreou.

— Me desculpe, a porta estava aberta e eu... — sua voz congelou quando eu levantei meu rosto para encará-lo.

Foi como se o mundo tivesse parado e levado meu coração junto. Ele estava parado em pé ao lado do sofá e seus olhos surpresos me encaravam com descrença. Ouvi um barulho alto que me tirou do transe inicial e percebi que havia derrubado todas as conchinhas no chão.
Meu primeiro reflexo foi abaixar para recolhê-las, mas sua voz me fez parar.

? — prendi a respiração e decidi deixar as conchinhas de lado.

Levantei-me e pedi para que fossemos lá fora. Ele se encostou à parede da varanda e eu sentei na mureta de frente para ele. Apenas dois metros nos separavam e mil coisas embaralhavam a minha mente.

— Por quê? — foi a única coisa que ele pareceu ser capaz de dizer após alguns minutos.
— Eu não podia. — encarei o chão. — Simplesmente não podia fazer isso. Você tinha toda uma vida pela frente, não precisava se prender em algo que acabaria logo. Eu tinha que fazer algo.

Meus olhos desenhavam as linhas da madeira do chão e eu não ousava encará-lo.

— Espere aí! — ele grunhiu com as mãos levantadas. — Você está me dizendo que tudo foi planejado? Tudo o que aconteceu na boate?
— Eu olhava pra você e via um futuro brilhante. — dei um sorriso melancólico, ainda encarando o chão. — E eu? O que eu tinha? — suspirei. — Eu ao menos sabia se estaria viva na próxima semana.

Antes que eu pudesse continuar, ele se aproximou de mim em passos furiosos e rápidos. Apoiou-se com uma das mãos no meu joelho e a outra segurou meu queixo. Ergueu minha cabeça até que eu pudesse encará-lo e segurou-a firme no lugar. Seu rosto estava marcado pelas lágrimas e sua expressão me fazia querer arrancar meu próprio coração do peito.

— Posso te perguntar uma coisa? — ele sussurrou, apertando de leve meu queixo e eu apenas acenei com a cabeça. — Por que você acha que eu fiquei todo esse tempo com você? — ele me encarava. — E todas as vezes que disse que te amava? E todas as vezes que te pedi que ficasse comigo pra sempre? — seus olhos me acusavam. — Você achou que eu estava entediado? Que precisava de uma distração? — grunhiu, apertando meu joelho. — Não. — ele mesmo respondeu depois de alguns segundos. — Se você ficasse do meu lado, pensei que podia atravessar qualquer coisa. Podia até deixar tudo o que já tinha conseguido para trás. — suas lágrimas se juntaram as minhas quando ele encostou seu rosto no meu. — Eu gostava de você tanto assim, e pensei que você sentisse o mesmo. Sem se importar com o que acontecesse, eu pensei que você ficaria do meu lado, e nunca me deixaria ir.

Ele afastou seu rosto do meu e se virou lentamente para ir embora. Não olhou para trás, apenas seguiu até o portão.
As lágrimas agora não paravam mais enquanto eu o assistia ir embora. Inconscientemente, meus pés me levaram dois passos pra frente e tudo o que eu fiz depois foi correr até ele. Agarrei-me em suas costas e chorei.

— Me perdoe, por favor, me perdoe. — mordi os lábios, tentando segurar a dor que cortava a minha alma. — Eu não tinha nada para te oferecer, a única coisa que podia fazer era renunciar a mim mesma, pra que você pudesse ser feliz.

Ele se virou para mim e segurou meu rosto com suas mãos trêmulas.

— E quem foi que te disse que em um mundo sem você eu posso ser feliz? — foi a última coisa que eu ouvi antes que ele juntasse seus lábios nos meus.

“Foi preciso um litro de lágrimas.” — Aya Kitou



FIM



N/A: Bom, acho que vocês perceberam que todas as frases colocadas foram de Aya Kitou. É porque ela é uma das mulheres que eu aprendi a admirar. Infelizmente não sobreviveu, mas deixou seus diários para nos contar sua história. Acho que nós temos que dar mais valor ao que temos, pois tudo pode ser perdido de um dia para o outro, por isso fiz essa fic. Para nos lembrar também de pensar sempre no nosso próximo, afinal NINGUÉM vive sozinho. Espero ter passado a mensagem e obrigada pela oportunidade de participar. :)
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