Ela tentou me pedir perdão. Ela tentou.
Eu estava sentado na areia da praia, fungando, com o rosto vermelho e inchado e
os olhos cheios de lágrimas. Ajeitei o capuz da blusa sobre a cabeça, mesmo que
estivesse fazendo calor, e encarei o horizonte. Não imaginava que as minhas ações
pudessem ter consequências tão destrutivas.
Me levantei cambaleando, e encarei a garrafa vazia que repousava ao meu lado e que havia sido minha companhia pelas
últimas horas, resolvendo levá-la comigo. Caminhei pela grande calçada e parecia
que tudo acontecia ao contrário, como se eu fosse um play e o resto todo fosse um
rewind. Encarava todos os rostos procurando o dela em qualquer corpo que fosse, e
não encontrar me fazia chorar mais. As pessoas se afastavam de mim e alguns
poucos me olhavam com pena, mas se soubessem o verdadeiro motivo do meu
estado, não sentiriam nada além do que o que eu sentia por mim mesmo: raiva e
desprezo.
Entrei no meu apartamento que cheirava agora a comida estragada e joguei as
chaves em algum canto, juntamente com a garrafa, que se estilhaçou. Com um forte
baque apoiei-me na parede, e com outro, cai no chão, levantando uma leve nuvem
de poeira. Ali deitei e voltei a chorar.
Julia me salvou. Eu passava os meus dias no meu emprego de merda e contente
com isso, porque pagava todo o álcool que eu consumia no escuro do meu
apartamento depois. E pagava também as prestações da minha moto, que eu
dificilmente dirigia sóbrio. Minha vida era um ciclo de auto-destruição do qual eu não
queria sair, talvez levando muito a sério o patch bordado na minha jaqueta de couro
que dizia “live fast, die young”. Eu era um imbecil: primeiro por fazer apologia a um
estilo de vida como esse, e depois, por segui-lo… Mas tudo isso mudou quando eu
a conheci.
Eu, como bom alcoólatra que era, estava sempre cedo no bar. E quando digo cedo, é
antes de o movimento começar mesmo. Aquela cena deprimente de um cara
sentado no balcão mandando bebida atrás de bebida enquanto olha com olhos
semi-cerrados pra vida passando à sua volta. Era um desses dias quando essa
garota ruiva apareceu. Felizmente, eu havia acabado de chegar, mal havia sentado,
e por sorte, não havia sido servido ainda. Ela se aproximou timidamente do balcão e
disse que seu carro havia quebrado há um quarteirão dali, que ela precisava de um
mecânico, mas que de imediato, precisava mais de uma carona. Tinha um
compromisso importante do outro lado da cidade. Hale, o dono do estabelecimento,
disse que podia chamar o filho para o problema do carro, mas não tinha como
ajudar com a carona por estar com a habilitação suspensa. Eu olhei de soslaio para
a garota e na hora não sabia porque, mas me levantei e me ofereci para levá-la.
Hoje eu sei que é porque Julia era a mulher da minha vida.
Lembro nitidamente da expressão dela quando viu a moto e confessou, baixo
demais, que morria de medo. Eu ri e falei que não precisava se preocupar, eu dirigia
aquele veículo como se fosse parte de mim. Ela hesitou quando eu dei o capacete a
ela, mas subiu atrás de mim e me segurou com força. Toda vez que me recordo
disso um arrepio exatamente como aquele percorre minha espinha. Não me lembro
de nenhuma ocasião antes daquela na qual dirigi com tanto cuidado e atenção. Os
braços daquela garota envoltos em mim pareciam clamar por segurança, e foi o que
eu tentei dar. Ao chegarmos no destino ela desceu toda estabanada, tirando o
capacete, pegando suas coisas e me agradecendo ao mesmo tempo. Eu disse que não tinha problema e ri, assistindo ela entrar no prédio… E não consegui ir embora.
Normalmente eu já estaria salivando de vontade de voltar pro bar, mas quando me
dei conta de que nem o nome dela eu havia perguntado, eu baixei o pedal da moto
e me encostei nela, ficando ali. Cerca de duas horas depois ela saiu, e ficou
espantada quando me viu. Mas sorriu. Ela sorriu pra mim.
Dei a desculpa de que havia ficado pois ela provavelmente precisaria da carona
para ir embora, e menti que estava de folga. Dali fomos para um café, e nesse café
trocamos o telefone, depois de dois dias fomos jantar. E alguns encontros depois,
dormimos juntos. E na manhã seguinte eu percebi que estava apaixonado. Julia me
dava vontade de viver, vontade de estar são enquanto a vida passava, e não só de
assistir como de costume, mas de entrar no meio dela e participar. Ela estendia a
mão e me puxava pra dentro. Conheci pessoas através dela, o que me deu novas
oportunidades, e assim arrumei um emprego bem melhor. Parei de beber, terminei
de pagar minha moto, e quando Julia me pegou um dia procurando um apartamento
nos jornais, sugeriu com a mesma expressão tímida do dia em que pediu ajuda no
bar que fossemos morar juntos. Julia era tudo que faltava em mim.
Era um dia como qualquer outro quando desliguei a moto, suspirei, e entrei em
nosso prédio. Toquei o bolso da minha velha jaqueta de couro e senti a caixa de
veludo la dentro, não podendo conter o leve sorriso que se formou nos meus lábios.
Um ano e sete meses foi o tempo que eu precisei pra tomar coragem de assumir
algo que eu sabia desde a minha primeira hora com aquela garota: eu queria que
todas as outras que viessem, para o resto da minha vida, fossem ao seu lado. Abri a
porta devagar e o fim de tarde iluminava pobremente nosso apartamento, o que me
fez tropeçar em algo. Era um par de sapatos negros que não eram meus. Meu
estômago embrulhou na hora, e eu depositei a mochila no chão devagar,
caminhando com a mesma cautela corredor adentro até a porta entreaberta do
nosso quarto. Ouvi uma risada leve, sua risada leve, seguida de um gemido sutil.
Meu coração disparou enquanto eu empurrava a porta devagar, apoiando os braços
na cômoda que havia logo ao lado para não perder o equilíbrio, não podendo e
muito menos querendo acreditar no que estava acontecendo. Um cara estava
deitado em nossa cama e suas mãos seguravam a cintura da minha namorada com
firmeza, as pernas de Julia uma de cada lado da cintura dele, ambos nus. Não sei
por quanto tempo eu assisti aquilo até que em um de seus movimentos Julia me viu
parado ali, saltando em seguida em direção às suas roupas. Eu não conseguia tirar
meus olhos do infinito verde dos dela.
- Jacob… - ela tentou começar a falar, mas sua voz falhou. O cara corria os olhos
dela pra mim, e se esgueirou pra fora cortando o silêncio com o baque da porta da
frente batendo ao que ele saiu.
Eu enfiei a mão no bolso, tirando a caixa dali e apertando-a com força dentro do
meu punho cerrado. Se ela fosse um pouco mais frágil, quebraria. Arremessei-a
com toda a força contra Julia, que se encolheu na cama e soltou um grito fraco
enquanto eu ia pra cima dela, apoiando ambas as minhas mãos ao seu redor e
respirando pesadamente, tremendo enquanto sentia que todo meu autocontrole se
esvaia e eu lutava internamente para manter algum.
- Me perdoa, Jacob. Me perdoa… - Ela chorava baixo, encolhida com medo de
alguma reação física que eu pudesse ter. Bruscamente agarrei um de seus pulsos, e
com a outra mão abri a caixa negra de qualquer jeito tirando o anel dali. Enfiei-o no
dedo dela, empurrando-a contra o travesseiro em seguida e me levantando. Julia
arregalou os olhos quando encarou a própria mão, correndo-os então para mim. Dei um sorriso debochado enquanto balançava negativamente a cabeça, em seguida
dei três fortes socos na parede deixando alguns pequenos pontos vermelhos do
meu sangue, e sai dali. Pude ouvir Julia tentar chamar meu nome fracamente em
meio ao seu choro, mas o barulho da porta batendo outra vez, agora atrás de mim,
foi mais alto.
Sentei-me na moto e corri dali forçando o motor ao máximo que ele podia aguentar,
para que o barulho mecânico fosse mais alto que meus gritos. Não sei por quanto
tempo eu corri e nem posso dizer ao certo por onde andei, mas terminei em um
motel na entrada da cidade. Encarei o frigobar e precisaria ser um homem muito
forte para não esvaziar todas as garrafas dali e cair na cama, mas eu não era, não
mais.
No dia seguinte acordei com batidas na minha porta, e abri a mesma amaldiçoando
o sol que entrava no quarto. Quando a claridade me permitiu ver o que estava
acontecendo, quis bater a porta mas parte de mim não deixou. Provavelmente a
moto lá fora havia me denunciado. Julia revezava entre olhar pra mim e pro chão e
trazia o anel no dedo. Me afastei da porta, esfregando os olhos, e fui ao banheiro
jogar uma água no rosto. Ela entrou e fechou a porta atrás de si, olhando em volta.
- Você bebeu… - Ela falou, baixo, e eu apenas a encarei como resposta.
Instantaneamente Julia se arrependeu de como havia começado. - Jacob, me deixa
explicar… - Ela suplicou, tocando meu braço com sua pequena mão trêmula, e eu
não fui capaz de fazer nada por alguns segundos, até cair em mim e me afastar
novamente.
- Não. - Respondi com firmeza. - Eu é quem vou te explicar uma coisa. Acabou. - Me
virei para encara-la, e ela já estava a ponto de chorar novamente. Que desgraça.
Mas eu não podia fraquejar. - Eu não quero mais vê-la, Julia. Não quero ouvir falar
de você ou saber como você está. - Mentira, mentira e mentira. Mas mentiras que
eu precisava contar. - Você foi a melhor e a pior coisa que já me aconteceu na vida.
Se soubesse que seria assim, preferia ter batido a moto bêbado há muito tempo
atrás. Preferia nunca ter te dado aquela carona. - As lágrimas agora escorriam em
grandes quantidades de sua face e ela tentava falar mas não conseguia. - Eu... -
Comecei, mas minha voz falhou por um momento também. Suspirei, me
recompondo. - Eu passo no apartamento quando você estiver no trabalho essa
semana pra pegar as minhas coisas. Deixo a chave com o porteiro.
Ia passar por ela e sair dali, mas ela segurou meu braço. Ela segurou meu braço,
me contornou e se agarrou em mim. Julia soluçava como uma criança mas respirou
fundo algumas vezes e conseguiu falar. Ela me encarou nos olhos pra isso. - Jacob,
por favor… Eu te amo. Me perdoa, me perdoa. Eu não sei onde eu estava com a
cabeça! Eu não quero te perder! - Ela falava alto agora, e me apertava cada vez
mais. - ME PERDOA JACOB! EU NÃO VOU SABER O QUE FAZER! - Ela gritou
contra o meu peito, que agora doía inteiro e tamanho o mal estar que eu sentia.
- Julia… - Chamei seu nome, segurando seu rosto com ambas as mãos. Encarei-a,
aceitando enfim que qualquer coisa que eu tivesse dentro de mim estava morta
agora. - Eu não me importo mais com você.
Soltei-a e caminhei pra fora, montando na moto e indo embora dali. O que veio a
seguir é um grande borrão em minha mente, um borrão que há muito eu havia
deixado para trás.
No dia seguinte - ou melhor dizendo, noite, pois já eram quase seis - acordei jogado
de qualquer jeito na cama de outro motel qualquer, com o quarto rodando e o cheiro de álcool barato impregnado em mim como se fosse um aroma natural do meu ser.
Fui ao banheiro e joguei um pouco de água fria no rosto encarando o relógio. Por
mais que minha única vontade fosse beber até todos os meus órgãos internos
derreterem, eu precisava pensar no que fazer, e por mais que o plano parecesse ser
dormir bêbado em qualquer canto que eu pudesse pagar por hora, eu precisava de
algumas roupas limpas e Julia não estaria em casa agora. Sempre trabalhava até
bem mais tarde que isso. Meu celular acusava algumas chamadas perdidas do meu
trabalho, e eu suspirei. Resolveria isso mais tarde. Montei na moto e fui até o nosso
apartamento, dela apenas, agora. Uma chuva leve começou a cair quando cheguei.
Ao entrar na sala, uma náusea tomou conta de mim novamente carregada de
lembranças de alguns dias antes. Fui para o quarto respirando pesadamente,
estava com pressa de arrumar tudo logo e sair dali pra poder mais uma vez comprar
meu esquecimento em forma de bebida, e pouco tempo depois tinha duas malas
feitas. Fui ao banheiro e me encarei no espelho respirando fundo algumas vezes.
Era difícil. Ao sair, pisei em algo que quebrou e quando removi meu pé vi um pote
de remédios jogado no chão completamente vazio. Apanhei-o, mas tão logo o fiz
soltei novamente, sacando o celular e discando o número dela. Ouvi algo vibrando
na sala e corri até lá, apenas pra encarar o celular sobre a mesa de centro piscando
inutilmente. Olhei em volta, as chaves do seu carro estavam penduradas no
chaveiro, então ela não podia ter ido longe. Corri dali, descendo as escadas
desesperadamente enquanto tentava discar o número de algum dos amigos dela, mas ao que passei pela portaria o homem calvo que ali trabalhava me chamou.
- Senhor Lonergan, não o vejo há alguns dias. - Ele sorriu simpático, mas logo
pareceu se assustar com a expressão com a qual me aproximei.
- Julia. Você viu Julia? - perguntei.
- S-sim - ele gaguejou. - Ela desceu há alguns minutos, eu a vi indo pra área de
lazer. - O porteiro respondeu, confuso, ao que eu saia correndo de novo.
Chequei o salão e a quadra mas não havia viva alma em nenhum desses locais, e
então corri até a piscina. A chuva, agora pesada, agitava toda a superfície da água
mas isso não dificultava a visão de Julia em seu vestido vermelho afundando lá
dentro. Mergulhei, agarrando-a nos braços e levando-a até a borda, deitando-a ali.
Julia parecia uma boneca em meus braços, não se movia e estava gelada. Agarrei
seu rosto e gritei seu nome várias vezes, mas ela não parecia escutar. Tentei
respiração boca a boca e nos intervalos entre assoprar em seus lábios e pressionar
seu peito, eu gritava por ajuda, ajuda que não vinha, assim como a respiração da
garota. Alguns minutos. Eu só precisava ter chegado alguns minutos mais cedo.
Reparei que algo mais flutuava na água, uma foto. A foto do dia em que nos
mudamos pra lá e fomos à praia. A foto na qual ela havia escrito “I’m sorry”. A foto
que ela levou com ela quando decidiu morrer. Tomei-a nos braços, minhas lágrimas
há muito se misturando com a água que caia sobre mim pesada como pedras
agora.
- Eu me importo sim - sussurrei ao ouvido dela. - Eu me importo mais do que tudo.
- Afundei o rosto em seu pescoço. - Eu não vou saber o que fazer… - Não sei por
quanto tempo fiquei ali depois disso até alguém viesse.
E agora ali estava eu, sentindo uma culpa que não cabia em mim, agarrado àquela
mesma foto, agora completamente amassada, relembrando tudo isso. Com
dificuldade coloquei-me mais ou menos de pé e cambaleei até onde a garrafa jazia
quebrada. Memórias do dia em que fui comprar a aliança me vieram à mente, de
como fiquei fascinado com todas que estavam no mostruário mas de como nenhuma parecia digna da minha Julia. E com a mesma dedicação daquele dia eu observava os cacos no chão, escolhendo o perfeito. Depois alcancei uma caneta na
mesa de centro e rabisquei aquele pedaço de papel que guardava entre as mãos.
Fui até o banheiro e liguei a torneira que rapidamente começou a encher a banheira,
me lançando pra dentro dela. Fechei os olhos por alguns minutos, sentindo o ardor
das inúmeras lágrimas que havia derramado. Com dois rápidos movimentos, a água
rapidamente tornava-se escarlate e minha visão tornava-se turva. Senti uma paz
que já me era estranha a essa altura e sorri. Uma ou duas lágrimas finais
escorreram pelo meu rosto, e em pouco tempo tudo que restou foi a foto boiando
sobre a água, agora com “Me too” rabiscado abaixo do último recado da minha
pequena para mim.