Acordar com o despertador irritante é uma tortura diária. Estico a mão e desligo o barulho infernal. Abro um olho, mas fecho em seguida.
Força.
Um bocejo, aquela espreguiçada, então me arrasto para fora da minha cama. Tão quente e tão confortável. Queria nunca ter de abandoná-la. Sigo pro banheiro para a higiene matinal antes de qualquer coisa. Nada como água gelada no rosto pra acordar.
Água na chaleira, acender o fogão. Rotina é uma coisa detestável.
Enquanto a água pro meu líquido precioso esquenta, melhor olhar o tempo. Outch, deveria não ter olhado. Chuva, vento e frio. Seria um dia perfeito pra passar na companhia da minha cama e minhas intermináveis xícaras de café. Mas tenho que sair, trabalhar. Pegar aquele ônibus horrível. Suspirei no vidro, embaçando-o. Por que minha vida é tão monótona? Não tem ninguém nela que valha a pena. Sacudi a cabeça pra afastar esses pensamentos e fui pegar minha roupa no armário. Calça jeans, bota de salto, uma camisa branca, meu cachecol preferido e meu sobretudo bege. Por que fui escolher um trabalho onde eu preciso usar salto? Devia ser proibido usar salto durante a semana. É desconfortável e me deixa mal humorada em poucas horas.
Voltei à cozinha do meu pequeno apartamento e passei o café. Sentei na bancada pra aproveitar esses 5 minutos de calor que chamam de xícara de café. Entre goles, comi umas bolachinhas do pote que estava ao meu lado. Um começo de dia perfeitamente normal. Pelo menos eu não caí ainda, o que é um grande progresso.
Deixei a xícara na pia pra lavar mais tarde, quando voltasse do trabalho, e fui tomar um banho rápido.
Banho tomado e roupa devidamente vestida. Maquiagem de todos os dias feita.
Apenas um delineador preto e um rímel pra tirar a carinha de criança com sono e um batom sem cor apenas pra proteger os lábios do vento.
Porque, honestamente, eu odeio batom. Mas odeio mais ainda ficar com a boca toda queimada do vento frio.
Parei pra me olhar por um momento em frente ao espelho. Os cabelos longos caíam em ondas pelas costas, a pele branca como marfim, olhos . Eu não era gorda. Por que será que não aparecia ninguém interessante? Ou melhor, por que não aparece ninguém?
Ninguém merece viver nessa solidão.
Deixei minhas reclamações no potinho do foda-se, peguei minhas chaves e minha bolsa e saí de casa.
Suspirei novamente ao chegar à portaria do prédio. Eu detesto andar de bota de salto nas calçadas dessa cidade. E só piora quando chove. Armei meu guarda-chuva, enchi-me de coragem e fui pra chuva, encolhida embaixo do guarda-chuva até o ponto de ônibus. A única coisa boa é que meu ônibus não vem muito cheio. Geralmente vou em pé a viagem toda, que não é muito curta, mas pelo menos não tem aquele monte de gente me esmagando. E raramente tem alguém que seja interessante de olhar.
O quê? Não é pecado olhar as pessoas no ônibus. E aposto que todo mundo faz isso.
Esperei por alguns minutos naquele ar frio e úmido. Eu gosto de frio, mas a umidade complica um pouco a situação.
Pouco tempo de espera mesmo, logo meu ônibus apareceu e parou ao meu sinal. Subi tranquilamente. Ou o mais tranquilamente que se pode quando se carrega um guarda-chuva molhado, bolsa, pega o dinheiro pra pagar a passagem e se equilibra em cima de botas de salto. Tudo ao mesmo tempo em que o ônibus está em movimento.
Sou tão descoordenada.
Consegui passar a roleta sem maiores acidentes e achei um lugar onde eu conseguiria me segurar, talvez, sem cair até o final da viagem. Não entendo por que as pessoas me olham tanto. Não é como se elas não fossem desastradas também. Ou talvez não sejam mesmo, mas quem liga?
Eu sou um tanto envergonhada e não fico encarando as pessoas no ônibus. Mesmo quando elas parecem interessadas em mim. O que era o caso daquela manhã.
Depois que os olhares habituais a minha falta de habilidade voltaram a cuidar de qualquer outra coisa um par de olhos persistiu. E eu não resisti olhar.
E não me arrependi nem um pouco. Era um homem muito charmoso que estava em pé a alguns passos de mim.
Alto, bem vestido. Consegui sentir seu perfume de onde eu estava e era deliciosamente masculino. No rosto algumas sardas claras davam um ar de garoto no rosto de homem. A barba aparada bem rente a pele. Os cabelos cuidadosamente arrumados para parecerem desarrumados. Homens assim são extremamente sexy, e nem se dão conta disso.
Ele não devia ter mais que a minha idade. No máximo um ou dois anos. Eu quase suspirei quando conclui que ele era um deus grego.
Mas como minha vergonha é maior, assim que fui pega pelos olhos dele, abaixei a cabeça, coloquei meus fones de ouvido e fiquei olhando fixamente a janela.
Mas sabe aquelas pessoas com as quais você tem uma conexão invisível? Pessoas que você nunca viu na vida, mas que por alguns momentos divide o espaço e acaba se conectando? Isso estava acontecendo ali. Ele não tirava os olhos de mim, e eu não conseguia deixar de prestar atenção em cada mínimo movimento dele. Era magnético, era forte. Mas era passageiro.
Balancei minha cabeça, tentando me concentrar cada vez mais na música que tocava em meus ouvidos. Ouça a música. Não preste atenção nele mexendo no celular. Ou trocando periodicamente o peso de cada perna.
Sou uma idiota.
E pela primeira vez em anos eu resolvi deixar um pouco minha timidez de lado. Não, eu não iria falar com ele ou coisa assim, apenas corresponder os olhares que ele tão insistentemente me mandava.
Olhei, calmamente, pra ele. Lá estavam os olhos absurdamente azuis me encarando. Como piscinas. Não, como o mar em um dia ensolarado e calmo. A vergonha tomou conta de mim e senti meu rosto esquentar, tendo a certeza de que estava corada. Que patético.
Mas para ele não deveria ser, pois ele deu um pequeno sorriso de canto quando me viu corar. Então eu não estava imaginando tudo aquilo. Ele estava mesmo olhando pra mim. E sorrindo pra mim agora.
E não apenas o sorriso de canto que ele me deu no início. Quando me viu abaixar a cabeça, ele sorriu inteiramente. Ele estava achando graça da minha vergonha. E eu estava derretendo pelo sorriso dele.
Um sorriso brilhante, mesmo com todo aquele cinza a nossa volta. Um sorriso que chegou a me contagiar. Sorri timidamente de volta. Achei que ali estaria tudo terminado. Apenas uma troca de sorrisos boba durante a viagem matinal de ônibus para o trabalho. Mas aquele sorriso me aqueceu. O meu coração se aqueceu um pouco naquele momento.
Lancei-lhe mais um olhar e tentei prestar atenção à paisagem triste da janela. Chuva, vento, pessoas correndo pra chegar rápido aos seus destinos. Carros aos montes no caos do trânsito matinal. Aquilo geralmente me deixava estressada. Mas não naquela manhã. Eu tinha uma distração. Um motivo pra não ficar estressada.
Várias pessoas entraram no ônibus, várias desceram, e aquele homem ainda me encarava. Às vezes sorrindo, às vezes apenas prestando atenção nos meus gestos nervosos.
Nunca fui boa em receber atenção dessa forma. Na verdade nunca fui boa em receber atenção. Gosto de ficar escondidinha nas sombras do brilho dos outros. Atenção toda voltada para mim? Não, obrigada.
Talvez isso tenha a ver com o fato de eu nunca ter um relacionamento sério. É muita atenção.
Eu sou problemática mesmo.
Meu ponto estava próximo, e logo toda aquela magia boba estaria desfeita e eu poderia voltar a me concentrar em contas, trabalho e comida.
Andei até a porta do ônibus e apertei o botão de parada. Senti que o homem continuava me olhando insistentemente. E pelo o que o reflexo dele no vidro das portas me permitia ver, ele parecia estar pensando em algo sério, pois franzia a testa e apertava os olhos. Tão lindo com essa expressão séria no rosto alegre. Eu havia analisado ele o suficiente pra perceber que ele sorria com frequência, que raramente ficava zangado. Ele aprecia tão feliz, mesmo naquele ônibus às 7 horas da manhã num dia frio e chuvoso.
Senti a freada do ônibus e então a parada. As portas se abriram e eu desci pra rua, abrindo rapidamente meu guarda-chuva. Preferi não olhar pra trás e caminhar logo. Eu havia ficado encantada demais por alguém que eu provavelmente não veria nunca mais na minha vida. Isso é bobo demais, e eu me senti, por alguns momentos, como uma adolescente novamente.
Mas caminhei apenas uns 10 passos desde que desci do ônibus, pois logo senti uma mão me segurando pelo braço, delicadamente, mas de maneira firme. Assustei-me e virei rapidamente, tirando um fone da orelha.
E quase caí ali mesmo de surpresa.
Era o cara do ônibus, na chuva, ao meu lado.
Ele estava naquela chuva forte, se molhando todo e ainda assim me olhou sorrindo.
- Será que você pode dividir seu guarda-chuva com um pobre idiota que perdeu o seu?
Espera aí, eu tenho certeza absoluta de que vi ele segurando um guarda-chuva preto no ônibus. Mas e daí? O cara desceu do ônibus pra vir atrás de mim e está falando comigo. Achei que eu fosse surtar de emoção. Eu sei o quanto isso soa adolescente, mas eu realmente me emocionei por ele vir até mim.
- M-mas é claro. Você está indo pra qual lado? Eu levo vo... – Ele saiu da chuva e veio pra mais perto ainda de mim. Sua mão no meu braço não era um aperto e sim um conforto. A respiração quente, próxima ao meu rosto, formando pequenas nuvens. Nos olhos, a travessura de uma criança. Os lábios que eu não consegui tirar os olhos, sorrindo singelamente para mim.
- Onde você for. Chamo-me , e você?
Parecia uma coisa casual, mas havia eletricidade entre nós, um magnetismo absurdo. Meus olhos corriam pelo rosto dele. As sardas ainda mais lindas vistas de perto, os olhos brilhando, a boca aparentemente tão macia, o rosto corado pelo vento frio.
E eu nem me importava mais com a chuva. Eu estava vivendo um momento inesquecível ali.
- .
Eu não arriscaria falar muito e deixar que ele percebesse o quanto eu estava extasiada com a situação. Quem iria imaginar que uma troca de sorrisos e olhares no ônibus faria aquele homem lindo vir até mim, na chuva?
Ele sorriu mais ainda e passou o braço pela minha cintura, me conduzindo de volta a caminhada, como se soubesse aonde ir.
E talvez soubesse. Eu descobriria só depois.
Demos alguns passos em silâncio, eu o sentia tenso ao meu lado, o braço protetor ao redor da minha cintura. Mas não foram muitos passos mesmo.
- Eu não posso deixar de fazer isso...
Ele parou, e disse isso olhando para baixo, nos meus olhos. Ele tinha alguns centímetros de vantagem. Ergueu a mão e eu deixei que ele acariciasse minha bochecha, já vermelha por antecipação. É claro que eu sabia o que iria acontecer, mas minha mente estava em surto.
Eu jamais poderia esperar que alguma coisa desse tipo acontecesse comigo. Isso acontece em filmes, não na vida real. Muito menos na minha chata e monótona vida. Muito menos com um cara tão maravilhoso como este.
Mas não é como se eu fosse impedir qualquer coisa. Eu não teria motivo e nem capacidade. Os dedos quentes deslizaram da minha bochecha para o meu queixo, erguendo meu rosto para ficar a sua altura, e automaticamente fiquei na ponta dos pés. Senti o hálito fresco dele bater contra o meu rosto e inconscientemente gravei na memória aquilo. Segundos pareciam milésimos, mas mesmo com o tempo correndo mais do que nunca minha mente não perdeu um só movimento. Os olhos dele piscando, olhando ora meus olhos, ora minha boca. Ele parecia tão hipnotizado quanto eu. Não é como se estivéssemos apaixonados, mas havia ali uma magia quase próxima.
E foi realmente incrível quando senti seus lábios tocarem levemente os meus. Fechei meus olhos no momento em que vi que ele fazia o mesmo. Pressionei um pouco mais minha boca a dele. Eu estava gelada pelo vento, mas ele estava quente. Um choque delicioso. Deixamos que nossos lábios apenas se tocassem por alguns instantes, mas logo não era suficiente. A mão agora nas minhas costas me puxou para mais próximo, me dando apoio, meus braços foram automaticamente em torno do pescoço de , nos deixando tão próximos quanto possível, e então senti que ele entreabria os lábios dele e fiz o mesmo, deixando que, enfim, pudéssemos explorar, sentir, acariciar da melhor maneira possível uma boca com a outra. O momento mágico de qualquer beijo, o primeiro toque, o arrepiante. Parecia que esse era o primeiro beijo que me fazia sentir arrepios na nuca. E provavelmente foi.
Aquele beijo poderia ter durado a eternidade. Poderia ter parecido infinito como descrevem nos livros e filmes, mas não. Foi mais rápido do que eu gostaria, mesmo que não tenha sido curto de maneira nenhuma. Mas pareceu que foi cedo demais que senti a boca dele afastando-se da minha.
Com um último encostar de lábios, eu abri meus olhos só pra ver os dele, ainda próximos de mim, e um sorriso nos lábios que eu acabara de beijar.
E uma curiosidade maior do que minha boca veio.
- Posso perguntar por quê?
Eu não o estava acusando de nada, era pura curiosidade. Por que fazer isso? Por que eu? Aqui?
- Não sei explicar, eu só senti que tinha que fazer isso. Você me encantou assim que entrou no ônibus. Delicada, envergonhada e até um pouco desastrada. Encantadora.
Uau. Não era pra ele me deixar assim tão sem jeito. E lá estava eu mais vermelha ainda e olhando pra todos os ladosm menos pra ele.
- Espero que não esteja chateada. Eu queria poder conhecer você melhor. Mais do que apenas um beijo na chuva.
Ele quer me... Conhecer?
- Não estou chateada. Eu estou surpresa. Não tem nada de especial em mim, .
- Então vamos ter que conversar muito mais pra eu poder te provar que tem sim, muita coisa especial em você, .
Com a segurança que só ele parecia capaz de ter, passou a mão novamente pela minha cintura, ficando ao meu lado, e começamos a andar novamente.
- Vou deixá-la no trabalho, mas gostaria de ter seu telefone, certo?
Eu sorri, passando a abraçá-lo também, e ditei os números do telefone que ele anotou habilmente com a outra mão no celular. Conversamos algumas banalidades nos minutos que durou o percurso até o prédio do meu trabalho.
- Bem, eu fico aqui. Você vai ainda muito longe?
- Várias quadras pra lá. – e apontou pro lado de onde viemos, pra onde nosso ônibus foi.
- Você me enganou, disse que...
- Eu nunca disse que estava perto. Apenas pedi para que você dividisse seu guarda-chuva comigo.
Eu tive que rir com isso. Ele armara tudo apenas para me conhecer. Ele havia conquistado alguns pontos comigo.
- Você não existe.
- Existo. E vou provar. Eu te ligo mais tarde pra marcamos algo, certo?
- Claro.
Acho que ele percebeu no tom da minha voz que eu não acreditava nisso. Eu já estava voltando à realidade nua e crua. Ele provavelmente viraria as costas e eu nunca mais iria vê-lo.
- Não vou sumir, . Vá, você provavelmente já está atrasada. Bom trabalho, pequena.
Disse isso, pegou meu guarda-chuva, me deu um beijo delicado e rápido nos lábios e foi embora.
Indignação do momento mais lindo da minha vida: Ele foi embora com o MEU guarda-chuva.
Mas eu só percebi isso depois que ele foi embora sorrindo pra mim de maneira marota.
Entrei no prédio e realmente achei que nunca mais veria ou meu guarda-chuva novamente.
Estava absolutamente enganada. Ele me ligou algumas horas depois, no mesmo dia, marcando um jantar. E buscou-me no trabalho. Dessa vez de carro e não apenas com o meu guarda-chuva, que também foi devolvido naquele mesmo dia. E muitas outras vezes foi emprestado e devolvido.
Não digo que é o amor da minha vida, mas ele provavelmente foi o homem que me salvou de mim mesma. Conhecer ele, viver aquele momento mágico, me fez ver a vida melhor. Menos monótona, menos sem graça. E as surpresinhas dele nunca acabaram. Hoje continuamos juntos. Não sei se namoramos ou não, mas sei que estamos juntos e que ele sempre está lá para mim.
Mas, decididamente, aquela manhã fria e chuvosa é a melhor memória que tenho da minha vida. Pelo menos até aquele momento.
Fim.
Nota da Autora: Hey! Mais uma short minha. E não briguem comigo por ainda não ter publicado a continuação de “So I Drive” porque... Bem porque eu ainda não consegui decidir entre uma série de shorts ou uma long. E a idéia de “My Umbrella” surgiu na minha cabeça enquanto eu tava tentando escrever a continuação de SID.
Queria agradecer as minhas cobaias lindas Aline (Irmã que tanto amo <3) e Débora (Inconstante da minha vida) que leram essa história em primeira mão e presenciaram até mesmo o primeiro batizado dela. E também ao Pat Bond (Patrick, de HF no Twitter). E, claro, agradecer a Bia, beta querida, que se aventura a betar minhas loucuras. Sem vocês provavelmente ela não seria publicada.
Obrigado a todas que leram.
Twitter: @Naraaa
Nota da Beta: Ai, gente. Por que os gatinhos do ônibus não correm atrás de mim assim, hein? HDAUSDHUAS. E, por favor, todas queremos a continuação de SID, porque aquele final, né?
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