Londres estava absurdamente fria aquela tarde. O metrô parou na estação de Leicester Square e eu caminhei rapidamente para fora da estação esperando que com esse esforço, a minha temperatura aumentasse e o frio fosse embora um pouco. Eu vestia um casaco grosso e mostarda, um cachecol preto, calça e coturnos marrom café nos pés.
Caminhei pela Charing Cross Road, observando alguns edifícios maravilhada como sempre. Eu nasci e vivi minha vida inteira nessa cidade, mas sempre fico e sei que ficarei maravilhada com certos lugares dela. E a Charing Cross Road era um desses lugares, com algumas das minhas lojas, livrarias e cafeterias favoritas. Parei alguns segundos observando uma grande livraria que estava abarrotada de gente antes de continuar o meu caminho. Certamente alguns escritores estavam ali para sessões de autógrafos ou leituras de seus livros, já que hoje era um dia com importância para eles. Dia do escritor. E nada como comemorá-lo em um lugar como esse repleto de livrarias, desde das grandes até as pequenas especializadas, e de quebra um clima frio que trazia consigo o desejo por uma deliciosa bebida quente e uma boa conversa com os amigos.
O frio agora não me incomodava e sentia que aquele vento gelado que tocava minha face agora era amigo, diferentemente de quando eu saí de casa quase uma hora atrás. Parei em frente de uma livraria pequena e adentrei a mesma sem pensar duas vezes. Ela estava lotada como as outras e dois escritores estavam lá aquela tarde. Um deles era relativamente famoso por seus livros de Ficção, ele daria autógrafos e leria alguns capítulos de seu novo livro. O outro era pouco famoso, mas tão talentoso quanto ao meu ver. Ele escrevia Romances e hoje estava tendo seu segundo livro publicado. Passei pelas prateleiras à procura de seu livro e quando o achei, peguei um exemplar e analisei sua capa atenta e encantada. Na capa encontrava-se a imagem de uma mulher de costas com grandes cabelos castanhos ondulados cortados em camadas e em sua frente um lindo por do sol. Os cabelos, meus e da mulher, eram exatamente iguais e eu até poderia tirar uma pequena conclusão sobre isso, mas prefiro não fazê-lo.
Tomei um lugar na fila de autógrafos e senti um frio na barriga. Fazia quase um ano que não o via. Sim, ele mesmo, o escritor do livro em minhas mãos. Eu o conheci em um certo outono, enquanto as folhas amareladas caíam das árvores e me inspiravam a fazer longas caminhadas pelos parques. Seu nome era . Ele esbarrou em mim enquanto estava distraído com seu celular e eu olhando algumas folhas se desprenderem dos galhos. Uma semana depois, um café, uma conversa e boas risadas e eu já podia dizer que estava apaixonada. Namoramos por mais de um ano e depois terminamos a quase um ano atrás. E agora cá estava eu, presente no dia da inauguração de seu livro. O próprio havia me convidado por um e-mail. Eu apenas não o via desde do término, mas sempre nos falávamos por telefone ou e-mail, mas o assunto nunca era nós e sim sobre seu livro, meus artigos e assuntos que tínhamos em comum.
Eu era uma jornalista recém-formada, que trabalhava na redação de um jornal e morava em um pequeno loft do outro lado da cidade. Ele era um professor de Literatura, com dois livros publicados e também tinha talento para pintura. Livros, filmes e a arte em geral era o que mais tínhamos em comum, portanto estávamos sempre a trocar e-mails sobre isso, mas nunca sobre nós. Parecia que nós eramos um assunto proibido depois de separados.
Talvez fosse pela intensidade do sentimento que compartilhamos. Do amor livre e sem restrições que vivemos. Da forma como ambos enxergamos o mundo com tamanha liberdade e veemência. Aquele um ano e quase três meses que vivemos juntos foi libertador para ambas as almas, que ao mesmo tempo que se sentiam livres para viver aquele amor, se sentiam entrelaçadas e presas uma com a outra. Vivemos todos momentos como se eles fossem únicos e eles eram. Acabou por nenhum motivo trágico, apenas porque eu sentia que ambos, ele e eu, ainda tínhamos muito do que viver com o mundo sem nós dois como um casal, juntos.
Eu queria ver o mundo mais além, queria sentir todas as formas de amor possíveis e compatíveis a minha pessoa. Porque uma coisa que eu realmente acreditava nessa vida era o amor e suas faces. Nunca um amor era o mesmo. O amor não é esse ideal único construído pelas pessoas com tamanha perfeição, esse ideal que não condiz com nossa dura realidade e nosso mundo. O amor não é algo singular e único. Ele está preenchido de pluralidades. Podemos vivê-lo com diferentes pessoas e de formas distintas. Não pode ser especificada apenas uma forma de amor.
Eu já sentira algumas das formas de amor pela minha não tão longa vida. Eu ainda era jovem, mas aquele amor que compartilhei com ele foi único, assim como outros que já senti e foram únicos. Mas com ele foi diferente. Foi de uma intensidade que mesmo depois do término pareceu não ir embora. Tentei ver o mundo mais além, mas nada foi como era antes. Havia amor, havia liberdade e havia todo um leque de experiências ainda para serem vividas, mas tudo aquilo que vivenciei com ele não deixava minha vida pós-relacionamento ser tão forte como antes.
Estava claro que ainda o amava e a pequena festa em meu estômago enquanto a fila andava era o que mais comprovava essa teoria. Eu apertava o livro em meus braços com evidente nervosismo. Ouvia as pessoas ao meu redor, mulheres e garotas na maioria, comentarem sobre o livro enquanto eu só tentava deixar algumas lembranças do passado de lado.
Mais uma certa lembrança me acertou em cheio e eu não consegui mais fugir. Era noite de um sábado e eu estava em seu loft. Nós combinamos de assistir juntos uma sessão de filmes antigos que iria passar na TV e lá estava eu. A sessão ainda não começara então enquanto estava vestido com uma calça de moletom e uma regata, sentado na sua cadeira giratória em frente sua escrivaninha e se encontrava tão concentrado escrevendo sua história sem parar em seu notebook, eu estava deitada de bruços em sua cama, apenas vestindo minhas roupas íntimas, um suéter de lã de que não chegava nem na metade das minhas coxas e meias, com meu moleskine apoiado na cama e uma caneta na mão direita que estava a escrever um poema sobre a vida e a liberdade que todos deveriam sentir perante a ela.
Estava tão absorta em meu poema que nem percebi quando o barulho dos dedos de pararam de se chocar contra o teclado. Quando terminei meu último verso levantei meu olhar para ele, que sorria enquanto me observava. Ele levantou de seu lugar e veio se juntar a mim, sentando-se logo ao meu lado esquerdo e mergulhando sua mão direita em meus cabelos, afagando-os.
- Quando vou poder ler aquele poema que você escreveu sobre mim no dia em que nos conhecemos? – Ele falou em um tom de presunção. Olhei para ele e balancei levemente a cabeça de forma negativa.
- O poema não é sobre você, é sobre aquele dia em si, sobre o outono. – Respondi folheando minha caderneta de anotações procurando pelo poema daquele dia. Achei e estendi o moleskine para ele, que tomou-o em mãos e começou a ler o tal poema.
Sai da posição que estava e deitei de costas na cama, para que eu tivesse um olhar mais privilegiado de seu rosto e reação a ler meu humilde poema. Não que eu achasse que escrevia mal poemas e histórias, afinal trabalhava na redação de um jornal e estava sempre a escrever, mas perto de um escritor de verdade meus poemas e tentativas de livros pareciam coisa de amador. Na minha opinião, se é que ela vale nesse caso. Os poucos minutos se arrastaram e quando ele terminou de ler, sorriu e olhou todo animado para mim.
- Já disse o quanto você escreve bem? – Ele exclamou e era por isso que minha opinião sobre a minha escrita talvez não valesse muita coisa. Digo, as pessoas sempre elogiam, principalmente ele. – E se você colocou a minha ilustre pessoa aqui, considero sendo sobre mim.
- Modéstia não existe na sua vida, né. – Murmurei tirando o moleskine de suas mãos quando vi que ele iria começar a folhear. Não era só poemas que escrevia ali. Havia também algumas ideias anotadas ou até pequenos fatos que escrevia fazendo-o de diário também. Se lesse mais sobre ele ali, e tinha muita coisa, ele iria se sentir demais. Mais ainda do que já se sentia.
Ele nem se incomodou com meu ato e se ajeitou na cama ficando mais próximo de mim.
- No momento apenas existe você em minha vida. – Ele sussurrou aproximando seus lábios dos meus, deixando-os apenas alguns centímetros de distância.
- em declarações de um escritor barra conquistador. – Brinquei tentando fazer uma voz parecida com aquelas que anunciavam o nome ou o assunto de um filme ou programa qualquer.
- Caramba , estou tentando ser romântico aqui. – Ele reclamou enquanto eu ria da sua cara de ofendido. Depois que eu consegui parar de rir, nossos olhares ficaram presos um ao outro por um tempo, nossos lábios tão próximos e meu coração acelerando gradativamente antes de mergulharmos em um beijo e esquecermos do resto do mundo.
Despertei dessa lembrança dando mais um passo na fila. Apenas uma garota me separava de agora. Eu seria a próxima a ficar frente a frente com ele. Pela distância da fila com a mesa onde ele se encontrava autografando os livros e conversando com as leitoras não dava para reparar em quem estava na fila, por conta disso ele ainda não sabia que eu estava ali.
Ele terminou de assinar o livro da garota e olhou para o relógio em seu pulso. Andei até aquela mesa rapidamente antes que minha mente pregasse uma peça e fizesse eu sair daquele lugar correndo. Estendi o livro para ele e foi quando ele levantou o seu olhar e sorriu.
- Você veio. – Ele exclamou e sorriu mais ainda.
- Eu vim.
E então ficamos o que pareceu uma eternidade nos olhando, mas sei que foram apenas segundos. Naquele momento eu me dei conta de quanto sentia a falta de . De quanto sentia falta daqueles olhos claros intensos e acolhedores, daquele sorriso que era capaz de iluminar todo o ambiente apenas porque era belo e sincero, daquele cabelo despenteado propositalmente e daquela barba por fazer que o deixava ainda mais lindo. Tudo em me atraía. Amar era um caminho sem volta, a partir do momento que conclui isso quando éramos namorados, soube que estava perdida porque talvez eu nunca seria capaz de viver outro amor maior que esse. Eu já vivi paixões e amores o suficiente para saber desse fato. E sentia que se um dia houvessem outros, não iriam chegar nem perto dele.
- , pode autografar meu livro antes que as pessoas fiquem incomodadas com a demora? – Falei de forma sutil. Não que eu quisesse sair dali, mas era preciso.
- Você acha que eu permitiria que você comprasse um livro meu? De jeito nenhum. – Ele exclamou de forma ofendida.
- Mas...
- Mas nada, . – Ele me interrompeu e continuou. – Eu termino aqui em uma hora, podemos nos encontrar naquele nosso cafe?
- Tudo bem. Eu só vou pagar no caixa e vou dar uma volta na Cecil Court, então nos encontramos lá.
- Se você pagar pelo meu livro ficarei ofendido. – Ele puxou para si o exemplar que minutos atrás estava em meus braços, com isso impedindo que eu o pegasse de volta. – Vá e eu levo seu exemplar assinado.
Dei um último sorriso, saindo do caminho para que outras pessoas conseguissem que seus livros fossem autografados. Andei até a saída do estabelecimento e soltei uma reclamação por causa do frio. Saí tão depressa que esqueci o frio dessa tarde. Comecei a caminhar pela Charing Cross até chegar na esquina da Cecil Court, que era uma rua exclusiva para pedestres. A rua ligava a Charing Cross Road à St. Martins’s Lane e era uma dessas ruas estreitas que encontrávamos em Londres e que era preenchida com surpresas maravilhosas. Nela havia prédios quase intactos de mais de cem anos com fachadas vitorianas e era conhecida pelo tamanho de sebos e livrarias especializadas que continham ali. Não sei se é verdade, mas ouvi dizer que essa rua foi inspiração para J.K. Rowling criar o Beco Diagonal da saga Harry Potter.
Decidi então passar em alguns lugares e fazer as minhas buscas por joias raras. Entrei em uma das lojas que vendiam livros infantis ilustrados e comprei um exemplar da sétima edição do ano de 1857 dos Contos de Grimm para a minha sobrinha. Minha irmã mais velha daria a luz em breve e nada como dar de presente um livro desses para uma criança. Seria o primeiro livro dela, de muitos espero assim.
Gastei mais algum tempo fuçando tudo em outras lojas e comprando mais dois livros em sebos diferentes, então caminhei de volta para a Charing Cross e me dirigi à um dos meus cafes favoritos. Optei por escolher uma mesa do lado de dentro do local, porque sentar lá fora era querer virar picolé humano. Aconcheguei-me em uma das mesas que tinham aqueles bancos estofados e dispensei o moço sorridente que veio me atender, informando-o que esperava alguém para depois fazer o pedido.
Enquanto esperava , folheei um dos livros que comprei e comecei a ler o prólogo, mas não consegui nem terminar o terceiro parágrafo quando ele chegou e sentou-se logo a minha frente. O moço sorridente de minutos atrás voltou e olhou para nós dois.
- O que vão pedir? – Esse cara curtia mesmo a vida, porque não parava de sorrir. Bom, melhor do que ser tratado mal em qualquer estabelecimento como sempre acontecia hoje em dia.
- Dois cafés e uma cesta média de mini muffins, por favor. – Pedi sorrindo para o Peter, nome do atendente que acabara de ler no crachá preso em seu avental.
- Quais os sabores dos muffins?
- Variados, menos algo com maça, banana ou canela. – pediu e me fitou convencido. Era para mostrar que ele lembrava que eu odiava esses três ingredientes acrescentados em qualquer receita com esse olhar? Uma coisa que nunca mudaria em era essa mania de ser um pouco pretensioso em relação a alguma coisa.
Quando Peter se afastou de nossa mesa, começou a contar os últimos acontecimentos dessa tarde com relação ao seu livro. Ele disse que sua mãe quase saiu de Exeter para vir a Londres por ele, mas ele implorou que ela não o fizesse, senão imagina a cena de sua mãe parecendo aquelas pessoas de fã clube surtando dentro da livraria. Nosso pedido chegou e continuamos a conversar.
Contei para ele que Alicia, minha irmã mais velha, daria a luz no mês que vem e que ela havia decidido ter o bebê em casa. Minha mãe surtou e todo mundo foi contra o ato, mas eu e seu marido apoiamos apenas para que ela não ficasse sozinha nessa decisão. Eu achava desnecessário ter o bebê em casa nos dias de hoje, mas já que ela queria fazê-lo... Quem iria conseguir tirar essa ideia da cabeça de Alicia?
Então ele me disse que sua mãe estava exigindo a minha presença na festa de bodas de prata de seu casamento e se eu não fosse, ela viria me buscar pelos cabelos aqui em Londres. E eu não duvidava de uma coisas dessas, nunca duvidava de nada que minha ex sogra fosse capaz de fazer.
- Sabe... Esses últimos meses têm sido loucos para mim. – Relatei, sentindo-me confortável para revelar a ele minha vida nos últimos tempos. – Eu arrisquei mudando de emprego rumo ao desconhecido, apaixonei-me por alguém que não era compatível comigo … E tudo o mais que eu te contei nos últimos três e-mails.
- Você está com o tal cara ainda? – Ele perguntou e consegui sentir o incomodo em sua voz perante o assunto.
- Foi coisa passageira. Primeiro que o estilo de vida dele não condizia com o meu. Você sabe, eu nasci para fazer o que eu quero, para ser livre e experimentar tudo o que conseguir dessa vida.
- Resumindo, ele era careta.
Gargalhei com aquilo quase engasgando com o café. Ele estava certo.
- Segundo que foi uma tentativa totalmente falha de encontrar outro alguém.
Ele entenderia o que eu quis dizer com isso. Eu tentei viver minha vida com a mesma intensidade que sempre vivi antes e durante nosso namoro, mas parecia que sem as coisas não funcionavam como antes. E parecia recíproco isso, pois eu podia ver pelo olhar de esse fato sendo comprovado.
Então ele deslizou seu livro que eu não havia percebido estar sobre a mesa até aquele momento na minha direção. Eu peguei o exemplar e abri para ver se meu autografo se encontrava ali. Não estava. Olhei para ele com a sobrancelha esquerda arqueada.
- Vá até a dedicatória.
Olhei para ele surpresa. E corri meus dedos pelas páginas até a dedicatória do livro.
“Eu dedico esse livro para uma linda mulher de grandes olhos castanhos, aos quais eu consigo me perder com mais facilidade do que o simples ato de respirar. Sem ela metade desse livro não seria escrito. Obrigado , por ser minha fonte de inspiração.”
- ... – Soltei uma risada e ele abriu um sorriso todo galanteador.comments powered by Disqus