Mais uma vez o homem estava sentado, na mesma pedra, segurando a mesma flor e esperando a mesma pessoa. Seus cabelos castanhos estavam curtos e arrepiados, seus olhos claros miravam o mar com certa apreensão. Vestia uma camisa branca social larga, calça de moletom azul marinho e estava descalço. As ondas estavam furiosas esta noite, assim tem sido todas as noites do dia 07/07. Sempre no mesmo período, na mesma hora, no mesmo lugar, algo mágico acontecia com aquelas águas. O homem sempre se perguntou como ninguém notava? Como ninguém tinha descoberto tal coisa? Ele sempre se achou o ser humano mais sortudo do planeta. De fato, ele tinha razão.
Quando olhou para trás, o belo homem no auge de seus 25 anos, pode ver pequenos pontos de luz acesos na direção da cidade em que morava. Olhou em seu pulso e constatou que a hora havia chegado. Desceu das pedras e andou até chegar à água salgada, que batia em seus pés trazendo uma sensação refrescante. Fixou seus olhos no meio das ondas e ficou a espera de algo, ou alguém.
Pouco distante, em meio às ondas revoltas da água salgada, sob a luz da lua, um lindo ser de cabelos dourados brilhantes, olhos esverdeados que brilhavam sempre que a luz se refletia em suas orbes, braços finos e mãos delicadas; podia ser visto emergindo em meio as águas. Tão logo subiu e avistou o homem, a jovem mergulhou e voltou a nadar. Quando chegou ao raso, um brilho misturava o corpo da jovem com as águas da praia. A garota, que agora mostrava a parte de baixo de seu corpo, na verdade não possuía pernas e sim uma enorme calda de peixe. Uma sereia. A luz que saia da ponta de sua calda e ia até a sua cintura, estava ficando cada vez mais forte, até se apagou e onde antes havia uma calda, agora estava um par de pernas proporcional ao seu belo corpo.
Com um pouco de dificuldade, ela levantou e caminhou devagar até parar em frente ao homem. Seus cabelos balançavam ao toque do vento, sua pele pálida parecia brilhar com a luz da lua, à parte de cima de seu corpo era tapada apenas por um fino biquíni em formato de conchas, a de baixo, com um pequeno short na cor laranja. Ela sorriu para homem, que retribuiu e entregou a flor pouco sem jeito. Fazia anos que se encontravam, sempre na mesma noite, na mesma hora, mas ainda assim, continuava sem jeito frente à bela moça, seu primeiro e único amor.
– Senti sua falta, . – A voz do homem saiu cheia de carinho e macia aos ouvidos da sereia.
– Também senti tua falta, . – a voz da sereia era encantadora. Em nada as lendas se equiparavam com seu som. Algo completamente indescritível. Era macia e suave, falava como se estivesse cantando uma canção de ninar. Simplesmente bela. – Que flor é esta? É cheirosa... – ela levou a tulipa até seu nariz e respirou. O perfume da flor era encantador para a jovem que veio do mar e nunca em sua vida sentiu tal cheiro.
– Chama-se tulipa. A senhora da floricultura disse que a tulipa vermelha significa o amor perfeito... – o jovem estava temeroso. Já haviam se encontrado diversas vezes, mas esta seria a primeira que diria o que sente. – Eu... Quando eu a ouvi dizendo isso, lembrei-me de você.
– Por quê? – perguntou sem entender de imediato o que o queria dizer.
– Todos os anos na mesma noite eu venho aqui, desde que tinha o quê? Sete anos de idade? – perguntou à sereia que apenas afirmou com a cabeça – Venho aqui apenas para te ver, doce . Não sei como ou quando, apenas sei que meu coração dispara sempre que este dia chega, pois nos outros dias do ano, me sinto um morto vivo caminhando entre as pessoas. Penso apenas em ti, no que vamos conversar, sobre o que posso lhe contar. Fico imaginando como você está, se cortou o cabelo, se sorri para outro, se trata outro da mesma forma que me trata. Eu não posso mais viver sem você. – esticou sua mão direita e tocou a face da bela sereia. – Para mim, isso é um amor perfeito, assim como tudo em você é perfeito.
– Eu não conheço o amor, . – fechou os olhos e ficou apenas apreciando a sensação de ter o seu rosto tocado pelo humano a sua frente. – Não sei o que é me apaixonar, mas eu gosto de ficar com você. Gosto de nossas conversas, de ouvir sobre o seu mundo que é tão diferente do meu. Quando eu estou entre o meu povo, falo de você para eles, eles me dizem para tomar cuidado... – Ela abriu os olhos e deu um passo para trás, assim poderia observar as reações do homem. – Dizem que vocês fazem mal aos seres que dividem o planeta com vocês, fazem mal a sua própria espécie e que se encontrassem com a nossa, não seria diferente. Isso é verdade?
– Você tem que entender que nem todos são assim. – Ele não queria admitir, não queria dizer sim para a pergunta feita, mas não tinha escolha. Não conseguia mentir, não para ela.
– Como? Por que fazem isso? Você nunca me contou nada do tipo! – Claramente horrorizada, já estava pensando se deveria permanecer ali e ouvir o que o outro tinha a dizer. Queria fugir para o oceano onde sabia que estaria segura. A sereia passava o ano todo defendendo o homem que conheceu ainda nova, dizia que ele não era capaz de fazer as coisas que ouvia, que tudo não passava de invenção. Mas agora, o próprio havia dito que fazia isso.
– Me deixe explicar primeiro. – Se apressou em dizer e até se atrapalhou um pouco nas palavras. – Sim, é verdade que os humanos são assim, mas nem todos. Eu não sou assim, . Fazemos coisas horríveis, principalmente com aquilo que não entendemos ou tememos. Por que acha que nunca lhe deixei ver outro humano? Tenho medo do que eles poderiam fazer com você. Jamais faria mal a ti ou a qualquer outro de sua espécie. Tem que acreditar em mim.
A sereia passou a encará-lo. Os olhos de transmitiam apenas sinceridade, mas ela não sabia se deveria realmente acreditar. Os humanos podem ser mentirosos, talvez até mais que as sereias. conhece sua espécie, seus costumes. Está em seu sangue. Sereias são seres manipuladores e sensuais. Desde que o encontrou pela primeira vez, há quatorze anos, ela vem tentando não ser esse tipo de sereia com ele. Só que agora, não sabia mais em quem acreditar. Seu coração lhe dizia que ele, , não seria capaz de mentir, não para ela. Mas seu cérebro teimava em concordar com seus amigos e parentes.
– Prove. Prove que você não é igual aos outros.
– Como? – estava disposto a fazer tudo para conseguir a confiança da sereia novamente.
– Venha comigo para o mar, , fique ao meu lado eternamente. Abandone a tudo e a todos, por mim. – ela abriu seus braços. De fundo, a fúria das ondas aumentou, as nuvens cobriram a lua e pela primeira vez, desde que viu nas águas, ele sentiu medo do ser a sua frente.
– ? – os olhos dela brilharam. Ela queria uma resposta e queria já.
– Desde que eu possa ficar com você eternamente, eu irei, . Eu irei. – ele sorriu. O medo sumiu tão rápido quanto havia chegado. Uma única noite por ano e ele sentia como se a conhecesse a vida inteira. Não se importaria de ir com ela para as águas. Não com ela.
– Então venha. Vamos para o mar juntos, . – estendeu a mão que não segurava a flor para ele, que logo a segurou.
Juntos começaram a caminhar mar adentro. As ondas que batiam em suas coxas o machucavam, a fúria do mar não era pouca. Mas ele não se importou. Estava ao lado do seu grande amor, ao lado da primeira e única que fez seu coração palpitar. Suportaria o mar por ela.
– ? – chamou e assim que ela lhe olhou nos olhos, acreditou que estava fazendo o certo. A sereia estava sorrindo, seus olhos brilhavam pelas lágrimas que escorriam sem parar. – Você poderia cantar para mim?
– Tudo o que quiser.
A água batia pouco acima do umbigo do homem, as ondas estavam ficando mais calmas à medida que eles iam mais para o fundo. parou a frente de , secou suas lágrimas e começou a cantar.
“Sou filha de um mercador
Eu deixei os meus pais e 3000 por ano, sim senhor
Tenho a flecha do cupido, a riqueza é ilusão
E só pode consolar-me, meu marujo alegre e bom
Venham todas belas damas, aqui deste lugar
Eu nunca vou tão longe cruzando o alto mar
Tenho a flecha do cupido, a riqueza é ilusão
E só pode consolar-me, meu marujo alegre e bom.”
A voz de , sempre tão bela, ficava ainda mais encantadora quando esta cantava. Tão doce quanto mel, mas ainda assim provocativa e tentadora. fechou os olhos e se deixou guiar pela mão da sereia, que o levava cada vez mais para o fundo.
Estava completamente embaixo da água quando abriu os olhos. Pode ver o rosto da sereia, viu ela se aproximando e não recuou. Sentiu o toque suave dos lábios dela nos seus e sorriu. Um último sorriso que fez questão de gravar em sua mente. O beijo foi rápido e singelo.
Quando ficou sem ar, pensou em subir e pegar ar, mas o aperto firme em sua mão o fez entender que ele não deveria. Ele segurou por mais alguns segundos, mas logo o ar escapou de sua boca e a água começou a entrar. Ele deu uma ultima olhada no rosto da sereia, em seus olhos tão bonitos e em seus lábios macios. Não se arrependia de ter aceitado segui-la para o fundo do mar. Se não poderia ter ao seu lado todos os dias, acabaria com este sofrimento ali mesmo.
Por outro lado, estava arrependida. É da natureza de uma sereia atrais homens para a água e afogá-los. O beijo é o sinal de despedida, um ultimo prazer antes da morte, da escuridão. Seu coração doía. Não queria ter feito aquilo com , mas quando ele aceitou, não tinha mais volta. Ela fez o pedido, ele disse sim e agora ambos estavam ali, frente a frente, envoltos pelas águas salgadas da praia. A flor em sua mão perdeu as pétalas tão rápido quanto o homem perdeu o fôlego. Não havia volta. As lágrimas que escorriam pela sua face se espalhavam e se misturavam com as águas do mar. Arrependia-se, mas não havia mais nada a ser feito, nada traria seu amado de volta a vida.
Mais uma vez encostou seus lábios ao dele, mas não por tradição e sim por pura atração. Os lábios dele estavam frios e sem vida, assim como todo o seu corpo. A luz envolveu suas pernas mais uma vez, e onde antes havia pés, agora havia uma calda. Separou seus lábios dos dele, deu-lhe uma ultima olhada e sentiu seu coração de apertar.
Os olhos do ser do mar, outrora belos, possuíam agora um brilho felino, estavam tomados pela dor e raiva, assim como seu coração. Sem pestanejar, a jovem e bela sereia, foi até o corpo daquele que uma vez foi seu amado. Quando perto, abriu a boca, deslocando o maxilar e expandindo, possibilitando dessa forma uma abertura maior. Seus dentes estavam pontiagudos e em uma única mordida, arrancou fora o braço esquerdo do homem morto e o engoliu sem mastigar.
Sangue passou a jorrar do ferimento exposto, mas a sereia não se importou e novamente mordeu, dessa vez o tronco daquele que um dia fora seu amor. Os órgãos do homem pareciam doces em sua boca. não parou por ai, ela mordeu, mordeu e mordeu de novo, engoliu o cadáver parte por parte. Em certo ponto, não aguentava mais engolir, chegou a pensar que não caberia tanto em seu frágil corpo, mas não se deu por vencida. Causara a morte do único ser que havia amado, deveria pagar um preço por isso, além do mais, a dor nada seria se comparado ao fato de que, dessa forma, teria aquele homem eternamente para si, dentro de si e somente seu.
Depois de tantas mordidas, lágrimas e sangue, sobrou apenas o coração do humano. A sereia sorriu ao imaginar que finalmente, teria o coração daquele que sempre amou.
– , meu amado, seu coração é meu, assim como o meu sempre foi seu. Jamais me deixará e jamais amará outra, estaremos juntos por toda a eternidade, meu querido .
Recitando as palavras com a voz embargada pelo choro, ela colocou o coração em sua boca e o engoliu. Assim como tudo o que antes compunha um corpo humano, ela não o mastigou, apenas o engoliu e sentiu enquanto ele descia e juntava, dentro de si, aos restos do mortal que abalou sua mente, seu coração.
Com lágrimas nos olhos, a sereia viu o sangue de seu amado na água e não suportou mais ficar ali. As ondas que haviam se aquietado, agora voltavam com toda a sua fúria, como se estivessem sentindo a dor da sereia que partia para um lugar distante, não voltaria para sua família, não falaria mais, de sua boca, não sairia um som, pois suas palavras, sua linda voz pertenciam somente aquele homem. Viveria isolada, longe daqueles que envenenaram sua mente e a fez cometer tal atrocidade. Esperaria pela Senhora Morte, a única que poderia fazer com que ela reencontrasse seu amado , e quando ela chegasse, a abraçaria e agradeceria por tamanho presente.
Fim!
Nota da autora: (30.06.2016) Sem nota.
Nota da beta: Sensacional, essa oneshot, amei & amei, sério! Ressaltou sobre o nosso folclore brasileiro, temática diferente! Fiquei com dó do pobre ... Parabéns, Trix <3