- Destranca o portão. Tô mal e tô chegando com a tequila. – respirou pesado antes de desligar o celular. tinha pensado em fazer a mesma ligação poucos minutos antes dele ligar e ser tão sucinto. Ela tinha ensaiado as mesmas palavras, porém teve o cuidado de tomar uma ducha morna, bastante culpada, e pentear os cabelos, pondo-os para trás, num rabo de cavalo completamente arrumado. Secretamente desejava que sua cabeça estivesse tão simples e limpa quanto seu cabelo.
saiu no vento frio do final de agosto e destrancou o portão, como havia lhe pedido. Apanhou as roupas que havia usado a tarde, e que agora possuíam um cheiro forte “dele”, e as colocou nos cesto. Checou se a garrafa de vodka que pretendia engolir sozinha, mas agora seria utilizada em uma reunião do clube, já estava na geladeira.
Era um clube restrito. Dois membros honorários responsáveis pela manutenção e reuniões esporádicas. Possuía apenas três regras que nunca seriam quebradas. A primeira delas era que nada era mais importante do que uma ligação que convocaria uma reunião. Nenhum programa era mais importante, além de shows internacionais e encontros muito muito muito esperados, e desta forma qualquer outra situação seria cancelada, caso necessário. A segunda regra consistia em não fazer perguntas. O companheiro do clube deveria guardar sua curiosidade até que o outro estivesse confortável, ou bêbado, para conversar. E a terceira e mais simples, era de que nunca haveria doses de tequila e fases de Super Mario World o suficiente para que um deles continuasse a se sentir infeliz.
Por isso, enquanto a silenciosa terminava de instalar o antigo Nintendo, ela ouviu um batida na porta e, antes que houvesse qualquer dúvida, o viu entrar pela porta. Tão confuso quanto ela, tão perdido quanto ela, tão necessitado quando ela. E num abraço calmo e desajeitado, com uma garrafa de tequila em baixo do braço, eles perceberam o quanto precisavam um do outro.
Nenhuma palavra. Não era necessário. A única coisa precisada por ambos era saber que estariam ali à noite toda disponíveis para uma bebedeira acompanhada por um vídeo game antigo.
- Está pronta? – perguntou num meio sorriso, o primeiro da noite, ele havia notado o cabelo dela. Cheirava diferente. Nada de shampoo de baunilha. Cheirava confusão.
- Estou! – pareceu falsamente animada e deu um longo gole na tequila.
Sentaram-se sobre o tapete felpudo e sorriram, quando o antigo gráfico do vídeo gama apareceu. Calmaria e tranquilidade transpareciam, mesmo que por dentro eles estivessem o oposto.
Antes da entrada da madrugada, quase meia garrafa de tequila, que tinha deixado uma mancha no verniz no aparador de carvalho da mãe de , e uma concentração maior do que a necessária para derrotar o chefão da segunda fase, o relaxamento necessário havia chegado.
- Eu sai com ela ontem. – disse primeiro, sem desgrudar os olhos da tela.
- Eu fui na casa dele hoje. – replicou com a mesma falsa concentração.
Mais nenhuma palavra. Apenas pausas mais frequentes para doses maiores.
Ambos sentiam como se tivesse feito bobeira, ambos sentiam uma confusão especifica. Ambos insistiam no mesmo erro. Erros diferenciados, apesar da mesma origem. Erros frequentes de jovens eu deverão aprender com esses mesmo erros num futuro bem próximo.
O erro de costumava ser conhecido como sua própria versão de saias, por quem ele se encontrava perdidamente apaixonado há algum tempo. Eles dividiam a cumplicidade de quem divide gostos, livros, músicas, cortes de cabelo e bolinhos da Starbucks. A única coisa que os diferenciava era justamente o que os distanciava. Estavam em páginas diferentes de um mesmo livro. Ele já tinha lido até o final, onde o casal principal já tinha superado as dificuldades e sucumbiam ao seu amor extraordinário e finalmente começava uma relação saudável, seria e feliz. Já ela, mal tinha começado a ler. Estava no início repetitivo em que esse mesmo casal apenas se divertia e os primeiros encontros duravam para sempre. Porém ela parecia gostar de reler os mesmos capítulos sempre, em vez de avançar logo pra o final, ou desistir de vez.
O erro de tinha nome, sobrenome, endereço composto, RG, CPF, e costumava atender pelo pseudônimo de “ahh, a gente é só amigo”. Era um apelido meio fraco na verdade, por incomodar justamente quem havia dado. tinha certeza que chama-lo de amigo era apenas mais uma desculpa. Uma daquelas que ela costumava arranjar o tempo todo. Ele tocava baixo, tinha um cabelo incrível, e a respeitava muito. Tanto que às vezes chegava a ser chato. E ao contrário da maioria dos garotos, tirando , ele parecia se importar realmente com o eu ela sentia. Entretanto, “ah, a gente é só amigo” costumava ser mais usado do que “eu gosto mesmo dele”.
Mas a proximidade que e tinham com seus “erros” os impedia de seguir em frente. Ambos tinham plena consciência do que aquela insistência no erro causava, mas estavam afundados demais e não viam uma forma de sair. Aquilo os consumia por inteiro, os prendia até a cabeça, os sufocava, os impedia de qualquer movimento, a não ser os que os afundassem mais, os prendessem mais, os sufocassem mais.
Eles tinham desistido da tequila e agora a garrafa se encontrava jogada ao chão, junto dos capôs plásticos do Burguer King que agora estavam cheios de vodka e gelo que parecia não ter mais gosto ou efeito.
- Eu devia escrever sobre ele. – jogou-se sobre o tapete fofo, derrubando vodka sobre ele, se sua mãe notasse o cheiro provavelmente a mataria.
- Eu deveria tirar férias dela. – fez o mesmo, porém tomando o devido cuidado de pausar o jogo e não derrubar o copo. – Nós dois devíamos! Um mês no Caribe, o que acha? – Ele riu bobo e percebeu um meio sorriso dela através da escuridão.
- Mas escrever de fato, sem ocultar categoricamente nada. Proíbo-me de ser condescendente. – Ela que não costumava prestar atenção, perdia seu interesse quando sentia-se leve.
- Você usa palavras muito difíceis quando tá de porre. – Ele riu, ela também. Não sabiam ao certo porque, mas riram.
- É... – suspirou pesado. – Entretanto, estou sendo legitimista. Não apenas eu. Nós! Nós dois deveríamos relatar nossas pseudo histórias românticas, e depois uni-las. – Ele sorriu, pensativa, da mesma forma ela sorria quando tinha uma grande ideia. – E por fim, deveríamos especificar uma morte mártir e pungente para nossos queridos. – Ela riu sarcástica e por alguns segundos, ambos imaginaram quão bom seria a sensação da morte daqueles que os fazia sofrer. Era cruel, mas parecia uma boa alternativa.
- É... – concordou, e após sorriso cúmplices sobre a ideia anterior, tentaram imaginar o mundo sem seus “erros”. E então a alternativa, já não era mais atraente.
Beberam vodka ao mesmo tempo.
- Melhor não... – disse.
- Mas se mudarmos de ideia - bebeu devagar, tomando coragem para revelar sua ideia, que parecia ótima na cabeça, mas seria cruel quando fosse ouvida – Sempre dá pra fazer o Dexter.
- Pois é... partes do corpo, sacos plásticos, parece legal! – Mais uma vez eles pensaram na possibilidade, e mais uma vez, negaram mentalmente.
Se entreolharam por poucos segundos e riram. Gargalharam. Outra vezes sem saber por que até que sentiu uma lágrima salgada cair na bochecha. E assim, uma a uma elas vieram sem controle. Silenciosas, dolorosas. Era uma das únicas vezes que ela chorava por ele. A terceira, na verdade. A primeira tinha sido durante uma sexta-feira gelada em que ela descobriu que ele não sentia o mesmo. Chorou de frustração. Sentia-se tão idiota e enganada, que acabou sentindo pena de si mesma. A segunda foi em um momento de extrema carência. Ela havia reparado as investidas dele em uma das garotas que estudavam com ela e sentindo-se triste, sozinha e cansada, chorou no banho, quando uma musica romântica do Boys Like Girls tocava e ela soluçava cantando o refrão baixinho.
não havia notado as lágrimas limpas cortarem o silêncio, até que sentou-se e em sussurros pediu um abraço. Ele aproximou-se, a abraçando apertado. Os corações próximos e uma dor compartilhada sem palavras. As lágrimas quentes dela começavam a molhar o ombro da camiseta branca que ele usava e ela escondia-se mais ainda na concavidade do pescoço do amigo. Aos poucos, sucumbiu a mesma triste rejeição e junto a chorou. Ele não tinha vergonha de mostrar sua vulnerabilidade ao lado dela. já havia o ouvido chorar pelo telefone as quatro da manha, bêbado por qualquer razão idiota aparente. Não fazia sentido ser forte ao lado dela, quando ambos compartilhavam as mesmas fraquezas.
Aos poucos a calmaria transpareceu e o choro sincero somado ao álcool trouxe um estado de leveza: era mais simples dividir a dor com aqueles que já a conheciam.
Encostados no sofá, com a segunda garrafa perdida e o vento frio acompanhado de toda a grandeza da lua gélida numa noite sem estrelas, a tristeza finalmente pode ser compartilhada. encostou a cabeça pesada e dolorida no ombro previamente molhado de e suspirou tentando achar as palavras certas. Como se elas existissem. A cena, ambos reencostados em ambos, meio abraçados, com o luar iluminando o cômodo silencioso, podia ter um que de romance, porem mostrava-se trágica.
- Quem começa? – Ela disse por fim.
- Acho que você.
- Não, acho que você.
- Tá legal. – não estava em situação de discutir quem seria o primeiro a falar. – Ontem a noite, ela me chamou para sair. E eu fui. Comemos um sanduíche, sabe? Como sempre. Foi normal. Nada especifico. Nós ficamos, como sempre, eu deixei ela em casa, como sempre, e minha cabeça deu um nó, como sempre. – Ele parou de repente, medindo as palavras, tentando achar a melhor forma de dizer. – A questão não é sair com ela, ou deixar ela em casa, é que eu gosto dela, de verdade, ela sabe disso e nós continuamos assim. Sem nada real. Eu não tenho coragem de dizer não, ela não tem coragem de negar. É doente, sabe? Nós dois sabemos que não tem futuro nenhum nisso, porque ela não quer, mas continuamos insistindo no erro. Eu insisto porque quero ela, quero estar do lado dela, mas ela eu já não sei.
sentiu-se melhor, como se tivesse tirado um peso das costas, sem nenhum clichê “pisicologístico”. não o julgaria, pois sabia como ele se sentia.
- Sua vez. – Ele disse falando pausado, tentando força-la a falar gentilmente.
- Tem certeza? – costumava ser mais resistente. Tinha a convicção de que não falar faria com que passasse mais rápido.
- Tenho! – suspirou pesado, encaixando o rosto ainda mais sobre o pescoço do amigo.
- Nós assistimos filmes juntos hoje. Ele me chamou e eu fui. Bem idiota, né? Eu sabia que ia dar merda, sabia. Eu fiz ele assistir bonequinha de luxo comigo e daí depois dói filme nós estávamos conversando e ele disse que eu era criança. Daí eu pirei, você me conhece, não aguentei. Odeio quando me chamam de criança, só porque eu não gosto de agir que nem a piriguete-mor da sociedade. Então eu provoquei, provoquei, provoquei até e fiz que a merda ficasse pior. Daí disse que não queria. – A voz dela saia meio abafada, meio confusa – Eu sei lá... Mesmo vendo a merda que eu fiz, quer dizer, eu não podia ter ido tão longe pra dizer não. - Ela suspirou, finalmente tendo coragem de olha-lo - Estar lá, deitada no sofá com ele, tão perto, tão junto foi incrível sabe? Até que eu percebi onde eu tava indo...
Eles permaneceram silenciosos, com aquela preocupação sucede o desabafo, olhos grudados na televisão que cintilava.
A penumbra colorida cobriam os rostos deles infantilmente fantasmagórica e trazia consigo uma leveza finalmente alcançada. Eram novos corações. Agora sem o peso, porém com a mesma confusão, que infelizmente não sairia de lá tão cedo. Era impossível alcançar a lucidez com apenas um choro e uma bebedeira.
- Eu ia perguntar se você tá bem, mas eu sei que não está. – finalmente disse calmo e em respeito e carinho contido beijou a testa de .
- Não estou. – ela não o olhou. Mostrar fraqueza não era confortável. - E você também não.
assentiu em um silêncio doloroso, afundando-se mais entre o tapete felpudo e o sofá. também afundou-se mais próximo a ele, deixando com que o sentimento de decepção com eles mesmo que os unia se mostrasse mais forte, mais significativo, mais apoiador.
Algo sobre aquele meio abraço que transmitia tristeza mutua, preocupação, sentimento reparador, ideia de que eles estariam ali, lado a lado, independente do tempo sendo ouvidores ou críticos e misturando-se a leveza que dividir a dor trazia, os deixou mais calmos, menos errantes.
Adormeceram meio tortos, meio juntos, com a janela aberta e a lua invadindo toda aquela cumplicidade. Nenhum deles sabia ao certo que a manhã traria consigo, mesmo que nenhum deles alimentasse falsas esperanças de que a tristeza sumiria com a lua. Entretanto, parte daquelas historias divididas ali, permaneceriam por inefável tempo.
Eles sabiam ali, fazendo o Luigi e a lua de testemunha que, naquela noite, nada além deles mesmos e suas próprias infelicidades errantes importava.
E mesmo depois do aprendizado, mesmo depois da felicidade plena, mesmo depois da ressaca que os arrebataria na manha seguinte, em nenhum momento, nenhuma outra amizade seria tão doce, tão preocupada, tão única quanto aquela que foi experimentada por ambos na solene reunião do clube do Mario Bros e da tequila.
Nota da Autora: Quem escreve sabe. Tem historias que significam muito, tem outras que simplesmente vem e tem aquelas que você preferia não ter escrito, mas tem a obrigação de fazer. Conseguir, finalmente, terminar de escrever essa fanfic (que eu comecei a escrever faz no mínimo um ano) foi o fim de um ciclo que agora não é mais tão importante, mas que as vezes parece muito melhor no fundo da gaveta. Sei lá, a gente só aprende mesmo depois que os fantasmas vão embora.
Espero que gostem (mesmo a temática sendo totalmente diferente da ultima que postei aqui) e se não gostarem é só dizer, sem remorso.
Duvidas, perguntas, criticas, elogios, é só deixar um comentário, juro que leio todos com um amor enorme :D
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