Todo mundo esconde segredos até de si mesmo. Aquelas coisas que você prefere esquecer e nem se tiver um melhor amigo irá dividi-la. Você pode querer jogar essa mancha em sua vida de um penhasco, para que ninguém a encontre e salve, mas certas coisas eu acho que nem a morte te separa. Então lá estava eu, em um bar qualquer, de uma rua qualquer, de um país qualquer, mas aquela data, não é uma data qualquer. Nesta data específica eu sentia o peso da culpa se duplicar sobre meus ombros. Eu realmente não queria morrer, mas eu não aguentava mais, aquela noite seria a minha última. Sem pai, sem mãe. Ninguém sentiria minha falta.
-Vai querer beber alguma coisa? - A atendente do bar me fez abandonar por breves segundos meus devaneios.
-Algo que me faça perder a memória, por favor - Joguei uma nota sobre o balcão.
-Dia difícil? - Perguntou pegando o dinheiro e impedindo-me de voltar à atenção para meus pensamentos.
-É... - Suspirei sorrindo sem vontade - Mais ou menos por aí - E então a mágica da vida aconteceu e aquele som começou a tocar seguida por uma voz rouca. Eu me virei e o vi.
"Essa é a doença da época
Essa é a doença que nós desejamos
Sozinhos no final da corrida
Nós pegamos o último ônibus para casa
A América corporativa acorda
República do café em caso
Nós abrimos à fechadura no portão
Do buraco que nós chamamos de casa
Proteja-me do que eu desejo (x3)
Proteja-me, proteja-me
Talvez nós sejamos vítimas do destino
Lembra de quando nós celebrávamos
Nós bebíamos e ficávamos drogados até tarde
E agora nós estamos completamente sozinhos
Sinos de casamento não irão tocar
Com nós dois culpados de crimes
E com nós dois sentenciados ao tempo
E agora nós estamos completamente sozinhos
Proteja-me do que eu desejo (x3)
Proteja-me, proteja-me
Proteja-me do que eu desejo (x3)
Proteja-me, proteja-me
Proteja-me do que eu desejo (x3)
Proteja-me, proteja-me
Proteja-me do que eu desejo (x3)
Proteja-me, proteja-me"
Eu encarava aquela figura com seu violão na mão, ele estava com olhos fechados e nem ao menos me percebia ali paralisada. O bar estava cheio de olhos sobre ele... Lágrimas vieram aos meus olhos, desciam sem permissão. "Deus... Isso é algum castigo? Mais um?" Ele cantou outras 4 músicas depois dessa, mas eu não ouvi nenhuma delas. Aquela letra grudou em minha cabeça. Eu me senti nua. Era ele lendo minha mente e expressando o sentimento que eu carregava comigo em sua canção. O desespero dentro de mim se multiplicou assim que o vi. O ar passou a faltar, embrulhando meu estômago. Encostei minha testa no balcão e cobri minha cabeça com meus braços. Soluços. Soluços violentos e uma mão tocou meu ombro.
-Você...
Mesmo antes de eu erguer a cabeça, ou ouvir sua voz falando comigo, de alguma forma eu sabia que era ele. Ele estava mais velho, assim como eu, mas os olhos e o corte de cabelo continuavam o mesmo. O encarei por alguns segundos, antes de baixar a cabeça novamente e sinalizar que não. Aquelas cenas que me assombravam voltaram com toda a força e eu me levantei do banco em que estava sentada e saí daquele ambiente o mais rápido que pude. Eu havia escolhido aquele bar por um motivo. Ele ficava próximo a ponte da qual eu pretendia me jogar e acabar com tudo, não estava nos meus planos encontrá-lo ali. Vê-lo intensificou meu desespero, porque ele também... Era tão culpado quanto eu.
À medida que eu corria a ponte se aproximava. Eu sabia nadar, mas não importava, a correnteza dali não permitia nem que o melhor nadador se salvasse. Eu sabia que morrer afogada não seria nada agradável, a medida que a falta de ar tomasse conta de mim, o desespero cresceria e talvez eu me arrependesse, mas no fundo eu queria uma morte cruel. Seria um jeito de pagar meus pecados de forma justa e encontrar redenção. Porque só com uma morte cruel, eu, de alguma forma me sentiria menos culpada.
-Espera! - Eu pude ouvir a voz dele atrás de mim. Ele havia me seguido, mas não permitiria que ele me impedisse. Assim que alcancei a ponte subi no corrimão, me apoiando na pilastra e antes que pudesse me jogar seus braços enlaçaram minhas pernas. Agora estou aqui com ele me segurando - Espera, não me deixa aqui sozinho.
-Eu vou me jogar daqui e acabar com isso, você querendo ou não - O abraço em minha perna se intensificou e senti seu rosto encostar-se à minha coxa direita. Algo molhado me atingiu. Eu sabia. Ele estava chorando. Chorando o desespero que agora eu descobri que também o dominava.
-Então eu vou junto - Soltou minhas pernas assumindo o lugar a meu lado, se apoiando em outra pilastra e unindo minha mão direita com a sua esquerda. Silencio - Faltam 4 minutos pra meia noite, podíamos conversar e meia noite a gente...
-Pode ser - Falei baixo - Que música era aquela? - Não contive a pergunta. O olhei.
- É "Protect Me From What I Want" do Placebo - Disse olhando o horizonte - Engraçado não? Como alguém que nunca te viu na vida pode escrever uma canção que fala tudo o que você está sentindo e intensificar esse sentimento? - Me encarou também - Acho que isso é um dom de Deus, para algumas pessoas.
-Dom? Fazer esse desespero dentro de mim piorar é um dom?
-Música é um dom - Me respondeu - A música nos atinge na área mais profunda de nossos sentimentos e muitas vezes não precisa nem de uma letra para isso - Sorriu fraco.
-Como me achou? - Não contive a curiosidade.
-Eu sempre soube onde você estava pequena, nunca te perdi de vista.
-Então por que eu nunca mais te vi?
-Depois do que aconteceu você se afastou - Suspirou - Nenhum de nós sabia como agir, mas eu não consegui ficar longe de você. Só não sabia como me aproximar - Soltou minha mão e levou seus dedos frios para acariciar meu rosto - Então eu conheci um cara que tocava violão e ele me ensinou - Voltou a juntar nossas mãos - Me ensinou, não só a tocar, mas também a usar a música para expressar meus sentimentos.
-Por que hoje? Já faz 7 anos...
-Porque eu te seguia pelas ruas e eu nunca te vi tão deprimida - Mordeu o lábio inferior - De alguma forma eu sabia que hoje era o dia de voltar pra você - Olhou o relógio - Falta 1 minuto e 43 segundos.
-Eu te amo - Falei mordendo o lábio inferior, com os olhos no horizonte - Sempre amei e sempre vou amar.
-Eu também te amo, sempre amei e sempre vou amar - Senti sua mão me puxando um pouco para seu lado - Nos encaramos por alguns segundos antes de nossos lábios se encontrarem. Fomos cortados quando os fogos de artifício começaram a dominar o céu - Feliz 2012.
-Feliz 2012 - Respondi suspirando um pouco angustiada com o que iremos fazer - Alguma música para a ocasião?
-Eu sempre me imaginei morrendo ao som de "Goodbye Blue Sky" do Pink Floyd. Sabe cantar essa?
-Com certeza - Então ele tomou as rédeas começando a cantar e eu o acompanhei.
"Você já viu os apavorados?
Você já ouviu as bombas caindo?
Você já se perguntou
Por que tivemos que correr em busca de abrigo
Quando a promessa de um admirável mundo novo
Desfralda sob um limpo céu azul?
Oooooooo ooo ooooo oooh
Você já viu os apavorados?
Você já ouviu as bombas caindo?
As chamas já estão todas muito distantes
Mas a dor persiste
Adeus céu azul
Adeus céu azul
Adeus
Adeus"
Quando terminamos segurei a mão dele mais forte. Um último olhar e eu disse:
-Não me solta.
-Nunca - Seus lábios novamente tocaram os meus e derrepente meus pés não tinham mais algo firme embaixo de si. Estamos em queda livre.
Para a família de Michael O'neal pedimos perdão. Perdão porque 7 anos atrás, na véspera do ano novo de 2005, dois jovens bêbados em um carro invadiram a outra pista. O carro que estava vindo em direção a esses dois jovens, desviou e bateu em um poste. Imaturos demais esses dois jovens não voltaram para prestar socorro e viram pelo jornal que o jovem Michael O'neal, de 17 anos, se tivesse sido socorrido na hora, não teria morrido. A mãe dele chorou pedindo justiça. Eu nunca irei esquecer o desespero que vi nos olhos daquela mulher. Eu nunca serei feliz sem poder pagar pelo meu erro. Esse foi o jeito que encontrei. Pelo menos, não morrerei só.
-Goodbye blue sky...
Fim.
N.A: Muito obrigada a quem leu. Até a próxima!
N/B: Nossaaa, quase chorei aqui! Emocionante! Gostaram também? Qualquer errinho já sabem -> /kaah.jones/ xx.