Rega As Tuas Plantas Autora: Melwën | Beta: Nelloba Jones
Ela sempre esteve na casa ao lado, ele sempre a viu ensimesmada. Talvez fosse por isso que nunca lhe desejou um bom dia — sua educação não merecia.
Ele sempre esteve na casa ao lado, e ela sempre o viu regando seu jardim. Carrancudo demais para merecer um sorriso. Talvez fosse por isso que ela nunca ousou um olhar, muito menos um olá.
Os anos passaram assim, enquanto a jovem menina abandonava as fitas do cabelo; o velho senhor ganhava uma inúmera quantia de doenças. E agora, ao invés de a observar do jardim, observava-a da janela, em cima de uma cama.
Cícero Fragoso gostava de festas, de samba, de regar suas flores vermelhas e de ler bulas de remédio. Cícero Fragoso não gostava de azeitonas, da sua esposa, e nem de acordar e ver que os chinelos haviam ido parar debaixo da sua cama.
gostava de andar descalça pelo seu quarto, de escrever com os dedos na própria perna, de esconder as coisas da sua irmã e deitar em sua cama sem travesseiros. não gostava de uvas passas, da namorada do seu pai e nem dos adesivos que vieram em seu caderno novo.
Em uma das manhãs, enquanto enchia sua mochila de cadernos; Cícero pedia ao seu filho que fosse a uma relojoaria e mandasse a joia mais preciosa da família para polir. Um relógio de bolso que pertencera ao seu avô.
e o filho de Cícero saíram ao mesmo tempo de casa, depois se trombaram na calçada. pediu desculpas, mas o jovem carrancudo nem sequer parou para ouvir.
Algo reluziu no chão. Um objeto que sabia que não era seu. Mas quando ela abaixou-se para apanhá-lo, o carro de Cícero já sumia no fim da rua.
– Espere! – berrou ela balançando o objeto. – Você deixou o seu... CAIR!
Mas não foi vista nos espelhos do carro, nem seus gritos foram ouvidos pelo motorista desatento. A menina analisou a natureza do objeto preso à corrente, virou-o e o revirou. Encontrou em seu verso um escrito, um nome:
“Fragoso”
achou simples demais esperar a lua pratear no céu e visitar o tal Sr. Fragoso para entregar seu pertence, que parecia ser muito querido. “Espere!” pensou , “Talvez não seja Sr. Fragoso, e sim, Sra. Fragoso”.
Antes que pudesse concluir seus pensamentos, independentemente das suas boas intenções, o rancor lhe tomou por completo: “Como podia ela devolver o relógio para um homem que trombou em si e nem pediu desculpas? Como ela poderia devolver um objeto ao seu vizinho, quando até o pai dele a tratava mal?” Infelizmente, o rancor é a erva daninha que cresce entre o coração dos homens, sufoca as boas maneiras e os bons sentimentos, contamina o perdão, os torna parcialmente ruins. Mas era jovem demais para que o rancor a corrompesse. Ela não sabia como devolveria o relógio, mas sabia por onde começar a fazê-lo.
Na manhã seguinte, e seu cachorro assaltaram a caixa de correio do Sr. Caio Fragoso, e quase foram pegos no flagra por um gato persa marrento. não gostava de gatos, seu cachorro, Smaug, também não. A menina pensou em espantar o gato, o cachorro pensou em “Smaugá-lo”¹, mas essas ideias foram embora quando a porta da casa começou a se abrir. e Smaug dispararam para o seu quintal, e a menina fingiu brincar com seu filhote enquanto a Sra. Fragoso vasculhava sua caixa de correio.
A Senhora Fragoso gostava de dobrar roupas, ver nado sincronizado na televisão, beber o último gole do leite na caixa e ver uma fogueira queimando. A Senhora Fragoso não gostava de sujeira e nem de calor, não gostava de lavar louças e nem de sorvete.
pôde ouvir a Sra. Fragoso sussurrar por debaixo das suas tranças louras que o tempo, com cuidado, conservara. Mal sabia ela o que a Sra. havia dito.
– Que estranho, não vieram cartas hoje. – ela disse para si, olhando para a menina e para o cachorro, que corriam alegremente em seu quintal. – O carteiro já passou? – berrou ela para .
– Oh, sim, senhora! – gritou a menina, escondendo algo atrás das costas.
– O que tem aí atrás?
– A bola do cachorro. – respondeu , deixando as cartas caírem e chutando para cima uma bola de futebol, que estava ao lado do seu pé.
A Sra. Fragoso deu as costas para a menina e entrou na casa.
não entendia a “mania de carranca” que aquela família trazia, mas os anos sofridos foram capazes de endurecerem os corações que naquela casa habitavam. Ela sabia que, há muitos anos, a filha do Sr. Fragoso havia ido embora — talvez ela tivesse se safado, ela era tão gentil.
Laura Fragoso ia à casa dos visitar a irmã de , brincar com ela quando eram pequenas. A menina era de uma doçura sem tamanho e educação admirável, nem parecia que vivia “na casa carrancuda”². Acabou indo embora quando o coração dos pais enrijeceu, quando suas almas começaram a se tornar quebradiças e secas. Desde então a janela dos olhos dos Fragoso também se fechou, eles acabaram se afastando mais ainda uns dos outros e de si mesmos.
Após uma vasta pesquisa na internet — e vasta dedução lógica a respeito dos Fragoso —, finalmente decidiu o que faria quanto ao relógio de bolso que ela encontrara. Agora ela sabia como o devolveria.
E o sol mal raiava quando tudo fora feito, rosas foram colocadas no lugar das ervas daninhas que tomaram o jardim de Fragoso e, em breve, as rosas substituiriam as ervas daninhas que tomaram seu coração. O jardim destruído fora restaurado, voltou a ficar bonito como era antes de Cícero Fragoso adoecer. E quando o sol nasceu, uma menina suada e um cachorro embarrado regressaram à casa dos e começaram a se recompor.
Às dez e quinze daquele mesmo dia, um objeto atingiu Cícero Fragoso depois de atravessar sua janela, era uma pedra, e nela estava amarrado um bilhete. Praguejando pela dor e tremendo pela velhice, o ranzinza abriu o papel e pôs-se a ler:
“Segue o teu destino, Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De arvores alheias.
A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nos queremos.
Só nos somos sempre
Iguais a nos-próprios.
Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.
Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.
Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.
Fernando Pessoa”
Um sorriso se plantou, como as rosas do jardim, no rosto do homem que outrora fora carrancudo. De repente, sentiu uma vontade incontrolável de ir ao encontro do seu antigo jardim ao qual dedicara a maior parte do seu tempo. Cícero chamou sua velha e pediu que ela o ajudasse a sair, e quando saiu teve a maior das suas surpresas.
Seu jardim tinha cor novamente, era vermelho, verde, roxo, alaranjado e cor-de-rosa. Sua alma absorveu as cores das plantas, seu sorriso alargou-se mais ainda.
– Se não é um milagre! – disse a Sra. Fragoso ao tampar suas rugas com as mãos.
O velho Cícero continuou a capengar em sua bengala rumo às suas belas plantas, desta vez, sem a ajuda da esposa. Seus olhos brilharam mais do que o sorriso ao ver um objeto no chão, um relógio, ali perdido. Relógio que pertencera ao seu pai e avô, e estava na família há anos. Relógio que o viu crescer, tornar-se moço, casar-se, ter filhos, ver seus filhos indo embora e sua desolação. O Sr. Fragoso ignorou sua hérnia de disco e abaixou-se para apanhar seu melhor amigo, e quando se ergueu e os olhos maravilhados se desviaram do objeto pelo qual ele tanto prezava, viu sua filha, Laura Fragoso, vindo ao seu encontro. Eis que a felicidade inundou, não apenas aos Fragoso, mas a , que espiava da sua janela.
Naquele dia, os Fragoso se reuniram e almoçaram juntos, jogaram conversa fora, sorriram, amaram-se. Muitos dias prosseguiram como aquele, formaram meses e anos, até que a morte levou o Sr. Fragoso e a família resolveu se mudar daquela casa.
chegou a conhecer seu novo vizinho, , conheceu-o e muito bem. Depois de alguns anos ela se casou com ele. E agora, o jardim que trouxera uma enorme alegria para si na adolescência já não era uma lembrança, era o seu jardim, e ela nunca mais deixaria nenhuma erva daninha tomá-lo.
¹ Smaugá-lo é um termo inventado pela personagem para se referir a todas as formas de “ataque” do seu cão, Smaug.
² Casa carrancuda era o termo que utilizava para designar a casa dos Fragoso, pois cismava que as janelas e portas da casa formavam um rosto, e seu rosto lhe parecia muito triste, como seus habitantes.
| FIM |
Nota de Beta: Se virem algum erro de português/script/HTML, não usem a caixinha de comentários, me avisem por aqui: nellotcher@gmail.com