Slide in, baby
Together, we’ll fly
I’ve tried praying
But I don’t know what you’re saying to meDeslize, baby
Juntos, nós iremos voar
Eu tentei rezar
Mas eu não sei o que você está dizendo para mim
(Slide Away - Oasis)
Faltando dez minutos para a meia noite, apareceu no topo do prédio mais alto da Times Square, colocou as mãos no bolso do impecável terninho Versace e passou a observar, com desinteresse, a performance daquela velha música, Imagine, pela cantora responsável por entreter os humanos abarrotados na praça.
Cogitou acender um cigarro, mas logo refutou a ideia, optando por se distrair com a chuva que caia rala ao seu redor. Soprou e a gota de água atingida congelou imediatamente, o pequeno floco caiu na ponta do seu sapato preto. Soprou uma segunda vez, mais devagar, e o ar gelado interrompeu o movimento natural, formando um pequeno redemoinho, que durou uma fração de segundo, antes de ser dissipado por um movimento displicente da sua mão esquerda.
Sentiu a presença surgindo ao seu lado, antes da tão conhecida voz sussurrar no seu ouvido.
- É irônico, não?
permaneceu olhando para baixo, negando-se a ceder atenção indistinta ao recém-chegado. Não que tal ato pudesse ter algum efeito neste, claro.
- Digo, é apenas irônico. – Ele continuou. – Um demônio que se diverte controlando o vento.
- O que você quer, ?
Perguntou, soando mais rude do que gostaria.
- Assistir a virada junto com você, claro.
No seu movimento seguinte, encostou o ombro ao de e, o toque súbito, fez a última sentir algo nela tremer. Se ela ainda tivesse um coração, este agora estaria apertado.
- Nenhuma alma para salvar, hoje?
Perguntou para distrair a mente atribulada.
- Você sabe que eu faço muito mais do que isso.
riu, aquele seu riso fácil e repleto de significados e, obviamente, muito irritante. De repente, sentiu a raiva tomar conta de si e retrucou.
- Bem, não por muito mais tempo, não é mesmo?
Um curto silêncio e, então, tentou pegar a sua mão, mas se afastou, antes que o movimento pudesse ser completado. Pela primeira vez na noite, encarou sua companhia e percebeu que a testa do velho anjo estava franzida.
- , eu já te expliquei que-
Foi interrompido pelo aumento súbito no barulho da praça mais abaixo. Os dois se viraram e o motivo da agitação, logo, se fez claro. A bola colorida, na cobertura do One Times Square, havia começado a cair, indicando que faltava exatamente um minuto para a virada do ano. Os humanos insignificantes, na praça, procuravam seus entes queridos e pareciam divinamente felizes.
Sim, tudo aquilo era mesmo incrivelmente irônico.
fechou os olhos quando a contagem regressiva começou e só os reabriu quando os fogos de artifício anunciaram a chegada do ano novo.
- É lindo, não?
perguntou, os olhos fixos nas faixas vermelhas, amarelas, verdes, explodindo na noite escura. Por um segundo, pareceu que ele ia colocar o braço ao redor da cintura de , mas, no último instante, percebeu que o movimento seria inapropriado.
ficou em dúvida se deveria, ou não, ficar decepcionada. Ela olhou bem para o anjo ao seu lado, para a camisa branca com os primeiros botões abertos, as mechas onduladas esvoaçando e, principalmente, a graça que nunca podia ser totalmente escondida. Tudo aquilo que ela nunca teve e estava cada vez mais prestes de perder.
Apenas não era justo. Porém, então, a injustiça era a única constante tanto de sua vida quanto de sua morte.
- É só mais um ano.
Resmungou e, em seguida, se transportou dali, antes que os fogos misturados à presença de fizessem sua cabeça explodir.
Após checar que sua posição continuava protegida, acendeu um terceiro cigarro e se deixou saborear, vagarosamente, o pequeno prazer proporcionado. Crowley, o pior chefe que qualquer um poderia ter, ainda deveria demorar meia hora para chegar. Inexistia pressa.
No maço guardado no bolso do blazer, ela tinha a verdadeira presença do divino. Não constituíra nenhuma surpresa para descobrir que cigarros foram inventados por outro colega demônio.
Humanos e, ainda menos, anjos não eram tão criativos.
De olhos fechados, a fim de apreciar o momento, quase não percebeu a presença se materializando atrás dela no duto de ar. Suspirou, profundamente.
- Não tem nada para fazer, ?
- Temos uma conversa para finalizar.
- Não, não temos – Negou, impaciente. – Você relatou seu lado ridículo, eu o apontei como ridículo e, ainda assim, você continuou sendo ridículo.
Certa de que tinha exposto seu posicionamento, se preparou para a leve brisa que se seguia a cada partida de , contudo esta não aconteceu. , dane-se ele, continuava ali.
- , eu sei que você não entende, mas-
- Entender? O que há para entender? – Ela explodiu, antes que sua mente a lembrasse do lugar em que estava. Maldizendo-se, baixou a voz. – Você quer se transformar na porra de um humano, .
- E o que há de tão errado nisto?
- Uma pergunta tão ridícula nem merece resposta.
- Mas você também se importa – O anjo, atrás dela, afirmou. – Caso contrário, por que estaria em um duto de ar, espionando o rei do inferno?
estreitou os olhos e disse, antes de desaparecer.
- Não seja ridículo, . Eu apenas me importo comigo.
- Se eu não soubesse melhor, diria que você está me evitando.
- Se você sabe tanto, não te ocorreu que eu poderia ter uma razão para isso?
sentiu a hesitação, breve, de , antes de este perguntar.
- E qual seria a razão?
Virou-se de lado na areia, a fim de encarar a companhia indesejada. Diferente de , que permanecia de roupa social até mesmo em uma praia no Caribe, o anjo estava apropriado para a ocasião. Vestia apenas um calção folgado roxo, deixando a mostra o corpo escultural, que ele fizera questão de esculpir no seu corpo hospedeiro. O bronzeado estava na medida certa e os músculos perfeitamente definidos.
Não deveria ter se surpreendido com as decisões irracionais dos últimos tempos. sempre fora vaidoso demais.
- Não suporto coisas com asas.
acendeu um cigarro e desapareceu no exato momento em que colocou este entre os lábios finos.
conheceu nos anos 60, em um pub de fachada decadente, na periferia de Manchester. Na época, tendo morrido há apenas uma década, ela ainda trabalhava no setor de renegociação contratual. Estava no pub a serviço, revisando as cláusulas de um escocês moribundo que vendera a alma por 20 mil libras. assinava o termo aditivo quando sentiu a presença, antes mesmo de ter visto o anjo.
Os olhares deles haviam se cruzado e, no lugar de iniciarem uma batalha épica, eles acabaram bebendo cerveja quente até a madrugada.
A morte tem destas coisas.
No piloto automático, após uma noite particularmente complicada emboscando lobisomens, apareceu no bar e pediu, logo, cinco garrafas, disposta a beber até sua mente ficar turva. Ela apenas estava atrás de um momento de paz, mas, claro, os céus – eles nunca gostaram muito dela mesmo – tinham outros planos.
- Duas, sim?
Em um momento estava sozinha e, no seguinte, o maldito anjo estava ao lado dela, pedindo cervejas para o garçom dela, como se pertencesse ao pub dela. Apenas, claro, que o pub fora desde o início território neutro e meio que pertencia aos dois. Acima de tudo, sabia que não podia realmente ignorar o anjo ali.
Certas tradições apenas deviam ser mantidas.
- Não se cansa, ?
- Apenas estou com sede. Um brinde?
sorriu. O sorriso excessivamente grande, que sempre alcançava os seus olhos claros, de um modo que, estava certa, nunca acontecia com os delas.
Os dois brindaram e passaram a beber juntos, mas separados, lado a lado, mas distantes, por um longo e indeterminado tempo.
já estava quase considerando ceder à tontura, quando sentiu a mão em cima do seu joelho.
- Não precisa ser assim, sabe?
A voz de , maldito seja, não estava nem um pouco falha e inexistia qualquer indício de embriaguez nele.
- O, o que vo-você quer dizer?
- Resta-me pouco tempo, mas nós podemos nos divertir nele.
Oh. Os olhos de , invariavelmente, se arregalaram, quando sua mente nublada conseguiu captar as implicações.
riu, piscou, e desapareceu, deixando a leve brisa no pub escuro e abafado.
Abril era um mês ideal para o surfe nas praias Costa-Riquenses, com as ondas na altura certa para manobras. Isso, desde que você tivesse algum talento com uma prancha, claro.
soltou uma alta gargalhada quando , pela sétima vez, se transportou do mar, logo após cair da prancha, de algum modo absurdamente ridículo. O anjo surgiu ao seu lado na areia e começou a tossir, fingindo um afogamento, apenas para... Não comover sua companhia, obviamente.
- Parabéns, . Não me divirto tanto há décadas.
- Você é cruel.
O anjo reclamou, parando de tossir, e sorriu.
- Claro que sim, sou um demônio.
- Esta é a sua desculpa padrão? Bem, gostaria de te ver fazendo melhor.
- Obrigada, porém nós, do submundo, prezamos pelos limites que preservam a dignidade. Parece que o know-how não chegou ao céu.
- É? Engraçado. Achei que valia tudo para perpetuar a confusão.
- Isso é pensamento para demônios de segunda linha.
- Ou você é uma figura atípica. Por que apreciar tanto a ordem?
Ocupada em considerar a perguntar, deixou o anjo encostar os ombros molhados ao seu terninho azul escuro (apenas por isso, claro).
- Bem, nada é mais perfeito que a súbita tempestade na calmaria, não? Nada como a interrupção de um ambiente de suposta segurança.
Por um instante, achou que tivesse falado demais e fosse desaparecer, mas o anjo apenas balançou as mechas onduladas e comentou, rindo.
- Você tem um conceito peculiar de perfeição, .
se deixou perder nos olhos expressivos dele e, mentalmente, concordou: sim, tenho. Felizmente, alheio a tais pensamentos, , encostou, com delicadeza, os seus lábios aos dela.
- Apague este cigarro.
reclamou. levantou a sobrancelha e desobedeceu, encostando-se ao tronco largo de uma das árvores.
- Por que eu faria isso? É uma companhia para o espetáculo que estou prestes a ver.
- Saiba que eu sei esquiar.
- Claro que sabe.
sorriu, de canto, e indicou ao anjo que fosse em frente.
Dois minutos depois, ela estava se transportando para o lado de um anjo estatelado na neve austríaca.
- De fato, você é bom nisso. Desde que a comparação seja com uma estátua.
- Você poderia ter me ajudado, sabe?
- Você poderia ter usado seus poderes.
- Às vezes, é importante correr riscos. Não, os desnecessários, pensou, abaixando a cabeça para procurar pelo isqueiro no bolso da calça preta. Apenas para algo gelado e duro colidir contra o seu rosto.
- Mas que porr-
Não terminou a frase, porque sorria, um sorriso ainda maior do que o normal, e segurava...
- Fuja se for capaz!
- Bolas de neve? Você tem cinco anos? Eu me recuso a particip-
Foi atingida por uma bola na testa. Mudou de ideia, em seguida, e desviou com habilidade infernal de uma terceira bola, agachando-se, em seguida, para pegar munição própria.
- Demônios são naturalmente competitivos, .
Comentou, antes de lançar cinco bolas, em milésimos de segundos, e correr para se esconder atrás de uma árvore.
- E anjos sempre vencem.
retrucou, atirando duas perfeitas bolas nas suas costas.
Meia hora depois, a briga, invariavelmente, acabou sem nenhum vencedor, ou, dependendo do ponto de vista, com dois vencedores caídos, lado a lado, apreciando a fina sensação gelada que tomava conta de seus corpos.
- Você é um idiota, .
afirmou, deixando, relutantemente, um sorriso aparecer no seu rosto pálido. Então, tocou na sua bochecha esquerda, na qual se destacava a vermelhidão resultante da ação do vento, e disse, com sua voz macia.
- E você deveria sorrir mais, .
A proximidade do anjo provocou um calafrio, sem nenhuma relação com o vento, e, para encobrir o momento, juntou, com agressividade, as línguas deles em uma só. Fechou os olhos para sentir com mais intensidade a graça, delicada e aconchegante, que a envolveu, em resposta.
- Se você pudesse interferir no modo como o mundo gira, você o faria?
Com os olhos fixos no céu estrelado, questionou, quando voltou para o convés do navio, segurando dois drinques de limão e morango.
- Que pergunta idiota é esta? E não, eu não o faria. Eu gosto do mundo girando como ele sempre girou.
- Bem, eu mudaria a rotação do eixo.
- E isso funcionaria perfeitamente, claro.
- Às vezes, apenas precisamos mudar.
- E em outras a mudança nos faz esquecer quem somos.
- ...
- Beba seu drinque, anjo.
No lugar disso, montou em seu corpo e desabotoou sua camisa, iniciando uma trilha de beijos. retribuiu mordendo com força a base do pescoço dele. Fechou os olhos, a fim de ignorar as estrelas, testemunhas de palavras que nunca seriam ditas.
era um dos anjos mais velhos do céu, tendo sido criado pouco depois dos arcanjos, e há milênios ocupava o posto de conciliador, orquestrando qualquer intercâmbio que Miguel entendesse necessário entre anjos e demônios. entendia que o fato do céu encontrar-se em guerra civil, tornava o trabalho de ao mesmo tempo desnecessário e extremamente complicado, porém não conseguia entender como isso fizera o anjo chegar à conclusão que ele queria se tornar humano.
já fora humana. Ela podia garantir. A experiência não era nada demais.
- Aqui. Coréia do Norte. – Ela apontou no mapa - Um passarinho verde me contou que aliados de Crowley estão escondidos aqui. Eles devem saber algo sobre o plano de libertar os monstros do purgatório e... , você está me ouvindo?
O anjo de mechas onduladas cruzou os braços e resmungou.
- Por que você está falando de trabalho nas nossas férias?
- Não são exatamente férias, mais como um momento prolongado de distração. E já faz quase um mês, de qualquer maneira. Quanto tempo você acha que pode se esconder do céu?
- Eu não estou me escondendo. Apenas ninguém procurou o suficiente.
- Que seja. E parar os planos do rei do inferno não é do seu interesse?
- Por que é do seu interesse?
revirou os olhos.
- É este o jogo que você quer jogar? Bem, eu gostava das coisas como elas eram. Antes de Lucífer ser deposto e o inferno entrar sob nova direção. Nada como o ditador com o qual você está acostumada.
- Ah, então você só se importa com isso? Voltar ao status quo, no qual você ocupava todo o seu tempo negociando almas por preços ínfimos?
estreitou os olhos, começando a perder a paciência que ela nem sabia ter.
- Que tom é esse? E você? O que te interessa os meus objetivos? Em alguns meses, você nem irá se lembrar disso tudo.
- Eu irei me lembrar daquilo que importa!
- Não me faça rir, . Ao cair, você não pode simplesmente escolher o que levar junto.
- Tenha um pouco mais de fé. O que nos toca sempre permanece conosco.
- Fé? Você quer falar de fé? Comigo? Olhe ao seu redor. Olhe estes mapas. O que a fé tem feito pela humanidade?
balançou a cabeça, como sempre fazia quando expressava sua absoluta descrença.
- Nosso Pai, - O anjo afirmou, em tom suplicante. - Deus nos trouxe até aqui.
- Seu pai. Não invente a minha filiação.
Enfim, irritada, jogou o mapa para um canto, com um movimento violento do braço. Sabia que não deveria ter concordado com este passeio idiota a dois pelo mundo. Ninguém nunca conseguira despertar tantos sentimentos indesejados nela quanto o maldito anjo na sua frente.
- , nós precisamos conversar.
- Cala a boca, .
cortou a distância entre os dois e iniciou um beijo forçado, violento, com os dentes marcando os lábios macios do outro como propriedade. retribuiu, do seu modo quase delicado, mas sempre intenso.
Ao separarem os lábios, se questionou se também sentira a amargura plena no tocar de lábios.
- Não me procure, anjo.
Transportou-se, em seguida, fingindo que as lágrimas brotando no canto dos olhos claros e celestiais eram fruto da sua imaginação.
Para um comissário do céu, era tão bom em cumprir ordens diretas quanto um demônio. estava sentada na beira de um lago, com um cigarro na boca, jogando, desinteressada, pedras na água, quando olhou para o lado e descobriu o anjo com a mão estendida, oferecendo uma pedra anormalmente redonda.
- Acho que eu apenas queria ouvir que você também estava fazendo por mim.
- Então, a iminente humanidade interferiu na sua percepção de realidade.
- Apague este cigarro.
- Não tente mandar em mim.
aceitou a pedra e atirou, fazendo-a quicar três vezes sucessivas na água turva. deu de ombros e sorriu. Pela primeira vez, reparou, o sorriso não atingiu os olhos claros dele.
- É julho, . Já perdemos tempo demais.
- O meu tempo é eterno.
- Nada é eterno. Apenas o am-
- Vamos assistir a um jogo da Copa.
interrompeu, com a primeira coisa que passou pela sua mente. Os ombros do anjo caíram por um instante, mas este logo se recuperou e sorriu, genuinamente.
- Certo. Você apenas não pode roubar contra o Brasil. Novamente.
- Eu não posso garantir nada.
Piscou, com malícia, e riu, passando as mãos pelas mechas onduladas.
- Nunca vou entender o que você tem contra aquela seleção.
- Eles apenas são felizes demais.
declarou, com desprezo, antes de transportar os dois.
e não esperavam nada um do outro. E, ao mesmo tempo, esperavam tudo. Há décadas eles jogavam um jogo complicado, com regras inventadas ao longo do caminho. Então, eles criaram um novo pacto. deixaria de fugir e , por sua vez, não mais faria perguntas para as quais ela nunca teria respostas.
Um pacto estranho, mas funcional.
Eles interferiam nos planos do inferno e, nas horas vagas, alternavam entre uísque e drinques elaborados, apenas para explorar o gosto do álcool nas línguas um do outro. imaginava que, provavelmente, estava cometendo algum grave pecado, testando cada canto de uma criatura divina. E, claro, isto a excitava.
Era apenas sexo, mas a luxúria era uma virtude no inferno. Era apenas sexo, mas, ainda assim, deixava-se ser envolvida pelos braços fortes de , no pós-coito, e ouvia o anjo filosofar.
- Os humanos não sabem como a sorte sorriu para eles. Eles desconhecem quase tudo sobre o universo que os cerca, ignoram a existência de um grande plano. É mais fácil ser feliz assim. É isto o que todas as criaturas criadas pelo Pai querem. A felicidade.
- E você por acaso é infeliz?
fez uma longa pausa, antes de responder.
- Eu não sei. Eu apenas não sei.
Eles não eram uma dupla. Não se definiam como um casal. Todavia, estavam longe de serem apenas conhecidos e, estava ciente, não poderiam ser classificados como meramente amigos. E ela nunca percebeu que esta ausência de definição a incomodava, até ser interrompida na sua encruzilhada favorita, em plena sessão negocial natalina, por um anjo anunciado que decidira se tornar humano.
Quase dez meses depois, demônio e anjo compartilhavam caipirinhas em uma praia na América do Sul.
- Pouco mais de dois meses, .
- Sim, no primeiro dia do novo ano, serei outro.
largou o copo na areia, com descuido, e acendeu um cigarro, não apenas por saber que o anjo odiava o cheiro, mas também porque precisava daquele apoio. Olhando para um ponto indeterminado no horizonte, ela disse.
- É inacreditável, mas eu vou sentir a sua falta.
deixou o copo na areia, com cuidado, e colocou a mão em cima da mão livre de .
- Eu também vou sentir a sua.
- Mentira. Você nem vai se lembrar da minha existência.
Puxou a fumaça, com força, e sentiu-se apenas amarga. Fez menção de se levantar, mas apertou sua mão.
- ... Você me desafia. A imprevisibilidade das suas respostas rápidas, seus terninhos alinhados, seus cigarros insuportáveis, tudo o que te torna você... É único e a razão pela qual eu não tomei minha decisão muito antes. E eu...
Desviou o olhar do horizonte, surpresa com a súbita declaração. E, nada, entre o céu e o inferno, a teria preparado pra as próximas palavras do anjo.
- , eu te amo.
Havia tanta verdade nas palavras, que esta podia ser percebida até por um ser construído em mentiras. Porém, foi a esperança plena e, infernos, até mesmo suplicante, nos olhos claros que fez sentir o peso da confissão.
- Você também sente o mesmo?
De repente, o pânico tomou conta de cada vibra do seu ser e não enxergou o anjo, perfeito em seu calção roxo, as mechas onduladas caindo, delicadamente, sobre a testa bronzeada.
Não. Ela enxergou tudo o que poderia ter sido e, mais do que isso, aquilo que nunca seria. E ela tinha a resposta, ao mesmo tempo em que esta se encontrava completamente fora de seu alcance.
Diante de uma encruzilhada, fez a única coisa que podia fazer.
Ela fugiu.
Era de conhecimento geral que demônios, quando embriagados, são ainda mais instáveis e agressivos. passou todo o mês de novembro tão absurdamente bêbada que, logo, todo e qualquer ser – da terra, do céu e do inferno - não ousou se aproximar dela.
Incluindo, . E isto doía de um modo que sabia não ter direito. Porém, cada vez que fechava os olhos, tudo o que ela conseguia visualizar era o anjo, vaidoso e sorridente demais. Sempre demais, em sua graça. E, então, ela sentia vontade de arrancar cada lembrança da sua mente e pedia mais uma dose de uísque.
podia até ter direito, mas não deveria ter criado uma nova regra quando ele está prestes a cair, esquecendo tanto do jogo quanto dos jogadores.
precisava de mais tempo e, na falta deste, restava se conformar com o álcool.
Apenas não era justo.
Era natal e como odiava o natal. Ela acendeu um nono cigarro, bebeu uma dose de uísque e nem se moveu quando o enxofre impregnou o pequeno restaurante de beira de estrada.
- Se você pretende me explodir, Crowley, seja generoso e faça isso logo.
- Olá, – O rei do inferno cumprimentou, em tom bem humorado. – Fico feliz em te encontrar tão mal de saúde.
encheu o copo e deixou o outro demônio sentar-se no local vago ao seu lado. Sabia que ignorar Crowley, era o melhor modo de descobrir logo o que este queria.
- Sabe, , estava fazendo o balanço geral do ano – Crowley disse, após se servir da bebida. – Os seus números deixaram a desejar. Nenhum contrato?
- O que posso dizer? – Resmungou. - As pessoas cada vez menos sabem o que querem.
- Claro! Por isso, nós, demônios, estamos sempre dispostos a guiá-las. Mas, curioso, você culpar os humanos, rumores correm no inferno.
suspirou, virou o copo em um único gole e afirmou.
- Eu não vou implorar o seu perdão.
- E nem eu gostaria que você fizesse isso. No fim, a sua interferência foi útil, foi o empurrão necessário para que eu enxergasse as coisas por outro ângulo.
Estreitou os olhos.
- Você...
- O purgatório é coisa do passado. Tenho novos e ainda mais brilhantes planos para o inferno. Estou aqui para te agradecer, . Aliás, quanto ao seu amiguinho anjo...
Bateu na mesa, com força.
- Ele não tem nada a ver com esta história!
Em resposta, Crowley riu, e sentiu o corpo ficar tenso, preparado para o ataque.
- Acalme-se, sim? Lembra a parte que isto é um agradecimento? Um passarinho depenado me contou que pretende cair.
- Isso não é da sua conta.
- Oh, mas é. Definitivamente, é. Meus planos incluem o melhor conciliador que o céu já teve, com plenos poderes.
- O que você...
- Eu odiaria a ausência do seu anjo tanto quanto você.
- Ele não é o meu anjo.
- Não? – Crowley bebericou o uísque. – E você não gostaria que ele fosse?
olhou para baixo.
- Isso não interessa mais. Em seis dias, ele será humano, lembra? Ele nunca será o meu anjo.
- , , entenda esta como a minha boa ação do milênio, mas você já considerou pedir para que ele seja?
levantou a cabeça e encarou o rei do inferno, que ofereceu um sorriso convencido. Oh, sabia que estava sendo manipulada, mas, simultaneamente, percebeu que Crowley fazia sentido.
Faltando dez minutos para a meia noite, apareceu no topo do prédio mais alto da Times Square, colocou as mãos do bolso do impecável terninho Versace, e anunciou a sua presença, que, certamente, já havia sido notada pelo anjo na beirada do teto.
- .
- ... - Ele continuou encarando a performance de Imagine logo abaixo. - Eu achei que você não viria.
- Apenas senti que deveria.
deu de ombros e virou-se, devagar, com a expressão cabisbaixa combinada com algum sentimento indeterminado. O anjo suspirou.
- Nós nunca tivemos tempo suficiente, não?
- O que você queria? Eu sou um demônio e você é um anjo. Romeu e Julieta teriam inveja.
riu e a risada, quase, atingiu seus olhos claros.
- Perfeito uso de referências literárias.
O vento brincava com as suas mechas onduladas e, contraditoriamente, quando o anjo estava prestes a desistir dela, sua graça estava mais ampla do que nunca, fazendo-se notar em cada detalhe. jamais tinha visto algo mais... Por um momento, ela ficou paralisada e demorou, segundos mais do que possuía, para recuperar as palavras.
- Shakespeare não entendia de finais.
colocou as mãos no bolso da calça jeans rasgada e pendeu a cabeça para o lado.
- Não?
- Não. A morte nunca é o desfecho adequado.
- A sua morte te trouxe até mim.
- Então, ela foi apenas o início.
Abaixo deles, a banda terminou de tocar Imagine e o burburinho da plateia aumentou, na noite fria de Nova Iorque. A ação do vento ficava cada vez mais forte e, naquele instante, em um mundo lotado de humanos e criaturas sobrenaturais, nada existia além de . Perder o maldito anjo, , percebeu, implicaria em um vazio indescritível.
E, então, , mestra das palavras não ditas, soube o que precisava dizer.
- Neste tempo todo, em que eu recriminei sua obviamente ridícula decisão...
- Não vamos discutir ago-
- Silêncio, . Neste último ano inteiro, eu apenas nunca... - Respirou fundo, conscientemente despindo-se do seu orgulho inútil. - Eu nunca te pedi para ficar.
Pela primeira vez, desde que ela o conheceu há mais de cinquenta anos, observou os olhos de ficarem arregalados e o anjo, até mesmo, deu um passo para frente, afastando-se da beirada do prédio.
- ...
- Escuta, , não voltarei a dizer isto nesta existência, mas, eu...
O aumento da agitação na praça abaixo deles anunciou o início da queda da bola colorida, na cobertura da One Times Square. Faltava exatamente um minuto para a virada do ano. Toda a história deles reduzida a sessenta segundos. Com o vento ameaçando balançar ambos, se aproximou.
- Eu te amo, seu anjo idiota.
Olhos fixos, os dois se encararam por um instante, na qual a sempre tão escondida vulnerabilidade ficou a mostra. Paralisados. Apenas o relógio continuava correndo contra eles.
Então, um princípio de lágrimas surgiu no canto dos olhos do anjo, quebrando a inércia. . . Ambos iniciaram o beijo que se seguiu. Os corpos usados e cansados, em perfeita sintonia, no mesmo instante em que os fogos de artifício declararam o início de um novo ano.
sentiu a graça tão familiar a envolvendo e, enfim, inspirou eternidade.
Now that you're mine
We'll find a way of chasing the sun
Let me be the one
That shines with you
In the morning
We don't know what to do
Agora que você é minha
Iremos encontrar um modo de perseguir o sol
Deixe-me ser aquele
Que brilha com você
Na manhã,
Em que não sabemos o que fazer
FIM
Nota da autora: Fiquei muito feliz quando Mad Sounds venceu o short de outubro. Então, muito obrigada para quem leu/votou na fic! Não consegui visualizar uma continuação para aquela história, então escrevi esta fic, partindo do mesmo início - o topo de um prédio. Para quem acompanha Supernatural, a fic se passa em algum momento da sexta temporada, mas sem muita lealdade ao seriado. Para quem não assiste, alguns pontos ficaram vagos, mas, espero, sem comprometer a ‘ideia’ da fic. E feliz ano novo!