Naquela manhã senti um aperto no coração. Ele estava lá no canto há muito tempo, solitário, abandonado. Dava dó, mas não era como se eu pudesse ir até lá, tirá-lo do case e tocar. Eu tinha estabelecido aquela greve por um motivo que era, no mínimo, razoável. Eu tinha que resistir.
Sem violão, até que meu pai esqueça da idéia das aulas.
Se é estranho? Pode ser pra você. O violão define como eu quero viver. Mesmo quando eu era menor de idade, o que não faz tanto tempo, meu pai me acompanhava em feiras e bares pra apresentações; ser meu empresário era sua atividade de tempo livre.
Eu toco vários instrumentos, mas o violão é o único de qual ainda frequento aulas. Como eu comecei tocando por ouvido, tenho grandes problemas com teoria musical e é bom ter alguém que saiba um pouco de tudo pra me ensinar, ou então, nunca me levarão a sério. Bom, pelo menos era isso que eu achava quando pedi pra tê-las.
Onde entra a minha greve nessa história? Digamos que eu nunca tenha tido muita sorte com meus professores. Minha mãe foi embora há dois anos por causa do primeiro deles, e desde então eu não consigo me dar bem com quase nenhum. E os bons, dos quais eu gostava, iam embora atrás de sonhos maiores. Meu último professor foi o que mantive por mais tempo e seu nome era Jason.
Ele era loiro, bonitinho e ensinava bem, tinha como ser melhor? Só pior, na verdade. Ele tinha uma namorada possessiva. Ás vezes eu dava conselhos pra ele, porque ela era uma louca, pelo menos do jeito que ele a descrevia. Eu sempre achei que nós tínhamos alguma coisa, uma ligação legal... Até que ele foi embora para Filadélfia, onde eles se casaram e moram agora. Eu ouvi dizer que só se casaram tão cedo porque ela ficou grávida, só que isso eu não posso confirmar, porque ele resolveu parar de mandar e-mails.
Isso quer dizer que ela é tão ciumenta que ativou o controle dos pais no computador e deletou os e-mails de garotas na agenda. Fico surpresa em como ela permitiu que ele me desse aulas aqui em casa.
O que eu vi em um cara que é tão submisso em relação à namorada? Não sei. Acho que foram os olhos claros. Talvez a perspectiva de que ele mudasse quando terminasse com ela e fizesse algum uso daquela carinha de bad boy. Ah, decepções.
Então, hoje meu pai quer que eu vá à uma aula. O professor não vem em casa, o que pra mim é novidade. O cara tem um estúdio e já foi avisado que eu só terei aulas com ele por dois meses, só que mais vezes na semana. Eu achei que essa dele já ter uma “validade”, e ainda tão curta, fosse afastar meu pai, mas não. Ele disse que esse cara é um dos melhores.
Eu estou dividida entre querer saber quem é e trair o movimento, ou continuar fiel aos meus valores.
Ah, que saco. Ninguém vai saber, só meu pai. Ele não leva minhas greves a sério, mesmo.
- Fico feliz que você tenha vindo, . – meu pai disse ao me deixar em frente ao estúdio do professor misterioso. Nem o nome do cara ele me fez o favor de dizer.
- Tudo bem, pai. Beijo, tchau. Vou de ônibus pra casa da Alice, depois. Qualquer coisa, te ligo.
Ele pisou no acelerador e foi embora, me deixando sozinha em frente à uma porta grande cercada por uma parede de tijolinhos vermelhos. Meu pai disse que o cara era bom, mas até agora não vi nada de grandioso.
Apertei o botão do interfone e quando uma voz abafada perguntou quem era eu disse que estava li para as aulas e dei um tchauzinho pra câmera. Não mandaram entrar, mas a porta fez um barulho estranho e abriu assim que a empurrei.
O interior era um pouco mais interessante que a entrada. Depois de um pequeno lance de escadas, me deparei com um corredor largo com três portas de cada lado, mais uma no fim, bem no meio, sendo ela um pouco maior que as outras. Ela também tinha três trancas, enquanto as portas laterais mal pareciam ter fechaduras. Nos espaços livres da parede estavam colocados vários vinis velhos (provavelmente estragados) com imagens artesanais de bandas famosas (ou não), tipo Beatles, Oasis, etc.
O mais bonitinho era a do Simple Plan. Era uma foto que parecia caseira, e não de premières ou qualquer outro evento. Nela os meninos estavam bem novinhos, com os braços um sobre o ombro dos outros, rindo, meio gargalhando. Em uma das pontas estava Sebastien, o único que os olhos não tinham cedido e fechado totalmente. Ele estava com um olhar fixo, como se ele estivesse olhando além dela ou quem estava tirando a foto. Como se estivesse olhando pra mim.
- Fui eu que tirei. Mandei comprar um vinil riscado na hora especialmente colocar a foto.
Virei-me assustada, dando de cara com um senhor de meia idade, um aeroporto de moscas onde deveria estar o cabelo e um bigodinho engraçado. Se ele tivesse uma Van branca eu não pensaria duas vezes em chamar a polícia. Aquele cara era o Pedo Bear em pessoa.
- Oi, é – hesitei –, você é meu professor?
- Não, desculpa. Não me apresentei – ele estendeu a mão pra me cumprimentar, a qual apertei – eu sou Hector, um primo dele. Ele teve um imprevisto e não conseguiu chegar aqui, e como eu estava fazendo manutenção em uns equipamentos na sala 02 ele me ligou e pediu pra te mandar pra casa.
- Ah, que gentil da parte dele. Tudo bem. Obrigada. Você abre a porta pra mim? – estava pronta pra sair, mas mal me virei e me lembrei de algo – Não, espera. Qual é o nome dele?
- Você não sabe de quem eu estou falando? – o senhor riu, balançando os ombros e o bigode. Jesus, eu estava começando a querer raspar aquele bigode. Era assustador! – O nome dele é Sebastien.
- Sebastien?
- É, é sim. Sebastien Lefebvre.
- Quer dizer que você vai ter aulas com o Lefebvre, ? – eu estava na casa da minha amiga de infância, Alice. Tínhamos planejado sair àquela noite, mas essa tarde tinha mexido com todo o meu humor. Não sabia se estava feliz por ter aula com um cara famoso, futilidade à parte, ou se ficava possessa por ele achar que só por ser quem é podia gastar meu tempo do jeito que fez.
- Essa não é a questão, Allie! – peguei um travesseiro e o apertei – A questão é que ele me fez esperar hoje e eu deveria estar brava. Mas não estou.
- É claro que você não está brava. Dã. Nós ouvimos Simple Plan desde que a banda começou a ficar famosa, não é de se esperar que você não fique nem um pouquinho eufórica.
- Não deveria. Não tenho idade pra – e ia terminar o que eu ia falar, mas uma Alice risonha jogou um travesseiro bem na minha cara. Gracinha.
- Claro que tem, boba! Nunca se é velha demais pra fazer nada. Agora se me permite, eu vou te emprestar um vestido e nós vamos sair, sim?
- Pra quê a pressa? – Alice não me respondeu por um tempo. Em vez disso ela entrou em seu closet e permaneceu lá, fazendo barulhos estranhos que com certeza significavam uma bagunça que eu, como boa hóspede e fantástica amiga, arrumaria mais tarde, enquanto ela estivesse zonza e com ressaca demais pra fazê-lo. Quando ela saiu tinha dois cabides em mãos e jogou um vestido roxo pra mim, antes de finalmente abrir a boca pra falar.
- Algo me diz que nas próximas noites eu vou estar ocupada sendo a psicóloga de uma certa amiga.
- Ah, tudo bem. Seu vestido me diz que eu vou ser a motorista da rodada.
Tinha como um vestido ser tão curto como aquele e continuar sendo considerado vestido?!
Aquela noite eu dormi na casa de Alice. A saída foi típica de quando eu estava com ela: “jantamos” um pedaço de pizza do dia anterior cada, pegamos o carro e rodamos meia cidade até ela achar um lugar que ela jurava que ia encontrar de cara, e que, na verdade, era absurdamente perto do bairro dela. Ela bebeu de mais e eu “de menos”. Álcool me faz mal e não curto essa de “bebida entra, verdade sai”. Não que eu não tenha me divertido, beber ou não, não influencia nisso. É até melhor porque eu me LEMBRO do quanto me diverti. Aí eu peguei o carro e dirigi pra casa dela, caí na cama e dormi direto, sem nem tirar o vestido.
O meu sonho foi engraçado. Eu via dois olhos que nunca piscavam, apesar de estarem enrugadinhos. Logo antes de acordar ouvi uma risada. Pode ter sido pouca coisa, mas me deixou curiosa por boa parte do final de semana.
E outra vez já era segunda-feira. Hector havia telefonado avisando que dessa vez meu professor, que eu ainda não conseguia colocar na cabeça que era Sebastien, não iria faltar. Ele não parava de falar ao telefone, pedindo desculpas, falando que eu poderia repor a aula ou pegar o dinheiro desse dia de volta; tudo o que eu queria era desligar e dormir mais.
Dessa vez meu pai não me levaria, tinha uma reunião no escritório. Eu já mencionei que ele é meu empresário mais como hobby? Ele na verdade trabalha como advogado, com divórcios, acordos pré-nupciais e toda essa confusão que envolve se casar. Eu adorava quando ele não tinha nenhum caso, quem não adoraria? Ter um pai que não se importa de ser chofer é meio mágico. Não ter que se preocupar com horários de ônibus, não ficar espremida entre um monte de gente suada e cansada... Mas hoje eu estava sujeita ao transporte público como qualquer outra pessoa normal e tinha que sair de casa adiantada.
Cheguei a casa/estúdio/refúgio ou o que quer que fosse aquilo dez minutos atrasada. Mal toquei a campainha e a porta já foi aberta. Pelo visto eu tinha deixado alguém nervoso.
Mesmo caminho, escada, portas, vinis, mas sem Hector. O único desafio era o de adivinhar atrás de qual porta a pessoa, com quem eu passaria a próxima uma hora e vinte, estava.
Minha vontade era de abri-las aleatoriamente, mas eu tive sorte (ou não) já na primeira. Dei de cara com uma sala retangular, até que grande, com um sofá de couro, dois banquinhos e várias guitarras lindas, mas o que me atraiu de verdade foi o tapete vermelho felpudinho.
Tá bom, menti. O que me atraiu de verdade foi o cara de shorts e camiseta sentado no chão com um Gibson SJ200. O violão pode não ser um dos melhores do mundo, mas pra mim é fantástico. Sabia que eles são feitos a mão, um por um?
- Oi? ? – ah, droga. Eu fiquei encarando. Ótimo, ele vai achar que eu sou louca! Deixa eu te contar uma coisa: eu sei me controlar, juro que sei, mas Sebastien sempre foi meu... favorito. É. Sabe como é complicado conter os pulinhos do coração? Pode ser que eu jogue em você toda esse história de ser velha demais pra surtar por carinhas de banda, mas esse cara fez parte da minha infância. Onde eu PODIA fazer isso livremente. É difícil se livrar de velhos hábitos.
- Ah, oi. Sebastien? Desculpe pelo atraso. – pareci indiferente?
- Tudo bem – ele disse, deixando o lindo Gibson SJ200 de lado e se levantando pra me cumprimentar –. É Sebastien, sim. Lefebvre. E aí, qual foi o motivo do atraso?
- Transporte público. Sabe como é, né. – ai, idiota. O cara é famoso dês dos 19 anos, então não. Ele provavelmente nem pode andar em um ônibus sem ser perseguido.
Pra minha sorte, ele riu e me falou pra sentar no sofá. Ele ficou em um dos banquinhos e começamos a aula, que, como eu já esperava, não me pareceu muito produtiva. É difícil tentar se concentrar quando aqueles olhos estão virados na sua direção. Além disso, apesar dele ter sido simpático ao me cumprimentar, ele parecia realmente um pouco zangado pelo atraso e eu senti como se ele achasse que o tempo dele fosse precioso demais pra ser gasto assim comigo. Talvez fosse paranóia minha, mas foi algo que ficou na minha cabeça o caminho inteiro de volta pra casa, e que eu tive que comentar com Alice ao telefone.
As próximas duas aulas conseguiram serem ainda piores. Na quarta, meu pai recebeu um caso importantíssimo e não pôde me levar. Isso não seria problema, mas estava chovendo e eu não tinha dinheiro suficiente pra um táxi, então eu esperei um bom tempo com um guarda-chuva, que mal cobria a mim e meu case juntos, por um ônibus que nunca chegava. No final, tive que faltar, mas não consegui ligar para o estúdio. Meu celular estava sem bateria e, até chegar em casa, já era tarde demais.
Eu sempre soube que Murphy não estava muito bem do meu lado, mas aquele dia eu tive certeza de que o universo me odiava. Eu tinha a oportunidade de ter aulas com Sebastien Lefebvre e só o decepcionava, uma vez após a outra!
Na sexta, meu pai teve uma pequena folga muito conveniente pra mim e, depois do almoço fomos direto para o estúdio. Fiquei um pouco nervosa, mas Sebastien já tinha faltado uma vez e eu só fora avisada depois de chegar lá. Ele não iria ficar tão bravo, certo?
Errado. Quando cheguei, mal fui olhada nos olhos. O clima da sala estava horrível e eu cortaria facilmente toda aquela tensão com uma faca e daquelas bem afiadas de açougueiro. Eu pretendia perguntar porque ele estava dando aulas se tinha a banda, mas perdi a coragem.
O clima horrível entre a gente influenciou muito no jeito em que eu tocava e eu mal acertei duas notas. Minhas mãos tremiam e eu olhava pra cima procurando aprovação de tempos em tempos, só pra achar decepção em seus olhos. Eu parecia uma iniciante!
Um momento, porém, pareceu salvar a nossa aula. De repente, sem aviso, Sebastien saiu de seu lugar e tirou os tênis, enquanto me encarava.
- Vai, faz. – me disse.
- Faz o quê? – coloquei meu violão de lado, desesperada pra saber do que ele estava falando.
- Tira os sapatos. Vai, confia em mim. Não me olha assim não! – riu, acho que a primeira risada de verdade que ouvi dele. E foi uma risada alta, gostosa, do tipo que você quer ouvir de novo e de novo. Encantei-me e não pensei duas vezes antes de tirar minhas sapatilhas. – Agora tira o pé de cima do sofá e coloca no tapete.
Estranhei, mas fiz o mesmo. E, meu Jesus, eu quero um tapete daqueles pro meu quarto! Sabe a sensação de estar pisando em grama bem cuidada depois de uma garoa? Era essa a sensação, mas mais macia e felpuda, trezentas vezes melhor. Sorri por causa dos fiapinhos que faziam cócegas entre meus dedos, e Sebastien riu também.
Sentamos no chão, ele puxou o violão pro seu colo e dedilhou algumas notas.
- Tá mais calma?
- Uhm? – murmurei.
- Você tava muito tensa. Vai, pega o violão. Tenta outra vez.
Quando cheguei à casa de Alice, ela já sabia de tudo por causa do incrível poder das mensagens de celular, e tinha planejado uma noite “incrível” de vestidos curtos, barzinhos e bebidas de graça. Eu não contestei.
- Vai, ! O cara da ponta do balcão mandou pra gente. – Alice disse, me estendendo um copo de uma bebida qualquer,
- Eu não gosto, Alli, só isso.
- Por que você nunca bebe?
- Olha onde a gente tá, Alice! – Apontei. Estávamos em um bar até que fofo, com uma decoração imitando o The S Bar de Phillipe Starck, só que bem menos pomposo.
Ele tinha uma área de balcões, onde podíamos sentar e pedir as bebidas, um pequeno palco, pista de dança e mesas pequenas e retangulares. Acho que o mais legal eram os abajures pendurados ao contrário. Incrível. De onde os designers tiram essas idéias?
- E daí? É um bar. Tem gente bebendo, dançando, se divertindo...
- Eu sou fraca pra bebida, tá bom? Não tenho 15 anos pra dar PT e achar engraçado. – sussurrei perto de seu ouvido. Argh.
Passada uma pequena discussão sobre meu pouco domínio sobre minha sobriedade, pedi licença para ir ao banheiro. Odeio banheiro de bar, mas se tinham sido tão caprichosos em arrumar a decoração, acho que teriam a decência de fazer um banheiro legal. E ele era bem limpinho, com uma cestinha cheia de coisinhas de mulheres que normalmente se tem em banheiros de casamento, como band-aids, linha, agulha e alguns remédios.
Enquanto eu arrumava o lápis que tinha derretido pelo cantinho de meus olhos, duas mulheres entraram em cabines diferentes, conversando. Eu juro, juro mesmo que tentei não prestar atenção, até porque Murphy já me odiava e eu não queria piorar o meu carma, ou o que quer que esteja fazendo eu me dar mal com Sebastien, mas assim que ouvi o nome dele na conversa parei de responder por mim. E, bom... Elas falavam alto pra caramba.
- Eu juro, Anne – a cabine da direita gritou – eu o encontrei na cidade! EU não sei exatamente onde ele está, mas eu ouvi uma conversa sobre aparecer aqui hoje.
Que? aqui?
- Duvido, Sarah. Ele é famoso. Por que ele estaria de volta em Quebec?
- Na minha opinião é por causa de uma garota – a tal Sarah saiu da cabine, puxando o vestido creme tomara que caia pra cima. Eu achei que os vestidos mais justos do mundo pertenciam ao armário de Alice, mas o dessa mulher ganhava, sem espaço para discussões. Se ele fosse nude, te juro, não ia dar pra diferenciar pele e tecido.
- Se é uma garota, do que adianta a gente estar aqui? – Anne também saiu da cabine.
Decidi que era minha hora, e, enquanto Sarah lavava as mãos, sai do banheiro, sem não antes ouvir uma última frase:
- Eu não escolhi esse vestido à toa.
Aquela conversa entre as duas me deixou estranhamente perturbada enquanto eu voltava para a mesa. Me contive para não olhar ao meu redor e ver se o que elas estavam falando era verdade ou não, se ele estava lá.
Nem precisei. Quando cheguei ao balcão, fui recepcionada com um olhar apreensivo de Alice.
- Ele tá aqui?
- Você já viu?
- Me dá minha tequila, Alice.
- Mas você disse que não ia beber. – protestou.
- Me dá minha. tequila. – eu disse, um pouco irritada. Eu não sabia direito porque estava assim. Se era por causa da cara de pau das meninas do banheiro, ou por causa da minha antipatia por professores de guitarra. Um pouco dos dois, provavelmente.
E foi assim, Alice me deu minha tequila, sal e limão. Depois outra. Na terceira eu já estava bem zonza e decidi que dançar era a atividade mais incrível do universo, então puxei minha amiga pela mão, toda apressada, até a pista.
Várias músicas tocaram e vários copos passaram pela minha mão sem eu necessariamente pensar sobre o que estava fazendo. Eu só queria beber, fazer diferente e atrair atenção. Acho que deu certo; no meio de uma música eletrônica popzinha, não sei direito de quem, ao me desviar do cara com quem estava dançando, esbarrei em outro e levei um banho de vodca. Vocês já conhecem meu carma, então não deve ser difícil imaginar quem era o cara.
Mas bêbada eu não conhecia meu carma. Tenho certeza que fiz uma cara bem idiota quando olhei pra cima e percebi que era Sebastien, porque ele franziu as sobrancelhas e me segurou pelo braço, me arrastando pra fora da pista.
- Para, Sebastien – disse, tentando me desvencilhar e não tropeçar nos meus próprios pés – para de apertar, tá me machucando!
- Desculpa – ele me colocou sentada em um banco acolchoado de uma mesa de canto. – Desculpa. Você tá bem?
- Você acha? – ri – Eu tô com cara de bem?
- Não, não tá – ele suspirou, me olhando nos olhos. – Vem, vou te levar pra casa.
- Nããão, não quero ir! Eu vim com uma amiga. O nome dela é Alice, ela é linda. Normalmente não sou eu quem fica bêbada, mas acho que hoje ela se segurou porque eu tô chateada...
Não tenho certeza, mas acho que o ouvi sussurrar um “ai meu Deus”. Ele me perguntou como Alice era e, depois de me dar uma água e me mandar ficar ali, saiu para procurá-la.
Esse pareceu ser um dos pensamentos mais sensatos até aquela hora: Eu precisava sair dali. Por que eu ficaria? Pra ele me ver fazendo mais besteira? Levantei-me, meio torta e cambaleante, e me dirigi à saída. Não pensei em mais nada. Naquela hora, tudo que eu tinha que fazer era fugir dele.
O ar estava frio e cortante, e logo percebi que tinha saído do bar sem meu sobretudo. Ai, droga. Eu estava de vestido e salto alto. Apoiei-me na parede quando senti um pequeno enjôo, mas me segurei e andei mais alguns metros.
- ! – pensei ter ouvido alguém me chamar – Caramba, , espera!
Olhei para trás, e, oh! Era Alice, seguida de um Sebastien com as mãos no bolso do jeans.
- Oi, Alliezinha! – gritei, bem no meio da rua – Veio me ver?
- Não, sua idiota. O que você tá fazendo? – ela perguntou quando chegou mais perto.
- Me divertindo.
- Isso não é diversão. Eu fico boba assim quando eu tô bêbada? – agora Sebastien tinha chegado mais perto e ainda me olhava com as sobrancelhas franzidas. Ele ia ficar com ruuuugaaaas.
- Você fica pior. Você é insuportável, Wonderland.
Alice segurou minha mão e me mandou ficar quieta enquanto se virava para falar com Sebastien. Não sei o que eles conversaram, mas eles cochichavam o tempo todo e dirigiam olhares duvidosos a mim, que eu devolvia sem hesitar. Por fim, apertaram as mãos e Alice deu risada. Por que eles estavam dando risadinhas? Que pouca vergonha era aquela?
Não tive tempo de pensar. Fui puxada por Sebastien até um táxi e entramos nele.
- Aaalice, porque eu tô indo com ele? – choraminguei, quando ela colocou a cabeça pra dentro da janela para falar conosco.
- Eu não posso te levar pra sua casa assim, linda, e hoje meus pais voltam cedo. Você vai pro estúdio.
O quê?! Fiquei até sóbria agora. Olhei pra Sebastien ao meu lado e ele murmurou um “sim” afirmativo indicando que, como eu, não estava gostando tanto assim da idéia. Eu também não gostaria de ter que cuidar de uma aluna chata que bebeu demais. É mais uma das coisas ruins que ele me vê fazendo.
Eu comecei a me arrepender de ter bebido, mas meus sentidos ainda não estavam muito bem organizados. Eu estava ficando com sono.
Não sei bem quanto tempo levou, mas Sebastien pagou o táxi, me carregou escada à cima pelo estúdio e passou pela porta das três trancas. Lembro-me de jogarem uma camisa em cima de mim. Um cobertor quentinho. Murmurei algumas coisas, palavras desconexas, acordei e adormeci novamente várias vezes na mesma noite até que, na madrugada, depois de um grito, alguém bagunçou meu cabelo e ficou ao meu lado por um tempo, segurando minha mão. Os pesadelos quais agora não me lembro deram então lugar ao escuro e ao silêncio.
Eu acordei, mas não abri os olhos. Não tinha coragem suficiente, porque mal tinha começado a pensar e fui tomada por uma dor de cabeça insuportável. Imagina se abrisse os olhos e enfrentasse a luz? De jeito nenhum.
Rolei um pouco na cama, enrolada no edredom, enquanto tentava lembrar os detalhes da noite passada. Bufei, irritada comigo mesma. Como pude ter sido tão infantil? E misturar bebida ainda, pelo amor de Deus. Por sorte não bebi de todos os copos que peguei, porque a linda da Alice os tirava da minha mão antes do primeiro gole.
Quando finalmente abri os olhos, dei uma rápida olhada no quarto. Cortinas azul-marinho, paredes brancas, pouca decoração. Encarei o teto e respirei fundo; qualquer hora teria que enfrentar Sebastien.
- ? – falando no diabo, ele bateu na porta. Virei para o lado e fechei os olhos novamente, fingindo dormir.
Ouvi o barulho dela sendo aberta, mais o de passos. Aquela porta rangia alto, por isso posso dizer que ele passou um tempinho no quarto antes de finalmente sair e fechá-la.
Ao abrir os olhos outra vez, vi o que ele tinha vindo fazer ali: Tinha colocado no criado mudo uma bandeja com um copo enorme de água e uma cartela de remédios.
Bebi a água toda porque li uma vez, enquanto tentava ajudar Alice com as ressacas monstro dela, que uma das melhores coisas é se hidratar. Tomei o remédio também, óbvio.
Ao levantar fiquei tonta, zonza, enjoada, tive que colocar a mão na cabeça e sentar de novo por um tempinho antes de outra tentativa. Isso me deu tempo pra reparar que eu estava vestindo só uma camisa enorme, listrada de branco e preto. Pode não ter sido a intenção, mas eu me senti culpada, meio prisioneira naquele quarto que não era meu e fazendo coisas que eu normalmente não fazia.
Foi aí que eu me toquei. Lembrei-me de Jason. Ele era o cara mais legal do mundo, até o assunto chegar a sua namorada... A mulher que ele supostamente amava. Aí ele virava um cachorrinho babão correndo atrás da dona. EU não estava fazendo a mesma coisa? Nunca tinha bebido em excesso, nunca tinha feito tanto papel de boba e nada tinha dado tão errado na minha rotina, até conhecer Sebastien pessoalmente. Parecia ter 15 anos outra vez.
Óbvio que eu não amava Sebastien, o conheci há pouquíssimo tempo, e dizer isso seria muito precipitado. Mas será que é cedo pra dizer que eu estou apaixonada por ele?
Apaixonada pelo cara que me acha uma idiota. Eu esperava pelo menos que ele me desculpasse pelas besteiras que eu fiz e pelos gelos que dei nele nas primeiras aulas. Confesso que eles foram mais minha culpa e da minha opinião confusa sobre meus antigos professores, do que dele. Se depois disso ele ainda quiser me dar uma chance eu não vou reclamar.
Depois de meia hora enrolando na cama ouvi um barulho, então notas desconexas e o começo de uma música. Levantei e saí do quarto, que dava para um pequeno corredorzinho iluminado por uma clarabóia, onde o som ficou mais alto.
No final do corredorzinho havia uma porta de vidro de correr que dava pra sala. Por ela pude ver Sebastien sentado em um sofazinho branco, só de calças de pijama, com o Gibson dele. Ele tocava uma melodia que eu não conhecia, um pouco lenta, absurdamente fofa.
Fiquei olhando por um tempo e resolvi abrir a porta pra me sentar no sofá também, mas o barulho o distraiu e ele parou de tocar, levantando a cabeça pra me olhar.
- Bom dia, . – disse, calmo e baixinho.
- Bom dia, Sebastien. – De repente com ele ali, me encarando, me senti desconfortável, como se qualquer movimento pudesse estragar tudo. Em um momento de nervoso, puxei as mangas da blusa para cobrirem minhas mãos e mais um pouco das coxas – É... Obrigada por ontem.
Aproximei-me do sofá e ele colocou o violão na mesinha de centro, me deixando espaço para sentar ao seu lado.
- Me desculpa. – continuei.
- Desculpa? Você não fez nada.
- Não, eu me atrasei, não vim, te tratei mal, te xinguei pelas costas... É, shiu, eu fiz isso. Desculpa. No final você acabou cuidando de mim, mesmo eu tendo sido uma chata.
Sebastien deu risada e levantou, indo até o balcão da cozinha que era junto com a sala pra pegar duas canecas, uma que entregou a mim, com chá.
- Você percebeu que o tapete da sala é o mesmo modelo do vermelho do estúdio? – Nossa. Franzi as sobrancelhas e respondi que não, não tinha notado. – Eu gosto dele porque me acalma e não é muita gente que sabe disso. É meio idiota. Tem gente que fuma, corre, brinca com cachorro... Eu fico descalço em um tapete.
Rimos e eu tomei um gole do meu chá. Era de camomila, carregado no açúcar, do jeito que eu gosto. Putz. Tá difícil achar razões pra eu descartar o que pensei que sentia por ele mais cedo. Cada coisa que ele faz, cada gesto, mesmo que inconsciente, me deixa cada vez mais com aquele sentimento que tive quando subi em um palco pela primeira vez aos 13 anos. Tenho borboletas colossais no meu estômago.
- Você não estava bem e eu não sei os motivos, mas acontece. Eu também não estava.
- Ah, é? Por quê?
- Que curiosa! Conto-te os meus motivos se você me contar os seus.
- Na-não. Sem chance – ri e ele fez uma careta de indignação.
- Se você já tá bem o bastante pra ficar dando risadinha tá bem o bastante pra ir pra casa, não acha? – Que. Absurdo.
- Tá me expulsando?
- Não! – Sebastien arregalou os olhos – É que seu pai tá preocupado, ele ligou pra Alice pra avisar que vocês tinham marcado um ensaio com uma banda pra uma apresentação. Eu fui te acordar, mas...
- Mas eu durmo que nem uma pedra. É, eu sei – me conformei que todo esse momento estranho e de fofura, tinha que acabar e me levantei, levando minha caneca até a pia. Dei mais uns goles rápidos e passei uma água, antes de perguntar a Sebastien como iria pra casa e onde estavam minhas coisas.
Ficamos conversando sobre coisas triviais, tipo livros, música do rádio e o que eu tinha sonhado pra gritar tão alto (eu disse que não lembrava) enquanto ele me dava uma carona até em casa. Despedi-me, pedindo desculpas e obrigada outra vez, para os quais ele me deu um beijo na bochecha e disse que vinha me buscar segunda, porque nossa aula ia ser em um lugar diferente.
Passei o fim de semana agradecendo a Deus que eu não tinha gastrite nervosa, porque, senão, eu com certeza teria acabado no hospital de tanta ansiedade.
Quando o carro parou na minha entrada segunda a tarde eu fiz o possível pra colocar em prática minhas aulas de teatro da escola e parecer o mais indiferente possível. Eu não era uma adolescente descontrolada, portanto não deveria agir como uma, ou muito menos seguir o conselho de Alice e “me jogar”.
Falando em Alice, ela voltou pro bar depois de me deixar com Sebastien. Ela acabou encontrando um cara que ela namorou no primeiro ano do ensino médio e colocou na cabeça que era destino e que eles tinham que ficar juntos de novo. Alice disse, assim será. Não dou uma semana para os dois reatarem. Ele era legal, acho que vai fazê-la feliz. Eles só se separaram na época porque os pais dele se mudaram pra outra cidade e ela não achou que dava pra levar um relacionamento a distância. Acho que foi a única vez que a vi tão triste por causa de um cara.
No carro, cumprimentei Sebastien e perguntei aonde iríamos.
- Ao parque. – dei risada, o que pareceu ofendê-lo um pouco pela cara que ele fez, mas, por favor! Aulas no parque? Com Sebastien?
- Só não me aparece com uma cesta de piquenique e uma toalha quadriculada, pelo amor de Deus. – dessa vez ele riu e apontou a parte de trás do carro. Vi dois cases de violão (ele tinha falado que me emprestava um, então deixei o meu descansando no cantinho dele) e uma toalha azul marinho tipo as cortinas do quarto de hóspedes. É capaz até que seja mesmo.
Nenhuma cesta de piquenique. Graças a Deus.
O parque estava tranquilo, já que era dia de semana. O sol se mostrava tímido, então não estava quente demais, mas não chegava perto de estar frio, o que era perfeito. Andamos um pouco até achar um lugar legal pra sentar, perto de uma árvore. Ali ele estendeu a toalha/cortina (um dia tomaria coragem pra tirar a dúvida).
E não é que tivemos aula mesmo? Depois de todos os desastres que envolveram as nossas aulas, aquela foi a melhor de todas. O clima, o cheiro de grama molhada por causa da irrigação e a brisa fraquinha, me deixaram tranquila e Sebastien até se surpreendeu em como eu era, na verdade, boa, já que das outras vezes eu estava nervosa demais pra fazer alguma coisa direito. E eu era boa mesmo, tinha que ser se eu quisesse que a carreira desse certo.
Contei pra ele do meu acordo com meu pai. Ele me dera dois anos depois do ensino médio pra que eu fizesse o que quisesse, o que no caso ele sabia que era investir na minha carreira musical. Estávamos no começo do segundo ano e se não desse certo, se eu não fosse contratada logo ou acabasse ficando com prejuízo financeiro, eu teria que desistir e ir pra faculdade de advocacia.
Eu achava justo. Pelo menos ele me dera uma chance.
- Sabe o que eu não entendi? – perguntou Sebastien.
- O que?
- Você é boa pra caramba. Porque as aulas?
- Eu aprendi a tocar de ouvido, portanto sou horrível com partituras. Eu te falei isso na primeira aula, poxa! E eu sou meio preguiçosa, se não tiver alguém pra me incentivar, eu sei que tenho a obrigação, mas não faço. Não me olha assim – deitei na toalha, deixando o Gibson (ele me deixou tocar o Gibson!) de lado –. Eu sei que é meio bobo, egoísta, mas eu quero que isso dê certo e não vou me dar chances de estragar tudo. Ás vezes eu sou a minha pior inimiga.
Surpreendendo-me, Sebastien se apoiou melhor na árvore e começou a mexer no meu cabelo. Fechei os olhos um pouco aproveitando a sensação de ter alguém passando a mãos pelos fios, esquecendo dos passos, dos latidos e das risadas das pessoas ao nosso redor. Fiquei sonolenta e em certo momento era como se estivéssemos só nós ali.
- Isso quer dizer – ele quebrou o silêncio, me fazendo abrir os olhos – que eu sou o herói dessa história?
- É – ri, me levantando e chegando mais perto dele – você é o herói dessa história.
Ele sorriu e foi difícil eu não sorrir junto, porque seus olhos ficavam pequenininhos e formavam ruguinhas nos cantos, o que era muito fofo. Sebastien passou o polegar, devagar, por minha bochecha e colocou um fio de cabelo, que ele tinha bagunçado, para trás da minha orelha. Quando ele estava se aproximando, seu telefone tocou.
- Atende – sussurrei.
- Quem quer que seja pode esperar – ele me olhou nos olhos e me fez ficar, outra vez, consciente de tudo o que eu estava sentindo, e as borboletas clichês se revolucionaram no meu estômago, antecipando o que estava por vir.
Sebastien passou o braço por minha cintura e me apertou suavemente enquanto se aproximava, pouco a pouco acabando com a distância entre nossos rostos. Quando me dei conta, já estávamos nos beijando. Suspirei quando ele quis aprofundar o beijo e tive que reunir uma enorme quantidade de autocontrole pra empurrá-lo pelo peito quando seu celular começou a tocar novamente. Estava só um pouquinho (quase nada) ofegante quando falei:
- Sebastien... Atende. Deve ser importante.
Ele pediu desculpas e se levantou, andando pra atender ao telefone. Não questionei. Acho que eu estava entorpecida demais para sequer pensar em qualquer coisa. Eu tinha acabado de beijá-lo!
Quando voltou, parecia preocupado.
- O que foi? Aconteceu alguma coisa? – mordi meus lábios, curiosa.
- Ah... Não foi nada. Coisas da banda. É um pouco complicado, você não vai querer saber. – passou os braços pra meus ombros e me fez apoiar a cabeça em seu peito.
- Pode me contar. Eu quero ouvir – ele suspirou.
- Você sabe por que eu estou dando aulas para você? – mexi a cabeça, sinalizando que não. – eu tô tirando umas férias da banda, fazendo coisas diferentes. Eu resolvi voltar pra Quebec pra relaxar, também. Ultimamente tem sido difícil e os caras tem discutido bastante. Chegaram a pensar em acabar com tudo, o que eu achei um absurdo... Por enquanto é só uma fase, sabe? A gente ia tirar um recesso de dois meses, mas Pierre me ligou agora pra falar que ele acha que vai precisar de mais tempo, porque a mãe dele tá doente.
- Nossa... Que horror. É muito sério?
- Não é não, , fica tranquila. A velha é de ferro – riu fraquinho, meio triste –. O meu medo é que se ficarmos muito mais tempo longe a banda não resista. Sabe quando você se distancia de uma pessoa e quando volta os santos simplesmente não batem? Depois de tantos anos com eles eu acho que enlouqueceria se isso acontecesse...
Virei-me um pouco para poder olhar pra seu rosto. Ele parecia mesmo muito, muito chateado e não consegui nem imaginar um momento em que eu tenha me sentido assim. A não ser quando minha mãe foi embora, nunca passei por grandes perdas. Sempre tive uma vida tranquila, com bons amigos e um pai que me apoiava em decisões que eram importantes pra mim. Já Sebastien tem pais separados e já passou por muita coisa pra poder ter a fama que tem hoje, os amigos que ele conquistou, e agora, de repente, essa parte tão importante da sua história pode acabar. Até eu fiquei mal.
Foi aí que as pessoas a nossa volta voltaram, que eu comecei a reparar de novo nos passos e nas risadas. Estávamos em um parque lindo, em um dia ótimo pra fazer o que quiséssemos. Não tinha motivo pra deixarmos o clima ruim voltar.
- Sebastien. Coloca as coisas no carro e me encontra aqui depois, tá? – ele concordou.
Quando voltou, eu estava o esperando com duas bicicletas e um sorriso enorme no rosto, que foi imediatamente refletido em suas risadas.
- Você alugou bicicletas pra vocês? – Disse Shawna, já na sexta-feira.
- A gente rolou na grama também. Levou horas pra tirar toda aquela terra das minhas roupas – ri.
Estava em um bar em que eu tocaria com uns amigos. Eram eu, Shaw, seu namorado Nathan, Alice e Ethan, Sebastien e meu pai com a namorada nova dele. Era engraçado porque estávamos todos de alguma forma comprometidos.
A semana tinha passado tranquila. Além das aulas, fui visitar Sebastien no estúdio na quarta e ontem, onde o ouvi dedilhar algumas músicas do seu EP Les Robots. Ontem até arrisquei cantar uma com ele, e ele disse, brincando, que poderíamos gravá-las juntos. Também conheci as outras salas sem tranca do corredor, a maioria muito parecida com a em que ele me dava aulas, mas sem tapetes.
Conversamos um pouco mais ali no bar, até que fui chamada pra tocar. Sebastien segurou em minha mão e fomos juntos até o canto do palco, onde ele me deu um selinho antes que eu subisse. Pela primeira vez não consegui saber o motivo das borboletas. Elas eram por ele ou por estar na frente de uma platéia?
Tocar foi fantástico. Comecei com um cover de Love Song da Sarah Bareiles no piano, uma das minhas favoritas. Eu estava me sentindo ótima e a platéia estava animada, receptiva. Era por isso que eu gostava tanto disso. Você fica viciada ao ouvir gente cantando junto, rindo, dançando, tudo por causa de algo que você está fazendo. Subir no palco é como uma droga, só que sem efeitos ruins.
Lá pra terceira música, já com uma guitarra e junto à uma banda, pude ver Alice pulando e gritando no meio de várias pessoas e fiquei feliz por ter uma amiga como ela. Não pude deixar de sorrir, aposto que um sorriso enorme. Quando terminei e as pessoas me aplaudiram.
Meu pai estava no canto do palco junto a Sebastien, com um sorriso orgulhoso no rosto. Ele me puxou pelos ombros, bagunçou meu cabelo e me deu um beijo na testa, saindo sem falar mais nenhuma palavra. Eu sabia que isso era aprovação e fiquei ainda mais animada.
- Você foi muito bem, !
- Eu fui?
- Claro que foi. Vem. Vamos beber uma taça de qualquer coisa que tenha naquela mesa, pra comemorar e depois vamos pro estúdio. Tenho uma coisinha pra você.
Acho que uma taça só, pode. Por mais que os resultados gerais não tenham sido catastróficos, aprendi minha lição com bebida há algumas noites atrás.
Conforme o tempo passava, os dias que eu ia pra ter aulas não eram mais realmente dedicados à elas. Eu achava que já era mesmo hora de parar e depois de uma apresentação conversei com meu pai, que concordou. Ele também concordou que eu continuasse vendo Sebastian, contanto que eu tivesse em mente que ele ia embora algum dia.
Eu tinha, mas eu arquivava isso bem no fundo da memória, pra ser acesso só quando a hora chegasse. Não agora. Apesar disso, eu fiquei grata que meu pai tenha me alertado. Ás vezes ele é tão liberal que eu acho que ele não se importa, mas então percebo, nos pequenos gestos, que ele me deixa livre porque se importa até demais e tem medo. Porque ele acha que foi por prendê-la demais que minha mãe foi embora com meu primeiro professor de violão.
Isso me fazia querer tomar só as escolhas certas para que ele não se decepcionasse. Não achava que Sebastien era uma escolha errada. Eu realmente gostava dele e me sentia bem ao seu lado.
Já sem as aulas, eu e Sebastien tentamos aproveitar nosso tempo juntos ao máximo. Fomos no parque outra vez, onde repetimos todo o nosso primeiro dia, jogamos paintball com Alice, Ethan, Hector e sua esposa em um sábado e fomos até visitar suas irmãs, Heloise e Andreé-Anne. Ajudei-o com a letra de uma música e ele me ajudou com outra. Muitas vezes ficamos no apartamento atrás do estúdio assistindo algum filme, jogando Nintendo 64 ou fazendo bagunça na cozinha, só aproveitando a presença um do outro. Nos dias em que eu estava cansada ou precisava fazer outra coisa, simplesmente não nos víamos, apesar do pensamento de estar perdendo o tempo que me restava com ele aparecer na minha mente de vez em quando. Acontece.
“Utilizamos maçã, porque é uma de suas comidas preferidas e faz parte de sua dieta natural,” disse a apresentadora de um programa sobre recuperação de animais no Animal Planet, enquanto alimentava pandinhas adoráveis “Isso nos ajuda a manter os pandas em boas condições de saúde e os impede de adoecer em uma data precoce. Assim podemos criá-los até que fiquem bem velhinhos”.
- O que você tá fazendo? – perguntou Sebastien, parando atrás do sofá e se abaixando. Com suavidade, ele aproximou seu rosto de meu pescoço. Senti cócegas quando sua barba, que ele deixava sem fazer de propósito, encostou ali. Respirei fundo e senti o cheiro de sabonete e shampoo de camomila vindo dele, que acabara de sair do banho.
- Te esperando.
Já era quarta, e essa noite eu ficara no apartamento de trás do estúdio de Sebastien, depois de ajudá-lo a gravar partes de algumas faixas pro EP. Tínhamos assistido um filme, comido pipoca e discutido os prós e contras de sair ou não, e eu tinha decidido que queria ficar ali. É que, enquanto assistíamos ao filme juntos, comecei a pensar sobre o aviso do meu pai e de que logo ele iria embora.
Pierre tinha ligado outra vez e falado que sua mãe melhorara rápido, então em vez de um mês, o Simple Plan teria só uma semaninha extra de recesso. Depois da semana que vem, Sebastien e os meninos voltariam a se reunir longe, bem longe de Quebec.
Nós estávamos juntos há pouco mais de um mês e eu já estava nesse “mimimi” todo. Senti-me ridícula, mas o que eu podia fazer? Que garantia eu tinha de que quando ele voltasse a ser o Sebastien do Simple Plan, e não só Sebastien, continuaríamos juntos? Nenhuma.
Eu não ousei falar isso pra ele. Não queria que percebesse o quão insegura eu estava, porque ele com certeza ficaria chateado. Fiquei pensando porque me deixei levar tão fácil e não tinha pensado nisso tudo antes, e se daria mesmo certo eu com 19 anos e ele 28. A gente via nas brigas a diferença que dez anos fazem.
- Você sabe que não precisa se preocupar – ele disse naquela hora, enquanto me abraçava, como se estivesse lendo minha mente.
- Eu sei.
- Na verdade, tive uma idéia. Você quer poder cantar pra grandes platéias, não é? – riu, me apertando mais, e eu murmurei que sim – E se você vier com a gente? E se nós te produzirmos?
A oferta tinha me deixado surpresa. Um pouco chocada, eu acho, mais com a decisão imediata que veio em minha cabeça, do que a pergunta que ele fez. Sebastien estava me oferecendo a chance que eu tinha esperado por tanto, mas isso não pareia certo pra mim.
- Seb. Olha pra mim – disse –. Eu não acho que eu possa aceitar.
- Porque não?
- Lembra do acordo com o meu pai? Eu tenho que construir isso. Eu tenho que ser grande por mim mesma, não ficar famosa porque eu sou a garota que foi produzida pelo Sebastien Lefebvre. Eu duvido que ele manteria aquele mesmo sorriso orgulhoso nos meus shows se fosse assim que eu fizesse meu nome.
Ele pareceu meio triste, mas acho que entendeu. Em seu olhar pude ver vários sentimentos misturados, mas eles brilhavam de forma que refletiam os meus e soube que minha escolha era certa. Logo que senti suas mãos sobre meus ombros e seus beijos no meu pescoço parei de pensar sobre essas coisas. Estava dando certo agora. Eu queria aproveitar ao máximo meu tempo com ele sem causar problemas.
Acordei no meio da noite no quarto de cortinas azuis, que descobri ser na verdade o quarto de Sebastien. Naquela noite em que bebi demais, me contou, ele dormiu na sala mesmo.
Olhei para o teto e para as estrelinhas que brilhavam no escuro, que tínhamos colado ali depois do meu show. Ele disse que era minha inspiração, que eu deveria alcançá-las. Depois disso, desligamos a luz e ficamos encarando o teto brilhar, mais ou menos como estou fazendo hoje.
Tateei a cama ao meu lado sonolenta e ainda influenciada pelos sonhos que tinha tido. Queria ver se ele estava mesmo ali e aquilo era real, mas encontrei só lençóis e travesseiros.
Como se fosse um episódio de uma série que eu estava revendo, eu ouvi novamente notas desconexas e então um começo de uma música. Segui o som; a mesma sala, o mesmo violão... Só que dessa vez ele não parou de tocar quando me viu chegar perto.
Observei-o. Seu olhar distante me dava à impressão da sala estar mais escura e mais fria, iluminada só por luzes fracas da rua que passavam pelas cortinas brancas da janela. Não resisti e abracei meu próprio corpo, sentindo uma série de pequenos arrepios, logo seguidos por um ou outro soluço de quem tenta não chorar.
Essa música era nossa. Estava decidido; faríamos dessa última semana uma das melhores semanas das nossas vidas e quando ele fosse embora, tudo o que eu teria seriam lembranças. Pelo menos até que meu sonho se realizasse, não importa quanto tempo leve.
Sentei no chão à sua frente e ele finalmente olhou pra mim enquanto cantava. Seu sorriso me passava tantas emoções misturadas que acho que meu coração esqueceu-se de dar uma batida e cheguei mais perto assim que ele parou de tocar.
Sem falar nada, Sebastien me segurou pela cintura, ao mesmo tempo firme e suave do jeito que só ele parecia saber fazer. Sua outra mão subiu devagar pelas minhas costas e indo parar no meu pescoço, onde se prendeu ao meu cabelo e conduziu meu rosto em direção ao seu. O beijo começou calmo, seguindo o ritmo da música que já tinha acabado, mas que eu tinha certeza que ainda estava presa, ecoando sem parar por nossas cabeças.
Passei uma de minhas mãos por debaixo de sua blusa do pijama, arranhando de leve suas costas, enquanto ele me levantava no colo para irmos ao quarto. Ri e parei de beijá-lo para que ele pudesse enxergar onde estávamos indo. Não queria cair com ele outra vez. A não ser que fosse de propósito.
No final daquela semana, fui com Sebastien até o aeroporto, onde nos despedimos. Alice estava comigo para, de acordo com ela, fazer o controle de danos assim que ele fosse embora. Isso significa que fomos pra casa dela e comemos sorvete enquanto ela me dizia como as coisas iriam dar certo. Ela e Ethan tinham se encontrado de novo depois de três anos. Eu também tinha esperanças.
Epílogo
Nas primeiras semanas nós conversávamos quase sempre pelo telefone, mas conforme os shows do Simple Plan se acumulavam, mais temporalmente espaçadas ficavam nossas conversas. Estávamos, ambos, cada vez com a agenda mais cheia e, em novembro, eu tinha sido finalmente contratada por uma gravadora pra começar meu CD. A distância não o impediu de ser o primeiro a saber.
O EP dele saiu em março de 2011, dois anos depois da nossa primeira aula. Ouvir aquela música que ele tinha cantado pra mim ainda me deixava nervosa, me fazia lembrar de todos os momentos que tínhamos passado e todas as coisas que ele me disse enquanto estávamos juntos. Os segredos, a risada alta e gostosa que ele só dava quando estávamos sozinhos e até o cheiro do shampoo.
Sinto falta de nossas conversas bobas até hoje, cada uma especial de seu próprio jeito. Conversamos por Skype pelo menos uma vez a cada quinze dias, mas só nos vimos pessoalmente em um show que ele fez aqui no ano passado, mesmo assim por pouco tempo. Ando ansiosa porque posso não ter saído do Canadá ainda, mas farei uma turnê nos Estados Unidos e não posso negar que, só de pensar em encontrar com ele em algum momento, as borboletas clichês voltam com tudo.
Depois de algumas semanas sem ligações, quando as datas da minha turnê finalmente saíram, recebi uma caixa de madeira grande pelo correio no apartamento que eu agora divida com Alice. Ela quis fazer surpresa, não queria me deixar ver o remetente até que eu abrisse realmente a caixa, tipo “adivinha quem mandou”. Acho que talvez ela estivesse certa em fazê-lo, porque quando vi Sebastien Lefebvre escrito na etiqueta, eu travei, com medo de que fosse alguma notícia ruim, o fim definitivo.
Alice teve que me ajudar a abrir a caixa porque minhas mãos tremiam. Sorri, aliviada, quando vi que no topo havia uma carta com a data que eu estaria em LA e um endereço escrito em letras bem grandes. O que me fez rir de verdade, porém, foi abrir o case de uma Gibson e encontrar o nosso tapete vermelho.
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