The End - O Homem Estranho
Autora: Jess Gonçalves | Beta-reader: Giovana


Tudo o que o Doutor sempre fez foi tentar consertar erros dos mais diversos sem pedir algo em trocar, apenas feliz por apenas poder ver todo o Universo em sua completa extensão de tempo e espaço, apenas satisfeito por ter um companheiro ou dois para compartilhar suas aventuras. Ele não pedia mais nada do que isso.
Hoje o protetor do Universo, A Tempestade Que se Aproxima, O Deus Solitário, O Predador... O Doutor desistiu novamente.
Ele pensou que poderia continuar e aprender a conviver com isso, como uma garota francesa o ensinara, mas perdê-la foi algo que ele não soube suportar. Era uma dor familiar que ele não sabia domar, que não conseguia esquecer – trazia novamente aquela sensação de que não havia motivos para continuar a interferir na história.
O Doutor tentou ao máximo prolongar seus momentos com ela – deixou que ela continuasse sua vida junto de sua família, viajando com ele apenas em momentos oportunos, quando um não aguentava de saudades do outro –, mas a perda é algo inevitável e isso ele nunca aprendeu de fato. Sempre mantinha a esperança de que em algum momento tudo fosse mudar, de que um dia ele não teria mais que sofrer com perda de amigos. Ele torcera do fundo de seus dois corações que talvez isso poderia ter acontecido com , que ela fosse a companheira que nunca o abandonaria, mas o Universo não aprovou essa ideia.
Mais uma vez ele acreditava que um Senhor do Tempo vivia demais.
O Doutor não se conhecia mais, esquecera mais uma vez sua essência e o motivo para continuar a passar de dia para outro dia, não entendia mais o porquê de tentar salvar as coisas quando elas acabariam de alguma maneira. Era aquela simples garota que o mostrava porque valia tanto à pena continuar, e sem as coisas não pareciam mais tão certas. Era como se tudo que o Doutor aprendeu tivesse se esvaído no mesmo instante que ele viu sua amada amiga correr para impedir que outra garota humana fosse morta por um Cyberman, entrando na mira sem querer e recebendo o tiro em seu lugar.
Aquilo não era justo.
não merecia morrer tão jovem e ele não merecia perder mais alguém. O que abalaria as ordens do Universo se ela ficasse mais um pouco – ou para sempre? Depois de tudo que o Doutor fez – depois de tudo que conseguiu mudar –, ela merecia viver e explorar o tempo e espaço com ele, fazendo mais mudanças incríveis e tornando o nome da garota francesa conhecido, como alguns livros a citavam por coisas que ela sequer tinha feito.
Como um ato de desespero, o Doutor direcionou a TARDIS para um ano em que ainda não o conhecia. Precisava vê-la mais uma vez, deixar em sua memória uma imagem feliz e inocente daquela garota que conseguira restabelecer a esperança em seus dois corações cansados e quebrados. A última imagem de sua garota francesa não podia ser a de seu corpo inerte no chão daquela fábrica, onde poucas pessoas deram importância a sua queda. Ele precisava de uma boa última lembrança.
Era um dia de inverno como muitos já haviam passado, onde tudo era coberto pela mais branca neve, denunciando com pegadas as pessoas que se arriscavam no frio que fazia fora das casas quentes e preparadas para a temporada. O Doutor deixou seu olhar triste estudar o local, imaginando quantas pessoas já havia passado por aquela rua, qual eram suas histórias, suas perdas... E qual era o maldito segredo de conseguir continuar apesar de tudo. Como aquela esperança boba podia dominar tanto um coração? Essa esperança não podia dominar seus dois corações? Como podia esse ser um sentimento tão humano? Os humanos que ele sempre salvava, que conseguiam ensinar algo a ele mesmo depois de seus longos mil e poucos anos... Eles nunca o ensinaram a seguir em frente, como se isso fosse sua obrigação, sem direito a lições. Eles sempre continuavam, o deixavam para trás, esquecido em suas memórias e seguiam suas vidas da melhor forma que conseguiam. E por que ele não conseguia? Por que sempre acabava naquela situação: vivo, mas mal respirando enquanto a dor o consumia por completo?
Então ele finalmente a encontrou, perdendo de vez a habilidade de respirar.
O Doutor não especificara exatamente a data que queria visitar, deixando que a TARDIS decidisse sozinha, mas não conseguiu esconder a surpresa ao encontrar uma garotinha que não devia passar de oito anos, sentada sozinha em um banco em frente a uma casa pouco iluminada e silenciosa. A garota lia um grosso livro de capa verde sob a pouca e amarelada iluminação da rua, forçando-se para enxergar as pequenas letras por trás de insistentes lágrimas.
Mesmo não querendo, o Doutor não conseguiu não se aproximar da criança. Afinal, ele não conseguiria não interferir. Ainda mais naquele caso específico.
Uma criança normalmente chora alto para atrair atenção dos adultos.
Quando uma criança chora baixo e afastada, é porque a causa não é algo simplório, ou apenas um charme para conseguir o que quer: é porque o manto gelado da dor se envolve no coração quente e inocente da criança, absorvendo tudo o que ela tem de melhor, deixando-a como única escapatória o choro silencioso e discreto, onde poucos adultos a veriam, deixando-a isolada e desconsolada.
Mas também deixa a criança hostil.
– O que você quer? – resmungou a garotinha, fuzilando-o por de baixo de sua touca e abraçando com mais vontade o livro que carregava quando sentiu a proximidade de um homem desconhecido.
O olhar duro e desconfiado da criança quebrou em mais alguns pedaços os dois corações destrocados do homem, que não conseguia encará-los sem pensar que fora desapontada, que por um deslize seu agora ele se encontrava naquela situação.
– Eu realmente não sei – suspirou ele por fim, não se importando de sua voz sair rouca e chorosa, combinando com seus olhos vermelhos e marcas de lágrimas que agora escorriam pelo seu rosto.
A garota não sabia exatamente o que estava acontecendo, mas a voz daquele homem a fez se sentir triste, como se de repente aquela voz carregasse toda a tristeza do mundo, mesmo sem saber que aquilo era verdade.
– Então por que veio falar comigo? – choramingou ela, confusa por aquele sentimento estranho, tão estranho quanto aquele homem parado à sua frente. Ela havia se afastado de sua família exatamente porque não suportava mais ver olhos cheios de lágrimas, mas ela não conseguia se afastar daquele homem. Ele parecia ter juntado toda dor de sua família em si, mesmo não sendo capaz de suportá-la sozinho.
– Senti que precisava – respondeu o Doutor, sorrindo ao perceber que não importava a idade de : algo nela sabia exatamente as perguntas que deviam ser feitas.
– Por quê?
– Eu nunca sei o motivo... – sussurrou ele, tentando se controlar, mas deixando um soluço insistente lhe escapar – Só sei quem, querida.
– Eu tinha que entender isso? – estranhou a criança, tirando a touca e revelando seus cabelos ruivos e olhos castanhos. A confusão em seu rosto infantil era mesma que a garota adulta mostrava todas as vezes que ele começava a falar rápido demais, sem deixar que ela acompanhasse seu raciocínio complexo, ou quando ele descrevia um planeta que ela desconhecia, ou contava alguma história difícil de acreditar... Sempre a mesma expressão, sempre o mesmo brilho nos olhos, fosse ele triste ou contente, assustado ou animado.
– Não, ... – respondeu o Doutor, sentindo uma nova onda de lágrimas lhe escaparem pelos olhos – O entendimento não é a parte mais importante.
A garota repassou a resposta mentalmente algumas vezes, tentando entender o que diabos aquilo devia significar, mas acabou desistindo, já que entender não era tão importante aos olhos daquele homem. Um vestígio de sorriso chegou a aparecer em seu rosto corado pelo frio e cheio de marcas de lágrimas, que foram apagadas por sua mão depois de afastar os cabelos longos do rosto e tirar o pouco de neve que havia parado em seus cabelos.
– O que você perdeu? – perguntou a garota, depois de mais alguns segundos em silêncio, onde o homem ficava olhando para a janela fechada de sua casa, onde se podia ver a silhuetas passarem na frente da luz.
– Como você sabe que eu perdi alguma coisa? – retrucou o Doutor, mesmo sabendo que até qualquer outra criança conseguiria notar a tristeza que ele exalava.
– Porque eu perdi algo também... E você está com a mesma cara que o resto da minha família – sussurrou ela, como se fosse algo que não devesse ser comentado – Meu irmão mais velho morreu.
O Doutor repassou mentalmente todas suas conversas com onde a família da garota era o tema principal, onde dificilmente ela falava de seu pai e irmão mais velho, ambos que ele não teve a oportunidade de conhecer. apenas continuara sua vida depois das duas perdas, mas elas não deixavam de fazer parte dela.
“– O resultado de perdas e dor é o que nós somos, é o que nos diferencia. Essa esperança idiota e sem lógica que nos dá força para continuar nesse caminho que parece muitas vezes ser sem fim”, foram as exatas palavras de . Ele sabia muito bem disso, mas por que o entendimento não trazia a tal esperança? A esperança era apenas uma regalia dos humanos, no final das contas? Logo eles que pouco entendiam de tudo? Claro, o entendimento não era a parte mais importante...
– Eu perdi uma companheira incrível... Por isso estou aqui – explicou o Doutor, sentando-se ao lado da criança – Queria encontrar algo que me lembrasse dela.
– Como é essa história? – perguntou .
– Não tem um final muito legal...
– “As história nunca têm fim. Elas sempre continuam... Não terminam com a última frase, assim como não começam com a primeira” – murmurou , com um sorriso discreto nos lábios. O Doutor apenas parou de respirar por alguns segundos, perdido nos olhos daquela garota. Ele conhecia aquela frase de algum lugar...
O olhar do homem caiu sobre o livro que a garota ainda abraçava: um livro de capa verde que ele já vira muitas vezes nas mãos de uma adulta. Um livro que deixara na TARDIS na última vez que ela colocou os pés na nave.
O Doutor levantou em um pulo e correu de volta para a TARDIS, sem pensar em outra coisa.
A jovem balançou a cabeça em sinal de desaprovação, mas não deixou que seu sorriso diminuísse. De um modo estranho, a garota sabia que fizera aquele homem perceber algo essencial que nunca havia se passado por sua cabeça e – mesmo que sequer ele tenha agradecido –, ela se sentia feliz por ter feito aquele homem desconhecido perceber que o fim do mundo não existia, que aquele era apenas um começo. No fundo, não estava feliz só por ele, mas por ela também.
?! – gritou seu pai da porta, com um olhar desconfiado nas costas do homem que ela sequer perguntara o nome, mas que estranhamente sabia o seu – Entre, querida! Está frio!
pulou do banco cheio de neve com o seu livro em uma mão e a touca na outra, correndo para os braços de seu pai mesmo com o risco de escorregar no gelo que se formara no caminho, apenas com a certeza de que ele tentaria segurá-la caso fosse preciso, ou que ao menos a ajudaria a levantar caso chegasse tarde demais.
Cloud não hesitou um segundo quando viu sua filha correndo em sua direção: apenas abriu os braços e se adiantou antes que ela caísse no percurso, ouvindo seu riso fácil quando ela foi envolvida por seu abraço apertado, fazendo-o sentir-se melhor do que todos aqueles adultos de expressões fechadas e palavras amigas que estavam espalhados por sua casa.
– Quem era aquele homem, ? – sussurrou Cloud em seu ouvido.
– Alguém que perdeu uma amiga – respondeu, também em um sussurro, fazendo questão de que ninguém mais os escutassem – Acho que está melhor agora.
– E por que você acha isso, meu anjo? – perguntou ele, colocando-a no chão e agachando para que ficassem com a mesma altura.
– Por ele me mostrou um brilho de esperança nos olhos, pai... – continuou ela, sorrindo como se tivesse acabado de ver sua mãe tirar uma fornada de biscoitos do forno – O mesmo brilho que o senhor está mostrando agora.
Cloud apenas deixou que um sorriso largo aparecesse em seu rosto, puxando a garota para mais um abraço e depositando um beijo no topo de sua cabeça depois de murmurar um “só não fale mais com homens estranhos, tudo bem?”. ficou parada no portal de entrada da casa, deixando seu olhar cair sob o banco que ela ocupava minutos atrás. Quando alguém de sua família perguntasse como era esse homem depois de ela contar a história, não saberia mais como descrevê-lo, se limitando apenas ao brilho nos olhos. Ela não sabia mais como era seu rosto, seu cabelo ou até mesmo as roupas, mas aquele brilho esperançoso nos olhos ela nunca esqueceria, ou jamais contaria para o Doutor.
O que aquele homem havia percebido também servia para ela, para sua família que agora sofria com a perda de alguém – exatamente como aquele homem estranho.
As histórias nunca terminam.
Tropeçando nos próprios pés, o Doutor entrou em sua nave, perguntando em gritos “onde diabos deixou aquele livro?” e não se surpreendeu por não receber resposta, mas isso apenas o incentivou. Se alguém ali podia lhe dar a resposta e não o fez, era porque ele estava perto e no caminho certo.
Ele não precisava realmente encontrar o livro, sua mente já fizera questão de deixar bem claro o que tudo aquilo significava: não tinha morrido, no final das contas. Bem, naquele dia sombrio na Terra com os Cybermen, sim, ela tinha morrido, mas aquele não era o único lugar que estava. Em algum lugar do tempo e espaço ela estava lá, apenas esperando para que ele a chamasse para mais uma viagem.
Era algo deplorável se envolver na linha de tempo de uma mais nova, tomando cuidado para não cruzar a sua própria, mas aquilo era algo que ele próprio já fizera, porque já havia passado por aquilo – se não ela não teria deixado aquele livro na TARDIS, ou ele queria acreditar que aquela era a razão. Assim, como a cada vez que se repete a leitura de seu livro favorito, ele encontraria a si mesmo na garota, impresso em seus gestos, registrado no brilho de seus olhos. Não precisava de pressa para terminar a leitura, poderia aos poucos se redescobrir na garota, reaprender que as coisas sempre continuam e até mesmo achar aquela esperança boba, mesmo sem saber que ela já o habitava.
Afinal, a história registrava feitos de em planeta, em épocas que ele nunca a levara... Ainda.
“As histórias nunca têm fim, embora os livros gostem de nos enganar a esse respeito. As histórias sempre continuam, não terminam com a última frase, assim como não começam com a primeira.”

- Sangue de Tinta.

Fim


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25 de agosto


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