Antes de começar a leitura, deixem essa página aqui aberta: rainy mood e deem play esse vídeo: Talking to the Moon – Bruno Mars.


Mais uma noite chuvosa. Mais uma noite em que as lágrimas quentes e o cobertor eram minha companhia. Já havia se passado dois anos, e eu ainda não havia esquecido. Aliás, saberia que nunca ia me esquecer de alguém que havia tocado tanto a minha vida, nunca havia amado ninguém daquela forma. Esquecer não é a palavra certa, eu não havia superado, não havia aceitado que ele havia ido embora pra sempre.
Os vizinhos deviam me taxar como louca. Eu não saia mais de casa, mas todo ano, nessa mesma época, ficava pior. Eu chorava quase incessantemente todos os dias. A dor ainda era latente em meu peito, a imagem de me deixando me perseguia todos os dias. Eu me sentia culpada por sua morte, me sentia responsável. Não havia nada que eu pudesse ter feito, mas ainda assim eu queria ter ao menos tentado.
Eu ainda o sentia comigo, me observando, as vezes me dizendo algumas coisas, mas sabia que eram só alucinações da minha cabeça. Nessa época eu sentia mais saudades dele, durante esses dois longos anos, meus momentos de mais luto foram os que eu mais senti sua falta, os únicos momentos em que sentia que ele não estava mais ali. Nos outros dias eu sentia um peso enorme, ainda não havia me libertado do que havia acontecido, e tampouco achava que um dia me libertaria.

Naqueles dias minha rotina havia sido a mesma; fazia uma xícara de chá, o que ele mais gostava, me enrolava nas cobertas e chorava enquanto observava as gotas de chuva baterem fortes na janela. Sentia, talvez, que as chuvas eram as lágrimas dos anjos me acompanhando. Não me recordava que horas dormia ou quando acordava. Eu só fazia aquilo, ignorava ligações ou mensagens de texto, não atendia a porta. Às vezes gostava de me sentir miserável, porque achava que eu merecia aquilo. Merecia toda aquela dor e sofrimento por não ter sido forte quando ele mais precisou de mim.
Estava começando a ficar incomodada com o cobertor quente, e sentia que estava suando; resolvi me descobrir, e acabei levantando para me aproximar da janela. O vidro frio estava mais confortável que a cama, e eu parei um pouco para observar o céu. Estava menos nublado que mais cedo, ou talvez fosse só impressão. Eu conseguia ver algumas estrelas, na verdade, só via uma bem brilhante, mas logo uma nuvem cinza a cobriu. A luz da rua iluminava parcialmente o interior do quarto, mas uma claridade intensa invadiu o ambiente, como se as luzes tivessem sido acesas. Me virei rápido e encontrei, por mais estranho que pareça, um corpo envolto por uma luz branca escorado a porta de meu quarto. Não senti medo, eu deveria estar imaginando coisas de novo, sabia que precisava ir a um psiquiatra, mas eu simplesmente não queria mais dividir minha vida com alguém, nem se fosse por razões médicas.
Como a curiosidade falou mais alto, me aproximei do corpo, que foi diminuindo a intensidade da luz que emanava à medida que eu me aproximava, até que a luz se apagou por completo quando estava perto o suficiente para tocá-lo. As roupas brancas, um All Star incrivelmente branco, como os que gostava de usar, as mãos grandes... fiquei encarando aquelas mãos, me lembravam em muito as de , eu adorava as mãos dele. Toquei nelas de leve e por um momento senti o toque dele. Soltei-as rapidamente e olhei para cima para ver o rosto. Devo ter ficado mais branca do que as roupas que ele usava, porque era fisicamente impossível estar ali. Ele estava morto, enterrado a sete palmos por dois anos agora, como eu poderia estar o vendo?
Fechei os olhos e os apertei, tentando gritar dentro da minha cabeça para que meus fantasmas me deixassem em paz. Eu estava altamente vulnerável, não era hora da minha mente estar me pregando peças. Abri os olhos e continuei o vendo. Sentia que ia desmaiar ou algo do tipo, encarei seu rosto por mais tempo do que deveria, ou não, se era uma imagem da minha cabeça, podia encarar por todo o tempo do mundo.
Decidi aproximar minhas mãos daquele rosto, quem sabe se o tocasse novamente ele viraria fumaça e sumiria, e eu poderia voltar pra cama e ser miserável sem ter aqueles olhos profundos me encarando de novo.
Pus uma mão em cada lado do rosto, e minha vontade era apertá-las até que o fizesse se desintegrar, mas assim que encostei as mãos naquela pele macia, senti minhas mãos serem cobertas pelas suas. Ele abriu um sorriso, o sorriso que ele me dava todos os dias de manhã, e puxou minhas mãos, dando um beijo na palma de cada um delas.
Eu sentia meu rosto molhado de novo pelas lágrimas, lágrimas mistas de angustia e felicidade, como ele poderia estar ali? Como eu estava o tocando? Como tudo aquilo estava acontecendo? E se fosse sonho, eu queria dormir para sempre.

‘Antes que eu esclareça suas dúvidas, queria dizer que senti sua falta.’ Ele disse, aquela voz grossa e suave que costumava cantar pra mim.
‘Mas... Como... Você...’ Eu não conseguia concluir nada, minha cabeça trabalhava a mil e eu só queria chorar. Soltei seu rosto e me joguei em seus braços num abraço desesperado. Como eu havia sentido falta daqueles braços me segurando forte e me fazendo sentir segura. E por poucos segundos todo o conforto e segurança que ele me trazia voltaram. Eu não queria soltá-lo, mas ele foi se afastando aos poucos e voltando a me encarar.
‘Acho que preciso te contar umas coisas...’ Ele disse me olhando fundo nos olhos. ‘E por mais absurdo que pareça, eu peço que acredite em tudo que vou te dizer hoje.’

Eu ainda não conseguia dizer nada. Não conseguia pensar em nada, só deixei que ele me puxasse porta a fora, e quando saímos do meu quarto, ou do nosso quarto, não estávamos no corredor do apartamento, e sim no meio da rua. Ainda chovia, agora mais fraco que antes, mas era como se fossemos impermeáveis e as gotas só batiam em nós, mas não nos molhavam. As ruas estavam iluminadas por aquelas luzes fantasmagóricas que saiam dos postes, e entrelaçou os dedos com os meus e continuou a andar. Eu tinha toda certeza do mundo que estava sonhando.

‘Você não está sonhando, .’ Ele disse, virando o rosto para mim e me olhando com ternura. ‘Essa é a primeira coisa que quero esclarecer, isso não é sonho.’
‘Mas isso é impossível, .’ Eu disse, impressionada em como minha voz saiu firme. Há poucos instantes eu mal conseguia pensar no que falar, e agora falava como se estivesse de volta ao tempo de dois anos atrás. ‘Se não é sonho, o que é?’
‘Digamos que estamos em outro nível da realidade, só isso. Mas tudo que vemos acontece, não é fruto da sua imaginação.’ Ele respondeu, continuando a andar, estava indo em direção ao parque central do nosso bairro. Me lembro dos milhares de planos sobre como nossos filhos iam brincar e crescer ali.
‘Mas você morreu, morreu há dois anos!’ Eu disse, minha voz saindo mais aterrorizada. Ainda me doía profundamente dizer aquilo em voz alta. ‘Eu vi você morrendo, .’ Senti as lágrimas voltando aos olhos, mas não as senti cair. ‘Eu te deixei morrer...’ Eu sentia o nó na minha garganta apertar a medida que continuava a falar. Deveria ficar calada e só aproveitar a companhia dele.
‘Não deve ficar calada, gosto da sua voz. E você não teve culpa pelo que aconteceu, meu anjo.’
‘Espera, você consegue ouvir o que eu penso?’ Perguntei surpresa. ‘Você é um fantasma?’
‘Eu sou o mesmo que você. E quero te fazer umas perguntas, posso?’ ele perguntou, dando espaço para que eu me sentasse no banco de madeira da entrada da praça.
‘Já está perguntando...’ Eu disse com um sorriso, recebendo uma risada de volta.
‘Senti falta do seu senso de humor.’ Ele limpou a garganta e me olhou sério, os olhos agora secos e ilegíveis. ‘Quero que me responda com sinceridade. Você se lembra do que houve, se lembra do acidente?’
‘Lembro...’ Eu disse com a voz pouca e abaixando a cabeça. Detestava falar sobre aquilo. Senti sua mão puxando meu queixo para cima e me forçando a encará-lo.
‘Não precisa ter medo de falar, você não fez nada de errado naquele dia. E um dia, vai entender tão bem quanto eu porque tudo pelo que passamos foi necessário.’ Ele disse calmo, soltando meu rosto. Eu senti um pouco de raiva pelo que ele disse, como assim necessário?
‘Quer dizer que ter ver morrer, chorar todas as noites a sua morte, ficar num luto quase eterno e me tornar uma moribunda para a sociedade foi necessário? Necessário para quê, ? Me diga, me esclareça, por favor, porque não acho que vou entender nunca. Sabe o quanto eu me culpo pelo que houve? Como eu tentei de todas as formas não me sentir miserável, mas simplesmente não conseguia porque sabia que eu podia ter feito algo? Você não sabe o meu sentimento de impotência, de inutilidade, você não sabe como foi ver você morrer, não sabe a dor que eu senti.’ Eu disse, sentindo meu rosto esquentar. As lágrimas não haviam descido, e eu sentia meus olhos secos, na verdade.
‘Sabia que iria se exaltar com isso, te conheço melhor do que pensava. Mas como disse, você vai entender. Eu também sofri durante esses dois anos. Minha jornada só foi um pouco diferente da sua.’ Ele disse bufando, os olhos baixos, encarando o chão. ‘Eu também te vi morrer, eu me vi morrer, me vi indo embora de você. A dor foi tamanha que eu não consigo achar palavras pra te explicar.’
‘Mas eu não morri, como você me viu morrer?’ Eu indaguei confusa.
‘Você se lembra de ter ido ao meu enterro?’ Ele perguntou, ignorando a pergunta que eu havia feito.
‘Eu... não.’ Tentei me lembrar, mas não tinha memória alguma de enterro. Não me lembrava de vê-lo dentro do caixão, ou de ter mandado cremar o corpo, não me lembrava de nada. A última memória que tinha de foi a do dia do acidente, a que o vi voando pelo para-brisas do carro. Não me lembro nem mesmo de o ter saído do carro para ajudá-lo...
‘Qual a última coisa que você se lembra do dia do acidente?’
‘Lembro de você quebrando o para-brisas, de ter gritado... não me lembro de ter tentado te ajudar.’ Eu disse com o choro na garganta e aquele sentimento de impotência e angustia tomando meu corpo. Eu não havia feito nada, fui uma incapaz.
‘O que você se lembra logo depois disso?’ Ele perguntou, os olhos mais compassivos, tranquilos.
‘Me lembro de acordar no meu quarto sozinha.’
‘Havia alguém pra te explicar o que houve? Alguém te disse o que aconteceu?’
‘Não. Mas as vezes eu ouvia vozes, certas vezes falavam comigo, as vezes entre si. Eu nunca conseguia responder, por mais que tentasse.’
‘Se lembra de ter visto alguém nesses dois anos?’
‘Eu...’ eu não lembrava. Não me lembrava de nada além do interior do meu quarto, dos meus choros, dos monólogos travados com o além, com o espelho, tentando entender o que havia acontecido. Eu só me lembrava de mim mesma.
‘Tem certeza que só se lembra disso?’ Ele disse, as mãos juntas segurando as minhas.
‘Esqueci que você poder ver dentro da minha cabeça. As únicas outras memórias que tenho são de quando você estava vivo.’ Eu disse, vagamente lembrando das coisas que fazíamos. Eu estava me esquecendo de tudo. Além de louca agora eu tinha amnésia?
‘Posso te levar pra um lugar? Acho que você vai entender melhor.’

Eu concordei com a cabeça e deixei que ele me guiasse. A chuva estava mais forte, e eu não fazia ideia de que horas eram, mas deveria passar de uma da manhã. Havia pouco movimento nas ruas, e depois de alguns minutos de caminhada silenciosa, chegamos em frente ao hospital geral da cidade.

‘O que estamos fazendo aqui?’ Eu disse, sem entender.
‘Quero te mostrar uma pessoa.’
‘Mas já passa do horário de visitas, !’ Eu disse, mas ele me ignorou de novo e eu só bufei.

Me deixei ser guiada novamente e quando passamos pelo saguão e a recepção, era como se as pessoas não nos vissem ou como se fingissem que não estávamos ali. Passamos direto para os elevadores, e apertou o botão do terceiro andar. Lá era onde ficavam as pessoas que estavam internadas em estado grave, disso eu sabia. Segui calada pelo corredor, o cheiro forte de formol incomodando meu nariz. Chegamos a um dos quartos, 317.

‘Está preparada?’ Ele perguntou. Eu não sabia quem estava lá, não fazia ideia de quem ele queria me mostrar, aquilo não fazia o menor sentido, mas a maioria dos meus sonhos não fazia.
‘Eu deveria estar?’ Rebati a pergunta dele com outra.
‘Bem, não sei, acho que ninguém nunca está.’

Ele abriu a porta do quarto e havia duas camas, uma poltrona num canto e uma pequena televisão na parede. Na poltrona percebi que Eleanor, minha irmã mais nova, dormia. O que ela estava fazendo ali? Ela era quem eu iria ver?

, o que a Eleanor faz aqui?’ Eu perguntei. não estava ao meu lado, eu me aproximei de Eleanor e a cutuquei no ombro para que acordasse. Ela não reagiu ao meu toque, mas como ela costumava ser difícil de ser acordada, cutuquei mais forte, e nada. Estranhei e resolvi chamá-la, ainda sem resposta. Seu peito subia e descia lentamente, eu sabia que ela estava dormindo, mas ela costumava acordar na segunda tentativa.
‘Por que a Eleanor não acorda?’ Eu me virei de costas, encarava as camas. Fiquei muda quando me vi deitada em uma delas. Completamente pálida e com a aparência frágil naquela camisola de hospital. Notei dois bipes constantes e um cano respiratório que estava em meu nariz, vários fios colados ao meu corpo e o soro pendurado na lateral do aparelho que contava os batimentos cardíacos.
‘Que tipo de brincadeira é essa, ? Não tem graça!’ Eu disse brava e com um tom mais alto, me virei para ver se tinha acordado Eleanor, mas ela continuava na mesma posição desconfortável naquela poltrona. simplesmente apontou com os olhos para a outra cama. Ali estava ele, na mesma situação que eu. Por isso ouvia dois bipes constantes e não só um.
‘O que é isso? Por que eu estou ali e aqui ao mesmo tempo e você também? Eu sou um fantasma? Eu estou morta? Mas eu ainda tenho batimentos cardíacos, o que está havendo?’ Eu disse exasperada e me segurou pelos ombros, tentando me acalmar. Encostei os dedos no meu pescoço e não sentia meus batimentos. ‘O que está acontecendo, pelo amor de Deus, !’ Eu pedi agoniada.
‘Nós estamos em coma.’ Ele disse, soltando meus ombros. ‘Por isso você não se lembra de nada além da sua cama, do seu quarto, do seu choro. Foi isso que você vez durante os dois anos que estamos aqui.’
‘E o que você fez? Onde você estava? POR QUE EU FIQUEI SOZINHA?’ Eu já gritava, estava meio descontrolada, eu não entendia mais nada, só queria acordar, aquele sonho havia se tornado um pesadelo.
, por favor, se acalme. Vamos conversar com calma lá fora.’ Ele me puxou para fora do quarto e me sentou em uma das cadeiras do corredor. ‘Quero que fique calma e só me escute, depois que eu terminar de fala, pode perguntar o que quiser.’
‘Tá.’ Eu disse baixo, piscando rápido e esperando que ele começasse a falar.
‘Há dois anos, quando sofremos o acidente de carro por imprudência minha, nós dois entramos em coma. É por isso que você não se lembra de nada. Quero que me deixe te mostrar o que houve.’ Ele disse encostando os dedos indicadores um em cada têmpora minha. E em um segundo eu estava de volta aquele dia fatídico, mas dessa vez era como se eu só assistisse a um sonho.

Eu e estávamos no carro, ele estava dirigindo sem cinto de segurança e eu havia brigado com ele por aquilo. Ele disse que depois colocava, que não ia acontecer nada. Nós riamos de alguma coisa, e nada parecia ruim. Em uma das curvas o carro derrapou e perdeu o controle do volante, o carro girou e bateu em um poste. Ele voou pelo para-brisas, o quebrando por não ter o cinto para lhe segurar, e parou em cima do capo do carro. Eu bati a cabeça com força, mas ainda estava consciente e gritava por ele. Eu me lembrava de tudo aquilo. Ouvi uma voz ao fundo dizendo ‘Preste atenção’ e voltei a olhar pra cena. O poste em que havíamos batido, um poste velho de madeira, caiu em cima do carro. O poste havia caído em cima de mim, era pra eu ter morrido ali, por que eu estava em coma?
A cena começou a acelerar, como se fosse um filme que eu quisesse passar mais rápido. Logo um carro passou por nós e parou, vendo o que havia acontecido. Um telefonema, uma ambulância e a polícia chegando.
Eu via tudo muito depressa, nós sendo levados pro hospital, Eleanor chegando lá desesperada porque tinham ligado e dito que eu tinha sofrido um acidente, o choro dela quando a disseram que eu estava em coma quase terminal. E passamos dois anos daquela forma. Eleanor ia todos os dias ao hospital, os amigos de John, meus pais, os pais dele... Todos pedindo a Deus para que acordássemos e nada.
Pisquei os olhos devagar e quando os abri encarei novamente a parede branca do hospital.

‘Então, quer dizer...’
‘A culpa foi minha, e não sua. Eu fui o errado da história inteira, . Eu fui o motivo do seu sofrimento.’ Eu pisquei novamente, agora mais devagar, tentando absorver tudo aquilo. Eu ainda não entendia.
‘Quando eu sofri o acidente e entrei em coma, eu fui para um lugar escuro, uma sala sem janelas, sem portas. Havia somente duas cadeiras iluminadas, uma ocupada por um senhor e uma com meu nome. O senhor me chamou e me indicou para sentar nela. Fui sem entender nada, e a única coisa que eu queria saber e que eu perguntava era onde você estava, se estava bem, se estava viva. Eu pouco me importava comigo. Esse senhor me disse que todos tínhamos que pagar por nossos atos, e eu estava ali pra pagar pelas minhas imprudências. Minha punição foi te ver sofrer por mim, te ver se corroer com culpa e mágoas quando o único culpado era eu. Era como se a sala em que eu estivesse fosse de vidro, e a minha única visão era você. No começo eu chorava, gritava, implorava para que a sua dor parasse, pedia para que ele me machucasse de qualquer forma, mas que te deixasse em paz. O senhor apenas me observava e dizia que daquela forma eu não ia chegar a lugar nenhum. Na verdade, enquanto eu brigava e gritava com ele, ele era compassivo e conversava comigo com uma mansidão absurda. Uma das coisas que ele me disse foi que precisávamos nos perdoar para que os nossos sofrimentos e punições parassem, mas eu não conseguia me perdoar pelo que havia feito e ainda estava fazendo com você, e eu comecei a brigar comigo mesmo. Eu vivi nesse cubículo pelos mesmos dois anos que fosse viveu no seu quarto, chorando, se perguntando por que. Quando eu estava mais calmo e sensato, ele me perguntava se eu queria que ele te dissesse algo. No começo eu o ignorava, dizia que ele não iria falar, duvidava daquele ato de bondade. Por que ele diria algo a você por mim se a única coisa que eu pedia ele não fazia? A dor não saía de você porque ela não saía de mim, a sua dor existia só para fazer doer em mim.’ Eu notava que chorava ao me contar aquilo. Ouvia atentamente e depois dele parar e engolir em seco, continuou.
‘Você não merecia nada daquilo, e eu te peço perdão, porque a culpa foi minha. Depois de me “acostumar” com te ver sofrer, eu não reclamava mais, não dizia mais uma palavra. Escutava atentamente tudo que o senhor me dizia, não expressava emoção alguma e apenas aceitava que precisava passar por aquilo. Depois de uns dias, ele perguntou algumas coisas para mim, e me permitiu lhe fazer algumas perguntas. Eu perguntei se algum dia sairia dali, e se ele era capaz de te fazer parar de sofrer. Ele disse que aquilo era tarefa minha, que eu só conseguiria aquilo no dia que me aceitasse e me perdoasse. Eu perguntei se algum dia você me perdoaria, ele respondeu me perguntando se eu achava que merecia seu perdão. Respondi sinceramente que não sabia, mas esperava do fundo do meu coração que você fosse superior a mim e conseguisse me perdoar. Me calei achando que seria prepotência perguntar quem ele era e o que fazia ali, e deixei que aquela dúvida me martelasse. Ele cortou meu silêncio e perguntou se eu ainda te amava.’
Eu fiquei um pouco estática. Aquilo era loucura demais, até pra um sonho, ou um pesadelo. Respirei fundo e como não havia respondido nada, resolvi falar algo.
‘Você respondeu a pergunta?’
‘Não. Eu olhei no fundo dos olhos dele, e cai em choro, na verdade. Ele me abraçou e senti naquele abraço o conforto que só um pai oferece, e ele disse que sabia que eu te amava mais do que tudo, e que estava disposto a passar por qualquer tipo de tribulação por você. Ele disse que meu sentimento era puro, e que por isso ele sabia que quando eu estivesse pronto, tudo aquilo passaria e todas as lições que me ensinou, mesmo quando eu não quis ouvir, teriam sido aprendidas. Daquele dia em diante eu tentei me libertar do meu sofrimento, da minha dor e da minha culpa, porque sabia que era como eu conseguiria te libertar. Eu me lembrava de todos os nossos momentos felizes, e às vezes fingia que falava com você. Quando você escutava algo, bem, era eu falando. Ele às vezes ele te deixava me ouvir, quando achava que eu merecia. Você achava que eram alucinações, mas por eu saber que não era, já me dava por satisfeito. Até que um dia quando eu acordei, eu não sentia mais nada. O único sentimento que me vinha era o amor e o nome que permanecia em mim era o seu. Naquele dia o senhor veio até mim sem falar nada, me abraçou apertado novamente, e perguntou o que eu sentia. Disse que o sentimento presente em mim era o amor. Ele me sorriu e perguntou o que o amor fazia. Eu fiquei confuso, e ele disse que eu pensasse um pouco, que ele tinha me ensinado aquilo. Pensei alguns segundos e disse que o amor libertava. Dai ele me perguntou se eu estava pronto para ir te buscar.’ sorriu pra mim, ele parecia tão feliz ao dizer aquilo. Eu nem imaginava o que ele tinha passado, e me doeu só de ouvir, de saber que me ver sofrer era o seu sofrimento.
‘Quando ele disse aquilo, eu não te via mais. A sua visão havia sumido e tudo que eu via era um longo corredor iluminado. Ele disse que aquela seria nossa última caminhada juntos por um tempo, mas não a nossa última conversa. Eu perguntei se você iria me perdoar, e ele disse que eu teria que me arriscar para descobrir. Ele disse que sabia que eu ia correr o risco porque mesmo se você não me perdoasse, eu não deixaria de te amar, e eu já havia me perdoado. Ele disse que se você fosse capaz de perdoar a si mesma, era capaz de perdoar qualquer um. Além de tudo, ele pediu que eu compartilhasse o que aprendi com você. Disse que você ia estranhar no começo, mas que quando eu terminasse, você iria aceitar. Perguntei pra onde iria quando aquilo tudo acabasse, se ia acordar de um sonho e voltar a minha vida normal, se eu iria para o céu ou para o inferno. Ele riu de mim e disse que aquilo era só mais uma jornada, e que eu iria sim para algum lugar depois de tudo aquilo. Ele me deu direito a mais uma pergunta, a última que eu faria a ele, já que havia chegado para te encontrar. Ele disse que eu podia perguntar qualquer coisa, até algo que já tivesse perguntado e a resposta não houvesse sido clara. Disse que responderia sem rodeios e de forma sincera o que quer que eu perguntasse. Pensei em perguntar quem ele era, mas àquele ponto já não me importava muito com aquilo. Pensei em perguntar novamente se você me perdoaria, se você ainda me amava. Pensei um bom tempo antes de fazer minha pergunta, e depois que tive minha resposta, sabia que estava pronto para vir te buscar.’
Ele se calou de súbito, e sabia que eu ia querer saber o que ele tinha perguntado.
‘Posso saber o que você perguntou ou é segredo?’ Eu disse levantando a sobrancelha e encarando os olhos bonitos, turbulentos, e mais cheios de amor que eu já vira.
‘Perguntei se o nosso amor poderia nos levar pelas próximas jornadas juntos. Ele disse que o nosso amor era forte o suficiente para nos levar para onde quiséssemos ir.’

Eu o encarei um pouco sem expressão. Depois de ouvir tudo aquilo, eu deveria me sentir apavorada ou maluca. Deveria achar que aquilo era um sonho e que eu já podia me beliscar pra acordar, e depois que eu contasse para o que havia sonhado, ele iria rir e dizer que eu precisava parar de ler livros de ficção. Mas não. Eu me sentia estranhamente certa naquilo tudo, sentia que estava onde deveria estar. Não me parecia mais um sonho, ou um pesadelo. A realidade daquilo era assustadoramente incrível, quase palpável, e por mais que me sentisse dentro de um dos livros que tanto adorava, sabia que aquilo não era mentira. A sinceridade de todas as palavras que eu havia ouvido me faziam perceber a verdade da situação. Eu não sentia mais dor, ou culpa pela “morte” de . A angustia, o sofrimento, tudo havia ido embora. Eu finalmente estava confortável comigo mesma, eu tinha entendido o propósito de tudo aquilo. A única coisa que eu sentia era o meu amor pelo homem a minha frente.
Ele me olhava esperando uma reação, eu simplesmente o abracei apertado, afundando o rosto em seu pescoço, e sussurrando perto de sua orelha.
‘Eu te amo. E faria tudo de novo se é para que passemos a eternidade juntos. Eu acredito que nosso amor pode fazer coisas incríveis. Obrigada por ser forte para se libertar de si mesmo, e assim me libertar também. Eu te amo muito, muito, muito. Te perdoaria sobre qualquer circunstância.’

Voltei a olhá-lo e agora seus olhos brilhavam. Ele aproximou nossos rostos, e ao sentir nossas respirações se cruzarem, fechei os olhos e senti novamente o gosto daqueles lábios que tanto me fizeram falta. Ele me apertou em seus braços e ao partir o beijo perguntou se eu estava pronta para ir embora.

‘Para onde?’ Eu perguntei, enquanto saíamos do hospital e seguíamos pelas ruas vazias agora.
‘Para onde você quer ir?’
‘Qualquer lugar está bom. Só sinto por não poder me despedir propriamente de Eleanor e das pessoas que, bem, estamos deixando aqui.’ Eu disse meio triste.
‘Nós não estamos as deixando. Seremos para sempre o que resta do pó das estrelas que iluminam o céu delas. Basta eles quererem no sentir.’ disse, me abraçando de lado enquanto andávamos.

O caminho ia se tornando iluminado a medida que passávamos por ele, e logo toda a escuridão da noite sumiu. Parecia que caminhávamos por um corredor extenso feito somente de luz; eu podia ouvir uma melodia ao fundo, e no final da passarela, um senhor nos esperava, acenando com uma mão e sorrindo.

Epílogo. (Terceira pessoa)

Eleanor acordou atordoada no meio na da noite. Sonhou com a irmã a chamando, e levantou-se rápido para ver se ela tinha acordado. Não ouvia mais nenhum bipe, os dois monitores cardíacos exibiam uma linha e um apito contínuo. Quando olhou para as camas e viu e , não acreditou no que via. Chamou as enfermeiras do andar e o médico que estava cuidando dos dois. Todos entraram na sala correndo, mas o alvoroço parou quando viram o estado em que o casal se encontrava ali. As camas estavam a uma distância menor que antes, separadas por poucos mais de um palmo. Os dois estavam de mãos dadas e nos rostos os lábios curvados em pequenos sorrisos. Eleanor estava estática, tanto por saber que os dois estavam agora mortos como por se perguntar quem havia os colocado naquela posição.
Foi até a janela do quarto; ainda chovia, mas mesmo no céu dublado e melancólico da noite, duas estrelas brilhavam fortes bem no alto, muito próximas uma da outra. Eleanor sentiu o coração apertar de uma forma boa enquanto olhava as estrelas, e por algum motivo que ela não soube explicar, ela teve vontade de sorrir, mesmo em meio às lágrimas.


N/A: Hello! Então... essa fic era de um especial da equipe, mas eu acabei a retirando do site. Só que resolvi mandá-la de volta nem sei porque haha. Então desculpem se escrevi alguma besteira, essa fic me saiu entre meia noite e quatro da manhã enquanto eu ouvia Talking to the Moon e deixava o rainy mood aberto. Digamos que eu não costumo escrever sobre coisas fantasiosas, mas gostei mais dessa fic do que costumo gostar das coisas que escrevo!
Então, queria agradecer primeiro ao Bruno Mars por essa música linda que quase sempre me faz chorar. À Maureen por ter feito a capa mais linda da vida e me poupado de fazer uma capa mixuruca! À Lara, minha beta linda e maravilhosa, por betar tudo que eu peço e me aguentar praticamente todo dia. À Raquel e à mamãe por terem lido antes e me dado opinião! E a vocês que leram a fic! Espero de todo o coração que tenham gostado; comentem e me digam o que acharam da fic, ok?! <3
xxx, Benny.

twitter @bfranciss


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