Segundo a lenda da linha vermelha do destino, os deuses amarram uma linha vermelha ao redor dos dedos daqueles que estão predestinados a se encontrar em determinada situação ou ajudar um ao outro de alguma forma. As duas pessoas conectadas pela linha vermelha estão destinadas a serem amantes, independentemente da hora, lugar ou circunstância. Essa corda mágica pode se alongar ou se embaraçar, mas nunca se rompe.
Parte 1
E, respirando fundo, tomou coragem para dizer as palavras que vinham atormentando seus pensamentos pelos últimos dias. Enquanto via a professora parada à frente da turma, olhou para os colegas, todos sentados no chão. Olhou então para ela, sentada ao seu lado. A cabeça erguida, acompanhando tudo que a professora falava, como a boa aluna que era. Então, aproveitando-se do momento, já que ninguém parecia prestar atenção neles e não precisaria encarar os olhos da garota, que estavam tão presos na professora, ele escorregou discretamente para mais próximo dela, até que seus joelhos, dobrados em perninhas de índio, quase se tocassem. Inclinando-se na direção ela, ainda olhando fixamente para frente, murmurou:
- Quer ser minha namorada?
Sua voz tremeu um pouco, mas talvez ela não tivesse percebido, já que o garoto tinha falado tão baixo. Para falar a verdade, talvez ela nem tivesse escutado suas palavras, pois continuou imóvel, a atenção voltada para a frente da sala.
Mas ela ouviu sim. E seu corpinho inteiro enrijeceu, pego de surpresa pela proposta. Sentiu o calor se espalhar pelo rosto enquanto suas bochechas coravam. Nenhum garoto costumava falar com ela. Seus lábios permaneceram grudados. Ela não tinha a menor coragem de responder. Então, como se a professora lesse seus pensamentos, ouviu-se a voz da Sra. Bailey:
- , você pode ler a palavra no quadro? – perguntou atenciosamente, usando o giz em suas mãos para apontar para as letras garrafais no quadro negro.
A menina ofegou. Completamente ciente do garoto ao seu lado ainda esperando a resposta, sentiu o rosto enrubescer ainda mais. Sabia a resposta para ambas perguntas – a do menino e a da professora – mas não tinha coragem de dar nenhuma das duas. A turma inteira a encarava agora, e nunca fora – e nunca seria – acostumada a ser o centro das atenções. Mas a Sra. Bailey sabia que tinha sido a primeira a aprender a ler e a menina, a aluna de ouro, não queria decepcionar a mestra. Piscando rapidamente, encarou o quadro. P - A, pa. Respirou fundo. Estava indo bem. T - O, to. Então falou com pressa, a voz esganiçada atropelando as sílabas, em êxtase por ter conseguido falar alguma coisa:
- PATO!
- Muito bem, ! – a mulher sorriu antes de continuar a aula.
Aliviada por ter conseguido fugir da situação, sorriu de volta, embaraçada, antes de voltar o olhar para os próprios pés. Olhou de soslaio para o colega e ouviu a pergunta dele se repetir na própria mente. Abriu a boca, completamente dividida entre a vontade de responder e a vergonha avassaladora que mobilizava seus sentidos. Maldita timidez... Fechou a boca novamente e permaneceu em silêncio pelo resto da aula, sem ousar encarar o garoto ao seu lado, que parecia não ter movido um músculo desde o pedido fracassado.
E ele realmente não tinha. Mortificado, o pequeno apenas continuou olhando para a frente, saboreando o mais amargo momento de seus breves 6 anos de idade.
Parte 2
empurrou a porta de madeira do café e se encaminhou até o balcão. Olhou por um instante para o menu pendurado na parede. Não para realmente analisá-lo: mas só por não ter mesmo para onde olhar, já que sempre tomava a mesma coisa. Esperou um segundo antes que o atendente de sempre aparecesse para receber o pedido. já o conhecia de vista, porque entrava por aquela porta todos os dias, às 7:30, antes de se dirigir à faculdade. E assim havia sido pelos últimos três anos. era uma pessoa que gostava de seguir seus horários. Sabia que o nome do rapaz era Christian, ou Christopher, ou algo do tipo, e ele rapidamente trouxe seu café latte.
Pegou o copo e saiu novamente, antes de fazer seu caminho até a King’s College London, onde estudava química. Assistiu às aulas como sempre: despendendo apenas 30% de sua atenção. Se ouvia seu nome ou algum assunto que lhe interessava, seus ouvidos convenientemente seletivos lhe chamavam atenção. Sempre havia sido assim. Não precisava se matar nas aulas, muito menos nas tarefas extraclasse, para acompanhar a turma. Saiu às 13 horas, como sempre, passando pela multidão de alunos que saíam e entravam do campus, e caminhou de volta à Borough High Street.
morava em cima de um consultório de dentista, e, ao passar pelo hall de entrada, cumprimentou a Sra Biersack, a recepcionista simpática que sempre lhe oferecia “deliciosos-pirulitos-sem-açúcar-que-não-estragavam-os-dentes”, por mais que ele sempre recusasse. Ela lhe lembrava sua avó.
Subiu as escadas a passos largos, alcançando rapidamente o terceiro andar. Precisou empurrar com um pouco de força a porta, que havia estado estragada há alguns bons meses, e, como acontecia todos os dias, o estrondo da madeira se deslocando fez seu gato pular do sofá e correr para o fundo do apartamento. Não que o espaço fosse muito grande, mas Abel era, como costumava dizer, o gato mais medroso e pouco inteligente do planeta, e parecia achar que não havia lugar mais seguro no mundo que seu esconderijo embaixo da cama de . Não era seu gato, na verdade. Era de sua irmã. Mas Hanna resolveu dar um presente para quando descobriu que o novo namorado era alérgico a pelos. Ótima maneira de forçar as pessoas a fazerem um favor que elas não têm a mínima vontade de fazer: finja que é um presente.
Mas, por mais que se irritasse por ter que limpar os pelos que sempre grudavam nas suas roupas pretas e voltar para casa a pé carregando um saco de 3 kg de ração toda semana, não poderia dizer que não gostava do animal. Era divertido provocá-lo apenas para vê-lo tentar morder com seus dentinhos insuficientemente afiados e tão pouco perigosos, mas gostava quando Abel se aconchegava por cima do edredom, à noite, ronronando, e sempre corria para confortá-lo quando, durante tempestades, ouviam os trovões que tanto assustavam o felino. Além disso, tinha de ser grato ao pequeno pela sua grande ajuda com as mulheres. Não podia negar que Abel era bastante bonitinho, e mulheres – que havia descoberto serem extrassensíveis à fofura – por algum motivo pareciam incapazes de resistir àquela bolinha de pelos ambulante. Portanto, depois que pisavam dentro do apartamento, Abel era capaz de mantê-las por lá por um tempo, até que cuidasse do resto. Uma dupla e tanto.
se dirigiu ansioso até a própria cama. Acordar cedo não era seu ponto forte, por isso, dormir durante toda a tarde era uma parte tão sagrada de sua rotina quanto todas as outras. Dormiu até um pouco depois das cinco, e não teria saído tão cedo se Abel não o tivesse atormentado miando insistentemente porque não havia mais leite.
Desceu as escadas, ainda sonolento, e cumprimentou a Sra Biersack antes de se dirigir à pesada porta de madeira escura. Abriu-a e segurou a porta para uma moça que entrava, provavelmente mais uma cliente. Sempre havia muitas pessoas e saindo e entrando do prédio por causa do consultório. Atravessou a rua e se correu até o supermercado mais próximo em busca do bendito leite, torcendo para que conseguisse voltar sem se molhar pela chuva que já ameaçava cair.
Parte 3
passou pela porta do Tas Café às quinze para as sete, como fazia todos os dias. Seu turno começava às oito. Cumprimentou Chris, vestiu seu avental e foi para trás do balcão enquanto ouvia o amigo falar sobre o cliente que aparecia todas as manhãs. O “pedaço de mau caminho”, como Christian o chamava, tinha olhado diferente para ele hoje.
- Juro que olhou! – insistiu ao ver rolar os olhos.
Passou o resto da manhã dividindo o balcão com Chris, que continuava tentando encontrar pretendentes para , pois não se conformava com a falta de movimento na vida amorosa da colega. Além disso, isso lhe dava uma desculpa para encarar os clientes e avalia-los segundo os mais variados critérios, que incluíam tamanho dos bíceps, oleosidade da pele e qualidade dos sapatos.
Quando seu turno terminou, saiu e caminhou até a King’s College London, que ficava a poucos quarteirões dali. Por volta das 13 horas, passou pelo portão, onde os alunos do turno da manhã, que saíam, e os do turno da tarde, em direção às salas, se misturavam numa confusão barulhenta e apertada.
Assistiu às aulas como sempre: caneta da mão, olhos fixos nos professores e prestando total atenção a tudo que falavam. Seu último período terminou às 17, e se apressou a sair porque não queria perder mais uma vez a consulta marcada no dentista. Precisou andar rápido para chegar ao consultório porque nuvens escuras já ameaçavam no céu, e, quando alcançou seu destino, passou pela porta, que um rapaz segurou para ela, e se apressou até a senhora no balcão.
Ao fim da consulta, deixou o consultório e caminhou os poucos metros que o separavam do prédio onde morava, procurando as chaves no fundo da bolsa. Ao chegar, no entanto, parou, surpresa, em frente ao portão.
- O que você tá fazendo aqui? – estranhou.
Caitlin levantou o olhar do celular em suas mãos.
- Ah, ! – exclamou aliviada. – Que bom que você chegou, já tô aqui esperando há quase quarenta minutos...
Enquanto atravessavam o corredor branco que levava às escadas, tentou de novo, por mais que no fundo já soubesse a resposta:
- Por que você estava esperando no portão?
Caitlin mordeu os lábios, apreensiva, já prevendo a bronca que levaria quando se explicasse.
- Hm... – hesitou. – Eu perdi minhas chaves, - e se apressou a dizer, ao ver a expressão da amiga: - MAS, dessa vez, não vamos precisar trocar as fechaduras.
- Caitlin... – gemeu. – De novo?!
- Mas, como eu falei, dessa vez a gente não precisa trocar as fechaduras, porque eu sei exatamente onde as chaves estão, e não estão nas mãos de nenhum maníaco, então pode ficar tranquila! – justificou sorrindo de orelha a orelha, como sempre fazia, tentando amolecer o coração da amiga.
- E onde estão? – perguntou, rolando os olhos e rindo, enquanto destrancava a porta do apartamento.
- Caíram no bueiro em frente ao prédio. – choramingou. E desatou a falar: – Eu tirei as chaves da bolsa correndo, estava morrendo de pressa, o Kurt tava me esperando, e aí passou um pássaro, , eu juro por Deus que ele era enorme!
- Anh... – incentivou, rindo, enquanto se dirigia até o quarto para deixar suas coisas.
Caitlin continuou gritando da sala, explicando sua história sem parecer ter necessidade de respirar.
- Então quando estava bem pertinho de mim, aquela galinha maldita piou, e eu levei um susto tão grande, mas tão grande, que o mendigo do meu lado até riu de mim quando eu deixei o celular cair e esbarrei em um ciclista, que caiu da bicicleta e ralou o cotovelo no chão, e então eu disse...
Parte 4
acordou sobressaltada com o som de uma risada macabra ecoando pelo quarto, daquelas tiradas diretamente de filmes de terror, que fez os pelos de todo seu corpo se arrepiarem de pânico. Esticou a mão até o criado mudo e desligou rapidamente o alarme, que Caitlin, pelo visto, havia trocado novamente. gostava de acordar com músicas clássicas, mas Caitlin tinha a teoria – teoria bem certa, na verdade – de que a amiga acordava melhor com sons altos e estridentes, e se não acordasse primeiro para tirá-la da cama, Caitlin não levantaria para ir ao trabalho nem que a cama do vizinho gordo do apartamento de cima desabasse sobre sua cabeça. Por isso, por mais que colocasse Debussy, Chopin ou Vivaldi como toque de despertar, Caitlin insistia em mudá-lo para uma risada macabra que ela havia, de fato, baixado de um filme de terror.
Levantou-se, sonolenta, e caminhou até o interruptor ao lado da porta. Fechou os olhos, por reflexo, para se proteger da luz forte, e os esfregou antes de abrir a porta e ir até o quarto de Caitlin.
- Cate? – chamou, balançando a amiga pelos ombros. – Cate, são nova horas, você tá atrasada.
Em um segundo, Caitlin estava de pé, afastando os longos cabelos do rosto.
- Oh, meu Deus, não, não, não! – exclamou, desesperada, quando alcançou suas roupas jogadas sobre a poltrona do outro lado do quarto. - O Sr. Khan vai botar fogo no meu cabelo e arrancar minhas unhas e... – então parou e se virou lentamente, parecendo conformada: - Você me enganou, né?
assentiu lentamente com a cabeça, bocejando enquanto caminhava de volta para o próprio quarto.
- Aham. São sete e meia. – respondeu indiferente. Caitlin acreditava toda vez, sem exceção.
No caminho para o banheiro, ouviu seu celular tocando e, estranhando, voltou ao quarto. Quem poderia estar ligando antes das sete da manhã?
- , eu preciso que você venha para o Tas agora. – disse Christian assim que atendeu, fazendo a garota contorcer o rosto numa careta.
- Por quê?
- Porque o Oliver não vem, e eu não consigo abrir o café sozinho.
- Christian! – exclamou, manhosa. – Não pode pedir a Justina? Ou um dos outros?
- Por favor, . Você sabe que eu não entendo o sotaque da Justina nem pessoalmente, consegue imaginar uma conversa nossa pelo telefone?! Além disso, você é única que consegue chegar aqui em cinco minutos. Vamos lá, eu não consigo atender todos sozinhos.
- Certo... – murmurou, vencida, ouvindo uma exclamação do amigo. – Christian Sanders, quando eu chegar, é bom você estar me esperando com um sorriso nos lábios e o melhor mocha latte que você já preparou na vida em mãos.
- Feito. Você vai ver, os melhores clientes vêm mais cedo. Se der sorte, posso te apresentar ao Mr. Universo do Tas Café, afinal, você sabe que vai ser nossa dama de honra, certo?
- Claro, Chris. – respondeu rindo.
Desligou e teve de se arrumar correndo. A sorte é que gostava de manter seus horários, então era o tipo de pessoa que sempre acordava mais cedo, saía mais cedo de casa, terminava mais cedo as obrigações... Arrumou-se com pressa e, quando estava prestes a passar pela porta, ouviu a voz de Cate levemente desesperada:
- Por que você já tá saindo? – perguntou, parando sua xícara a caminho da boca, com os olhos arregalados. – Que horas são? Eu perdi a hora de novo? Santíssimo Deus, o Sr. Khan vai finalmente partir pra violência e...
- Não, Cate. – apressou-se em dizer. – O Christian me pediu pra chegar mais cedo porque ele precisa de ajuda, não tive como falar não.
- Oh. – soltou Caitlin, a compreensão se espalhando pelo seu rosto. Então balançou levemente a cabeça para os lados. – Tsc, tsc, ... Era de se esperar que você já tivesse aprendido comigo: dá dinheiro, mas não dá intimidade. – aconselhou com o semblante mais sério do mundo, fazendo a amiga rir.
- Você tem razão. Mas parece que já era.
Dirigindo-se em direção à porta, foi interrompida de novo:
- Ei, ! – a outra chamou com um sorriso amarelo. – Sabe o que é? – hesitou. – Eu precisava, hm... Das suas chaves. Você sabe, eu ainda não estou pronta pra sair, não posso sair e deixar a porta aberta... Mas eu juro que volto cedo, venho aqui hoje antes de ir pra casa do Kurt e te entrego a chave!
Kurt era o namorado de Caitlin, e os dois eram honestamente incapazes de passar mais de 24 horas separados e era simplesmente impossível que passassem mais que dez minutos no mesmo cômodo sem que sentissem a irrefreável ânsia de arrancar as roupas um do outro.
rolou os olhos, tirou as chaves da fechadura e as jogou para a amiga. Não tinha muito tempo para pensar. Então saiu sem tomar café, desceu o quarteirão com um pouco de pressa e chegou ao café um pouco depois das sete. Ajudou Christian a abrir o local, ligar os instrumentos da cozinha e espalhar as mesas antes que os primeiros clientes começassem a chegar.
Por volta das sete e meia, ouviu o sino do balcão tocar e guardou os recibos que revisava para ir atender o cliente que havia chegado. No entanto, parou no caminho ao ser atropelada por Chris, que passou por cima dela como um furacão, desesperado para chegar primeiro. Teve tempo de virar o rosto para trás e dizer maliciosamente para a amiga:
- O Tesão em pessoa está aqui.
Retornou depois de um segundo com o pedido em mãos e um sorriso vergonhosamente lascivo no rosto.
- Oh, Christian! – ralhou, rindo. – Você não pode ficar olhando para os clientes como se fossem um pedaço de carne.
- Meu amor, se ele fosse um pedaço de carne... – começou.
- Tenho certeza de que não quero ouvir o fim dessa frase. – o interrompeu, entregando-lhe o copo em mãos. – Toma.
Quando ele voltou, a menina perguntou, curiosa, olhando por trás de seus ombros:
- Quem é? – afinal, não podia perder a oportunidade de ver o tão-famoso-futuro-Mr-Sanders.
- Aquele, com a blusa roxa, que, aliás, ficaria lin-da amassada no chão do meu quarto... – ele respondeu sorrindo satisfeito de olhos fechados, como se imaginasse a cena.
não conseguiu ver muita coisa, mas olhou em tempo de ver o cliente se virar e caminhar até a porta. Então teve de voltar ao trabalho, porque três pedidos diferentes já estavam colados no mural à sua frente.
Parte 5
olhou para os dois lados da rua antes de atravessar, mesmo que soubesse que não havia nenhum carro. E, se houvesse, provavelmente não o enxergaria direito. A chuva caindo em gotas grossas não lhe permitia ver muita coisa. O vento que soprava forte em todas as direções não ajudava muito e, por causa disso, o casaco de já estava completamente molhado nas laterais, mesmo que seu guarda-chuva fosse exageradamente grande.
Enquanto caminhava até o prédio, enfiou a mão no bolso em busca das chaves para ganhar tempo. Quando parou em frente à porta, algo lhe chamou atenção. Dois prédios adiante, havia alguém sentado na chuva. Por um instante, apenas observou, considerando se deveria ir até lá. Mas a hesitação durou pouco, e, ao ver que a pessoa não se movia, começou a caminhar naquela direção.
Ao se aproximar um pouco, pôde perceber que era uma mulher e que ela estava agachada, recolhendo objetos do chão. Por mais que estivesse completamente encharcada até o último centímetro, olhou para cima no segundo em que sentiu que a chuva forte não mais açoitava suas costas. havia parado ao seu lado, segurando o guarda-chuva enorme sobre os dois.
- Hm, oi. – cumprimentou. Mas o barulho da chuva não permitia que ouvissem um ao outro. Então, quando a desconhecida terminou de juntar as coisas que pareciam ter caído de sua bolsa e se levantou, ele perguntou quase gritando: - Você precisa de ajuda?
Ela pareceu levar um segundo para entender o que havia ouvido.
- Eu moro aqui. – explicou, apontando para o prédio à sua frente. – Mas eu fiquei trancada pra fora. As chaves estão com a minha amiga.
- Certo... E ela já tá chegando? – perguntou. Não podia simplesmente ir embora e deixar a garota lá, sozinha na chuva novamente.
- Na verdade, não. – admitiu, sorrindo sem muito humor. Ela estendeu o celular que carregava em mãos. – Eu liguei pra ela, mas minha bateria acabou antes que eu pudesse explicar.
Ficaram ambos em silêncio por um segundo. coçou a cabeça desconfortavelmente.
- Você... Hm, quer usar meu telefone? – perguntou, apontando com a cabeça para o próprio prédio. Porém, mais uma vez, ela não pareceu escutar, então ele se inclinou e aproximou a boca do ouvido dela: - Eu moro logo ali. Você quer subir e usar meu telefone?
Silêncio novamente. Encararam-se apreensivos. Ele esperando a resposta. Ela ponderando se deveria entrar no apartamento de um estranho. Até que ela percebeu que, afinal, não era como se tivesse muitas opções melhores. E ele percebeu que, na verdade, estava simplesmente oferecendo um favor, e não uma proposta de casamento. Sentindo-se estúpido pelo momento de insegurança, brincou:
- Eu não sou um serial killer, caso você esteja se perguntando...
Então ela riu, e ambos seguiram em silêncio até a porta sob a placa verde-água que dizia “Bridge Dental”. Não que conseguissem ler através da chuva, mas pode-se pressupor que sabia onde morava.
Passaram pela porta em silêncio. Seus olhares se encontraram mais uma vez, sem que trocassem nenhuma palavra. Passaram pela escuridão das escadas e subiram os três lances na mesma mudez. Ao atravessarem a porta do 301, só se ouviu o ruído da madeira velha rangendo quando empurrou a porta com o ombro. Quando pisaram no tapete no chão em frente à porta de entrada, quebrou o silêncio pela primeira vez para pedir desculpas por estar molhando o apartamento.
- Ah, relaxa! – a tranquilizou, balançando a cabeça para os lados em descaso.
Pela terceira vez, pararam, um de frente para o outro, e se encararam. Dessa vez, no entanto, diferente das outras vezes, podiam ver um ao outro sem as grossas camadas de chuva ou o escuro das escadas. imediatamente teve a impressão de que já tinha visto o rapaz, mas, quando estava prestes a perguntar, deteve-se. Depois de alguns segundos, a impressão se transformara em certeza, mas não teve coragem de dizer nada porque teve medo de que fosse parecer que estava inventando aquilo só para criar algum assunto.
Então ele a tirou dos seus pensamentos:
- . – apresentou, estendendo a mão para ela.
- Ah, .
- O telefone está ali. – apontou para uma cômoda próxima à janela. – Pode ficar à vontade. – então, observando os cabelos dela pingando e suas roupas, claramente encharcadas até a última camada, ofereceu, temendo soar inconveniente: - E... Eu posso te achar uma toalha e uma camisa seca, se quiser.
Por mais que o embaraço lhe dissesse que deveria recusar, aceitou. Já sentia a água gelada até nas meias e nas roupas de baixo, seus dentes haviam começado a bater involuntariamente e a sensação desagradável de frio já havia se espalhado pelo seu corpo sem que pudesse reprimir.
- Obrigada. – assentiu com a cabeça e sorriu antes de caminhar até o telefone.
- Hm... Você aceita um chá?
- Claro. – respondeu sem pensar. Um segundo depois, porém, percebeu que havia aceitado mais por educação do que por vontade. Não que não gostasse de chá. Pelo contrário, era compulsiva por chá, e provavelmente tinha mais sabores em casa do que no Tas Cafe. O problema, no entanto, era que, como tudo mais que gostava de fazer, tinha de ser feito do jeito dela. Uma de suas manias esquisitas era em relação à forma de preparar e guardar seus chás. A garota não gostava dos saquinhos industrializados de chá. Achava os saquinhos em que vinham armazenados nojentos, de aparência suja, e o chá, menos saboroso. Todos os seus chás eram preparados com erva. Além disso, guardava todos os sabores em latinhas de tamanho e material iguais, porém cores diferentes porque cada sabor era associado a uma tonalidade. Não suportava que fossem guardados juntos, ainda que em uma caixa com divisórias como a maioria das pessoas costuma fazer, porque achava que os gostos se misturavam. Na verdade, tinha perfeita consciência da peculiaridade da coisa, mas era um daqueles hábitos dos quais nunca conseguira se livrar. Caitlin costumava achar graça das suas esquisitices e brincar dizendo que no dia em que encontrasse alguém que tivesse paciência para todas as suas manias, a melhor opção era algemá-lo à cabeceira da cama antes que ele desistisse dela. Depois de ter higienizado as algemas com álcool, é claro, pois uma das manias era que nada que pudesse estar sujo de qualquer forma encostasse em sua cama.
Pegou o telefone, ligou para Caitlin e esperou. Depois de alguns toques, ouviu a mensagem da secretária eletrônica e colocou o fone de volta no gancho, bufando.
- E então? – ouviu perguntar atrás de si e se virou.
Ele estava encostado no batente da porta da cozinha e havia tirado o casaco, os sapatos, e trocado as calças molhadas.
- Ah... – soltou, insatisfeita. – O celular dela costuma ficar no bolso da calça, e estas ela com certeza já não está mais usando, já que... – disse, quase sem querer. Então se sentiu subitamente constrangida. Por quê, meu Deus, estava falando sobre sexo com um desconhecido?
Mas riu, e achou sua risada natural e gostosa de ouvir, então sorriu também antes de explicar:
- Ela tá na casa do namorado. Não deve atender tão cedo.
- Tudo bem. – ele deu de ombros. – Tenta de novo enquanto eu preparo o chá. – e entrou na cozinha.
esperou alguns segundos e ligou mais uma vez. Ouviu as inúmeras chamadas mais uma vez, enquanto olhava na cozinha, de costas, mexendo em alguma coisa em cima da pia. Na segunda chamada, Caitlin atendeu afobada:
- Oi, !
- Caitlin! – ralhou imediatamente.
- , você tá bem? Você me ligou, eu não entendi nada, e aí você desligou de novo e seu celular tá desligado... Fiquei preocupada, liguei lá em casa e você também não atendeu!
respirou fundo, esfregando os braços com força por causa do frio.
- Como é que eu ia atender o telefone em casa se eu não tenho chaves?
- Oh, meu Deus! – exclamou. – É verdade! Desculpa! Eu tô indo pra casa! Aliás, onde você tá?
- Hm... Um vizinho me viu na rua, sozinha, completamente ensopada, - enfatizou – e me deixou subir e o usar o telefone dele. – explicou, observando o homem de costas na cozinha.
Ele acendeu o fogão sob a chaleira antes de pegar duas xícaras enormes. Uma parecia ser do Mickey.
- , você tá na casa de um estranho?! – Caitlin esganiçou-se.
- O que mais você queria que eu fizesse? Minha melhor amiga me trancou pra fora de casa! – reclamou, baixando o tom de voz para que não a ouvisse. – E agora eu tô aqui com um cara que pode ser um psicopata, pode estar envolvido em tráfico de mulheres, e o pior: vou ter que colocar na bocaum chá aguado, provavelmente não muito higiênico, preparado de forma duvidosa!
- Você tem razão! – Cate era a pessoa mais fácil de assustar no mundo. – Sabe o quê? Eu vou pegar um taxi agora e chego aí em dez minutos e...
, na cozinha, parecia desatento a tudo. Ele abriu o armário acima da pia e tirou de lá três potes, que abriu em seguida. Por um segundo hesitou, observando os três potes com os três diferentes tipos de ervas. Três potes com três diferentes tipos de ervas.
- Ah, - interrompeu a amiga, fazendo uma pausa em seguida – sabe o quê, Cate? Está tudo bem. Tá chovendo demais, não é seguro você sair agora. Eu vou ficar por aqui mesmo, ele parece ser um cara legal.
- Oh, meu Deus. – Caitlin falou pausadamente. – Ele já te drogou, não é? Não se preocupa, amiga, eu tô indo te buscar agora, só não faça contato visual! – orientou, voltando a usar seu tom neurótico.
não pôde deixar de rir.
Então, subitamente, se virou para a sala, e teve de desviar o olhar com pressa para que ele não percebesse que ela o estivera observando. Devo salientar que sua tentativa não foi das mais bem sucedidas, mas apenas sorriu e perguntou:
- Qual sabor você quer? Não tenho muitas opções, mas você pode escolher entre...
- Me surpreenda. – pediu, sorrindo enviesado.
E quando ele virou as costas, voltou a prestar atenção no telefone.
- Caitlin, para! Eu tô falando sério. Não sai de casa nessa chuva. Mais tarde a gente se fala. – e desligou antes que a amiga pudesse protestar de novo. Kurt certamente a distrairia em menos de um minuto.
retornou então, segurando as duas canecas, deixou-as sobre a mesinha de centro e perguntou:
- A gente já se viu antes?
Divida entre a surpresa por ele ter pensado a mesma coisa e a expectativa de descobrir, finalmente, qual lembrança o homem incitava, coçou a cabeça e franziu a testa:
- Eu pensei a mesma coisa... – a garota detestava não conseguir se lembrar das coisas. E então, de repente, a ficha caiu e ela soube exatamente de onde o conhecia. Eufórica pelo êxito da própria memória, que era sempre tão eficiente, anunciou: - Ah! Eu sei quem você é! Você é o Mr. Universo do Tas Café!
Antes que pudesse se deter, as palavras já tinham saído da sua boca e o sangue já estava se espalhando pelo seu rosto.
, por sua vez, contorceu o rosto numa careta confusa. (E adorável.)
- Ah... Desculpe, sou quem?
- Oh, nada... – a garota se apressou a dizer. – Eu não... Nada. Ninguém. Você não é ninguém. – tentou corrigir, completamente constrangida. Christian morreria quando soubesse que ela estava no apartamento do seu amor platônico! Mas seu cérebro, tentando ajudar, fez voltar à sua mente o fato de que ainda estava sentindo um frio intenso e vestindo as roupas molhadas. – Er... , eu não quero parecer folgada, mas... Sobre aquela blusa seca que você ofereceu... Eu tô com muito frio e realmente precisava tirar essa roupa molhada... – pediu com a voz baixa e mansa, com medo de parecer inconveniente.
Mas já não estava ouvindo muito bem. Não, outra coisa tinha chamado sua atenção. Olhando para a mulher à sua frente, sentiu uma agitação inesperada e as palmas das mãos começarem a suar. Lembrou se do Sr. Lawrence, seu professor de anatomia, e se perguntou por que a adrenalina estaria agindo no seu corpo naquele exato momento. Uma estranha, porém agradável sensação de felicidade, uma vontade súbita de levar as mãos até o corpo dela e puxá-la para si. Dopamina, ocitocina... Qual era mesmo o nome da outra? Serotonina? Não, serotonina era o contrário... Droga. Sabia que deveria prestar mais atenção às aulas de biologia. Então, de repente, perdeu sua linha de pensamento e reparou que ainda o encarava em silêncio, parecendo levemente confusa e esperando por sua resposta. Perguntou-se por que diabos estava perdendo tempo pensando em nomes de substâncias químicas enquanto uma mulher atraente estava parada à sua frente, molhada, dizendo que queria tirar as próprias roupas (aliás, descrita assim, a cena soa ainda mais tentadora do que era realmente). Não exatamente da forma que ele gostaria que a situação fosse, mas, de qualquer forma, desculpou-se pela distração e correu até o quarto.
Parou em frente ao armário, perguntando-se o que pegar. Não queria que ela sentisse frio usando as roupas molhadas, mas também não queria ser inconveniente. “Olá, garota que eu acabei de conhecer. Quer um par de cuecas emprestado?” Não. Pegou uma blusa de frio, uma calça de moletom e um par de meias.
Quando retornou à sala, foi tomado mais uma vez por aquela sensação de que a conhecia de algum lugar. Revirou a memória de novo, buscando por qualquer lembrança envolvendo , mas não obteve sucesso. Entregou-lhe as roupas e a garota se dirigiu até o banheiro.
continuou encarando o corredor com o olhar perdido. Incomodava-lhe não conseguir associar o nome a nenhuma lembrança. ...
Quando a porta no meio do corredor se abriu, viu a garota vestindo suas calças largas e sua blusa, cuja manga lhe cobria as mãos, fazendo-a parecer tão pequena, com um sorriso divertido no rosto, que deixava sua expressão levemente infantil e inocente. E então ele soube.
- Você foi a primeira aluna a aprender a ler no jardim de infância? – perguntou sorrindo.
E, mais uma vez, o silêncio. A pergunta pareceu deixar a garota atordoada por um momento, até que ela sorriu, compreendendo.
Então sentaram-se no sofá, lado a lado, as canecas de chá quente nas mãos. Abel, que estivera escondido com medo dos trovões, havia sido regatado, pelo casal, do espaço sob a cama de , para se aconchegar entre os dois no sofá. Encararam-se, mas dessa vez não desviaram os olhares. Observaram o rosto um do outro. A cor dos olhos, o formato das sobrancelhas, a linha do nariz. Mais uma vez, a sensação de leve excitação, palmas das mãos suando e conforto chegou, mas dessa vez atingiu aos dois, e não pensou um segundo sequer sobre o que é que estava causando aquilo. Sentiu novamente aquela irresistível vontade de esticar os dedos e trazer o rosto de para mais próximo do seu. E então ele o fez. Inclinou-se sobre ela e selou seus lábios num beijo tão calmo, tão arrebatador e tão certo, que fez ambos se sentirem inundados por uma imprevista e doce sensação de completude.
"E quem um dia irá dizer que existe razão pras coisas feitas pelo coração? E quem irá dizer que não existe razão?"
N/A: Oi! Espero que você tenha gostado da história. Tive a ideia assim que o especial foi lançado, mas tava super corrida, então tive que me esforçar pra conseguir terminar em tempo... Então, por favor me diga o que você achou através dos comentários :)
Se quiser ler minhas outras histórias: Fuel to the Fire - McFly/Andamento Two is Better Than One - McFly/Finalizadas 180 Dias de Inverno - McFly/Shortfics Reminisce - Outros/Shortfics What Lies Beneath - McFly/Shortfics Um Colar de Lágrimas - Especial Equinócio de Setembro
Obrigada por ter lido! Qualquer erro, por favor me avise por e-mail.
Xx,
Bih