O sol entrava pelas frestas da cortina, me despertando do sono profundo do qual eu me encontrava segundos atrás. Eu sabia que ela iria reclamar por eu não ter fechado as cortinas, fazendo com que acordássemos cedo no domingo. Ela iria xingar, mas iria agradecer pelo fato mais tarde, pois teria tempo de organizar a bagunça que havíamos feito durante a madrugada e assim teríamos o resto da tarde livre. Me preparei para ouvir seu resmungo incomodado, enquanto pensava no que fazer para o café da manhã para compensá-la pelo incomodo. Panquecas, talvez, já que eram suas favoritas.
''Você não fechou as cortinas de novo, .''
Eu sorri e tateei a cama a sua procura. O lado que costumava ser seu estava vazio e frio. Abri os olhos subitamente, enquanto me sentava e focava a atenção ao meu redor. Meu quarto estava gelado. Não havia sapatos de salto perto da escrivaninha, nem uma de suas bolsas pendurada na porta do roupeiro, que eu sabia estar vazio do lado direito, já que ela havia levado tudo que era seu. Suspirei, enquanto um gosto amargo tomava conta de minha boca.
Outra ilusão, eu já deveria estar acostumado.
Me arrastei pelo quarto, procurando uma camiseta limpa e uma calça jeans, logo segui para o banheiro.
''Vai colocar as calças sem cueca, amor? Assim você complica a minha vida, viu?''
Sorri amargo enquanto ouvia sua risada gostosa ecoar em meus pensamentos. Voltei até o armário e peguei uma boxer listrada, uma das que ela havia comprado para mim há menos de três semanas, enquanto amaldiçoava a todos os santos por aquelas ilusões. Às vezes eram coisas que ela realmente dizia. Outras, por vezes, eram coisas que ela certamente diria caso ainda estivesse comigo. Era uma necessidade que minha mente havia criado para suprir a falta que ela me fazia.
Tomei meu banho lentamente, enquanto remoía todos os meus erros e me torturava pensando em suas consequências. Pensar no quanto eu sentia falta dela me deixava com raiva, porque eu sabia que a culpa era minha. Eu era neurótico, possessivo, ciumento, egoísta e idiota. Eu destruíra nosso relacionamento, eu a fizera infeliz, eu acabara com a minha vida, fazendo com que ela desistisse de mim e fosse embora.
Eu nunca dera espaço para ela. Eu a sufocava de todas as formas, todos os minutos de todos os dias. Queria sempre saber onde ela estava, com quem estava e que horas chegaria em casa. Eu começava as discussões por ciúmes de seus colegas de trabalho, mesmo sabendo que 90% deles eram gays e os outros 10% muito bem casados e nunca haviam direcionado um olhar mal intencionado para minha namorada. Ex-namorada, me obriguei a corrigir e quis poder morrer afogado pela ducha ao ver aquelas duas palavras dançarem na minha mente, zombando de mim.
''Está gastando muita água, . O que eu lhe disse sobre preservar o planeta? Quando tivermos que pagar um absurdo por água potável, não me venha reclamar dizendo que eu não avisei!''
Desliguei a ducha e me sequei com uma das toalhas felpudas que ela havia comprado em nossa última viajem juntos. Paris tinha sido maravilhosa, realmente. Estávamos mais felizes do que nunca e, naquela época, meu excesso de amor não a incomodava. Pois era só excesso de amor e não o excesso de sentimentos que a fizeram partir. Nos últimos meses havíamos entrado em guerra, mas a culpa era toda minha, eu sabia.
Eu a ignorava e eu começava as brigas. Fazia sentir-se culpada, mesmo sendo o único culpado por tudo. Eu infernizava sua vida por amá-la demais. Eu era idiota, inseguro e infantil. E ambos estávamos cansados daquelas brigas. Qualquer mínima coisa era motivo para desencadear horas de discussão que acabavam sempre comigo indo beber em algum pub e ela chorando o resto da madrugada. Aquilo não era vida para nenhum de nós dois. Mas eu ainda tinha esperanças. Ainda esperava que pudéssemos resolver aquela situação. Nós nos amávamos e aquilo deveria bastar para que tentássemos mudar.
Mas era eu quem deveria ter mudado para que ela ficasse. Eu deveria ter feito ela ficar. Ela me amava, mas aquilo não era o suficiente.
Sai do banheiro secando os cabelos com a toalha, juntei todas as roupas sujas e sai para o corredor, seguindo direto para a lavanderia. Coloquei as roupas na máquina e depois de ajustar todas as funções, liguei o eletrodoméstico.
''Cuidado com as roupas brancas, . Não quero outra blusa cor-de-rosa, okay?''
Mandei que sua voz ilusória se calasse e não dei importância para as malditas roupas brancas que ficariam rosas, caso tivesse alguma peça vermelha embolada na lavadora. Eu não dava a mínima para aquela merda e para merda nenhuma. Havia perdido tudo quando perdi .
Fazia uma semana e parecia que as coisas não iriam melhorar nunca.
A casa estava silenciosa há sete dias, mas eu ainda ouvia suas acusações, seus gritos, seu choro e, por fim, sua decisão. Eu ainda podia vê-la andando de um lado para o outro, jogando coisas dentro de uma mala enquanto chorava silenciosamente. Ainda conseguia ouvir a porta batendo com força, enquanto arrastava suas malas pelo corredor e ia embora, sem atender aos meus chamados desesperados, implorando para que ela ficasse.
Ela fora embora há sete dias e havia levado consigo não só meu coração, mas também toda a minha razão.
Fui para a cozinha, afim de arrumar algo para calar os protestos de meu estômago. Era quase meio dia e eu não tinha comida em casa. A despensa estava vazia, pois quem fazia compras era , que alegava que eu não tinha capacidade de diferenciar farinha de trigo de farinha de milho. Eu dava de língua para ela, que ria até não poder mais de minha infantilidade. Naquela manhã de domingo eu queria comer panquecas, como comia todas as manhãs, desde que ela se mudara para meu apartamento há dois anos. Era fácil de fazer e eu tinha uma técnica infalível de jogar a panqueca para cima e deixar cair no chão. brigava comigo enquanto ria e me empurrava para longe do fogão para que ela mesma fizesse as panquecas. Eu a beijava no rosto e agradecia por tê-la em minha vida, e sorria verdadeiramente.
''Faça uma lista de coisas que você quer que eu compre, ok? Por favor, , não esqueça de fazer a lista, você sabe que eu sempre esqueço de comprar algo que você precisa.''
Abri a geladeira e me deparei com duas latinhas de cerveja e um resto de pizza. Não estava com uma aparência muito boa, mas era aquilo ou passar fome. Após comer, larguei o prato dentro da pia, não dando importância para o amontoado de louça suja. Não havia lavado louça desde aquela tarde e só havia posto roupas para lavar, ou acabaria ficando sem elas.
'', olha essa bagunça! Você acha que eu sou sua empregada? Levanta desse sofá e vai limpar isso agora!''
Eu sentia falta dela. Muita. Sentia falta de suas manias, de suas frases típicas e até mesmo de ouvi-la reclamando e me fazendo parar de assistir ao futebol para lavar a louça. Sentia falta de tudo e sabia que não tinha como não sentir falta de . Não tinha como simplesmente esquecer do som de sua risada, das linhas do seu sorriso, do brilho dos seus olhos, ou da cor de seu cabelo comprido jogado pelos travesseiros depois de uma noite de amor. Da forma como ela caminhava pela casa, usando apenas uma de minhas camisetas, ou de como ela desfilava para mim todas as roupas novas que comprava, como se precisasse de meu olhar admirado e apaixonado para poder usá-las. Aquelas eram coisas que faziam parte de minha vida e estar vivendo sem ela estava me matando. Me doía a alma saber que eu não a teria de volta.
Eu não queria ver TV, não tinha nada para fazer no notebook e não queria fazer nada, além de ficar deitado no sofá, olhando para porta, esperando e sonhando que ela entraria por ela usando sua chave reserva e arrastando suas malas. Queria que ela me lançasse um olhar perdido e dissesse que sentia minha falta. Que queria voltar para mim. E eu lhe tomaria em meus braços, enquanto lhe prometia mudar. Prometia fazê-la feliz para compensar todas as lágrimas que havia lhe causado nos últimos meses.
E eu esperei. Por horas, ao que pareceu. E ela não apareceu.
Não era de se surpreender, eu sabia. Não a merecia, e ela seria mais feliz longe de mim. Teria a sua vida, poderia se dedicar a sua carreira como devia, poderia viajar para onde o escritório a mandasse, conhecer lugares incríveis e pessoas ainda mais incríveis. Poderia conhecer algum cara que valesse a pena, que nunca a fizesse chorar, que nunca partisse seu coração, que nunca a fizesse sentir-se como um objeto ou um troféu bonito. Pois era isso que eu fazia, mesmo sem querer. Não que eu a tratasse mal, muito pelo contrário, eu a mimava o máximo que podia. Mas a restringia. De todas as formas possíveis. A tratava como algo de minha propriedade, como uma peça de arte cara que você mostra para as pessoas, mas não as deixa tocar, não as deixa ter um contato com a peça.
Eu era ridículo. Era o exemplo mais real de como um homem poderia ter tudo na vida e simplesmente jogar fora por não dar valor. E ela? Ela era perfeita. era tudo que um cara desejava encontrar em uma mulher. Simpática, carinhosa, linda, gentil, engraçada, inteligente, humilde e gostosa. Sendo homem e tendo desejos, eu não podia negar que ela era gostosa. E era simplesmente incrível na cama. Mas aquilo era o menor dos motivos pelo qual eu podia tentar explicar porquê a amava. Eram tantos, que eu mal podia por em ordem. Mas podia citar alguns, sem erro.
havia sido a única garota da High School a querer minha amizade. Clichê? Talvez, mas eu não ligava. Era incrível para mim ter uma amiga que realmente gostava de mim como eu era e não como todos os outros me viam. Filho de um casal de empresários que respiravam e cagavam dinheiro. Capitão do time de basquete por obrigação, maior galinha da escola por alternativa e sem um futuro próprio por escolha do destino. E então ela aparecera e, com ela, uma amizade verdadeira e a chance de encontrar o que eu queria realmente fazer da minha vida. foi a única a me apoiar quando decidi largar Harvard para tentar ser compositor. Me apresentou amigos que tinham o mesmo sonho, acampou comigo em frente a gravadoras apenas para entregar uma demo para o cara certo, ligou 100 vezes por dia para rádios pedindo a primeira música minha, que foi gravada por alguma banda novata… Ela praticamente me deu a força que eu precisava para realizar meu sonho. Me deu apoio quando levei um chute da garota que eu gostava. E então, acabei apaixonado por ela. Devido a todas as pequenas coisas que ela havia feito por mim ao longo dos anos de nossa amizade.
Ela havia pausado a faculdade de publicidade por minha causa e só voltara a estudar um ano depois, quando eu tinha um contrato de compositor com uma gravadora conceituada. E quatro meses depois de formada, ela já estava morando comigo. E agora, tinha ido embora.
''Não acredito que você vai passar o dia jogado nesse sofá sem fazer nada, amor. O dia está tão lindo, por que não vamos dar um passeio no parque?''
Resolvi levantar do sofá, antes que acabasse fazendo parte do estofado. Me arrastei até a sacada e deixei minha mente vagar para momentos acontecidos ali. Momentos felizes, pois os tristes me corroíam meu coração.
Eu havia pedido sua mão em casamento ali. Havia preparado um jantar maravilhoso (com a ajuda de minha mãe, é claro). Whitesnake tocava na vitrola de , suas velas aromatizadas estavam espalhadas pela casa e ela estava linda naquele vestido vermelho, que realçava sua pele e seus cabelos. Havíamos dançado umas duas músicas, e eu coloquei a caixinha com o anel de noivado em seu cabelo enrolado no coque soltinho que ela usava. havia pensado que era um tipo de brincadeira, mas quando levou as mãos a cabeça e trouxe a caixa por entre os dedos, seus olhos marejaram e ela não conseguiu dizer nada.
Eu apenas sorri, tirei a caixa de suas mãos e coloquei o anel em seu dedo. Sabia que não precisava perguntar se ela queria ser minha esposa, mas, ainda sim, eu perguntei e com um grito ela me disse “sim”. E eu nunca fui tão feliz como naquele momento. Eu pensei que a teria para sempre, que seriamos felizes e nada nunca iria nos separar, pois nos amávamos. Era irônico o nosso amor ter sido o motivo de nossa separação? Sim, eu tinha certeza que sim. Dizem que muito de qualquer coisa pode ser demais, mesmo que a coisa em questão seja amor. E eu nunca saberia amá-la menos. Nunca conseguiria e nunca tentaria.
''Eu te amo tanto, .
Era isso então? Havia acabado? Eu me sentia morrer. Estava oco, vazio por dentro. Ela havia levado tudo de mim e não havia deixado nada de si para trás. Nem um de seus sapatos, ou então o seu perfume. Eu não tinha mais esperanças e sabia que não era certo tê-las. A gente colhe o que planta, é o que dizem. E eu estava colhendo as frutas mais amargas do pomar e era minha culpa ter plantado sementes ruins. Mesmo que o solo fosse bom, as frutas jamais nasceriam doces.
Deveria me acostumar com aquele vazio no peito, com aquele buraco na alma. Jamais voltaria a ver seu rosto ao acordar, ou ouviria suas cantorias durante o banho. Jamais voltaria a comer panquecas com a mesma alegria de antes e teria que contratar uma empregada para não deixar que minha casa fosse entregue as baratas. Estava fadado a andar pelo parque sem sua mão quente na minha e seu perfume em meu sistema. Não tropeçaria em seus sapatos pelos quarto, ou encontraria alguma peça de lingerie embaixo da cama. Não teria mais seu cafuné pela tarde, ou seus beijos e carícias à noite. Não voltaria a ver séries sobrenaturais e não seria obrigado a ver filmes de romance no cinema com uma namorada que tendia a se desmanchar em lágrimas. Não comporia mais músicas sobre como era ter uma garota perfeita, mas, sim, como sentia falta da mulher que eu amava. Guardaria todo o amor que eu sentia para mim, pois sabia que jamais daria ele para outra pessoa. Tudo que eu amava era e jamais amaria outra pessoa.
Qualquer garota que, por ventura, acabasse em minha cama, seria apenas mais uma. Eu provavelmente nem conseguiria transar com outra mulher naquela cama, naquele quarto, ou nessa casa. Nem conseguia me imaginar transando com outra. Havia tempo que eu deixara de fazer sexo para fazer amor.
Talvez eu devesse me mudar. De casa, de cidade. Recomeçar. Mas como deixar para trás tantas boas lembranças? Tantas lembranças, mesmo que manchadas pela minha idiotice, felizes?
E foi pensando em tudo isso que eu fui atender a porta. A campainha soava insistente, e eu provavelmente socaria os meus amigos por estarem me incomodando. Queria passar o resto da noite observando o céu pela sacada, remoendo minha perda e toda a minha culpa. Não tentaria absolver a mim mesmo, sentia necessidade de sofrer. Havia perdido e queria lembrar todos os dias daquilo. Um lembrete de como eu poderia ter sido feliz, se não tivesse deixado o medo de perdê-la tomar conta de mim. Afinal, eu havia me tornado tão imbecil por aquele motivo. E ela jamais saberia.
Girei a maçaneta e, antes de focar os olhos no visitante, que eu tinha certeza serem meus amigos querendo me tirar da fossa, comecei a falar:
- Se vocês apertarem essa campainha mais uma vez, vou enfiar ela…
- Vai enfiar ela onde, ?
Arregalei os olhos em puro choque. Quis bater a cabeça na parede para ter certeza de que não era mais uma visão. Mas eu sabia que não era. Aquele par de olhos brilhantes jamais poderiam ser uma visão.
- ? - indaguei, num sussurro.
E então ela sorriu, e eu senti toda a vida voltar para meu corpo, apenas com aquele gesto.