Já estava escuro quando ela saiu de casa. Sabia que era perigoso uma mulher sair sozinha tão tarde, com a cidade do jeito que estava e o toque de recolher há muito já ter sido tocado. Mas não conseguiu se conter. Mesmo sabendo que corria perigo, percorreu a calçada longa e desnivelada até o quarteirão seguinte. O prédio era alto, e a escada de incêndio estava quebrada. Não podia passar pelo porteiro da frente, primeiro porque naquele horário o porteiro não se encontrava mais lá, e segundo porque, de novo, naquele horário as portas já estariam trancadas. As famílias já estavam recolhidas dentro de suas casas, as crianças com medo do escuro, os pais com medo da policia e todos com medo das criaturas noturnas que percorriam a cidade quando o sol se punha. Mas ela não estava com medo.
Ela sabia que a janela do quarto estaria aberta e que ele, mesmo se reprimindo ao máximo, estaria esperando por ela. se deslocou até o beco ao lado do prédio, apoiou-se em uma lixeira e se impulsionou para cima do muro. A leveza de seu corpo, sua graciosidade e a facilidade com que conduzia os movimentos eram espantosos. Começou a subir o que restava da escada de incêndio ate alcançar o andar e a janela que queria.
Deu uma olhada para dentro e ele estava lá, de frente para a janela, olhando fixamente para ela, como se estivesse parado lá desde sempre, esperando pela sua chegada. A forma como ele a olhava, com excitação e pavor, fez com que ela se sentisse especial.
- Pensei que você não viesse mais. – disse ele, sem se mover.
- Pensei que você não quisesse que eu viesse. – disse ela, ainda do lado de fora. – Posso entrar?
- A gente não pode mais fazer isso.
- Isso o que, ?
- Não está certo.
- O que não está certo, ?
- Você sabe do que eu estou falando! Não finja que o que acontece entre a gente é a coisa mais normal do mundo. Você sabe que a sua... espécie, não é... não é... normal.
- Você acha que eu não sou normal, ? – seus olhos se fixaram nos dele, seu corpo se movimentando para se acomodar na beirada da janela, ainda esperando pelo convite para entrar. A forma para seu corpo se moldava ao batente de forma sensual e graciosa fez com que ele perdesse o foco por um momento.
- Você definitivamente não é normal.
- E isso é ruim?
- Isso é...
- Me deixa entrar. A gente pode terminar essa conversa de forma mais agradável. – ela deu um sorriso sedutor e impetuoso, preparando-se para entrar.
- Eu não quero conversar.
- Eu também não. – disse ela com um sorrisinho.
Ele tentou lutar contra o desejo de tê-la ao seu lado. Era errado. Humanos não deviam se socializar com os vampiros. Eles eram maus. Mais do que maus, eram hediondos. A própria existência deles era uma anormalidade que a ciência ainda não conseguira explicar. Sua super força e a sedução da qual se utilizavam para atacar suas vítimas eram o principal motivo da existência da lei marcial e do toque de recolher logo antes do anoitecer. A vida de todos havia mudado tanto desde que os vampiros decidiram sair do submundo e fazer parte da sociedade, que mal conseguia lembrar de como eram as coisas antes da chegada deles.
Mas era diferente. Eles haviam se conhecido no Inferno, uma boate Undeground que ficava aberta após o toque de recolher, graças ao tráfico de drogas e a propina diária aos policiais. Eles passaram a noite de forma maravilhosa, até ele levá-la a sua casa. E ela pedir permissão para entrar. Era a primeira vez que ele via um vampiro de carne em osso na sua frente. Não era como na TV, nos filmes, nos noticiários, nos discursos do presidente, na voz do líder vampírico. Ela não passava de uma linda mulher, que por acaso queria dormir com ele. Mas ele sabia que por trás daquele rosto bonito se escondia um monstro. Como sabia agora. Como sabia também que, como naquela primeira noite, não conseguiria resistir.
- Entra. – disse em um sussurro. Uma brisa misteriosa entrou no apartamento, fazendo com que os pelos de sua nuca se arrepiassem. Se de medo ou de prazer, ele não sabia dizer.
sentiu uma dor inesperada em seu coração que há muito não batia. Ela não queria machucá-lo, mas sabia que ele nunca confiaria plenamente nela. Nenhum humano o faria. era diferente. Quando ela pôs os pés para dentro do apartamento, ele não correu, não chamou a policia, não gritou por ajuda. Mas ela sabia, podia ouvir seu coração batendo forte, e ela queria acreditar que aquelas batidas eram de emoção por vê-la, mas sabia que eram de medo, de angustia, de indecisão.
Ela se movimentou rápido em direção a ele e tocou seu rosto com as mãos. O beijo foi surpreendentemente calmo, macio, sedutor. Eles não tinham pressa de se separar e pareciam apreciar cada movimento, como se degusta um bom vinho. As mãos de desceram até as costas de , e as mãos dela subiram ate seu cabelo, entrelaçando seus dedos nas mechas e o acarinhando. “Não tenha medo de mim”, ela pensava. “Apenas me ame.” Em 500 anos, ela ainda não havia experimentado o que sentia com ele. Talvez nunca tivesse amado ou se apaixonado verdadeiramente. Ou aquele amor era apenas mais forte do que os outros que havia sentido. De uma forma ou de outra ela sabia que aquele sentimento era único e que ele se sentia da mesma forma. Agora era só questão de descobrir o que fazer para que ele soubesse, entendesse de verdade, que ela jamais iria lhe fazer mal. Que a felicidade dela dependia da dele, e que ela sabia que a recíproca era verdadeira.
Ele a levou para o quarto, como sempre fazia, e a deitou na cama. Sempre que estavam juntos, afoitos, apaixonados ou calmos, como agora, ele sempre a levava para a sua cama. Nenhum outro lugar da casa era digno dela. Somente ela deitava em sua cama, o tinha por completo e deixava sua marca sempre que saía.
Ele a amou de forma serena, se permitindo deixar de lado todas as preocupações, todos os “poréms”. Ela era tão macia e tão apaixonada que ele mal conseguia se segurar. Se ao menos ela fosse humana. Se ao menos ele pudesse tê-la de verdade. Namorar, noivar, casar, ter dois filhos e uma casa com cerca branca. Deitaram-se um ao lado do outro. Ele olhando para o teto e ela olhando para ele.
- No que você está pensando, meu amor?
- Não é nada. Não é importante.
- Por favor, divida comigo. Eu quero saber.
Ele virou-se de lado e olhou para ela, colocando uma mão em seu rosto.
- Eu estava pensando no quanto você é linda.
- Isso não é verdade.
- Você é linda!
- Não é disso que eu estou falando. Não é verdade que você estava pensando nisso.
Ele respirou fundo.
- Eu estava pensando que nós não podemos continuar com isso.
- Por que não? Como isso pode ser algo ruim? Como pode ser errado se quando estamos juntos tudo parece tão certo?
A pergunta foi respondida com um beijo, seguido de caricias que os levaram a se amar mais uma vez. Talvez nunca fosse ter sua pergunta respondida de forma convincente, talvez eles nunca fossem ficar juntos para sempre e talvez aquela fosse a última vez que ele a tocaria e a amaria. Mas ela deixou as preocupações de lado e se permitiu uma vez mais ser levada por seu desejo e pelo seu amor.