“Eu quero que você morra,
!”
Foi isso que ela falou antes de desligar o telefone na minha cara.
Eu conheço ela e sei que ela não quer que eu morra; ela sempre fala esse tipo
de coisa quando fica puta com alguma coisa e nem precisa ser muito puta; pouca
coisa já faz ela falar isso. Coisas como quando um casal senta na sua frente
no cinema e não pára de falar. Vou te contar, achei que ela fosse bater neles,
mas ela só ficava jogando skitles mastigados neles e falando:
“Quero que eles morram!”
Mas eu também sei que agora ela está realmente brava e eu também sei que ela
tem um pouco de razão.
Eu não vejo a
há exatos 62 dias. Sim, eu conto. 62 dias que pareceram 62 anos.
Ela realmente foi para Paris. Bem, ela não foi para Paris; ela foi despachada
para Paris porque os pais dela são totalmente psicóticos. Agora ela está nessa
escola que pra mim mais parece uma grande putaria.
Certo, a escola não é uma putaria. É uma escola normal, até onde uma escola
particular em Paris pode ser normal. O problema é que ela mora na escola, numa
residência estudantil. Ou seja, festa todo dia e não sei quantas centenas de
babacas franceses livres para andar pelo dormitório da minha namorada!
Isso está me dando pedras nos rins.
A
acaba com a minha saúde.
Porque, quando eu estou acordado, eu estou sempre imaginando o que ela está
fazendo e com quem ela está fazendo; quando eu estou dormindo eu sonho com o
que ela está fazendo e com quem ela está fazendo!
Isso não é saudável, não é mesmo. O meu maço de cigarro diário que o diga.
Mas eu confio nela. Confio mesmo, mas quando eu ligo pra ela e escuto barulho
de festa atrás, eu esqueço que eu confio nela. Eu só lembro que eu a amo e não
a vejo há tanto tempo e lembro que ela é gostosa e que os franceses são tarados.
Essa é a hora que você fala que eu sou paranóico.
Eu sei.
A
falou a mesma coisa depois que eu liguei pro celular dela e ouvir aquele puta
barulho de festa e gente bêbada. Foi ai que eu comecei a gritar e falar um monte
de besteira porque eu fico cego, eu perco a razão quando eu sinto ciúmes; quando
eu sinto que posso estar perdendo ela. Depois eu me arrependo. Eu me arrependo
porque ela começa a gritar e falar aquele bando de coisas que eu não gosto de
ouvir. Eu me arrependo porque depois que me acalmo, consigo ver que ela está
certa e que o fato dela ter ido a uma festa não significa que ela me traiu.
Eu me arrependo porque eu sei que cada vez que eu duvido dela ela confia menos
em mim.
E ai eu fico nesse estado. Encarando o telefone com um cigarro na mão; tragando
a cada segundo; querendo que se foda o meu quarto, o cheiro que o cigarro vai
deixar nele e os meus pais. Eles já sabem que eu vou morrer de câncer no pulmão
e meio que já desistiram.
Obviamente eles não sabem que eu e a
continuamos juntos. Até onde eles sabem, eu voltei a minha velha forma: sou
o cara mais galinha do colégio. Isso acontece porque, apesar de eu ser um namorado
fiel que não encosta em mulher alguma há 62 dias (só eu sei o quanto isso é
difícil), eu também sou o cara mais gostoso da escola e eu não sei como todas
essas garotas conseguem o telefone de casa e ficam ligando pra cá.
Só sei que isso é bom. Assim meus pais não desconfiam e a minha reputação continua
intacta. Sim, eu me preocupo com a minha reputação.
Meus pais?
Eles não me mandaram para a escola militar. Eles não fizeram nada, na verdade.
Eles acreditam que eu fui seduzido pela
, que fui apenas um tolo e a única coisa que fazem agora é ter certeza de que
nosso relacionamento acabou.
Eles são péssimos nisso.
Desisti de olhar para o telefone. Ela não ligaria. É orgulhosa demais pra isso.
A sorte desse relacionamento sou eu. Eu não sou orgulhoso e eu ligo. Mas também
sou sempre eu quem fode as coisas...
Apertei o send. É claro que o número dela tinha sido o último discado. Caiu
direto na secretária eletrônica.
“Oi, aqui é a
e eu não vou retornar a sua ligação porque eu não sei como escutar os recados.”
Ela não sabia mesmo, mas ela ia escutar esse.
-
, sou eu... – Falei num suspiro e me sentei na cama. Essas brigas acabavam comigo.
Parecia o fim do mundo. – Atende, por favor. Eu sei que você está em casa,
. Atende. – Suspirei de novo; fiquei em silêncio; acendi outro cigarro; esperei.
– Tudo bem. – Me dei por vencido. – Você não vai atender, eu vou falar do mesmo
jeito porque eu sei que você tá me ouvindo. – Dei uma tragada e soltei a fumaça
devagar; organizando meus pensamentos pra não falar mais besteiras. – Desculpa,
eu não tinha o direito de começar a gritar com você daquele jeito e eu sei que
você não tá me traindo, mas eu não consigo controlar. Eu passo o dia todo imaginando
se você não está conhecendo o cara que vai fazer você se afastar de mim! Não
é uma coisa que eu queira ficar pensando, acredite... – Ri sozinho da minha
própria desgraça. - Eu tenho náuseas junto com esses pensamentos e fico com
o peito apertado, mas eu simplesmente penso essas coisas e isso me dá medo porque
eu não posso te perder e...
Balançava a cabeça me perguntando como eu tinha me tornado esse cara patético
quando ela pegou o telefone.
-
. – Sorri instantaneamente.
-
, desculpa.
-
, eu quero você. – Ela falou com a voz triste.
Deitei na cama e fechei os olhos. Aquilo era maravilhoso e horroroso de se ouvir.
Ela tinha me perdoado; ela me amava; ela me queria mas ela estava tão longe.
- Eu preciso de você,
.
A raiva, a angústia, o ciúme todas aquelas emoções que eu sentia minutos atrás
se transformaram em saudades. Simplesmente saudades dela. Queria observá-la
colocar o cabelo atrás da orelha de novo; queria ficar analisando o seu sorriso
de novo; queria sentir o seu perfume e sua presença do meu lado.
- Mas você precisa parar de pensar nessas coisas,
. – Ela falou e eu concordei com a certeza de que nunca mais duvidaria dela.
– Eu sei que estando longe é difícil não pensar nessas coisas, mas eu confio
em você e em mim mesma o suficiente pra ter certeza de que você não vai me trocar
por outra... – Senti uma certa vaidade nesse “confio em mim mesma”. – Você também
tem que confiar em mim e saber que eu nunca te trocaria, nunca faria nada que
pudesse te magoar.
Tenho que perguntar pra
onde ela compra tanta confiança e tranqüilidade. Eu pagaria muito dinheiro pra
ter a confiança que ela tem.
- Você tá certa e eu te prometo que isso não vai acontecer mais.
Eu estava sendo sincero.
Fechei meus olhos e tentei imaginar que ela estava ali comigo. Não consegui.
- Você anda saindo,
? – Ela perguntou.
- Claro.
Mentira.
Eu ia pra escola, ensaiava com os caras, tomava umas cervejas e era isso.
- Você tem que se distrair, você sabe, né? – Ela sabia que eu estava mentindo.
– A gente está longe mas a gente precisa se divertir, se não vai ser muito mais
difícil.
Odiava o fato dela ter razão. Odiava o fato de que eu não me divertia sem ela.
Odiava o fato dela se divertir sem mim.
- Pode deixar,
, e eu também quero que você se divirta.
Mentira, mentira.
Sim, eu queria que ela se divertisse, mas eu tinha medo daquela diversão. Como
já disse, confiava nela, mas sabia que tem coisas que acontecem espontaneamente.
Principalmente quando você freqüenta festinhas e fica bêbada todo dia.
Ela me perguntou do meu dia; eu perguntei do dela e só desligamos o telefone
quando o cansaço superou a saudade. Demorou bastante.
A briga do dia 62 não foi a primeira nem a última briga que nós tivemos por
minha culpa, por culpa da distância, por culpa de eu saber o quanto ela é atraente
pra qualquer homem.
Estava entediado; estava preocupado. Há mais de vinte minutos assistia o
vasculhar a sessão rock-pop de da HMV. Mas tinha algo na minha cabeça. Algo
que não saia da minha cabeça. Algo que atazanava minha cabeça.
Era sempre eu que ligava.
Fazia 75 dias que a
tinha ido pra Paris e eu me dei conta de que era sempre eu quem tentava entrar
em contato. Se ela tivesse me ligado duas vezes tinha sido muito.
Falava a mim mesmo que aquilo não significava nada. Ela era daquele jeito mesmo.
Ela nunca foi o tipo de garota melosa, que corre atrás, que mima. Na verdade,
a
é a pessoa menos romântica que eu conheço.
Precisava de um cigarro.
- Vou te esperar lá fora,
. – Avisei e o vi concordar com a cabeça. Aposto que nem escutou.
Sai de lá para ir parar no inferno em forma de rua.
Certo, estou exagerando.
Mas é isso que acontece quando você se está em uma das ruas de acesso da Picadilly
Circus. Você é atropelado por um bando de gente que fala uma língua estranha.
Andei alguns metros até a Leicester Square e me sentei em uma muretinha ali.
Acendi meu cigarro e me senti melhor no mesmo instante. Observei toda a agitação
do lugar: aquele monte de gente com roupa de sexta-feira, com cara de sexta-feira,
com ânimo de sexta-feira. A maioria tinha uma cerveja na mão.
O que estava acontecendo comigo?
Era uma sexta-feira e até um minuto atrás eu estava preso numa loja de cds com
o meu amigo.
Decadência. Sério. Nós costumávamos ser os festeiros pegadores.
Não que eu quisesse pegar alguém. Quer dizer, eu queria e queria muito, mas
um alguém em especial..
Lembrei da
, lembrei que não conseguia falar com ela há alguns dias (1,5 dias, na verdade),
lembrei que precisava ouvir a voz dela naquele instante.
Apertei o send (o número dela é sempre o último discado), torci como uma criança
para que ela atendesse dessa vez, para que não estivesse ocupado.
Tocou uma vez, tocou duas vezes.
- Oui! – Uma voz masculina atendeu.
Se eu tivesse discado o número eu teria a esperança de ter digitado o número
errado. Mas nem isso eu tinha.
Quase engasguei com a fumaça do cigarro na minha boca. De repente eu esqueci
como se tragava.
- Quem é? – Não sei como consegui que palavras saíssem da minha boca.
Ninguém respondeu, ouvi movimentação; lembrei-me de como se tragar e dei uma
profunda. Vi o cigarro tremer na minha mão.
- Alô! – A voz dela. Estava bêbada. Eu sabia reconhecer assim, com apenas uma
palavra. Não sei como.
- Quem atendeu o telefone,
?
Ela demorou pra responder, ela gaguejou.
- Foi um amigo “ume”
“Ume”
Ela estava mais do que bêbada.
A
invertia as sílabas das palavras quando ficava bêbada.
Ume quer dizer meu.
- Você tá bêbada e quem é esse amigo?
Eu já imaginava tudo. Eu podia ver aquelas mãos francesas nela, eu podia vê-los
na cama e eu queria vomitar.
Achava que ia desmaiar.
- Não tô bêbada... – Ela falou num tom fingindo de sobriedade. - E é o Fabien.
“Fabien”
Que tipo de nome é esse?
E essa pronúncia francesa...aquilo me irritava.
Fabían
Fala direito, merda.
E ela ainda falava como quem fala “foi o meu cachorro”.
- Que porra,
! Você tá vendo? Era disso que eu tinha medo! Eu sabia eu isso ia acontecer...
– Eu gritava, não que eu estivesse me dando conta do quanto realmente alta estava
a minha voz.
- Eu que digo que porra,
! Cala a boca! Tô cansada de ouvir os seus gritos, cansada do seu ciúmes infantil...
- Ciúmes infantil,
? – Eu estava puto com ela; queria que ela morresse. – Toda vez que eu te ligo
você tá em alguma festa, você tá caindo de bêbada e um cara atende seu telefone!
Você é uma vagabunda! – Assim que falei aquilo me arrependi. Ouvi ela prender
a respiração do outro lado da linha; vi as pessoas em volta me encararem. Ouvi
a voz do tal de Fabien ao fundo falando qualquer bosta em francês e me arrependi
por ter me arrependido. Ainda tinha muito o que falar. – Você continua a mesma
manipuladora sem coração que você era meses atrás, você continua tratando os
homens como se eles fossem seu animalzinho de estimação e você continua me fazendo
de palhaço!
Ela riu. Queria se fingir de indiferente mas ela não estava indiferente. Eu
já estava arrependido porque sabia que tinha magoado ela. Mas o arrependimento
era bem menor que a raiva que eu sentia naquele momento. Eu queria que ela e
a porra do francês fossem à merda.
- Sabe de uma coisa,
? – Ela me perguntou mas, é claro, não me deu tempo de responder. – Eu ainda
não te botei chifre nenhum, mas você merece um.
Ela falou determinada, firme e depois desligou o telefone.
Eu queria que ela morresse.
Odeio o fato de eu pegar as manias dela.
Fechei o celular e joguei ele no meio do jardinzinho enquanto gritava todos
os palavrões que eu conhecia. Sentei no chão e coloquei a cabeça entre os braços.
Encarei o chão. Odiava aquele chão. Se eu pudesse, eu arrebentava aquele chão.
Aquilo que eu temia realmente tinha acontecido. Ela não tinha como negar; ela
com certeza estava me chifrando!
Eu fiquei com raiva, eu fiquei triste, eu fiquei magoado eu fiquei arrasado
porque eu ainda a queria mais do que tudo.
Levantei a cabeça e vi que todas aquelas pessoas tinham parado de tomar suas
cervejas para me observar. Senti vergonha. Levantei fingindo que eles não me
incomodavam; pulei a pequena cerca que me separava do jardinzinho e, consequentemente,
do meu celular. Tirei da terra meu aparelho que por algum milagre estava intacto,
mas tinha cheiro de adubo.
Eu ia fazer a
me pagar um celular novo. Ele era novo, ok? Ela fez eu estragar um aparelho
perfeitamente novo e legal! Tinha até bluetooth! Ela ia ver, eu ia obrigar ela
a comprar um bem melhor.
Abri ele, apesar do adubo, e estava pronto para ligar de novo pra ela. Queria
mais explicações; queria saber o que realmente tinha acontecido e queria ouvir
a voz dela de novo, sentir sua presença...
Fiquei puto comigo mesmo. Estava parecendo aquelas garotas ridículas de filme
adolescente que mesmo tendo galhos na cabeça continuam apaixonadas.
Ótimo. Sou uma garota de filme adolescente. Antes eu era o pegador, o cara que
as meninas queriam e que os caras queriam ser. Agora eu sou uma garota de filme
adolescente.
Não liguei pra ela.
Me dei conta de que estava bravo demais para o telefone e que essa ligação só
pioraria tudo.
Eu precisava de mais do que isso. Nós precisávamos de mais do que isso.
O táxi me deixou em frente a esse prédio grande e com cara de centenário. Desci
dele e senti um vento gelado apesar de ser primavera.
Depois falam que o clima de Londres é ruim.
O clima de Paris é bem pior.
Porque há uma hora atrás eu estava em Londres e estava perfeitamente quente
lá.
Mas agora eu estava em Paris. Estava em frente ao dormitório dela. Estava com
as mãos suadas e geladas. Meu coração parecia estar no mesmo estado dentro do
meu peito. A expectativa de vê-la me causava emoções antagônicas. Eu estava
bravo, magoado e também estava com aquela sensação deliciosa no estômago que
sinto toda vez que sei que vou vê-la.
Abri a pesada porta de vidro da entrada e me vi num lugar que me lembrava uma
recepção. Atrás dum grande balcão estava um segurança usando uniforme preto.
Havia murais cobrindo todas as paredes. Não entendia nada; era tudo em francês.
Também não entendi quando o segurança falou comigo.
- English? – Perguntei torcendo para que ele me entendesse.
- Yes. – Ele virou o olho e fez cara de nojo.
Os franceses são um nojo.
- Eu quero ir ao dormitório 28;
.
Ele me deu uma prancheta e mandou que eu assinasse meu nome.
Estava tudo em francês, mas imaginei que fosse algo do tipo: “Se algum crime
acontecer, a culpa é minha.”
Ele pegou um mapinha, fez um círculo no lugar que estávamos e outro no lugar
que eu queria ir. Tudo com muita boa vontade, é claro. Me entregou o papel e
começou a assistir a um jogo de futebol em sua tevezinha.
Cara legal, aposto que seremos grandes amigos algum dia.
Cruzei os braços e encarei a porta com o número 28 pendurado bem grande. Ela
era branca; o número, preto. A parede de todo o corredor tinha esse tom de areia.
Havia uma janela grande no fim dele. Pude ver as luzes e ouvir os barulhos do
lado de fora. Mas essas coisas não importavam.
Descruzei os braços, coloquei as mãos nos bolsos. Não sabia o que fazer com
elas nem com meus pés. Fiquei ali por alguns segundos, sem saber o que fazer
com a minha cabeça também. odiava não saber o que fazer com as partes do meu
corpo. Tirei a mão direita do bolso e bati na porta. Odiei o jeito que a minha
batida soou. Daquele jeito todos do andar saberiam que eu era um corno.
Isso ai, eu era um corno. Isso nunca tinha me acontecido. Bem, na verdade já
tinha, mas era na época que eu “namorava” a Becky e eu realmente não ligava
a mínima que ela estivesse dando uns pegas naquele aluno de intercâmbio. Eu
queria que eles morressem porque nessa época, a vida era simples e doce e a
era apenas a minha prima gostosa que eu comia no natal.
A porta se abriu. Minha respiração parou. Mas não parou porque eu a vi (como
geralmente acontecia) parou porque eu o vi.
Não, eu não sou gay. E eu quero que você morra.
Esse cara alto, com o cabelo a la Strokes e apenas uma calça jeans estava no
dormitório da minha namorada. Veja bem, minha namorada. Ele era, ele era...
ele era o que algumas pessoas chamam de gostoso. Eu não concordo, afinal eu
sou um cara e eu não sei falar se outro cara é gostoso ou não. Pra mim é tudo
igual, mas eu acho que se eu perguntasse isso pra alguma garota, ela falaria
que ele era gostoso.
Só quero deixar bem claro que eu poderia ser muito mais gostoso do que ele.
Não sou porque não quero. Não sou porque sou preguiçoso e não pratico esportes.
Se eu praticasse, esse cara ia fiar parecendo o Pato Donald perto de mim.
Eu já comentei que os meus gens são muito bons, né?
Eu não sabia nem meu nome aquela hora. Como ele tinha a cara de pau de estar
no dormitório dela?
- Você deve ser o
! – Ele falou com um sotaque carregado e de um jeito que me deixou chocado.
Ele estava sendo legal comigo.
Falso.
Mas aquilo me perturbou de uma maneira traumatizante. O cara que estava comendo
a minha namorada sabia meu nome e estava sendo legal.
Queria que ele morresse.
Mas estava chocado demais pra socá-lo ou então armar um barraco, então, só respondi:
- Sou...hum... – Eu tinha desaprendido ingês. Super. – A
está?
Puta que pariu,
. Seja macho e bata nele!
Mas eu estava mesmo paralisado.
- Ela saiu essa noite... – Ele assoprou seu cabelo que caía em seu olho. Quem
ele achava que era? Julian Casablancas? De uma hora para outra eu percebi porque
sempre odiei Strokes. – Mas já deve estar voltando. – Calma, esse não era o
tal do Fabien? – Entra aí, cara.
Ele abriu espaço para que eu passasse e encontrasse essa sala grande e branca;
um sofá imenso e imundo num lado, uma teve imensa e super legal do outro. Algumas
caixas de pizza; garrafas de cerveja; livros; um laptop em cima de uma mesinha
que ficava entre a tv e o sofá.
- Quem é você? – Pulou da minha boca.
- Ah sim, eu sou Nicolas, colega de quarto da
.
Tá me tirando né?
Além do Fabian tem o Nicolas; e o tal do Nicolas (que, aliás, se pronuncia Nicolá
– cara, a França é patética) mora com ela. Que tipo de escola é essa onde homem
e mulher dividem o mesmo dormitório?
A França é uma putaria.
Ok, não era culpa da França, mas eu queria que o país todo morresse.
- Colega de quarto?
- Isso. – Ele se virou de costas pra mim, andou até uma geladeira que tinha
do outro lado da sala e de lá tirou duas garrafas de alguma estranha cerveja
francesa. Entregou uma pra mim e se sentou no sofá. A tv estava ligada ele estava
assistindo ao mesmo jogo que o segurança. Isso não podia ser um bom sinal. Qualquer
cara que se chama Nicolas e compartilha o mesmo gosto televisivo que o segurança
escroto não pode ser legal. – Senta ai. – Ele falou me tirando do meu próprio
mundo onde só existiam dúvidas,
s e franceses.
Sentei ao lado dele e meus pés começaram a se bater no chão ansiosamente.
Estava cada vez mais confuso. Cada vez com mais medo.
- A
não me falou que você vinha. – Ele tentava puxar papo e ser legal. Sério. Ele
queria me perturbar mais ainda?
- Ela não sabe que eu to aqui.
- Ah! – Ele exclamou todo animado enquanto eu ainda me perguntava o porquê deu
não ter batido nele. – É uma surpresa!
Cínico.
- Hum, mais ou menos.
Um barulho na porta fez com que nós dois olhássemos para ela. Alguém estava
tendo dificuldades para acertar a chave na fechadura.
Alguém.
- Putain!
Ouvi a voz dela naquele tom bêbado xingar em francês.
- Ela tá bêbada. – Nicolas falou rindo. Ele a conhecia bem. Tentei não pensar
no que isso pudia significar. Eu já previa que ia precisar dar comida e café
pra ela se quisesse ter qualquer tipo de conversa; comida e café a deixavam
sóbria. – Vou ver se tem café e alguma coisa pra ela comer. – Ele falou levantando
do sofá e me deixando mais nervoso ainda. Ele realmente conhecia ela bem. Bem
demais. E eu não sabia o que pensar.
A porta finalmente se abriu e uma
com o cabelo mais comprido do que nunca (suas pontas já passavam do meio de
suas costas) apareceu. Ela estava mais do que bêbada. Nem reparou que eu estava
lá, ainda tentava trancar a porta.
Meu coração estava acelerado e eu podia secar a minha mão com uma toalhinha
que acabaria congelada com o meu suor frio. Ela estava ali, na minha frente.
Depois de tanto tempo, ela estava ali, a poucos metros. Eu esqueci que estava
tão puto, eu só conseguia olhar pra ela, pro vestido preto largo e justo ao
mesmo tempo, pras botas que pareciam de cowboy, pras suas pernas, pros seus
braços, pra cada parte de seu corpo que eu conhecia tão bem.
Ela conseguiu trancar a porta e se virou. Ela me viu. Seu rosto era o mesmo:
a boca carnuda, o nariz empinado a bochechas naturalmente rosadas. Linda. Mas
sua expressão era uma totalmente nova.
- Que porra você tá fazendo aqui,
? – Ela gritou. Eu já tinha visto ela brava, mas nunca tão brava.
As palavras me faltaram de novo. Eu lembrei porque estava ali.
- Acho que eu vou dar uma volta. – Ouvi Nicolas falar antes de se esgueirar
pra fora do dormitório como uma raposa ou coisa parecida. Ele deve ter previsto
o barraco. Aposto que ele tinha entendido a surpresa agora.
- Que porra eu tô fazendo aqui? – Ela ficou sóbria de uma hora pra outra. Nem
foi preciso o café. – Eu tava conhecendo o seu colega de quarto! Por que você
nunca me falou nada dele?
Ela bufou e virou os olhos.
- Porque eu sabia que você ia ter essa reação patética,
! – Eu queria falar que patética era ela, mas ela recomeçou a falar. – Mas você
não veio aqui por causa do Nicolas, você veio aqui porque você tem certeza que
eu estou te traindo e que eu já dei pra metade da cidade, né?
Ela me desafiava com os olhos e ouvi-la falar daquela maneira fazia tudo parecer
ainda pior do que realmente era.
- É isso mesmo! Eu quero uma explicação do porquê você tá me fazendo de palhaço
há 75 dias.
Não sei se era porque estávamos brigando ou se era porque tínhamos passado tanto
tempo separados, mas eu não conseguia mais ler seus pensamentos.
Aquilo me incomodou.
- Olha,
, eu podia falar que é porque eu me senti carente e sozinha aqui, eu podia falar
que é porque eu não consigo me satisfazer com um homem só... – Ela fez cara
de pervertida e aquilo fez com que eu esquecesse que estava bravo por alguns
segundos. – Eu podia falar que é porque você não consegue dar conta de mim...
– Ela estava me provocando! Eu poderia dar conta até da Pamela Anderson, ok?
– Mas eu não vou falar nada disso porque, infelizmente, eu não te trai nenhuma
vez sequer! – Ela olhava nos meus olhos, mas parecia incomodada ao fazer aquilo.
Ela estava brava e magoada. Ela estava falando a verdade. Dessa vez eu li seus
pensamentos como antes. E eu me senti um imbecil, o pior de todos humanos porque
eu lembrei de tudo o que tinha falado pra ela. – E eu realmente me arrependo
disso agora.
Ela virou as costas e entrou numa porta. Era seu quarto. A segui sem saber o
que falar. Estava desesperado porque eu a tinha magoado. Estava desesperado
porque eu tinha fodido tudo de novo e talvez dessa vez fosse pra sempre.
Eu queria que eu morresse.
Antes que eu pudesse entrar ali e suplicar por perdão a porta se fechou com
violência na minha cara, fazendo com que eu tomasse um pequeno susto.
-
, deixa eu entrar, por favor! - Falei na minha melhor voz de cachorrinho abandonado
mas fui ignorado. Ela não fazia barulho algum, e pela fresta da porta não conseguia
ver luz alguma também.
Resolvi abrir a porta já que não tinha tido resposta. Abri bem devagar e meio
que me escondendo atrás dela. Eu não queria que ela acertasse um vaso em mim
ou coisa parecida.
Ela tinha motivos para me jogar um vaso na cabeça. Nós já brigamos dezenas de
vezes por causa desse meu ciúmes incontrolável, sendo que ela nunca me traiu;
eu chamei ela de vadia...
Bem que eu merecia um vaso na cabeça. Eu mesmo jogaria um vaso em mim.
A vi deitada na cama. Apenas a luz de trás de mim que iluminava o quarto, além
de uma fraca claridade que entrava pela janela.
Seu corpo parecia esgotado com o excesso de bebida e o excesso de canalhice
que teve que agüentar. Seus olhos estava fechados, mostrando a maquiagem borrada
depois de uma noite de festa. Suas botas estavam na cama e ela não ligava a
mínima. Sua pele parecia ter a mesma textura da colcha embaixo dela: seda; e
eu queria tocá-la.
Fechei a porta. O cômodo ficou escuro e precisei de alguns segundos para que
meus olhos se acostumassem a escuridão e eu conseguisse enxergar meu caminho
até a cama; meu caminho até a
.
Me sentei ao seu lado; ela não se mexeu. Passei minha mão pelo seu braço; ela
deu um tapa ardido nela.
-
, vamos conversar. – Falei enquanto tentava aproximar minha mão de sua pele
mais uma vez e mais uma vez, recebia um tapa.
Suspirei. Me sentia derrotado, sentia que tudo estava acabado.
Toquei suas bochechas com as costas da minha mão e recebi outro tapa, mas dessa
vez, segurei sua mão. Ela não esperava que eu fizesse isso e abriu os olhos
surpresa; tentou se soltar, não conseguiu; usou a outra mão para tentar me bater;
eu a segurei.
- Me solta,
! – Ela falou irritada e se mexendo o máximo possível para tentar me machucar.
Não conseguiu e se conseguiu, nem senti.
Acho que pela primeira vez, me vi no controle.
Vou ser sincero, gostei da sensação.
- Não quero te soltar. – Falei e a trouxe para mais perto de mim. Ela estava
entre as minhas pernas e seu rosto estava a poucos centímetros do meu. Eu conseguia
sentir sua pele que tinha a mesma textura que sempre teve, a mesma textura da
colcha de seda e aquela textura que eu queria sentir para sempre. Senti seu
perfume de sempre, o cheiro de seu xampu com o cheiro de seu perfume e algum
cheiro que era só dela e que fazia eu me sentir zonzo de um jeito bom. Mantive
seus braços presos em cima de sua cabeça até que eles não tentassem mais se
soltar, até que seu olhar de ódio tivesse se transformado em desejo.
Ela moveu sua cabeça os poucos centímetros que nos separavam; senti sua boca
e só não pensei que aquele era o momento mais feliz da minha vida porque não
deu tempo.
O fato de todo esse tempo que ficamos sem um ao outro, sem ninguém, na verdade,
fez com que nossos beijos fossem intensos, rápidos e demorados ao mesmo tempo;
fez com que o gosto da boca dela parecesse melhor do que eu lembrava; fez com
que minhas mãos não parassem nem por um segundo, tentando ter certeza de que
aquilo estava mesmo acontecendo; fez com que eu tivesse pressa para puxar seu
vestido que em menos de um segundo estava no chão; fez com que eu a ajudasse
a tirar suas botas e a tirar as minhas próprias roupas; fez com que eu afundasse
meu rosto em seu pescoço, beijando-a no lugar em que sua pele era mais macia;
fez com que eu sentisse aquele arrepio de sempre quando ela passou a mão pela
minha barriga; fez com que nossas roupas de baixo sumissem sem que nós nem tivéssemos
consciência disso; fez com que ela passasse os braços pelo meu pescoço e as
pernas pelo meu quadril; fez com que nós nos aproximássemos, nos aproximássemos,
nos aproximássemos, até que fosse impossível ir mais adiante; fez com que eu
fechasse meus olhos e apoiasse minha cabeça em seu ombro, totalmente chapado
por causa dessa droga que eu chamo de
, da qual eu era totalmente dependente.
Sempre que eu acordo numa cama que não é minha, eu acordo perdido. Nunca sei
onde estou. Mas daquela vez, eu sabia exatamente onde estava e por isso, eu
sorri inconscientemente.
Estiquei meu braço esperando encostar em suas costas nuas, mas minha mão encontrou
apenas o lençol.
Ainda sem abrir os olhos, estiquei o outro braço e chequei o outro lado da cama.
Também estava vazio.
Abri meus olhos e a vi sentada naquela espécie de sofá sob a janela. Ela vestia
apenas uma larga camiseta vermelha do New Found que era minha.
Passei meses xingando o
, falando que ele a tinha roubado. Mas o
sempre rouba as minhas coisas, de qualquer maneira...
Além disso, a
ficava melhor na camiseta do que eu ou o
ou nós dois juntos, na verdade.
O sol fraco da manhã fazia seu cabelo ficar vermelho, fazia a fumaça de seu
cigarro formar desenhos engraçados.
A claridade permitia que eu visse o que não pude ver, apenas sentir na noite
anterior. Sua pele estava mais bronzeada, atingindo um tom quase, veja bem,
quase dourado, suas unhas do pé estavam pintadas de azul e eu ri sozinho. Amava
essas coisas inesperadas da
; essas coisas que ela fazia e ninguém mais fazia.
Ela deu uma última tragada no Marlboro light que ela tinha roubado do bolso
da minha calça e apagou o cigarro no cinzeiro em forma de gota que ficava no
batente da janela. Me levantei o mais silenciosamente possível e passei meus
braços pela sua barriga. Ela se assustou e colocou seus braços sobre os meus.
Ela os apertou forte e suspirou. Afastei seus cabelos de seu pescoço e estava
prestes a beijá-lo quando ela se levantou bruscamente.
Ela estava com o olhar decidido e controlador e eu previ que teria problemas.
Uma sensação estranha se instalou na minha barriga e foi agravada depois que
ela falou:
- A gente precisa conversar,
.
Todo mundo sabe que quando alguém fala “a gente precisa conversar”, é porque
esta tudo terminado. Me lembrei que ela ainda não tinha me perdoado, pelo menos
não oficialmente.
Sentei ali no sofázinho que era ocupado por ela antes e apenas esperei, esperei
enquanto meu coração se disparava e a sensação de vazio na barriga piorava.
- Não dá mais. – Ela falou sentando-se na cama, de frente pra mim. Nossos joelhos
se encostavam, nossas mãos se encostavam, seus cabelos longos pareciam estar
por toda parte e eu queria apenas sentir seu perfume e ficar tonto, como sempre
fazia, mas eu sabia que não podia. Nossos olhares estavam perdidos um no outro;
no entanto, nunca a senti tão distante.
Aquilo era pior do que ser tratado como cachorrinho.
- Não fala isso. – Eu tentei falar, mas acho que ela nem entendeu porque as
palavras tinham saído num soluço.
Ela não mostrava emoção alguma. Me lembrei do dia do casamento da nossa tia.
Ela estava igualzinha àquele dia.
Eu não conseguia ler seus pensamentos. Mais uma vez, a habilidade que eu mais
me orgulhava de ter adquirido tinha sumido.
-
, a gente tá atrasando as nossas vidas.
- Você não atrasa a minha vida.
Eu sabia que ela estava certa, mas eu não concordava. Sabia que nós não aproveitávamos
a vida como outras pessoas da nossa idade. Elas geralmente se encaixam em duas
categorias: 1) As que namoram e por isso têm sempre alguém por perto; 2) As
que não namoram, apenas galinham por ai (era o meu caso antigamente) e sempre
têm alguém por perto, mesmo que cada dia seja uma pessoa diferente. Eu e a
não nos encaixávamos em nenhuma das categorias. Nós estávamos sempre sozinhos.
Mas eu nunca falaria que ela atrasa a minha vida. A minha vida é ela, como eu
poderia falar que a minha vida atrasa a minha vida? Hein? Hein? Nem sentido
faz.
- Atraso,
. – Ela afastou suas mãos e cruzou seus braços. – Essa história de relacionamento
a distancia já é difícil pra um casal normal. Pra gente é pior ainda.
- Por que você tá falando isso? – Eu estava perdendo o controle de novo, eu
estava levantando a voz de novo, mas eu não conseguia evitar. Encarei aquilo
que ela falou como uma crítica e não como a realidade.
- Porque além de você ser meu primo... – Era sempre muito estranho quando alguém
me lembrava disso, já que nós nunca nos vimos dessa maneira. - você é extremamente
ciumento e fez desses últimos meses um inferno pra mim! – Eu não era o único
que gritava, mas ela tinha uma certa razão na parte do ciumento e tal. Mas isso
não era motivo para terminar tudo!
- Eu sei de tudo isso! Mas... mas.. – Eu não sabia o que falar. Essa era a verdade,
eu simplesmente não sabia o que poderia falar para consertar tudo aquilo. A
única coisa que queria era consertar aquilo. – A gente se entendeu, a gente
se entendeu ontem a noite!
Certo, eu estava desesperado.
Ela deu uma meia risada sarcástica e virou os olhos.
Cínica.
Eu lembro muito bem daqueles barulhos que ela tinha feito noite passada e acredite,
esses barulhos só são emitidos quando se está com o
. Eu sou realmente foda nessa parte. Ninguém pode negar, muito menos ela.
- A gente sempre se entende na cama,
. – O robô sem emoções tinha tomado conta do corpo da minha namorada. – Mas
isso não é o suficiente! Eu não quero desperdiçar tanto tempo em algo que eu
sei que é impossível.
O robô tinha passado dos limites.
- Eu sei o que você tá fazendo! Você já fez isso antes...Você fala esse monte
de besteiras pra me magoar e me afastar, mas você sabe melhor do que eu que
você não sente isso!
Ela estava perdendo a paciência. Estava perdendo a paciência porque ela não
estava conseguindo controlar tudo perfeitamente, ela não estava me controlando
porque eu sabia que era tudo mentira.
Ela bufou fazendo sua franja voar; se levantou e cruzou os braços.
-
, já passou pela sua cabeça que você não me conhece tão bem assim? – Ela estava
me desafiando. De novo. Mas não estava funcionando. Não funcionava porque em
vez de eu ficar nervoso, eu estava ficando desesperado. Estava desesperado porque
é óbvio para todos que um relacionamento só existe se os dois querem que ele
exista.
Não importava o motivo, o fato era que ela não queria mais.
Eu me decepcionei, eu me decepcionei porque eu achei que nós éramos para sempre
e eu achei que ela concordasse comigo. Eu me decepcionei porque ela tinha desistido
de nós. Ela tinha desistido enquanto eu ainda estava disposto a absolutamente
tudo.
Foi ai que eu também desisti.
Eu fiquei ali em silêncio; esse conflito interno crescendo dentro de mim: eu
não sabia o que doía mais a minha desistência ou a dela.
Ela se sentou do outro lado da cama, de costas para mim e eu procurei minhas
roupas pelo chão para poder ir embora o mais rápido possível. Aquele quarto
me sufocava, aquele país me sufocava.
Eu sabia que ela estava sentindo a mesma coisa que eu. Porque nós nos amávamos
e nós tínhamos desistido.
Eu podia ter tentado alguma coisa, eu podia ter implorado, eu podia tê-la beijado,
afinal nossa sintonia física sempre foi mais forte do que tudo, mas eu não tentei
nada. Eu não tentei nada porque eu tinha desistido, porque ela tinha desistido.
Sai de lá sem olhar para trás.
Um mundo de novas possibilidades se abriu para mim.
E eu não queria nenhuma delas.
Fazia 223 dias que a
tinha terminado comigo e eu continuava fazendo contas idiotas sobre coisas inúteis.
Não podia evitar.
Eu fui para Paris duas vezes depois daquilo. Nas duas, não tive coragem de sair
do parque do outro lado da rua e ir bater na porta dela. Nas duas, o medo de
ser rejeitado, o medo de encontrá-la feliz com outro foram maiores do que tudo.
Eu sou um fraco e eu sou o pior Romeu que já existiu.
Mas ela que tinha terminado, ela não queria mais e eu não seria aquele namorado
perseguidor que não se conforma com o fim do relacionamento. Bem, eu não me
conformava com o fim do relacionamento, mas eu não ia ficar perseguindo a
. Eu tinha um mísero orgulho próprio e uma vida própria.
Falando em vida, a minha tinha mudado radicalmente nesses últimos 113 dias.
Não só por causa da
. Quer dizer, por causa dela, ou melhor dizendo, da falta dela, as coisas ficaram
mais difíceis, menos divertidas, mais tristes.
Eu sei que estou soando como uma adolescente de filme tosco de novo. Acredite,
isso me incomoda muito.
,
e
falaram que iam me expulsar da banda porque eu só estava escrevendo letras para
depressivos chutados. Segundo eles, eu deveria procurar por uma vaga de
no Boys Like Girls. Eu mandei eles a merda e falei que os caras do Boys Like
Girls eram muito melhor do que eles. Eles riram da minha cara.
Mas com o tempo, eu fui me adaptando a minha nova vida, a minha vida sem a
e tudo ficou mais fácil depois que a minha banda assinou contrato com uma gravadora
grande.
Tudo foi muito rápido. Um dia, eu estava tocando nessa festa tosca de alguém
da escola, no outro, eu acordei com duas garotas na minha cama. Foi assim mesmo,
literalmente.
O que aconteceu foi, o filho de um cara da gravadora estava na festa, filmou
a gente tocando (já que nós somos fodas) e mandou para o pai. Nós assinamos
contrato no dia seguinte, a gravadora nos deu uma festa e ai, eu acordei com
as duas garotas na minha cama.
O pior é que eu nem lembro de nada. Eu estava bêbado demais.
Mas isso não interessa, o que interessa é que eu larguei a escola, larguei a
casa dos meus pais (agora, eu,
,
e
dividimos uma casa no centro da cidade, mais perto dos nossos compromissos,
e a melhor parte é que a gravadora paga tudo), gravei um cd, gravei clipes,
apareci na televisão e não posso mais ir em lugares movimentados.
Ah sim, eu também tenho um estoque inacabável de mulheres. Se quando eu não
era famoso elas já não resistiam a mim, agora que eu sou famoso é um negócio
fora de controle. Elas simplesmente brotam do chão.
Veja bem, não estou reclamando, longe de mim!
Apesar de eu estar vivendo o meu sonho, eu acordo todo dia; olho para garota
que está do meu lado; vejo que ela não é a
e sinto que tem alguma coisa faltando.
Nós nunca mais nos vimos ou nos falamos. Eu fiquei esperando a sua ligação.
Eu tinha certeza que ela me ligaria assim que ela soubesse que McFly tinha conseguido.
Eu esperei. Nos primeiros dias o telefone não parava de tocar, mas nunca era
ela.
As minhas tão merecidas férias tinham chegado. A gente não tinha parado desde
que tinha sido contratado e eu precisava vegetar em casa urgentemente. Tudo
o que eu queria era comer pizza no café da manhã, no almoço e no jantar; fazer
campeonato de videogame com os caras a tarde toda e ir para alguma festa à noite,
onde eu conheceria a pessoa que me faria companhia naquela madrugada.
Utopia.
Utopia que teria que ser adiada, já que eu tinha recebido um telefonema dos
meus avós uma semana atrás e eles tinham marcado um jantar bem para o primeiro
dia das minhas férias.
Minha família me sabota, é impressionante!
Depois de ganhar dos losers dos meus amigos no videogame, peguei meu carro...Sim,
carro. Sim, estou motorizado. Sim, eu não estou apenas motorizado, eu tenho
um Peugeot azul marinho conversível que segundo uma mina que eu peguei outro
dia, combina com os meus olhos.
Eu tenho que ouvir cada bosta.
A única coisa que faz eu gostar menos do meu carro é que ele é francês.
Enfim, peguei o meu carro e dirigi os 40 minutos que me separavam de Kent, onde
meus avós moravam.
A casa deles era esse negócio imenso de pedra que devia ser mais velho que a
Tower Bridge. Na frente dela tinha jardins, fontes e o caralho a quatro. Estacionei
o meu bebê entre a escadaria de entrada e uma das fonte.
Saí do carro carregando minha mochila. Sempre passava a noite lá quando os visitava
já que eles nunca deixavam eu dirigir até Londres tarde da noite. Era mais fácil
levar as minhas próprias roupas para não acabar vestindo o pijama de flanela
do meu avô. Um vento gelado de outono soprava e fazia eu sentir saudades do
verão. Não exatamente do verão porque o verão tinha sido uma bosta porque foi
na época que a
me chutou, mas do clima... Ah, você me entendeu...
Tirei meu maço de cigarros do bolso e acendi um cigarro. Sabia que não fumaria
lá dentro, a não ser que eu quisesse que a minha avó tivesse uma isquemia cerebral
ou coisa parecida.
Aproveitei meu cigarro me lamentando por estar longe da minha rotina fútil e
insignificante. Fútil e insignificante, mas era a minha rotina e ela dava certo
para mim apesar dos momentos crise-de-abstinência-da-
que estavam praticamente superados.
Também não é que eu não goste dos meus avós. Eles são velhinhos legais, cara.
Sempre me deram os presentes que eu pedi e sempre tiveram um papo legal. Muito
melhor do que o dos meus pais.
Eles são aquele casal tipicamente inglês, que tem o sotaque igual ao da rainha,
caça nos finais de semana e toma chá todos os dias às cinco em ponto.
O que acontecia era que eu simplesmente não queria vê-los porque eu sabia que
eles fariam eu me lembrar da
e o que eu mais fazia era tentar esquecê-la. Eu nunca pensava nela, mas ela
sempre estava na minha mente.
Mas, sim, ela também é neta deles.
Mas, não, eles não sabem de todo o episódio incesto.
Até parece que se eles soubessem eles estariam me convidando para o jantar...
O gosto amargo do filtro do cigarro fez com que eu parasse de não pensar na
e percebesse que estava na hora de entrar. Joguei a bituca no chão, a apaguei
com o pé e a escondi da melhor maneira possível, jogando pedrinhas em cima.
Subi as escadas e toquei a campainha da imensa porta da imensa casa dos meus
avós.
Pelo vidro no alto da porta, vi a empregada se aproximando. Ela abriu a porta,
fez sinal para que eu entrasse e depois ficou parada como um daqueles soldados
que fazem a guarda da rainha. Até que o uniforme dela me lembrava um pouco o
uniforme deles...
Ela fechou a porta logo depois que eu entrei e falou num tom sério e rápido:
- Seus avós o esperam na sala de visitas. Posso levar a sua mala? – Ela perguntou
e antes que eu pudesse responder qualquer coisa, ela arrancou a mochila das
minhas costas com um movimento ninja.
Se eu não soubesse onde era a sala de visitas, eu estaria fodido, já que a soldada
sumiu de vista em poucos segundos levando a minha mochila junto.
A minha sorte era que eu já tinha estado ali dezenas de vezes.
Entrei na sala de jantar e de lá já ouvi vozes. Nada que eu conseguisse entender
claramente. Fiquei prestando atenção conforme eu me aproximava, mas as vozes
só ficaram claras quando eu estava parado na porta da sala de visitas. Paralisado.
Paralisado porque a minha prima estava sentada no sofá pomposo e vermelho em
frente ao sofá pomposo e vermelho que meus avós estavam sentados; paralisado
porque o meu pulmão não me obedecia mais e não estava mais me provendo oxigênio;
paralisado porque eu não sentia mais as minhas pernas ou qualquer outra parte
do meu corpo que não fosse meu coração. Meu coração eu sentia até demais já
que ele parecia mais uma bateria.
Ela estava lá. Linda. Absolutamente linda, mais linda do que eu podia me lembrar
e eu sempre lembrei dela muito linda. Seu cabelo não estava mais absurdamente
comprido, agora estava curto. Curto o bastante para que eu visse seu pescoço
e lembrasse de como ele era macio. Eu não conseguia reparar em detalhes, mas
ela usava cinza e eu queria que aquela peça de roupa se desfizesse.
- Meu garoto! – Meu avô exclamou quando me viu e eu acabei me assustando já
que estava tão concentrado em processar aquela nova informação: a
estava ali.
Eu não fui o único que se assustou. A expressão na cara da
deixou bem claro que ela sabia da minha presença tanto quanto eu sabia da dela.
Depois, ela sorriu. O sorriso tarado.
Andei até eles, ganhei um abraço do meu avô que quase quebrou as minhas costelas
e depois uns tapas no ombro que quase fizeram eu desmontar. Meu avô era grande,
ok? Eu estava num momento delicado, ok?
Minha avó me abraçou rapidamente, ela nunca foi uma avó muito coruja, e depois
me afastou para que ela me observasse. Torci para que ela não reparasse que
eu estava a ponto de ter um ataque cardíaco por causa da neta dela. Ela arrumou
a gola da minha camisa (sim, camisa, meus avós são old fashion e curtem pessoas
vestidas como advogados na casa deles. Se bem, que eu vestia calças largas e
tênis DC além da camisa), fez uma cara de satisfeita e falou:
- Vou te comprar calças novas,
.
Nós dois sabíamos que ela estava brincando porque ela me olhou daquele jeito
que só avós te olham, aquele jeito que dá vontade de abraçá-la e pedir colo
como se você tivesse dois anos de idade.
Bem que eu precisava de colo e suporte emocional naquela hora.
A
era a próxima. Me virei em sua direção e ela se levantou. Pude ver que a odiada
peça de roupa cinza era um vestido, que ela usava as mesmas botas de cowboy
da última vez que eu a vi e que ela continuava mais gostosa que a Fergie. Muito
mais, aliás.
Ela agiu com toda a naturalidade que faltava em mim. Passou seus braços pelo
meu pescoço fazendo eu sentir aquele tão adorado e familiar perfume. Coloquei
as mãos em sua cintura meio que com medo de que ela sumisse ou que eu levasse
um choque ou coisa que o valha.
Ela não sumiu e eu não levei um choque.
Foi maravilhoso, na verdade.
Ela beijou minha bochecha e propositadamente/acidentalmente beijou o canto dos
meus lábios.
Ela me deixava maluco.
- Sente-se,
. – Meu avô falou e me deu um tapa que me jogou no sofá, bem ao lado da
.
O sofá era bem grande, mas minha perna tocava a dela e eu me sentia eletrizado.
- A
estava nos contando de Paris antes de você chegar,
. – Minha avó comentou, tentando engrenar uma conversa.
É claro, Paris. Queria que Paris e aquela torre fétida se explodissem.
- Como é Paris no outono? – Perguntei já me arrependendo de ter falado aquilo.
Tinha soado extremamente gay.
“Como é Paris no outono?”
Por que eu faço essas coisas comigo mesmo?
- Não sei. – Foi o que ela respondeu e eu me surpreendi. – Fui embora de lá
no fim do verão.
Não pude deixar de sorrir.
- Você voltou pra Inglaterra, então? – Perguntei apenas para confirmar, fingindo
que não dava a mínima.
Ela fez que sim com a cabeça enquanto mordia seu lábio inferior e me deixava
levemente tonto.
- Que tipo de primos são vocês que nem sabem um da vida do outro? – Minha avó
perguntou.
O tipo de primos que também são ex-namorados.
Nós não respondemos isso; apenas rimos sem graça.
- Joan, o que eu vou ter que fazer para que a sua empregada me sirva whisky?
– Meu avô perguntou com a clara intenção de provocar a minha avó.
- Ela também é sua empregada, Benjamin e eu acho que vou ter que mandá-la de
volta para a Polônia e encontrar outra que te sirva whisky!
Às vezes, meus avós fazem com que eu me sinta num jantar de sexta à noite da
família Gilmore.
Vovó levantou-se, foi até o bar atrás do sofá onde ela estava sentada e começou
a preparar copos de bebida.
- Você já arrumou um lugar para morar em Londres,
? – Meu avô perguntou a
enquanto minha avó lhe entregava um copo com whisky de uns 300 anos de idade.
Ela estava em Londres. Morando em Londres.
Eu estava hiperventilando, talvez eu precisasse dum saquinho.
- Por enquanto eu vou morar no campus da universidade mesmo... – Ela respondeu
e eu me enchi de orgulho porque ela estava na universidade. Ela era tão foda.
– Mas com o tempo eu vejo um lugar melhor. – Ela acrescentou.
Fiquei imaginando em qual universidade ela teria se matriculado.
- O que você quer beber,
, querido? – A voz da minha avó me despertou.
- Whisky com gelo, por favor. – Respondi automaticamente e reparei que e
já tomava uma taça de vinho branco.
- Bem, você sabe que pode ficar na nossa casa em South Kesington, certo, Joan?
– Meu avô continuou sua conversa com a minha prima pedindo o apoio da vovó.
- É claro, seria uma alegria tê-la lá, querida.
- Obrigada, vou pensar no assunto. – Ela respondeu, mas tenho certeza que preferiria
morar de baixo da ponte do que morar num bairro esnobe como South Kensington.
- Pra qual universidade você vai,
? – Perguntei.
- De Londres. – Ela respondeu sem olhar na minha cara e depois deu um gole em
seu vinho.
Tenho certeza que ela preferiria uma cerveja.
Eu também.
Reparei na marca de batom na taça. Ela sempre me sujava de batom porque nós
nunca podíamos esperar que ela o tirasse para nos beijarmos.
Eu queria agarrá-la ali mesmo.
- E você,
? – Vovó perguntou sentando-se ao lado do meu avô com um copo de whisky na mão.
– Como é ser uma celebridade?
Agradeci por alguém ter tirado aqueles pensamentos da minha cabeça.
Eu ri.
- É igualzinho ser um desconhecido, a única diferença é que agora eu recebo
calcinhas pelo correio. – Falei apenas para deixar a
enciumada.
Sem sucesso, é claro.
Mas não era mentira. Eu tinha recebido uma fio dental pink na semana passada.
- Sabe,
, nós estamos orgulhosos de você. – Vovô falou ficando sério de repente. – Nós
sempre soubemos que o gene artístico estava na família, só estávamos esperando
que ele se manifestasse.
Às vezes ele realmente se esquecia de que nós não dividíamos gene algum.
Eu agradeci com a cabeça meio sem graça e lancei um olhar para a
. Mais um olhar. Eu tentava observar todos os seus movimentos para tentar saber
o que ela estava pensando ou sentindo. Mas eu estava sem prática e estava nervoso,
fazendo com que eu mal conseguisse contar até dez, quem diria entendê-la.
- O jantar está na mesa. – A soldada anunciou da porta da sala e depois sumiu.
- Espero que vocês gostem de carneiro. – Minha avó falou se levantando.
A
não gostava e eu passei todo o jantar assistindo ela comer as ervilhas, a cenoura,
a batata e todo o resto enquanto picava a carne bem pequena e a espalhava pelo
prato. Também assisti à maneira como ela limpava a boca delicadamente com o
guardanapo de pano, à maneira como os talheres chegavam a sua boca, à maneira
como sua boca se mexia ao mastigar, à maneira como sua boca parecia mais vermelha
quando vista através do copo de vidro.
Sim, eu estava hipnotizado pela boca dela.
De novo.
Achei que já tivesse passado dessa fase. Mas, aparentemente, não tinha já que
eu tinha que me esforçar para não esquecer de comer, respirar e etc.
Mas ela estava distante e aquilo estava me matando. Depois de tudo que nós tínhamos
passado, ela estava agindo como aquela garota fria de um ano atrás. Eu não estava
entendendo mais nada e aquilo me perturbava tanto que eu mesmo comecei a picar
a minha carne em pedaços minúsculos e a espalhá-la pelo prato.
Eu não sabia bem o que estava acontecendo, mas algo fazia com que eu batesse
com os talheres freneticamente no prato.
Eu estava nervoso. A presença dela estava me deixando nervoso. Saber que ela
estava tão próxima me deixava nervoso. Saber que eu não podia fazer nada me
deixava nervoso.
Encarava meu prato de comida porque não conseguia mais olhar para ela.
Ela era tudo que eu queria e tudo o que eu não teria.
Senti uma gosta de suor frio descer pelas minhas costas e me arrepiei. Olhei
para os lados e me deparei com todos me encarando assustados. Todos mesmo, inclusive
ela.
Me senti tonto.
Ela me olhou como me olhava quando estávamos só nós dois, como na época que
eu lia seus pensamentos e ela lia os meus.
Me senti mais tonto.
Me levantei mais abruptamente do que tinha intenção.
- Com licença.
Foi o que falei antes de sair correndo da sala e subir as escadas até o meu
quarto. Ele estava escuro, mas uma claridade cinza entrava pelas grandes janelas
de vidro e o deixava com uma cara gelada apesar da temperatura agradável dali
de dentro.
Fechei a porta atrás de mim e encostei meu corpo nela mesma. Não consegui me
movimentar até a cama ou um lugar mais confortável. Minha respiração estava
rápida e descompassada.
Eu já sabia que não a tinha superado, mas achei que tivesse pelo menos no caminho
certo. Estava errado. Apenas a presença dela fazia com que eu suasse frio, esquecesse
de respirar e perdesse a cabeça.
Entrei no banheiro e tirei as roupas o mais rápido que pude. As joguei no chão
e abri a torneira gelada.
Entrei debaixo do chuveiro de uma vez, sentindo o impacto da água gelada no
meu corpo. Era um sofrimento, mas eu precisava daquilo. Fui me acalmando aos
poucos e por incrível que pareça, consegui esvaziar a minha cabeça.
Não pensava em nada, não pensava em
, não pensava em família, não pensava em banda, só sentia as gotas geladas massagearem
as minhas costas e encharcarem o meu cabelo.
Fechei a torneira depois que perdi a noção do tempo. Peguei uma toalha felpuda
colocada ali ao lado especialmente para mim e me enrolei nela.
Me olhei no espelho e tive vontade de ser outra pessoa. Aquilo nunca tinha acontecido
antes e eu me sentir como um intruso dentro da minha própria pele.
Abri a porta do banheiro ainda pensando no que estava acontecendo comigo quando
a vi sentada em cima da cama.
Eu meio que desconfiava que a veria ali.
Eu meio que gostei de ser eu mesmo naquela hora.
Ela estava sentada em cima das mãos e balançava os pés como uma criança. Ela
sorriu docemente fazendo um sorriso tamanho família se instalar em mim. De um
segundo para o outro eu esqueci da minha pequena crise nervosa.
- Você tá bem? – Ela perguntou preocupada e eu adorei o fato dela estar preocupada
comigo.
Fiz que sim com a cabeça enquanto caminhava até ela como se fosse um imã. Ela
sorriu e fez cara de tarada. Aposto que a minha estava pior que a dela já que
só o que eu pensava era que eu precisava dela.
Cheguei ao pé da cama e senti sua mão deslizar pela minha barriga até o meu
pescoço. Senti urubus no meu estômago. Ela me puxou e caímos sobre a cama. Nossas
bocas logo se encontraram e trataram de tirar aqueles 223 dias de atraso. Seu
corpo estava quente e o meu gelado fazendo com que aquilo que já tínhamos feito
centenas de vezes ficasse com um gostinho de coisa nova.
O tecido de seu vestido ficava preso ao meu corpo já que ele continuava molhado.
Aquele vestido estava atrapalhando. Desci as minhas mãos até suas pernas e comecei
a levantar a barra dele. Ela intensificava o beijo conforme minha mão e sua
roupa subiam. Aproveitei o segundo que paramos de nos beijar para que o vestido
passasse por sua cabeça para recuperar o fôlego.
Por que ela sempre me deixava sem fôlego?
Tanto tempo juntos e eu ainda não tinha chegado a uma conclusão.
Senti sua mão na minha toalha e num movimento rápido ela a arrancou e num movimento
mais rápido ainda ela se colocou por cima de mim e deu uma risadinha vitoriosa.
Sempre por cima.
E eu nem ligava.
E eu meio que gostava.
Ela dava chupões no meu pescoço enquanto eu sentia os urubus fazerem festa na
minha barriga e tentava abrir seu sutiã.
Por que ela sempre fazia animais estranhos habitarem a minha barriga?
Tanto tempo juntos e eu ainda não tinha chegado a uma conclusão.
Ele foi para o chão (o sutiã, eu digo), assim como aquela calcinha mínima. Coloquei
minhas mãos no começo de suas costas e a puxei para mais perto de mim até que
nossas pernas se encaixassem e eu sentisse ela segurar forte nos meus cabelos
e parar a sua respiração. A minha também parou.
Por que ela sempre fazia a minha respiração parar?
Tanto tempo juntos e eu ainda não tinha chegado a uma conclusão.
Eu realmente gostei de ser eu mesmo naquela hora.
Ela soltou o peso de seu corpo cansado (o que eu posso dizer? Eu sou foda) em
cima do meu. Senti sua respiração falha e rápida acompanhar a minha respiração
falha e rápida. Passei uma das mãos pelo seu cabelo que agora estava tão curtinho
e tão sexy. Passei a outra mão por suas costas que estavam úmidas de suor (o
que eu posso dizer? Eu sou foda). Senti seu perfume e fechei os olhos porque
aquilo não parecia real.
Parecia uma memória ou então um dos meus sonhos acordados.
Mas era real.
- Eu te amo.
Falei sem pensar. Foi algo totalmente espontâneo, mas verdadeiro.
Era isso ai, ela me deixava sem fôlego porque eu a amava; ela fazia animais
estranhos habitarem a minha barriga porque eu a amava; ela fazia a minha respiração
parar porque eu amava.
Ela beijou meu peito e o acariciou. Deslizou para o meu lado, mas ainda manteve-se
grudada ao meu corpo, com uma das pernas em cima da minha.
apoiou sua cabeça em meu ombro e sussurrou na minha orelha:
- Eu também te amo.
Senti como se nós nunca tivéssemos nos afastado; tudo estava como sempre; tudo
estava perfeito.
Nós dois estávamos cansados, mas nem ligávamos para isso. Dormir era a última
coisa que faríamos.
Mas não é só de sexo que se faz um casal.
Eu amava conversar com a
; amava ouvir sobre o seu dia; amava ouvir suas opiniões (e acredite, ela tinha
opiniões em todos os assuntos); amava ouvir suas tiradas engraçadas e inteligentes
(sempre tentava repeti-las para as outras pessoas, mas sabia que eu nunca pareceria
tão legal quanto ela); amava ouvir seus movimentos e amava ouvir sua respiração.
Passamos horas conversando, mas no entanto, não conseguíamos não nos tocar.
Foram horas ouvindo sua voz; horas descobrindo o que tinha sido a vida dela
naqueles últimos 223 dias. Ela tinha acabado a escola, sido aceita em todas
as universidades que tinha se inscrito, voltado para Londres, arrumado um emprego
que ela amava numa galeria de arte e o que eu mais gostei de ouvir, ela tinha
sentido a minha falta.
Aproveitamos nossas companhias até que nós dois caíssemos no sono.
Não tem nada melhor do que dormir abraçado com a garota que você ama.
-
! – Ouvi uma voz distante falar, mas estava com muito sono para reconhecer meu
nome. Eu tinha dormido muito bem, como eu não dormia há tempos. –
! – A voz continuou e dessa vez senti pequenos cutucões que depois se transformaram
em beijos. Beijo na boca, beijo na bochecha, beijo no olho (é bom, tente), beijo
no pescoço, beijo na orelha, mordida na orelha. Me despertei rapidamente e sorri.
–
, você precisa acordar! –
falou numa voz animada e senti ela pulando da cama.
Queria que ela voltasse para lá.
Abri meus olhos devagar, com a claridade machucando-os. Me apoiei nos cotovelos
e vi que ela andava de um lado para outro. Reparei que ela estava de calcinha,
sutiã e botas; reparei que eu realmente queria que ela voltasse para a cama;
reparei que ela parecia ocupada e elétrica.
- O que você tá fazendo,
? – Perguntei com a cabeça ainda tonta de sono.
Ela não respondeu, apenas jogou em cima de mim o que eu depois conclui serem
as minhas roupas.
- Vista-se,
! – Ela falou enquanto enfiava o vestido cinza pela cabeça e acabava com as
minhas últimas esperanças de que ela voltasse para a cama.
Achei melhor me vestir, principalmente porque eu sempre faço o que me mandam
fazer quando eu estou semi-acordado.
Essa história de estar semi-acordado é bem perigosa. Já tinha atendido o telefone
dormindo várias vezes. Só acordava quando já tinha conversado com a pessoa por
uns cinco minutos. Desse jeito que eu sempre acabava tendo que sair com as garotas
mais escrotas; elas sempre ligavam quando eu estava dormindo. A única coisa
que eu lembrava ao acordar era que tinha um encontro. Quando chegava no lugar,
um filhote de cruz-credo me esperava.
Mas voltando ao que eu estava falando, nesse dia só acordei mesmo quando reparei
que a
estava sentada no banco do motorista do meu carro e eu estava ao seu lado.
- Wow! – Exclamei. – O que você tá fazendo? – Perguntei em pânico. Ninguém dirigia
meu carro. Ninguém! Não deixava nem que manobristas encostassem nele.
- Calma. – Ela respondeu enquanto se perdia dentro de sua bolsa em busca de
alguma coisa e ligava o motor.
-
, deixa eu dirigir! - Ela me ignorou e deu marcha ré enquanto tirava seus óculos
de dentro da bolsa. –
, presta atenção, por favor!
- Relaxa,
! – Ela respondeu sorrindo e colocando seus óculos estilo celebridade que não
quer ser fotografada.
E eu relaxei. Porque ela ficava maravilhosa dirigindo o meu carro maravilhoso.
- Onde a gente tá indo? – Perguntei quando a vi sair da propriedade dos meus
avôs.
A manhã estava clara, com um sol de verão apesar de ser outono. O vento fazia
nossos cabelos voarem e o dela ficar ainda mais charmoso.
- A gente tá fugindo!
Olhei para ela imaginando se estava ficando louco, se estava ouvindo coisas...
Ela olhava para a rua a nossa frente, mas eu podia ver o canto da sua boca sorrindo.
- O quê? – Perguntei confuso.
- A gente tá fugindo,
! – Ela falou olhando pra mim e sorrindo.
Eu não conseguia conter a minha felicidade, apesar de ainda não saber exatamente
o que “fugir” significava naquele contexto.
- O que você quer dizer com “fugir”?
Ela diminuiu a velocidade do carro e parou no acostamento. Eu só a olhava ansioso
pela resposta.
- Quero dizer que nós vamos para Glasgow passar as férias e depois a gente vai
comprar um apartamento em Londres!
Tentava processar tantas informações e não conseguia pronunciar palavra alguma.
Ela reparou no meu choque, riu e depois beijou os meus lábios.
- Mas e...? – Eu não terminei a frase que eu mal consegui começar.
- A gente não precisa mais deles,
. – Ela falou se referindo aos nossos pais. – Nós dois somos maiores de idade,
nós dois temos um emprego... – Tudo fazia tanto sentido enquanto ela falava
que eu fiquei com uma pequena inveja por não ter tido essa idéia antes. – E
eu vou ficar com você pra sempre e eu nunca vou deixar de te amar.
– Eu realmente não conseguia mais falar. – Eles podem aceitar isso ou não, não
me importa! – Ela sorriu, beijou a minha boca com ternura, ligou o carro e o
rádio.
Silverstein começou a tocar e eu ia ficar com ela para sempre e nunca
deixaria de amar a
.
FIM
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