Finalizada em: 10/03/2021


Solo hay que vivir
Solo hay que sentir
Y cantar esta melodía
Y bailar sin temer

No dejarse vencer
Porque hoy no fue un buen dia
Que la lluvia te moja la piel
Pero nunca el corazón


1 —


Está um dia lindo e ensolarado lá fora. Pelo corredores de Summerside Shelter, no entanto, os dias parecem iguais, e as cores são sempre as mesmas: diferentes nuances de bege e branco, das paredes aos impecáveis uniformes dos funcionários, exatamente como o que usara por muito tempo.
Não ter que usar mais aquela coisa é um alívio. Ver a própria imagem no espelho todo dia pela manhã sempre acompanhada de molduras sem vida e cor de vômito a fazia sentir-se doente. Mais sem vida do que os olhares de muitos dos idosos no asilo.
A nova assistente do refeitório passa por no corredor e lhe dá um sorriso. Ainda é sua segunda semana em Summerside, e é claro que as coisas ainda não parecem tão ruins. Mas já esteve no lugar dela.
Jovem, ingênua, sonhadora, com o colete de estagiária bem arrumado e um rabo de cavalo perfeito, tudo como indicava o manual. Iludida pelas aparências do segundo ancionato mais caro de Los Angeles, pelos recrutadores simpáticos e pela linda possibilidade social de passar mais tempo com aqueles que já tinham vivido mais tempo que ela, ansiosa pelas lições de vida e pelos grandes aprendizados.
É claro que os teve. Aprendeu mais coisas ali do que poderia em qualquer lugar do mundo. Afinal de contas, aquelas pessoas, de fato, estiveram em todos os lugares do mundo. Viveram todo tipo de coisa. Foram à guerra, ficaram face a face com Hitler ou fizeram música com John Lennon.
Mas, com o tempo, nada disso pudera suprir o vazio existencial de contemplar a finitude e a solidão da vida. Absolutamente nada.
No começo, contava as partidas. Quantos residentes faleciam. A primeira, apenas três dias depois que começara a trabalhar em Summerside, de pneumonia, a senhora Olson. Depois de duas semanas, seu marido, que morrera dormindo, certamente para encontrar a amada: sessenta anos juntos em vida não haviam sido suficientes.
mantivera a conta por um ano, até perceber que se afundaria em tristeza. Depois, fizera questão de parar de numerar, mas, às vezes, inconsciente e involuntariamente, a conta lhe voltava à mente.
E muitos deles partiam sozinhos, há muito tempo sem receber visitas ou meros telefonemas dos filhos e parentes mais próximos. A tristeza ficava clara em seus olhos quando os outros recebiam visitas, ou em datas especiais.
queria acolhê-los. Todos eles. Talvez por isso nunca deixasse Summerside. Primeiro, dissera que juntaria dinheiro para pagar as despesas da faculdade, mesmo com a bolsa. Depois, decidira ficar quando surgira a oportunidade de sair do refeitório para o setor de atividades, porque trabalhar com a tutora de artes poderia ser uma experiência útil em seu currículo, e um ano a mais não custaria nada, afinal de contas. Então sua mãe perdera o emprego e sair deliberadamente do seu deixara de ser uma possibilidade. Ela precisava ficar em Summerside até as coisas se acertarem. Mas com o tempo passando, a faculdade terminando e a tutora de artes querendo se mudar para a Flórida, não podia descartar as chances promissoras de se tornar a nova tutora.
Poderia finalmente ter seu próprio apartamento e, talvez, um carro novinho em folha.
E ela teve tudo isso. Se tornara tutora de artes em Summerside Shelter dois meses depois de se formar e, em mais quatro, tinha se mudado para seu próprio apartamento, como sempre quisera.
Mas ela passa mais tempo em Summerside do que em casa, de qualquer maneira. Mais tempo em Summerside do que em qualquer lugar.
— Senhorita? — uma voz chama, despertando-a de sua pintura e de seus devaneios, cada vez mais constantes.
— Sim, Jere?
O rosto do senhor fica confuso.
— A senhorita me conhece?
apenas assente. Jere tem dias ótimos, mas dias em que não se lembra de nada das últimas décadas. Às vezes, tudo também acontece no mesmo dia, em questão de minutos. Ele apenas se perde de si mesmo.
O Alzheimer é uma merda., pensa.
— A senhorita sabe onde está a Cece? Ela tem mais ou menos a sua idade e… ela é bem parecida com a senhorita, na verdade. Sim, sim. Ela tem os cabelos tão bonitos quanto os seus. — ele sorri. O mesmo sorriso apaixonado de todas as vezes em que se lembra de sua Cece, seu amor de juventude.
— A Cece já deve estar chegando. — mente.
Já contou essa mentira tantas vezes que, às vezes, também espera que uma linda jovem chamada Cece apareça, com uma roupa bonita dos anos 60 e finalmente preencha o vazio no coração de Jeremiah.
Por vezes, o senhor a confunde com a própria Cece, e o sorriso em seu rosto é tão radiante que tem vontade de chorar. Jeremiah olha para ela com tanto encantamento e tanta ternura que ela deseja profundamente que, um dia, alguém a ame da mesma maneira como aquele homem para sempre amará sua Cece.


2 —


acorda no meio da madrugada, morrendo de sede. Ultimamente, tem sido quase impossível dormir a noite inteira, e ela nem sabe o porquê. Não tem nenhuma grande preocupação, nenhum grande estresse, nada
Talvez seja exatamente isso. A monotonia, a mesma coisa se repetindo todos os dias…
Aprendeu a amar cada um dos residentes de Summerside. Até o senhor Kumar, um indiano de mais de 90 anos que construíra impérios — sim, no plural — em segmentos diferentes, e que conseguia deixar todo mundo estressado. Ele poderia falar por horas a fio sobre as moedas do mundo ou destrinchar o capitalismo, mas estava sempre reclamando de alguma coisa. As coisas finalmente se amenizaram quando conseguiu inserir alguns trabalhos com tecidos às oficinas de artes, e ele pareceu voltar um pouco à infância.
Mas, mesmo com todo o amor que construiu em Summerside Shelter, mesmo com sua vida sendo estável e segura, não é, em nada, parecida com o que ela um dia sonhara.
E, às vezes, não há mal nenhum em sonhar. A gente nunca sabe o que pode encontrar.

Agora totalmente sem sono, abandona a cama de vez, e acende a luz no quartinho de hóspedes que transformou em ateliê. Tem um quadro de pouco mais de um metro e meio em desenvolvimento há mais de três meses. Quando o começou, a ideia era enviá-lo para o concurso de uma galeria de arte em Paris, mas não o finalizara a tempo. Agora, não consegue nem mesmo se recordar da ideia inicial. Aquele quadro pode se tornar qualquer coisa. Ou nada.
Com um pincel de ponta fina preso entre os dentes, mas sem nada em mente, ela se sente prestes a chorar.
O celular vibra no bolso da calça de pijama.
É uma mensagem de sua avó.
Las canciones que yo amo!” e o link para uma música no Youtube.
dá play e deixa a música tocar enquanto responde a avó com um “Você devia ir dormir, abuelita” e tenta se concentrar na pintura pelo que deve ser a milionésima vez.


Mujer si puedes tú con Dios hablar
Pregúntale si yo alguna vez
Te he dejado de adorar
Y al mar espejo de mi corazón

Las veces que me ha visto llorar
La perfidia de tu amor
Te he buscado donde quiera que yo voy
Y no te puedo hallar*



*Perfidia, do compositor Alberto Domínguez.


3 —


Na manhã seguinte, Summerside Shelter está em polvorosa com os últimos preparativos para as comemorações do feriado de 4 de julho.
Alguns dos residentes ainda ajudam na decoração, empenhados em pendurar bandeirinhas por todo canto. Outros estão envolvidos na cozinha, decorando cupcakes com confeitos azuis e vermelhos.
fica feliz por ver algumas das pinturas e esculturas dos participantes da oficina de artes enfeitando o local.
Há uma em específico sobre a qual ela se lembra bem. Uma tela de 15 por 15 centímetros, pintada em tons de cinza, preto e branco. Nela, um casal está de costas, mas de frente para o mar. Os cabelos da mulher seguem a direção do vento, e o braço de seu amado apoia suas costas. Uma gaivota os sobrevoa no céu.
É mais uma das obras de arte de Jere. Não importa se nos dias bons ou maus, ele sempre faz coisas lindas como aquela. Mesmo quando pequenos tremores das mãos abalam os traços, tudo continua lindo.
Jeremiah fora, antes de um residente de Summerside Shelter, um artista famoso. Suas obras estamparam capas de revistas, decoraram vitrines de galerias por todo o globo e foram leiloadas por fortunas durante anos. Até o Alzheimer tomar conta por mais tempo do que ele.
Para os críticos ao redor do mundo, ele poderia ser ignorado e esquecido, mas, para , seu talento estava vivo e fervilhante como sempre.
— É lindo. — se assusta com o rapaz que está ao seu lado. Ela nem o notara ali.
— É, sim.
— Jeremiah . — o rapaz diz, sorrindo.
— Como…?
— Meu avô. — ele explica. — Eu reconheceria suas pinturas em qualquer lugar. Mesmo… mesmo agora. — ele diz a última parte cabisbaixo, com certo pesar, mas rapidamente se recompõe.
O neto de Londres. É claro. É por isso que ele não tem nenhum bronzeado digno de Los Angeles, e seu sotaque é tão diferente.
. — ele diz, estendendo a mão para cumprimentá-la.
— Eu sou a . A…
— Professora de artes! É claro. Meu avô já me falou sobre você no telefone. Nos dias bons.
Jere falara sobre nos dias bons também.
— Ele fala sobre você também. — ela diz.
sorri.
— Você acha… — ele começa, com certo receio impresso na voz. — Que ele poderia se mudar? Digo… sair daqui? De Summerside? Ir para casa comigo?
precisa segurar um sorriso.
É óbvio que Jere merece mais que as paredes de Summerside Shelter. Talvez os paraísos londrinos… o mundo lá fora é imenso. E tudo é possível quando se há alguém disposto a cuidar dele.
— Bem… eu não trabalho com a parte de saúde, então não posso te oferecer nenhuma certeza, . — fala, sabendo que é o mais sensato a se dizer.
O rapaz assente, enfiando as mãos nos bolsos da calça cor de vinho que está vestindo.
— É que estou me mudando para Los Angeles, para uma casa da família. Vou trabalhar de casa quase sempre e, se a equipe médica achar que é razoável, posso contratar mais gente para garantir que ele esteja sempre bem. — parece nervoso como uma criancinha ansiosa. Como se estivesse esperando por aquele momento por muito tempo.
Dessa vez, não segura o sorriso.
— Tenho certeza de que você consegue uma reunião com a equipe médica o mais rápido possível. — diz.
sorri também.
— Obrigado. — ele diz, apertando a mão dela com delicadeza.
olha para as mãos unidas durante aquele instante, e um pensamento estranho lhe cruza a mente, mas, em um milissegundo, já desapareceu.
Jere tem alguém que se importe com ele.


4 —


Três semanas depois que Jeremiah deixa Summerside Shelter com o neto, tudo já está diferente.
A oficina parece mais vazia sem as telas e as tintas de Jere.
Às vezes, sente falta até mesmo de quando ele costumava confundi-la com seu amor de juventude.
era dele. Antes e depois de Summerside.
Jeremiah fazia obras de arte incríveis que ficavam enfileiradas nas bancadas do ateliê de Summerside, ou emolduradas em algumas das paredes nos corredores. “Um de nossos residentes é o famoso pintor Jeremiah !”, diria algum funcionário na tentativa de atrair mais um parente à procura de um lugar para deixar seu idoso.
Ela tinha levado uma para casa. Se sentia péssima por isso, mesmo com o fato de que, quinze minutos depois de terminar de pintá-la, Jere já havia esquecido sobre ela.
Na tela de pouco mais de vinte centímetros de altura, o rosto de uma bela mulher chama atenção, mas é só metade dele. A outra parte se dissolveu, construindo cenas aleatórias que parecem se formar pelo céu: a Torre Eiffel, a Fontana di Trevi, pontos turísticos pelo mundo inteiro. Como se ela nunca estivesse em lugar nenhum, mas por todos eles.
está cobrindo com plástico protetor as mesas do ateliê quando ouve uma batida à porta.
Ela se vira, esperando encontrar a gerente do asilo ali, pronta para reclamar sobre o que quer que fosse, como de costume.
Mas não. É , o neto de Jeremiah. E ele parece tão triste que também fica um pouco, instantaneamente.
— Oi. — ele diz. Para um homem daquele tamanho, ele pode ser muito tímido. — Eu não sei se você lembra de mim, mas eu sou o…
. O neto do Jere. Aconteceu alguma coisa com ele? — está tão preocupada que não consegue esperá-lo terminar de falar.
Hum… não. Não exatamente. — responde. — Ele está bem. Fisicamente. — ele faz uma pausa, olhando ao redor, pelas obras espalhadas pelo ateliê. — Ele tem mais dias ruins do que bons. Com o Alzheimer. Ele fala nela o tempo inteiro.
puxa uma cadeira para ele, que agradece com um aceno de cabeça.
— Esses dias, ele achou que eu fosse o irmão mais novo dele. Falou sobre a minha avó. Sobre quão errado era se casar com ela sem amá-la, mesmo sendo obrigados pelas famílias. Ele queria que eu… quer dizer, que o irmão procurasse por ela e… avisasse sobre a fuga.
— Ele e Cece iam fugir…?
— Não deu certo. Uns dois dias depois de quando ele me disse isso… estava falando sobre como era uma pena que a minha avó tivesse contado para todos sobre o plano da fuga e… a Cece tivesse sido escorraçada de lá. Ele sente… sentia, não sei, muito por nunca ter sido capaz de retribuir de verdade o amor da minha avó por ele.
— Sinto muito, . — é tudo que ela é capaz de dizer.
Ele assente, pegando uma pequena escultura feita em papel machê e segurando-a entre os dedos.
— O verdadeiro motivo para eu estar aqui é que… — suspira, colocando a escultura de volta na mesa. — Eu não conheço mais ninguém que realmente se importe com o meu avô, além de mim. Só você, . — a maneira como ele olha para ela é cheia de súplica. — Eu preciso da sua ajuda. Porque não vou aguentar ver o meu avô morrer de tristeza sem sequer tentar fazer alguma coisa. Qualquer coisa.
não precisa nem pensar.
Qualquer coisa. — ela diz.
assente, a gratidão expressa em seus olhos que lacrimejam. Ele os esfrega com a mão, depois a coloca de volta sobre a mesa.
gentilmente segura a mão dele.
— Nós vamos encontrar a Cece, não vamos? — pergunta, olhando para as mãos dos dois e, depois, diretamente nos olhos de .
— Vamos. — ela responde, assentindo. — Nós vamos encontrar a Cece.


5 —


A casa onde Jeremiah mora com o neto é maior que qualquer outra que já tenha visto tão de perto.
É tão grande, majestosa e imponente que parece um museu. Um museu dos importantes. Um museu digno de Jere.
É claro que existem milhares de casas imensas em Los Angeles, mas nunca chegou tão perto de uma. E nenhuma era tão bonita.
— É linda, não é? — pergunta, seguindo seu olhar. — Algumas partes foram reformadas umas cem vezes, mas a maioria é original. Minha tia mais chata morava aqui até ano passado. Meu avô não gosta muito do que ela fez com a casa, então se apropriou daquela parte. — ele aponta um trecho menor da construção, mais antigo e com mais marcas do tempo.
consegue ver por uma das janelas que é lá que Jere está, rabiscando uma folha em um cavalete. Às vezes ele só rabisca.
— E então… o que temos sobre Cece? — pergunta, reparando em um busto próximo à janela do ateliê.
suspira.
— Devo ser sincero com você, . Não temos nada. As únicas pessoas que também a conheceram já faleceram e, além de todos os registros que meu avô fez dela na arte, não consigo encontrar nada. — ele olha para , para analisar sua expressão. Ela permanece calma por fora, embora esteja preocupada.
E se não conseguirem? E se não encontrarem a Cece?
— Meu avô acha… às vezes, que você é a Cece. Ele fala sobre… a garota na oficina de artes, com os longos cabelos e os olhos que brilham... e que ele não sabia que a Cece sabia pintar.
Quase ao mesmo tempo, Jeremiah parece notá-los do ateliê. Seus olhos se iluminam quando vê .
— Ela devia se parecer comigo. — murmura.
— Ele sempre diz que ela era linda. — diz.
sente o rosto corar, e não ousa olhar de volta para . Mas ele também está vermelho depois de perceber o que sua fala sugere.
Mas é verdade.
é linda. Qualquer um perceberia isso.
— Então… quer começar a revirar arquivos antigos? — ele pergunta, com um sorrisinho brincalhão no rosto.
sorri também.
— Pensei que nunca fosse perguntar.


6 —


Eles estão sentados no escritório, um cômodo amplo que deixa todas as cores do pôr do sol entrarem, marcando as peças de arte, os porta-retratos e as fileiras de papéis sobre a mesa.
— Não estou vendo nada de antes dos filhos. Se a Cece foi antes do casamento com a sua avó… não vamos encontrar nada dela aqui. — diz, desanimada.
esfrega o rosto com as duas mãos, querendo espantar o cansaço.
— Desculpe. — ele diz. — É que… não sei porque pensei que seria tão fácil. — ele solta um risinho nervoso. — Desculpe se estou sendo grosseiro, é só o cansaço falando mais alto.
assente.
— Você não está sendo grosseiro. Não se preocupe. Nós vamos pensar em outra coisa.
suspira, de olhos fechados, com a cabeça pendurada para trás na cadeira.
— Sabe… tudo que eu faço é pensar. — diz, absorto. — Eu sou um escritor, preciso pensar o tempo inteiro para a minha criatividade funcionar. Quando estou trabalhando como editor, preciso pensar no que é melhor para aquela obra e como preencher lacunas que o autor nem percebeu que deixou para trás. — ele fica em silêncio por um momento. Depois, como um estalo, levanta a cabeça e abre os olhos. — Tive uma ideia.
olha para ele, curiosa.
— Preciso clarear a mente. — ele explica. — Vamos à praia?
balança a cabeça, sem entender nada, mas aceita.

***


Eles mal precisam caminhar um minuto para chegar até a praia. A parte reservada logo em frente ao deque é linda, e tem certeza que uma boa equipe de paisagistas fizera um bom trabalho ali, junto à natureza.
— Quando eu era mais novo, vinha aqui o tempo todo com o meu avô. Ele gostava de pintar ao ar livre às vezes, e não houve sequer uma única vez em que esse lugar não tenha me inspirado. Escrevi tanta coisa aqui que seria incapaz de contar.
sorri.
É realmente um lugar inspirador.
— Uma vez comprei um aparelho de som bluetooth para ele, e passávamos um tempão ouvindo Frank Sinatra, músicas em espanhol e algumas que eu apresentava a ele e ele adorava. — sorri, nostálgico. — Ele sempre amou essa casa. Mas não tanto quanto a casa em San Francisco, onde ele cresceu e…
— Espere aí, .
Ele para de falar e olha para , curioso.
— E se estivermos procurando no lugar errado? E se tiver alguma coisa sobre a Cece em San Francisco?
sustenta uma expressão pensativa.
— Você está certa.
se levanta imediatamente.
— Vamos. — ela diz. Seus olhos estão brilhando de ânimo e certeza. Vai para San Francisco. Vai encontrar Cece. Vai dar alguns minutos de felicidade real para Jere.
— Para onde?
— Você é sempre tão confuso?! Para San Francisco! — responde, dando tapinhas na cadeira de madeira pintada de branco em que está.
— San Francisco? Agora?
— Agora! Vamos, !
— São quase seis horas de viagem! — protesta, mas já está levantando.
— Certo. Por isso mesmo, se sairmos agora, podemos chegar bem cedo. O que me diz? — ela o encara com um sorrisinho e olhar persuasivo.
— Digo que você é um monstro. Mas vamos para San Francisco.

***


Quando sobem de volta para a casa, podem ouvir os gritos de Jeremiah com alguém.
— Ele está gritando com a pobre Vera de novo. Provavelmente por causa das fraldas.
franze o cenho. Jeremiah não estava usando fraldas em Summerside.
Percebendo a dúvida dela, explica.
— Tem pouco mais de uma semana que ele começou a dar sinais de incontinência noturna. Levamos ao médico, e já há algum tempo tem algumas coisas erradas com os rins dele. Ele está tomando os remédios e tudo o mais, só que às vezes está perdendo o controle durante a noite. Mas insiste que não precisa das fraldas. — ele suspira, olhando para cima, de onde vem o barulho dos gritos do avô. — Eu meio que o entendo, sabe? Ele viveu uma vida inteira de independência, liberdade, glória e grandeza e agora… agora ele mija na cama. E todo mundo, minha família… eles acham que ele não sabe, que ele não está mais lá, mas ele sabe, ele está lá dentro, . E ele deve odiar depender de nós para isso. Eu odiaria. — seus olhos estão marejados quando termina de falar. No andar de cima, Jeremiah já parou de gritar. — Acho que tenho mais medo de que ele pare de lutar.
não sabe o que dizer.
Nunca ouvira algo assim de um familiar antes. Nunca ouvira algo assim de ninguém. realmente se preocupa com o estado de seu avô.
De repente, ele balança a cabeça e dá de ombros, como se para espantar os pensamentos.
— Vamos para San Francisco. — diz.


7 —


Está chovendo tanto que os limpadores do para-brisa do Jeep de não estão dando conta de manter a visão da estrada clara.
nunca foi muito supersticiosa ou medrosa, mas, agora, está levemente arrependida por ter sugerido que pegassem a estrada à noite sem sequer verificar a previsão do tempo.
— Vamos ter que parar. — diz. — Não estou conseguindo enxergar nada. E, se a gente morrer, meu avô volta para o asilo e nem uma professora de artes decente vai ter.
O olhar preocupado dele é real, mas começa a rir.
— Desculpe. Eu falo essas coisas sem pensar. — parece um cãozinho arrependido. — Minha cabeça cria um monte de cenários o tempo todo.
— Eu entendi. Você é escritor, .
Ele assente.
— Tem uma estalagem a uns três quilômetros. Acha que conseguimos chegar? — mostra o mapa no celular para ele.
— Espero que sim. — ele diz, dando a seta e voltando para a pista.
Não são três quilômetros fáceis, mas logo avistam a pequena estalagem.
É um sobrado minúsculo, localizado quase literalmente no meio do nada, cheio de luzinhas redondas coloridas piscando contra a chuva.
Quando descem do carro, em segundos estão encharcados pela chuva, e pelo cheiro forte de incenso.
Uma mulher de meia idade abre a porta sem que precisem bater.
— Vocês deram tanta sorte! Temos um quarto de casal livre. — ela abre a porta para que eles entrem, mas não espera nenhuma resposta. — Vocês também não sentem que o clima até melhora quando o amor jovem está no ar?
e se entreolham, com os cenhos franzidos e expressões de choque.
— Nós mal nos conhecemos! — se apressa a dizer.
— Ah, esse é o melhor tipo! — a mulher diz, erguendo os braços como se estivesse comemorando. — Vou pegar toalhas e um chá quente para vocês.
Quando ela sai, solta o ar que nem havia percebido estar prendendo.
Uau. — diz. — Ela é… exótica.
— Use de inspiração.
Ele ri.
— Isso sim. Com toda certeza.
Quando a mulher volta, está carregando uma bandeja com duas xícaras de chá, e tem duas toalhas penduradas sobre os ombros.
Ela coloca a bandeja sobre a mesa e distribui as toalhas.
— Meu nome é Janis. É um prazer conhecer vocês…?
. — estica a mão para ela e a cumprimenta.
faz o mesmo.
Janis une as duas mãos perto do queixo e olha para os dois alegremente.
— Que lindo. — ela diz. Depois suspira. — O quarto está limpo, não se preocupem. A chave está na bandeja. — então dá as costas e some.
Os dois ficam em silêncio por um tempão, até colocar a xícara de chá vazia sobre a bandeja novamente.
— Acho que você deve ir primeiro. — ele diz. o encara, sem compreender direito. — Tomar um banho. Para não pegar um resfriado.
— Ah. Sim, sim. Obrigada. — entrega a chave para ela.
Suíte número 1.
dá uma última olhada em enquanto está subindo as escadas.
Não tem a menor ideia do que está pensando.


8 —


Ela coloca as roupas molhadas perto do aquecedor para que estejam pelo menos um pouco menos terríveis ao amanhecer, e se cobre com um roupão fofinho azul celeste da estalagem. Tem cheiro de lavanda e parece fazer carinho no corpo.
se senta na cama, cobrindo o rosto com as mãos. Até deixar-se levar pela água quente do banho e o roupão confortável, não tinha percebido quão cansada estava. Exausta.
Que ideia maluca… quase seis horas de viagem para San Francisco… ideia maluca.

Quando abre os olhos, dá de cara com saindo do banheiro do quarto. se sente uma invasora, mas não consegue fechar os olhos novamente.
Se ele passa tanto tempo sentado, como pode ter um tórax tão forte e um abdômen tão definido?
Ela balança a cabeça, e é aí que nota que ela está acordada.
Ele fica todo vermelho. Toda a pele exposta fica vermelha.
— Ah, desculpe. — ele diz, enquanto dá um nó na toalha na cintura. — Você estava demorando muito e… imaginei que tivesse pegado no sono, então resolvi subir para tomar um banho também. — ele parece muito envergonhado. — Espero que não se importe.
— Não. Tudo bem. — diz, apoiando-se nos cotovelos para sentar-se na cama. — Tem roupões no armário. São fofinhos.
ri da maneira como ela fala.
— Sim. Obrigado por avisar. — ele abre a porta do armário e pega um dos outros roupões disponíveis. — Hum… tem cheiro de lavanda. — no exato momento da constatação, a toalha na cintura de cai, e demora um segundo a mais para fechar os olhos de novo.
Depois, finge que está dormindo.
Mas está só repetindo inúmeras vezes, mentalmente, “meu Deus, que eu não sonhe com a bunda dele”.


9 —


Só que não consegue voltar a dormir.
Ela espera pouco mais de uma hora para sair debaixo do edredom — que ela tem certeza que foi que colocou sobre ela, porque não lembra de ter se coberto — e descer as escadas.
não está dormindo na sala, como ela esperava, mas sentado próximo à janela, escrevendo em um bloquinho de anotações.
— Oi. — ela diz, sentindo-se novamente invasiva. Bom, pelo menos dessa vez ele está mais coberto.
Ele parece se assustar um pouco, mas sorri quando a vê.
— Perdeu o sono? — pergunta, um leve sorriso ainda em seu rosto enquanto volta-se para o papel.
— Acho que dormi o suficiente. — ela responde. — Desculpe. Você quer subir?
Ele balança a cabeça.
— Para falar a verdade, não estou com sono. E, além do mais, se eu me sentir cansado no caminho, você dirige, não é?
assente.
— O que está fazendo? — não consegue evitar perguntar.
— Rabiscando ideias. Para o meu próximo livro. Lugares estranhos e boas companhias podem ser inspiradores.
sorri.
— Janis adoraria ouvir isso.
balança a cabeça.
— Tenho certeza de que sim. — ele olha para o bloco de folhas em sua frente e para . — Quer algumas? Não tenho nenhum material sofisticado de desenho, infelizmente. — diz, apontando, com um sorriso, uma caneta esferográfica azul para ela.
aceita o papel e a caneta sem dúvida alguma do que vai desenhar.


10 —


Summer rain taps at my window
West wind soft as a sweet dream
My love warm as the sunshine
Sittin' here by me, she's here by me-ee-ee*


Eles acordam ao som de Johnny Rivers.
Estão ambos debruçados sobre a mesa e, quando se levantam, ambas as colunas se estalam.
O cheiro de café e ovos é o que realmente os desperta, e é a primeira a bocejar e se levantar, recolhendo as folhas em que desenhou durante a madrugada junto ao corpo como pequenos e secretos tesouros.
— Que horas são? — pergunta, inocentemente, antes de olhar a tela de seu Apple Watch. Depois, olha para e pergunta se ela acha que têm tempo para comerem.
— Pelo amor de Deus. — ela diz.
É domingo e ela não pode se dar o luxo de perder o dia de trabalho na manhã seguinte. Então é melhor que acelerem e deem muita sorte nas buscas na casa de San Francisco.
Mas, agora, ela só está com muita fome.
sobe primeiro para trocar o roupão azul pelas roupas úmidas da noite anterior. Depois, é quem vai.
Ela espera por ele para tomar café na varanda de Janis, onde uma senhorinha toma uma xícara de café e lê o jornal. A pequena cozinha está abarrotada pelos outros hóspedes.
Por um momento, pensa que todos eles viram a ela e de roupão na sala.
Mas ele chega, em suas próprias roupas úmidas, parecendo animado e esperançoso.
Eles permanecem em silêncio por um bom tempo, até que checa o horário no celular e, sentindo-se péssima por interromper o pequeno banquete de ovos e torrada de , ela diz que precisam partir.

*Summer Rain, de Johnny Rivers.


11 —


e chegam à casa em San Francisco pouco mais de uma hora depois.
A casa é grande e linda e, embora muito menor e menos imponente que a residência onde Jere vive agora, ela consegue entender porque ele a prefere.
E também, vira aquele cenário retratado diversas vezes em telas e papéis.
Jeremiah poderia ter qualquer casa, morar em qualquer mansão, mas seu coração sempre teria aquela como lar.
— Parece um pouco abandonada, não é? — pergunta, fechando a porta do carro. — Estive aqui há uns dois anos, eu acho. Ninguém quis morar aqui, mas obedeceram o desejo do vovô de não alugar nem vender. Acho que uma equipe de limpeza vem de vez em quando.
— É o lar dele, .
Eles se encaram com afetuosidade.
— Quero trazê-lo de volta ainda. — ele diz, destrancando a porta. tem certeza de que é dito mais para si mesmo do que para ela.
Por dentro, a casa só parece abandonada por causa do leve cheiro de mofo.
Os sofás antigos — e todos os móveis — estão limpos, tudo está organizado… talvez seja isso. A organização excessiva, e o fato de parecer que está parada no tempo, desde o papel de parede ao tapete no centro da sala.
quer admirar tudo, mas lembra-se de que não têm tempo.
Então se pergunta quanto tempo Cece teve.

***


O escritório fica em um cômodo no andar de cima, iluminado por uma claraboia colorida e janelas antigas empoeiradas.
Não há nenhuma marca que lembre Jeremiah ali. Nenhuma obra de arte, nenhum quadro, pequena escultura ou livro temático. Nada.
Há troféus, medalhas e honrarias para todo lado. No entanto, as fotos de família são escassas: exceto por algumas no console da lareira, não há nada.
reconhece Jere em uma das fotos. Bem mais jovem, ao lado de uma linda moça — sua esposa, avó de — e de três menininhas pequenas.
Mesmo ali, quando ainda lhe tinha tanta vida, era como se uma chama outrora acesa já houvesse sido apagada.

— O único nome que não reconheço nesses documentos aqui é Matilda Saviñón, mas foi uma empregada. Tinha… hum… cinquenta e seis anos na época desse documento. Definitivamente não é a Cece. — diz, entregando os papéis diretamente para .
É claro que não é Cece. Mas ela adoraria que tivesse uma foto. Qualquer foto. De qualquer pessoa diferente. Qualquer pessoa de quem eles pudessem desconfiar.
— Isso é tudo? — ela pergunta, apontando para as pilhas de documentos que já devoraram. está segurando uma última folha na mão. É um recorte de jornal e, de longe, lê o nome “Cecilia”.
Seu coração se acelera no mesmo instante.
— Cecilia? De Cece! — ela diz, empolgada, e quase arranca o papel da mão dele.
O olhar desanimado de a devia ter avisado.
É uma nota de falecimento. Muito antiga. Da avó de Jeremiah.
O coração de se despedaça.
Talvez nunca encontrem Cece.
Ela sente seus olhos se enchendo de lágrimas. Está tão envolvida na história de Jeremiah e sua Cece que não tem mais como voltar atrás. Essa dor é, agora, também sua.
olha para , e os olhos dele também estão marejados, então ela faz a única coisa que lhe vem à mente.
Ela o abraça. E a abraça de volta, porque, neste momento, neste tempo, só os dois entendem aquela dor.
Talvez Cece esteja em algum lugar, também sentindo-se pesarosa pela história que não pôde viver. Sentindo falta dos escassos capítulos que pôde. Perguntando-se por Jeremiah…
Eles não sabem.
Então, neste momento, toda a dor que existe nessa história está ali, condensada e dividida em um abraço que não quer terminar.


12 —


Os cabelos dela seguem a direção do vento.
É claro que não está usando calçados adequados, e seus pés escorregam o tempo todo, causando nele sustos a cada segundo, mas ela só ri. E seu sorriso é
tão lindo, que medo nenhum importa.
Eles escorregam por algumas pedras antes de chegar à praia.
Não há nada de muito especial em Lands End.
Ela só gosta do nome.
E do vento. E do mar rebelde.
Então eles podem se sentar em silêncio por horas, ouvindo apenas o som do mar, o canto dos pássaros e os ocasionais barulhos provocados pelas outras pessoas.
Jeremiah pode pintá-la. Desenhar esboços de seu perfil distraído ou retratos posados que ela permite — com muito custo — que ele faça.
Uma vez, não em Lands End, mas em Ocean Beach, em uma de suas escapadas mais longas, ele a desenhara nua sob o luar. Esse desenho em especial, nunca levara para si. Nunca correra o risco de que alguém além dela visse.
Onde estaria agora?
Jeremiah não consegue se lembrar.
Mas, quando fecha os olhos, sua mãe está rasgando inúmeros retratos de Cece em Lands End.
Ele tem vontade de gritar com ela. De dizer que não é direito seu. Que aquele futuro não lhe pertence.
Que ele quer estar com Cece no dia seguinte. E nas décadas seguintes.
E quando construírem um pequeno labirinto em Lands End, pelo qual Cece se apaixonaria. Mas não consegue dizer nada disso.
Então, tudo que sai por sua boca é:

— Não rasgue! Não rasgue! É tudo que me resta dela!


13 —


coloca o celular de volta sobre a mesa. Seus olhos estão mais cansados do que antes.
— Ele está gritando com a Vera. Alguma coisa sobre a Cece de novo. Estava pedindo “não rasgue”.
— Pinturas. — diz, como se fosse óbvio. Porque é.
Alguém rasgara pinturas de Cece. E ele as refizera durante anos e anos, sem parar.
. Tem que ter alguma coisa aqui. Eu não sei se você acredita em sinais, mas minha avó me ensinou a acreditar. — quando ela percebe que capturou sua atenção outra vez, diz com a voz mais firme: — Estamos no lugar certo.
E tudo muda. Uma energia descomunal toma conta dos dois, e abandona os documentos sobre a mesa. dá passos largos pelo escritório, mas a perscrutar tudo com atenção.
Então ela encontra, ao lado de uma das estantes, quase alvejado na parede, um desenho minúsculo, feito a lápis, mas inconfundível.
É um pirulito. A natureza do desenho é infantil, mas duvida que tenha sido feito na infância.
Embaixo dele, um C ornamentado, tão pequeno quanto e, junto a ele, mas ainda menores, as letras “iempre”.
Siempre. — murmura.
— O quê? — pergunta, indo até ela.
tem os olhos marejados. A beleza e a tristeza daquele grande amor talvez seja muito para ela. Talvez ela não consiga lidar. Ainda mais se não encontrarem Cece.
— Ele escreveu com C. Por causa dela.
— E escreveu aqui para provocar os pais.
— Ela não era daqui, . Se ele escreveu em espanhol, ela não era…
volta correndo à mesa onde estão os documentos.
— Aqui. A empregada. Matilda Saviñon. Ela era do México. Talvez ela tivesse uma filha e… — ele faz uma pausa, preso aos próprios pensamentos. — Imagine só. Se a empregada tinha uma filha, era provavelmente mais velha que meu avô.
— Pobre, mexicana e mais velha. A família dele nunca permitiria.
— Não tem a menor chance dessa senhora estar viva hoje em dia, . Como a gente vai encontrar…?
olha para ele como se tivesse acabado de fazer uma pergunta idiota.
— Vamos ignorar que você tem dinheiro e contatos, e procurar primeiro na edícula. — ela dá um tapinha no ombro dele antes de deixar o escritório, e ouve a gargalhada de atrás de si.
Por algum motivo, não consegue evitar sorrir também.


14 —


não tem uma chave para o cadeado que tranca a porta da edícula.
tem um grampo, mas isso vai longe de funcionar.
Os dois passam alguns segundos encarando a minúscula casa como a um grande desafio — o que, de fato, é — até terem a genial ideia de contorná-la e, sem muita surpresa, encontrar uma porta destrancada.
Eles se encaram antes de entrar, segurando o riso sobre a própria estupidez.
A luz do primeiro cômodo não se acende, e é rápido em ligar a lanterna do celular até encontrar outro interruptor.
A lâmpada que se acende é amarelada, solta um chiado impossível de passar despercebido e esquenta ainda mais o ambiente.
Estão em um quarto.
Um quarto minúsculo, com uma cama beliche e uma pequena cama de solteiro. Entre elas, uma mesinha de cabeceira com um abajur empoeirado e, na parede oposta, um armário com espelho.
A parede perto da cama superior tem marcas esbranquiçadas de fita adesiva. Muitas coisas haviam sido coladas ali.
O quarto tem cheiro de naftalina, mas, por trás disso, tem algo que conhece, mas não é capaz de identificar.
abre o armário, que — é claro — está vazio, exceto por roupas de cama amareladas.
Ele abre as gavetas, e também não há muita coisa ali: só uma bonequinha de tecido muito velha.
Ele a mostra para , que, por qualquer razão que seja, a segura consigo enquanto desmonta a mesinha de cabeceira, procurando algo que possa ter caído entre as gavetas.
Quando não encontra nada, ele parte para a pequena cozinha.
sobe na cama, levanta os colchões, mas não há nada escondido ali embaixo.
Quando desce da cama mais alta, no entanto, pisa em uma tábua, uma única tábua do assoalho que range e parece afundar sob seus pés.
Mais uma vez, seu coração dispara.
Ela se ajoelha, colocando a bonequinha de tecido sobre a cama mais baixa, e cutuca a tábua.
Está solta, mas não muito.
! — precisa se controlar para não gritar.
O que pode estar escondido ali?
, preciso da sua ajuda!
Ele aparece correndo, o que não chega a ser necessário, uma vez que a casinha não tem mais que quatro cômodos.
Ele olha para no chão, as unhas fincadas na tábua, e desaparece por alguns instantes, voltando misteriosamente com um pé de cabra em mãos.
não parece saber exatamente o que fazer com a ferramenta, mas encaixa uma das pontas no pequeno vão entre as tábuas e começa a fazer força para tirá-la.
Funciona.
Até certo ponto. Porque, quando a tábua se levanta, voa para trás, se assusta e solta o pé de cabra, que vai parar direto em sua testa, enquanto ele, já desnorteado, cai com tudo em cima de .
Depois de todo o barulho do caos, há apenas silêncio.
está estirado sobre , sua cabeça pressionando o peito dela, e ela está em choque demais para falar qualquer coisa até ver o sangue.
A cabeça dele está escorrendo sangue.
? — ela o sacode, desesperada. — , pelo amor de Deus, me diz que você não desmaiou.
— Não. — ele murmura. — Porra.
Ela tenta rolá-lo para o lado com a maior delicadeza que consegue, para poder se levantar e efetivamente ajudá-lo, mas é muito mais pesado do que ela esperava, e só consegue se levantar na terceira tentativa.
— Meu Deus. — ela diz, olhando para . — Você ainda tá aí? , fala comigo! — o cutuca com o pé, e ele geme. — Não desmaie! Está me ouvindo? — ela espera ele dar algum sinal de que sim. — Não desmaie, porra!
Aqueles panos velhos no armário devem ter mais ácaros do que o restante do planeta inteiro, mas ela não consegue pensar em nada melhor naquele momento.
pressiona o que parece ser uma fronha de travesseiro na ferida aberta na testa de , com as mãos tremendo, agoniada em ver tanto sangue saindo ao mesmo tempo.
— Temos que te levar ao hospital. Você consegue levantar? Se apoiando em mim, você consegue levantar?
assente e, quando já está na metade do caminho para ficar de pé, ele trava.
— Mas e a Cece? — seus olhos estão perdidos de confusão, dor e tristeza.
tem vontade de abraçá-lo, mas isso não seria possível nem se fosse razoável, porque está usando toda sua força para tentar mantê-lo em pé.
— A gente volta quando você estiver melhor. Vamos.
Ele assente outra vez, e deixa guiá-lo até o próprio carro. O que não é uma tarefa nada fácil.
Depois que ela afivela o cinto dele, procura no GPS o hospital mais próximo.
E fica repetindo o caminho todo, para e para si mesma: “não desmaie, não desmaie, porra”.


15 —


Eles demoram pouco mais de três horas no hospital.
precisa fazer exames para se certificar de que não há danos ao cérebro, suturar a ferida na testa e tomar remédios para a dor.
Depois, há um instante de dúvida no carro. Devem voltar para Los Angeles ou voltar para a casa, ver o que pode haver sob a tábua que causou esse pequeno percalço?
— A gente não pode desistir agora, . — diz. — ele está um pouco sonolento por causa dos medicamentos, então fala com os olhos semicerrados, jogado no banco do carro como uma criança.
assente, secretamente comemorando.
— Tem certeza?
Ele segura a mão dela por um milésimo de segundo, olhando-a com a pureza de sempre, mas, dessa vez, acentuada pelos remédios.
— Tenho.

***


Quando chegam de volta à antiga casa de Jeremiah, ainda parece cansado, mas não tanto. A curiosidade dentro dele é um energético potente e, pelo menos por ora, vai mantê-lo de pé.
Os dois voltam para a pequena casinha nos fundos, onde a bagunça ainda está espalhada pelo chão: panos, sangue, uma tábua quebrada, um pé de cabra...
Parece uma cena de crime.
e começam a rir. Mas, depois, quando o silêncio se instala, nenhum dos dois se move.
A verdade é que é um passo grande demais.
Pode ter qualquer coisa escondida sob aquela tábua.
Ou nada.
Podem encontrar algo que mude tudo, para o bem ou para o mal.
Eles se encaram por alguns segundos e é como se fizessem um pacto silencioso de irem até lá juntos.
Os dois se abaixam — segurando o braço de com uma precaução ridícula — e olham o buraco onde ficava a tábua.
Não é tão fundo, e não há tanto a se observar.
Alguma coisa guardada em um saco plástico e um papel mofado, talvez uma carta, cujas letras e palavras se misturam em borrões, tornando partes inteiras ilegíveis.
tenta decifrar o que está escrito no papel, em espanhol, e sua leitura não é tão terrível para alguém com um ferimento recente na cabeça e drogado de remédios para a dor.

Pero sé que piensan ellos que me equivoqué en mi amor, que no sé lo que siento.
Pero sé que, cuando la última estrella brillar en el cielo, y tal vez mucho más tarde, mi amor no habrá cambiado.
Vives en mi materia, Cece. En mi cuerpo y en mi alma. Y por eso de mi memoria jamás te podré borrar.
Ni siquiera la muerte, que un día a mí me abrazará, no será suficiente para borrar cada uno de mis átomos que se enamoraron por tí.
Vivirás en mí hasta después de mí, mi dulce y amable Cece. Así el mundo habrá de recordarte.*


Com lágrimas nos olhos, abre o saco plástico, e tira de lá um papel telado enrolado como um pergaminho.
Nele, o desenho de uma jovem nua sob a luz do luar, que ilumina sua pele, refletindo tons de dourado pela noite, e que faz com que seus cabelos pareçam pertencer não a uma mulher, mas a uma deusa.
Se eles nunca encontrassem Cece, jamais poderiam dizer a ela quão amada ela fora. Quão amada ainda era.

balança a cabeça, atordoado.
, eu sinto muito. Acho que temos que voltar para Los Angeles agora. Você vai perder o trabalho amanhã e… eu posso voltar sozinho depois, para procurar a Matilda Saviñon. Talvez eu ache registros da família dela. De Cece.
o encara, e seus olhos marejados finalmente deixam as lágrimas escorrerem.
— Eu não vou voltar, . — ela diz. — Não quero voltar para Summerside. Não quando seu avô e… a Cece e… vocês me deram tantos motivos para sair da inércia de uma vida que eu odeio. — suspira, e seu nariz congestionado a faz sentir ainda mais vergonha. — Eu não posso voltar para casa sem ter a menor ideia sobre a Cece. Não posso.
Os olhos de também estão cheios de lágrimas.
E ele assente.
— Vou ligar para a Vera. Amanhã cedo nós começamos a procurar Matilda Saviñon.


16 —



Por incrível que pareça, há várias Matilda Saviñon em San Francisco.
O número diminui quando se considera apenas as que já morreram. E é menor ainda quando levam em conta somente a região de Lands End.
Eles já têm a lista com as Matildas restantes pouco depois do almoço. E olham para ela como se fosse uma bomba relógio.
e decidem não se separar para procurar. Vão juntos. Até todas elas.
— Meu celular não para de tocar. De Summerside. — explica, pesarosa, enquanto bloqueia o chamador e guarda o celular de volta na bolsa. — É horrível, eu sei. Eles vão ficar furiosos, com toda razão, mas não posso abandonar isso agora.
— Estamos perto, . — diz, massageando levemente seu ombro direito antes de entrarem no carro.
Ela não se lembra de mais ninguém ter lhe dado um apelido além de pessoas de sua família.
A sensação é estranha.
Como se não conhecesse há tão pouco tempo, e sim a vida inteira.

***


A primeira Matilda não teve filhos. Descobrem isso porque um senhor de mais de oitenta anos que mora na vizinhança onde ela viveu se lembra dela. Foi sua professora de espanhol quando ele era garoto. Partiu bem velha, sozinha de família, mas rodeada por amigos.
sente vontade de ficar e ouvir a história, mas sabe que não há tempo a perder. Ele deixa um de seus cartões de visita de editor com o homem, e diz que adoraria que ele entrasse em contato para continuar a conversa em outro momento.
O sorriso do senhor é tão sincero e cheio de gratidão, que sorri também.
Porque sabe que não está falando por falar. Ele se importa mesmo. Ele quer ouvir o restante da história, mesmo que não seja a história pela qual ele está procurando.
Eles vão embora logo depois.
A atmosfera dentro do carro é clara, por mais irônico que seja. A ansiedade toma conta de cada pequeno espacinho. Boa e ruim. Podem encontrar o que procuram no próximo endereço, na próxima porta. Ou pode ser o fim de tudo. Pode ser que não haja mais nenhum rastro.
É possível que vivam o resto de suas vidas como Jeremiah, perguntando-se por Cece.
Mas não quer aceitar a possibilidade desse final. E sabe que também não.
Depois de algum tempo em silêncio no carro, segue o olhar de até uma pequena sorveteria do outro lado da rua.
— A fim de um sorvete? — ele pergunta, parando o carro e subindo os óculos escuros.
Às vezes, parece que pequenos movimentos dele deixam com taquicardia. Talvez ela precise procurar um médico quando voltar. Ele só subiu os óculos… você já viu a bunda dele. PARE COM ISSO.
Eles descem do carro para a sorveteria, e garotinhos correndo passam a todo vapor pela calçada. Um deles parece atrasado em relação aos demais e, quando ele olha diretamente para , tudo se passa em câmera lenta.
Ela sabe exatamente o que vai acontecer. Ele vai passar por cima dela como um trator se for necessário.
Ele não tem nem um metro e meio, mas tem sangue nos olhos, e parece um touro. tem quase certeza de que, em algum lugar de seu transe, ela pode ouvi-lo bufar.
Quando finalmente acontece, ele não chega a passar por cima dela e esmagá-la na calçada, mas é realmente forte demais para uma criança, porque ele a empurra para o lado com bracinhos longos e magricelas e ela voa direto para cima de . Em seguida, pode-se ouvir o barulho do choque dos corpos contra a lataria.
Talvez não esteja apenas com problemas cardíacos, porque, quando olha ao seu redor e percebe que a está segurando pela cintura, com um aperto forte, os olhos vidrados de susto e tão perto dela que ela pode sentir seu cheiro tão perfeitamente, ela está pensando em Crepúsculo. Mais especificamente quando Edward salva Bella da van desgovernada de Tyler.
Ela vai precisar visitar um cardiologista. Isso é certeza. Mas precisa incluir um neurologista e um psiquiatra à lista.


17 —


— Tem certeza de que você está bem? — pergunta, pelo que deve ser a milésima vez.
Dessa vez, só assente.
— E o seu carro? Tem certeza de que não…
— Não estragou nada, . Não somos tão pesados assim. — ele sorri, levando uma colher de sorvete de baunilha com flocos de arroz à boca.
Tem cinco sabores no potinho dele, mas nunca encontrou ninguém mais que gostasse de colocar flocos de arroz no sorvete.
É provavelmente por isso que ela não consegue parar de olhar para ele, talvez até sem piscar. Adicionar à lista: oftalmologista.
talvez lhe cause um colapso.
Mas isso só pode acontecer depois que encontrarem qualquer coisa sobre a Matilda que estão procurando.

***


Também não é a segunda.
Essa só teve filhos, e e conhecem um deles, que não é nada receptivo.
Ele xinga em espanhol e em inglês e os ameaça com uma vassoura para irem embora.
e saem correndo.
Quando estão dentro do carro, sentindo-se mais seguros — apesar de os gritos de hijos de una puta do senhor continuarem —, começam a rir sem parar.
tem uma sensação — uma breve sensação — de que a pequena aventura em busca de Cece é, ao mesmo tempo, uma amostra do que é realmente viver, e a semente de seu grito de liberdade.


18 —


Quando estão dirigindo para o endereço que deve levá-los a algo relacionado à terceira Matilda, o celular de toca, estridente, em seu bolso.
É irritante, porque ela está quase pegando no sono, mas se arrepende de pensar assim quando vê quem é.
Sua avó.
Dónde estás, mi amor?
suspira.
Esquecera-se de contar para a avó, e não aparecera para visitá-la nos últimos dias. É claro que a deixaria preocupada.
— Estou bem, vovó. Estou em San Francisco. Desculpe por não avisar.
San Francisco? En la playa? Vacaciones?
— Bem… sim, mas… não estou de férias, vovó. Devo estar de volta logo, está bem?
Te extraño, mi amor.
— Também sinto sua falta, abuelita.
consegue ouvir o risinho de satisfação de sua avó do outro lado da linha antes de desligarem.
Depois de sofrer um AVC, três anos antes, sua avó descobrira ser mais fácil comunicar-se em sua língua-mãe, ainda que entendesse muito bem o inglês. Só era, por vários motivos, mais fácil falar espanhol. E toda a família — , em especial — adorava ouvi-la.
— Sua avó? — pergunta, com seu sorrisinho característico no rosto, sem tirar os olhos do caminho.
— Sim. Eu… sou uma pessoa horrível. Me empolguei tanto com a história da Cece e da Matilda que esqueci completamente de avisá-la. Ela deve ter esperado por mim e eu não apareci para vê-la nenhuma vez.
balança a cabeça, negando, e, num gesto puramente instintivo, faz uma carícia de consolo na perna de .
— Ela com certeza não pensa que você é a pior pessoa do mundo. — ele diz. assente, verdadeiramente agradecida, até ele dizer: — Talvez a segunda.
Quando ela olha para ele sem entender nada, dá de ombros e, com um sorrisinho malicioso, diz:
— O presidente do nosso país é uma laranja preconceituosa. Tem sempre alguém pior que você.
solta uma gargalhada que também o faz rir.


19 —


e se entreolham, esperançosos, antes de apertar a campainha na casa da terceira Matilda.
O sol já está se pondo, e parece pouco educado aparecer assim, mas eles já não podem mais se importar tanto com as regras de etiqueta.
Jeremiah não pode esperar para sempre.
Uma jovem simpática abre a porta.
— Em que posso ajudar?
prontamente começa o discurso que decorou assim que foram à primeira casa.
A garota balança a cabeça, e a esperança de esmorece.
— Minha família mora aqui há anos. — a garota diz. — Meus avós já faleceram, e meus pais não se lembram o nome da antiga dona da casa, pode muito bem ser Matilda, mas tem algo aqui que pode ajudar vocês. Ou não. Eu não sei muito bem. — ela dá de ombros. — Venham. Entrem.
Eles a seguem para dentro da casa, que é pequena, mas bonita e organizada, até um quarto no final do corredor.
A garota gosta das mesmas bandas que , e ela quer dizer isso, mas fica quieta, porque quer mais descobrir o que ela tem que pode ajudá-los.
— Meu nome é Maureen, aliás.
Os dois também se apresentam, e ela leva até a porta do quarto uma caixinha cor de rosa, de onde tira duas fotos antigas, quase sépia.
— Estavam num móvel antigo. Eu encontrei quando era criança, e guardei para mim. Achei que ela era muito linda.
Maureen entrega primeiro uma foto para eles e, no mesmo instante em que bate os olhos nela, o coração de se acelera. Ela conhece aquela pessoa.
Ela deixa que segure a foto e, sem dizer nada, tira o celular do bolso e sai da casa.
Ela conhece aquela pessoa. Tem que conhecer. Porque é igualzinha a ela.
— Mamãe?
? Como assim você está em San Fran…
— Mamãe, pelo amor de Deus. Não faça perguntas agora. Só me escute, ?
Você está me assustando. O que está havendo?
— Mamãe, eu preciso que você me mande aquelas fotos da vovó jovem. E preciso que mande agora.
Para quê?
Pelo amor de Deus, não me faça perguntas! Me mande as fotos, agora!
Não é possível… não é possível. Não é possível.
Em alguns segundos — que parecem uma eternidade — o celular de apita.
São as fotos de sua avó quando era mais nova.
É possível.
Sua avó é a garota da foto.
Tudo parece acontecer ao mesmo tempo.
começa a chorar copiosamente.
aparece do lado de fora, eufórico, segurando a outra foto na mão.
— É o meu avô! — ele exclama, mostrando a foto para ela.
Um casal de mãos dadas numa feira de variedades.
Jeremiah e sua Cece.
Jeremiah e a avó de .
Jeremiah e Dulce.
Tudo faz sentido de uma maneira dolorosa.
Como é possível?


20 —


Estão os dois sentados na sala de estar da casa onde mora Dulce, a avó de .
Embora tenha certeza, precisam confirmar.
Jeremiah tem Alzheimer, mas a memória de Dulce ainda é perfeita.
Não é preciso muito para ter certeza.
só precisa colocar sobre a mesinha de centro a foto da feira de variedades e o papel telado com o retrato à luz da lua.
Os olhos de Dulce se enchem de lágrimas no mesmo instante.
Ela cobre a boca, incrédula.
Depois balança a cabeça, em negação, quase freneticamente.
Ela não olha para ou para .
Só para a foto e para a pintura.
Como? — pergunta.
aponta para o jovem na fotografia.
— Este homem é meu avô.
Dulce o encara, e tem absoluta certeza de que sua avó está em pânico.
Suas mãos tremem, e ela não diz mais nenhuma palavra.
. — Dulce finalmente diz. — Preciso que venha comigo até o meu quarto.
já sabe o que está acontecendo e, quando caminha de braços dados com a avó, seus olhos derramam todas as lágrimas que precisam ser derramadas.
É melhor que seja logo. É melhor que seja tudo de uma vez.
— Ele é o pai da minha mãe. — diz, assim que a porta se fecha. — Ele é, não é? O Jeremiah é o pai da minha mãe?
Ela não consegue parar de falar.
Precisa da resposta, mas não quer ouvi-la.
Com lágrimas nos olhos, Dulce assente.
— Ele é. — responde, esticando o braço para segurar as mãos da neta entre as suas. — Sinto muito, querida. Sinto muito.
assente.
Ela também.


21 —


Antes de encontrar-se com a família para a grande revelação, passa em Summerside Shelter.
Precisa pedir demissão.
Agora não mais apenas porque finalmente assumiu que é necessário se libertar dali, mas porque precisa se libertar de tudo.
Já tem a passagem comprada.
Vai se mudar para Londres. Pelo menos por um tempo.
Todo o dinheiro que juntou para os cursos que nunca fez, vai usar para fazer um dos melhores.
Longe de toda a bagunça que vai ficar para trás em Los Angeles.
Pode ir sem culpa, agora que encontrou a Cece de Jeremiah.
Estava ali o tempo todo.

***


Ela não consegue ouvir nada. Não de verdade.
Não consegue ouvir sua avó contando que Cece era como ela gostava de ser chamada para parecer americana.
Não consegue ouvir Jeremiah falando como nos bons tempos — antes dela conhecê-lo.
Não consegue ouvir quando Dulce finalmente conta que Jeremiah é o avô de .
Pai da única filha que teve.
A mãe de chora. Abraça a avó e a mãe de . Outra mulher começa a murmurar — mais alto do que acredita, é claro — sobre exames de DNA e herança.
É tudo uma bagunça.
não sabe no que se concentrar.
Mas foca nas mãos entrelaçadas de sua avó e Jeremiah — seu avô — como se o tempo nunca houvesse passado.
Inconsciente e automaticamente, seus olhos encontram os de , que parece curioso e decepcionado com alguma coisa.
? — ele chama.
Não é baixo, mas a revolução de uma nova família, de uma nova vida começando não vai parar por isso.
Ela não diz nada, apenas balança a cabeça para demonstrar que está prestando atenção.
— A gente pode… conversar um minuto?
temera fervorosamente essa possibilidade. Pedira aos céus inúmeras vezes que tudo corresse bem, que ela fosse embora sem ter que conversar com ele. Porque ela sabe que não pode. Mesmo ele sendo seu primo, o que ela sente ainda está ali dentro, e ela não pode.
o segue até o lado de fora, onde estiveram apenas algum tempo antes, antes de partirem para San Francisco.
— O que… — ele começa, mas não tem coragem de continuar. está encarando os pés, chutando areia de um lado para o outro. — O que eu entendi errado? — ele finalmente pergunta.
franze o cenho, confusa.
Ahn? — é tudo que ela consegue emitir.
— É… não tem outra pergunta que eu possa fazer. — diz, parecendo irritado. — Eu não sou a pessoa mais inteligente do mundo para essas coisas, mas também não sou um idiota. E eu achava que, correndo o risco de parecer um pré-adolescente, eu achava que você gostava de mim.
fica boquiaberta.
— Mas que caralhos você está dizendo? Nós somos parentes! Se eu gosto de você ou não, agora não importa mais! Você bateu com a cabeça?
Dessa vez é quem solta um:
Ahn? — e ele demora alguns segundos com uma expressão de completa confusão, que depois se suaviza. — Nós não somos tecnicamente parentes, . Meus avós adotaram três meninas, irmãs biológicas, porque minha avó era estéril.
Ahn?
A vida de parece estar virando, em minutos, um besteirol americano ridículo e sem sentido.
— Não tem graça, . Não tem graça alguma. Se você soubesse, se você sequer imaginasse o que eu estou sentindo e o quanto estou sofrendo e me odiando por ter me apaixonado por você, você não faria piada com isso, seu idiota-babaca-prepotente-mimado! — ela fala tudo tão rápido que parece uma palavra só.
começa a rir, uma gargalhada sincera, e seus olhos ficam marejados.
— Você está apaixonada por um idiota-babaca-prepotente-mimado?
— Que é meu primo, e ainda por cima é sem noção! — ela berra, atacando-o com tapas.
a segura pelos cotovelos.
— Eu não sou seu primo. Meu avô não é meu avô biológico. Não tem absolutamente nada de errado legal ou biologicamente, ou religiosamente, se você estiver pensando nisso. — ele diz. — Não é, pessoal? — ele olha para o lado, e segue seu olhar.
Estão todos ali.
Toda a família de Jeremiah e de Dulce também.
— Ah, , puta que pariu. — murmura, entredentes.
Ele continua rindo.
— Nada de errado! — a mãe dele grita, com um sorrisinho no rosto.
não consegue evitar rir também.
— Agora que você sabe que não é errado nem na biologia, nem na lei, nem na religião, será que eu posso beijar você, ? Porque eu meio que estou querendo fazer isso há um tempão.
Ela solta uma gargalhada, e assente, enquanto tira as mãos dos cotovelos dela e as leva até sua cintura.
Quando seus lábios se encontram, definitivamente não parece errado. De nenhuma maneira.
É como se tudo tivesse conspirado exatamente para aquilo.


EPÍLOGO —


— Você o quê? — pergunta, se inclinando para a frente dela no balanço que estão dividindo perto da piscina.
— Pois é… vou me mudar para Londres em dois dias. — ela responde, em um sorriso que é mais careta que sorriso.
— Porra. — ele diz, batendo as mãos nas pernas cobertas apenas pelas bermudas brancas. — Ainda bem que eu não me adaptei ao calor.
franze uma sobrancelha, olhando para ele.
— Passagem marcada para o dia que você quiser. — ele diz. — Se você quiser.
Ela assente, aproximando-se para dar um beijinho rápido nele. Depois, sorri.
— Eu percebi. — diz.
— Percebeu o quê? — pergunta, curioso.
— Que você não se adaptou ao calor. — continua a olhar para ela sem entender. — Sua bunda é bonitinha, mas é muito branquela.
Ele olha para ela, indignado, e depois começa a fazer cócegas, fazendo-a gargalhar.
Não demora muito para que ouçam o barulho. E menos ainda para que sintam o impacto.
Do balanço quebrando e os dois despencando no chão, ainda sob gargalhadas, incapazes de serem outra coisa que não felizes.


Fim.



Nota da autora: Sem nota.




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Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.


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